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os DEVERES NA ERA DOS DIREITOS

ENTRE ÉTICA E MERCADO


IDOVERINELEERA DEI DIRITTI
TRA ETICA E MERCATO
V

a cura di

Maria Cristina De Cicco

EDITORIALE SCIENTIFICA
Napoli

IFiíWIAE teoria
gemido direho
L-BIBLIOTECA
II volume c stafo sot topos to alia proccdura Double fíltnd Peer Revtew c puhhlicalo ancho grazie
contributo delia Seuola di Giurisprudenza dcll ldniversilà dcglt Studi dt Camerino.

Proprietà letteraria riservata

Copyright © 2020 Editoriale Scientifica S.r.l.


Via San Biagio dei Librai 39
Palazzo Marigliano
80138 Napoli

ISBN 978-88-9391-982-1

í
O PAPEL DOS DEVERES NA CONSTRUÇÃO
DA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL:
REFLEXÕES DE UMA CIVILISTA

Maria Cristina De Cicco

Sumário: 1. Introdução. - 2. Deveres e mercado. - 3. Dever e solidariedade. - 4. 0


momento atual. - 5. A constitucionalização dos deveres. - 6. Solidariedade, res­
ponsabilidade por culpa administrativa, proteção dos dados pessoais. - 7. Dever,
solidariedade e cidadania. - 8. Princípio da solidariedade e abuso do direito. - 9.
Considerações conclusivas.

1. O meu interesse pelo tema dos deveres, não em contraposição, mas em


correspondência aos direitos nasce de uma reflexão que venho fazendo sobre o
efeito da corrupção no direito das pessoas. Durante uma pesquisa inicial espe­
cífica sobre o tema, percebi um grande ausente: o dever e uma presença maciça
de direitos. Andando mais a fundo resultou claro que o tema dos deveres, para
a doutrina, não era novo e não era totalmente ausente, mas simplesmente, não
era tão relevante ou tinha pouca incidência. O lado positivo era que todos os
que se ocupavam de deveres afirmavam a necessidade de uma maior conscien­
tização desses deveres, que não são somente morais, para a consolidação da
democracia e portanto para a construção de uma legalidade constitucional1. A
ausência de deveres refere-se, fundamentalmente, ao senso comum das pessoas
posto que se fala frequentemente em direitos, reivindicam-se direitos, todavia,
sem a necessária contraposição com «deveres».
O tema na Itália não é novo2 porquanto Giuseppe Mazzini, já nos idos de
1800 afirmava, que «não existem direitos senão em razão de deveres realizados»3.
Do mesmo modo, Simone Weil, em plena euforia que seguiu à Declaração Uni­
versal dos Direitos do Homem de 1948, não deixou de evidenciar a precedência

Professora Associada de Direito Privano na Universidade de Camerino.


1 «Nada parece mais urgente do que uma retomada da linguagem dos deveres» é a significa­
tiva frase de abertura do ensaio de T. Greco, Prima il dovere: una critica delia filosofia dei diritti,
em S. Mattarelli (org.), II senso delia Repuhblica. Doveri, Franco Angeli, 2007, p. 15.
2 Para uma abordagem histórica, v., infira, A. AtiÈ, Regime de Estado e Regime de Mercado:
Direitos e deveres na construção da democracia-, F. Mercogliano, Direitos-deveres, cidadania e
comunidade. Roma antiga (e Camerino, hoje e ontem)..
1 G. Maz/JNI, Doveri delfuomo, disponível em http://www.storiologia.it/mazzini/al860aa .
htm. Sobre a atualidade do pensamento de Mazzini, v. S. Mattaremj, Dialogo sui doveri. IIpen-
siero di (liuseppe Mazzini, Marsilio Editori, 2005.
14 De Cicco - O PAPEL dos deveres na construção da legalidade constitucionAi

dos deveres sobre os direitos e que não existem direitos sem deveres correspon.
dentes ao afirmar que «Um direito não é efetivo em si, mas apenas através do
dever a que corresponde; a realização real de um direito não vem daqueles que o
possuem, mas de outros homens que se reconhecem, em relação a ele, obrigados
a fazer alguma coisa»'1. Para a autora, «o dever, mesmo que não fosse reconheci­
do por ninguém, não perderia nada da plenitude de seu ser» enquanto «um di­
reito que não é reconhecido por ninguém não vale muito.». Nesse sentido, «um
homem que estivesse sozinho no universo não teria direito, mas teria deveres».
A validade dessa assertiva encontra uma correspondência no brocardo ubi
societas ibi ius. O que não deixa de ser verdade. Basta pensar em Robison Cru-
soe, que direitos ele poderia pleitear durante o periodo de isolamento na ilha?
Nenhum, mas isso não obstante, tinha deveres, em relação a ele mesmo ou de
preservação do meio ambiente, por exemplo, para poder sobreviver.
Como já observara Gustav Radbruch, «a necessidade do Direito só se ma­
nifesta quando a pessoa vive em grupo», de fato, «somente quando Eva se uniu
a Adão, Robinson a Sexta-Feira, começou a ter validade para eles, ao lado da
moral, o Direito» porque o Direito pressupõe sempre a presença do outro,
sendo um regulador da vida social45. Com efeito, pleiteamos direitos quando se
rompe o equilíbrio entre direitos e deveres porque o outro descumpriu o seu
dever legal ou contratual em relação à nós.
Poder-se-ia dizer, então, que mais do que direitos, temos direito à tutela
e à proteção? Norberto Bobbio já afirmava que o problema não consistia em
pleitear mais direitos, mas sim, garantir a concretização daqueles já existentes6;
que a era dos direitos tenha se tornado saturada é confirmada pelo desejo não
realizado de Bobbio de abordar e aprofundar o discurso sobre deveres com um
volume sobre «A era dos deveres»7.
E comum afirmar que são muitos os direitos ou são muitos os deveres,

4 S. Weil, La prima radice. Preludio ad una dichiarazione dei doveri verso 1’essere umano,
trad. di E Fortini, SE, 1990.
’ G. Radbruch, introduzione alia scienza dei diritto a cura de Dino Pasini, Giappichelli,
1961, p. 85.
6 O próprio Bobbio, na sua «Autobiografia», proferiu palavras duras sobre as inúmeras
proclamações de direitos, em particular de «direitos humanos», rotuladas como «uma invenção
que permanece mais anunciada do que realizada», dada a violação sistemática desses direitos em
quase todos os países do mundo «nas relações entre poderosos e fracos, entre ricos e pobres,
entre quem sabe e quem não sabe». Sobre esse ponto cf. S. RoixtrÀ, Perche i diritti non sono un
lusso in tempo di crist, em www.repubblica.it, para quem «o problema concreto não é o excesso
de direitos, mas sua negação cotidiana determinada pelas desigualdades, pobreza, discrimina­
ção, a rejeição do outro que, negando a dignidade da pessoa, contradiz aquela “política da
humanidade” ligada ã questão dos direitos».
7 N. Bobbio e M. Vjkoli, Dialogo intorno alia repubblica, Laterza, 2001, p. 40.
16 De CtCCO - O PAPEL DOS DEVERES NA CONSTRUÇÃO DA LEGALIDADE CONSTTTUCIONAl

mas na realidade, não se trata de uma questão de quantidade, mas sim de


equilíbrio. Ter consciência dos próprios deveres significa perceber que as suas
pretensões não são e não podem ser absolutas, devendo, ao contrário, levar em
consideração as dos outros e respeitar as regras de convivência civil.
Os direitos são a essência da democracia enquanto limitam os poderes pú­
blicos e os arbítrios dos particulares, salvaguardando as esferas de autonomia
individuais e garantindo o crescimento dos indivíduos e da coletividade. Toda­
via, como alerta Zagrebelsky5, quando «a lógica dos direitos se torna insaciável
coloca problemas de convivência e perigos de prepotentes abusos» tornan­
do necessário chamar a atenção para com os deveres. Conceito de dever que,
atualmente, não mais está relacionado ao conceito de supremacia do Estado,
tratando-se, ao contrário, «de deveres recíprocos, entre iguais», com a cons­
ciência, contudo, de que nos deveres «os espaços para os direitos abrem-se se
e quando forem consentidos»8 9.
De fato, se é verdade que a democracia se desenvolve mediante a afirmação
dos direitos, ela se consolida mediante a prática dos deveres e o senso de res­
ponsabilidade do indivíduo perante a comunidade. Sim, porque uma democra­
cia não vive somente de direitos, mas necessita também do respeito das regras
e dos princípios morais10.

2. Os deveres dizem respeito a todos nós e a todos os setores da sociedade11


e trazem em si a responsabilização ética do indivíduo. Em relação ao mercado,
por exemplo, os consumidores têm o dever do controle ético, boicotando as
empresas que éticas não são em suas políticas aziendais. Em apoio a essa afir­
mação, pode-se citar o exemplo, ainda que um pouco datado, mas emblemá­
tico, do boicote organizado por uma Associação dos consumidores americana

8 G. Zagrebelsky, Dirittiperforza, Einaudi, 2017, p. 67.


9 G. Zagrebelsky, o.c., pp. 94 s. e 100, para quem o dever deve ser entendido hoje «como
resposta a um apelo à responsabilidade pela condição dos próprios contemporâneos e por aque­
les que devem poder vir depois de nós» (p. 94). Os direitos das gerações futuras, em suma, que
foram objeto da proposta de uma «Carta dos direitos das gerações futuras» apresentada por
Jacques-Yves Cousteau à ONU e aprovada em 1991, atraindo a adesão de mais de 100 países.
Cousteau, para a ocasião, disse «amanhã, eu quero que os direitos daqueles que nos sucederão
sejam inscritos nos deveres daqueles que existem».
w M, ViKOLl, Lbalia dei doveri, Rizzoli, 2008, que coloca em relação deveres e liberdades
quando afirma que «Sem magistrados e sem forças policiais com sentido de dever, a segurança da
pessoa e dos bens só pode degenerar no arbítrio dos violentos e da criminalidade. Sem médicos
e profissionais de saude com senso de dever, o direito à saúde torna-se uma ficção cruel. Sem
professores com senso de dever, o direito à educação e à cultura continua sendo privilégio de
poucos»,
11 Para uma análise do tema no âmbito familiar, v., infra, F. Moreira Freitas da Silva, Os
novos desafios da educação dos filhos na sociedade digital.
18 De Cicco - O PAPEL DOS DEVERES NA CONSTRUÇÃO DA LEGALIDADE CONSTITUO

em relação aos produtos da Nike resultantes de trabalho escravo e de trabalh0


infantil que levou a empresa multinacional a rever a própria política empre,
sarial no sentido de maior respeito e empenho em combater a exploração d0
trabalho escravo e do trabalho infantil.
Mas o consumidor também tem o dever de evitar a astúcia de turno: isto
é, não tirar proveito dos erros em boa fé dos comerciantes pretendendo, pOr
exemplo, pagar um preço evidentemente inferior àquele de mercado em razão
da involuntária indicação incorreta do preço na etiqueta, por exemplo 10 reais
ao invés de 1000 reais ou 100 reais ao invés de 10000 reais.
Os deveres não impactam somente os indivíduos, mas também e princi­
palmente as pessoas jurídicas, entes públicos ou privados. Ao falar de solida­
riedade e mercado destaca-se o potencial conflito que pode surgir entre a ló­
gica estritamente egoísta dos sujeitos que atuam no mercado e a solidariedade
entendida como os atos que os poderes públicos preveem para a proteção de
direitos, normalmente definidos como social12. Na verdade, a natureza soli­
dária e personalista da Constituição sobrepõe ao interesse econômico pessoal
do empresário o interesse social e a proteção da pessoa, central para o sistema
jurídico italiano13. Nessa perspectiva, a norma ex art. 41 Const., que garante a
iniciativa econômica privada, indica um rumo ético e jurídico da vida econô­
mica e, portanto, pode-se dizer que seja sintomática da hierarquia de valores
do ordenamento jurídico14. A iniciativa econômica é, de fato, um valor, mas
não absoluto, porquanto deve ter uma utilidade social que, no entanto, não
pode prejudicar a liberdade, a segurança e a dignidade humana15. A liberdade
de iniciativa privada é, assim, limitada internamente posto que funcionalizada
à função social.
Se por muito tempo as empresas se mostraram relutantes com os direitos
e interesses dos stakeholders hoje assistimos a um processo cultural em que a

12 Para uma abordagem que busca superar o senso comum da economia tradicional tran­
sitando para a alocação de recursos mais eficientes, v., infra, C.E. Gentilucci, Os deveres do
mercado: a economia como um livro-de-artista.
15 V., em relação ao sistema jurídico brasileiro, infra, A. Hirata, Constituição brasileira de
1988: muitos direitos e poucos deveres?-, M. Caggiano, A Constituição Econômica na Constituição
brasileira de 5 de outubro de 1988.
14 V,, amplius, P. Perungieri, Mercato, solidarietà e diritti umani, in Rass. dir. civ., 1995, p.
84 ss.
15 Cf N. Lipakj, Riflessioni di um giurista sul rapporto tra mercato e solidarietà, in Rass. dir.
civ., 1995, p. 32, para quem, no pressuposto que «o homem nunca pode ser meio, mas o fim de
cada atividade ou disciplina», a característica essencial da dimensão jurídica do mercado é dada
pelos seus limites, de modo que «política e economia se justificam somente enquanto estão ao
serviço do homem e não vice-versa».
20 De Cicco - O PAPEL DOS DEVERES na construção DA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL

ética penetra cada vez mais nas relações econômicas16 e muda gradativamente
a percepção do papel da empresa na sociedade contemporânea, além de di­
recionar sua ação. Nessa perspectiva, a crescente atenção das novas gerações
ao impacto social17 e ambiental das empresas, certamente, tem um peso. Uma
sensibilidade que leva as empresas a trabalhar mais com a reputação como uma
chave para investir no futuro.
Um recente resultado importante da conscientização dos deveres antes
mesmo dos direitos por parte das empresas18 pode-se ver no documento fir­
mado por duzentas das maiores empresas americanas, que participam do Dhe
Business Roundtable em que negam o mantra «antes de tudo os acionistas»
que há anos orienta as políticas corporativas. Para criar valor, afirmam agora,
devem também voltar o olhar ao impacto ecológico, ao respeito pelos clientes
e às condições dignitosas oferecidas aos empregados.
No mesmo sentido, insere-se a posição assumida recentemente pela Coca
Cola e outros colossos, que unindo-se ao boicote promovido pela campanha
Stop Hate for Profit contra os social media acusados de não adotarem provi­
dências suficientes para combater a presença de conteúdos de ódio e raciais
nas suas plataformas, declararam a intenção de suspender por um período a
própria publicidade nessas plataformas.
Essa tomada de decisão, na realidade, responde à conscientização por par­
te das grandes empresas da importância da reputação para fins do faturado,
principalmente na atual era dos social, quando, se por um lado, uma boa práti-

16 Sobre a dimensão ética da economia v., infra, R ScHlATTARELLA, Os valores do neoliberis-


mo são incompatíveis com aqueles da democracia?} N. Tedesco, Ética, economia e direito.
17 CE, em relação ao setor da moda, frequentemente ao centro das atenções por violações,
ainda que indiretas, dos direitos dos vulneráveis, R Garetto, Sostenibilidad, responsabilidad
y slow fashion en un escenario post-pandémico, in J. Rodriguez Donoso y C. Vidal Beros (org.),
Derecho de la Moda, Tirant lo Blanch, no prelo.
’8 As primeiras iniciativas institucionais, em nível internacional e nas Nações Unidas, foram
desenvolvidas desde a década de 1990 no contexto da proteção dos direitos humanos e da pro­
moção do desenvolvimento sustentável. Após a cúpula do Rio de Janeiro em 1992, a ONU abor­
da o problema das deslocalizações convidando grandes multinacionais a firmar acordos comer­
ciais que protejam os direitos humanos básicos, com atenção especial aos direitos dos menores
de idade, dos trabalhadores e do meio ambiente. Com o tempo, o trabalho de conscientização
leva ao nascimento de um projeto inovador.* o Pacto Global de 2000 (www.unglobalcompact.
org), um acordo que reúne empresas, agências da ONU e expressões da sociedade civil (sindi­
catos, ONGs, universidades ) para «promover direitos de cidadania social responsável para que
as empresas possam ser parte da solução aos desafios da globalização». O projeto visa perseguir
inicialmente nove, que mais tarde se tomaram dez, objetivos que vão desde a proteção dos
direitos humanos fundamentais ao cumprimento das normas mínimas de trabalho, da proteção
ambiental ao combate à corrupção. Sobre esse ponto v., infra, C. Gulotta, O dever de diligência
como instrumento para a regulamentação das cadeias globais de fornecimento.
22 De C.icco - O l’AI’1'1, DOS DUVIiHUS NA CONSTRUÇÃO DA I.EGAMDADE CONSTITUCIONAL

ca pode sc tomar vit al, aumentando a visibilidade da empresa, por outro lado
basta um passo em falso para comprometer sua fama, por vezes, irremediavel­
mente. É lógico, portanto, que mesmo com esse comportamento mais respon­
sável as empresas continuam garantindo e perseguindo o próprio lucro, mas o
importante é que esse objetivo passaria a ser alcançado não mais e somente ã
custa dos stakeholders.

3. O propósito racional do dever legal é a realização do pacto democrático


também em seus aspectos organizacionais da vida social, de modo que quando
os deveres não são reconhecidos, perecem tanto a sociedade quanto as insti­
tuições políticas19. Um exemplo emblemático temos com a corrupção20 e no
momento atual, com o comportamento das pessoas durante a pandemia.
O dever representa um limite à liberdade de agir em nome de um valor
que essencialmente diz respeito à relação com os outros, à unidade política e
ao princípio da igualdade. E um limite interno e como tal modela o conteúdo
mesmo do direito ou da liberdade que lhe corresponde. Isso significa que «o
direito de cada um não encontra um limite somente no direito de outros, mas
também na necessidade que cada um cumpra “os deveres inderrogáveis de
solidariedade econômica, política e social”» ex art. 2 cost. Dessa forma, «o
contexto de civilização no qual as pessoas podem se realizar, exercer ou exigir
os próprios direitos e desenvolver as próprias ambições legítimas»21 seria ga­
rantido pelo equilíbrio entre direitos e deveres. Nesse sentido, pode-se afirmar
que «os deveres todos têm a vocação de dar uma orientação ética à experiência
humana»22. *
Apesar da Constituição italiana ter sido muito generosa ao reconhecer
os nossos direitos, mas muito pouco ao reconhecer nossos deveres25, desde o
início os Constituintes italianos evidenciaram o vínculo entre direitos e solida­
riedade24. Já na Primeira Subcomissão, o texto dos relatores La Pira e Basso
indica o duplo objetivo do reconhecimento dos direitos inalienáveis e sacros:
«assegurar a autonomia e a dignidade da pessoa» e «promover ao mesmo tem­
po a necessária solidariedade social».

19 L. Vioi.ANTii, // dovere di avere doueri, p. 63.


2U Cf., na perspectiva aqui afirmada, M.C. Dh Cicco (a cura di), C.orruzione Brasile-lialia.
Problematicbe a confronto, Editoriale Scientilica, 2019.
21 L. VlOI-ANTI!, O.l.U.C.
22 Assim, A. Ruggiíki, Doverifondamentali, etica repubblicana, teoria delia eostituzione (note
minime a margine di un convegno), em R. Baumizzi, M. Cavino, E. Grosso e J. Lutiii R (a cura
di), / doveri coslituzionali: la prospettiva dei giudiee delle leggi, Giappichelli, 2007, p. 566.
21 Também no Brasil, como aíirnia A. 1 llKATA, o.c.
24 G. Basciii rini, La doverosa solidarietà coatituzivnale, in Dir. pnbbl.,2/2018, p. 245 ss.
24 Dc ('/'cm - O papei, nos deveres na construção da legalidade constthjctonal

A Corte constitucional esclareceu bern esse vínculo na sentença 75/19922’,


reafirmando que a solidariedade, «expressão da profunda socialidade que ca­
racteriza a pessoa», c um princípio posto pela Constituição «entre os valores
fundamentais do ordenamento jurídico, a ponto dc ser solenemente reconhe­
cido e garantido, junto aos direitos invioláveis do homem, pelo art. 2 da Const.
como base da convivência social normativamente prefigurada pelo Constituin­
te». Por essa via fixa-se de modo seguro o valor vinculante do princípio do art.
2 na sentença 167/1999, quando a Corte reforça essa posição afirmando que a
convivência social deve ser construída com base no princípio de solidariedade,
dado que a Constituição «coloca como objetivo final da organização social, o
desenvolvimento de cada pessoa humana»25 26.
O dever de solidariedade opera não somente nas relações entre Estado
e indivíduo, mas também entre particulares27. Um exemplo concreto de efe­
tivação desse dever em nível horizontal temos em uma sentença da Corte de
Cassazione2* com objeto um contrato de aluguel que previa não só a cláusula
de proibição de sub-locação, mas também a proibição de hospedar non tem­
porariamente pessoas estranhas ao núcleo familiar do inquilino. No caso de
espécie, o inquilino estava hospedando um parente desocupado e que por isso
passava por momentos de graves dificuldades econômicas. O locador pediu a
rescisão do contrato por incumprimento dessa clausula específica, vencendo
em primeira e segunda instância. A Cassazione, aplicando diretamente os prin­
cípios constitucionais, cassou a sentença de segundo grau argumentando que a
cláusula contratual violava o princípio constitucional de solidariedade em geral
e de solidariedade familiar29.

25 Corte cost., 17-28 de fevereiro de 1992, n. 75, in www.cortecostituzionale.it, que eleva


o voluntariado a «uma realização mais direta do princípio da solidariedade social, para o qual
a pessoa é chamada a agir não por cálculo utilitário ou pela imposição de uma autoridade, mas
pela expressão livre e espontânea da profunda socialidade que caracteriza a pessoa em si».
26 Corte cost., 29 aprile-10 maggio 1999, n. 167, in www.cortecostituzionale.it, que declara
a ilegitimidade constitucional do art. 1052, par. 2, c.c. na parte em que não prevê que a passagem
forçada referida no par. 1 poderá ser deferido pela autoridade judiciária quando esta reconhecer
que o pedido atende às necessidades de acessibilidade - nos termos da legislação relativa aos
deficientes - de edifícios destinados ao uso residencial.
27 Cf. M. Luciani, ,S«z diritti sociali, in Studi in onore di Manlio Mazziotti di Celso, 11, C e­
dam, 1995, p. 129, que afirma: «A ideia de solidariedade traz consigo a de comunidade, e nas
comunidades é natural que os membros tendam a ser vinculados mais por laços morais, em que
as posições recíprocas de dever são exaltadas, do que por laços jurídicos onde se exaltam as
posições recíprocas de direito.»
28 Cass. civ., 111 sez., 19 de junho de 2009, n. 14541; orientamento confirmado sucessiva­
mente pela Cass., civ., 111 sez., 18 giugno 2012, n. 9911.
29 Substancialmente no mesmo sentido, coloca-se a 5* Câmara do 1RI - 12“ Região, n.
0000791-21.2014.5.12.0013, de junho de 2020, apesar de não ter fundado a própria decisão no
26 De Ctcco - O PAPEL dos deveres na construção DA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL

O sistema jurídico italiano, portanto, baseia-se na correspondência entre a


força executiva dos direitos e dos deveres de solidariedade e, assim, na respon­
sabilização e plena realização da pessoa30. De fato, enquanto o individualismo
consiste apenas na atribuição de direitos, o personalismo envolve um conjunto
de direitos e deveres de modo que a liberdade sia sempre fonte de responsa­
bilidade. Neste contexto, a primazia dos direitos da pessoa é afirmada pelo
princípio personalista, na medida em que o princípio da solidariedade impõe a
obrigatoriedade dos deveres que pesam sobre todos os membros da sociedade
e visa garantir o desenvolvimento pleno e harmonioso dos indivíduos. Só assim
o valor da igualdade será plenamente implementado, permitindo a concreta
realização do programa constitucional de proteção à pessoa vulnerável.

4. A exigência de uma maior conscientização dos deveres apresentou-se


com maior evidência no momento atual, em razão da emergência sanitária
mundial31 provocada pela expansão do vírus Covid-19, que coloca dilemas
transversais envolvendo questões de direito, economia, medicina, todas ligadas
pelo comum denominador da filosofia e da ética, principalmente da ética do
comportamento. A gravidade da situação impôs a determinação de medidas de
prevenção que se por um lado comprimiram as liberdades e os direitos funda­
mentais, por outro encontraram um justo equilíbrio com os arts. 2, 3, par. 2 e
32 Const., concretizando o princípio da igualdade substancial porquanto con­
tribuíram para garantir a igualdade de oportunidades de cuidados adequados

princípio da solidariedade, presente também no ordenamento brasileiro, preferindo baseá-la


no princípio metajurídico da fraternidade. De acordo com os juízes - que não reconheceram
a configuração de dano moral por discriminação - «A concessão de moradia e alimentação a
estrangeiros que chegam ao Brasil sem onde morar e comer não configura ato discriminatório
aos empregados já empregados e com moradia aos quais não foram oferecidas tais benesses».
50 O discurso se aplica a todos os setores do direito, inclusive o direito civil, talvez o mais
relutante em aplicar a categoria dos deveres (v., contudo, infra R. Marinanghlo, A erosão dos
deveres nas relações sociais privadas e a via aberta ao inadernpimento eficiente-., L.A.A.P. Hot-
EMANN, Direito Concorrencial e sham litigation no Brasil: uma análise atual dos deveres e direitos).
Isso não obstante, não se pode negar que uma expressão do princípio da autoresponsabilidade
seja justamente o da proibição de venire contra factum proprio. Esse brocardo, frequentemente
acostado ao princípio de boa fé, encontra aplicação também em relação ao abuso do processo.
Sobre esse tema, v., infra, M.P. GaspüIUNI, Direito de ação e ética processual.
51 A pandemia gerada pelo vírus Covid-19 parece acreditar a tese de Ulrich Beek que o
mundo não está apenas mudando, mas está se metamorfoseando quando afirma que «a meta­
morfose acarreta uma transformação muito mais radical, em que antigas certezas da sociedade
moderna desaparecem e algo inteiramente novo surge de modo que o que foi impensável ontem
é real e possível hoje.»: U. Bl!CK, A metamorfose do mundo. Novos conceitos para uma nova reali­
dade, trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Zahar, 2018.
28 De Cicco - O PAPEL DOS DEVERES na construção da legalidade constitucional

a todos os cidadãos, em particular àqueles que, devido às condições socioeco-


nômicas, se encontram numa situação inicial mais desfavorecida52.
Nesta perspectiva, um aspecto positivo da pandemia foi o surgimento
do princípio da responsabilidade coletiva’5 que em uma sociedade demo­
crática todos devem ter para com os outros54, confirmando que os binómios
indissociáveis de deveres/direitos e liberdade/responsabilidade55 constituem
a base de qualquer democracia. A implementação desse princípio, contudo,
ainda não foi alcançada plenamente já que inúmeros são os casos de deso­
bediência, tanto de pessoas físicas quanto jurídicas, que colocam em risco a
saúde e a vida de outras pessoas, determinando um prejuízo irremediável em
relação às exigências de solidariedade social56, com grave violação dos arts.

32 Cí. D. de A. Dallari, Elementos da Teoria Geral do Estado, 25. ed. Saraiva, 2005, p. 309,
para quem a ideia de democracia requer a superação de uma concepção mecânica e estratificada
de igualdade que hoje deve ser vista como um direito convertido em possibilidade.
33 Responsabilidade coletiva que, respeitando o princípio soberano da solidariedade, im­
poria uma conduta mais virtuosa a quem está concretamente apto a cumprir eficazmente as
medidas de contenção do vírus em relação a quem, infelizmente, não pode manter o isolamento
ou distanciamento social ou respeitar regras de higiene. Basta pensar nas pessoas que vivem
nas ruas, nas favelas ou mesmo nos bairros periféricos das grandes cidades, que nem sempre
dispõem de água, esgoto ou leitos em número adequado.
34 Assim, C. Bartolomé Ruiz, Covid-19 e as falácias do homo economicus, in https://leo-
nardoboff.org/2020/04/20/covid-19-e-as-falacias-do-homo-economicuscastor-bartolome-ruiz/ ,
secondo cui «A máxima da pandemia cuide de si para melhor cuidar dos outros é a inversão
do dogma do homo economicus'. cuide de si aproveitando-se dos outros. Na pandemia ninguém
pode pensar em tirar vantagem própria só cuidando de si, pois cada um de nós depende muito
do comportamento dos outros. A pandemia evidenciou o princípio da responsabilidade coleti­
va que todos temos em relação aos demais».
35 V., sobre esse ponto, G. Bascherini, La doverosa solidarietà, p. 246 ss, para quem a rela­
ção entre liberdade e responsabilidade, ainda que não explicitamente declarada na Constituição,
emerge também e «sobretudo dos limites impostos à defesa dos interesses de outrem e/ou cole­
tivos que o indivíduo encontra no exercício de seus direitos, mas não se esgota nesses limites».
Esse aspecto foi destacado nos trabalhos constituintes da primeira Subcomissão, especial­
mente por Giorgio La Pira que, após ter identificado a liberdade como a grande inovação «na
base da ideia de democracia, tal como emerge da Carta Constitucional», advertia que «a liber­
dade mencionada na Constituição não deve ser entendida em um sentido puramente individu­
alista» porque «traz consigo uma dimensão social» enquanto conexa «à solidariedade e à res­
ponsabilidade». A proposta de La Pira, que não foi aceita pela Comissão de Redação, consistia
em inserir um artigo antes das disposições sobre direitos com o seguinte teor: «a autonomia do
homem e as liberdades individuais em que se realiza são garantidas pelas seguintes normas e
devem ser exercidas para a afirmação e o aperfeiçoamento da pessoa em sintonia com as neces­
sidades do bem comum e para o seu contínuo aumento na solidariedade social. Portanto, toda
liberdade é fondamento de responsabilidade» (p. 248 ss.).
36 Para a configuração das consequências desse tipo de comportamento como dano social,
v. M.C. De. Cicco, 11 danno sociale come nuova tipologia di danno risareibile, in Stndi in onore di
30 De Cicco - () papel ixxs deveres na construção da legalidade consitujcional

2 e 3 Const.37. A coerência entre deveres c comportamentos por parte de


todos, cidadãos e instituições concretiza o rigor constitucional na medida em
que «os cidadãos [são] portadores de direitos fundamentais mas também de
deveres inderrogáveis (e, por isso mesmo, igualmcntc "fundamentais"), de
solidariedade»38.
A concretização da responsabilidade coletiva será posta à prova por oca­
sião da campanha de vacinação contra o vírus Covid-19, ocasião em que a
discussão, nunca adormecida, sobre a oportunidade e a obrigatoriedade, ou
não, das vacinas39 será quase certamente intensificada. O assunto foi abordado
pela Corte Constitucional40, chamada a decidir sobre a constitucionalidade da
possibilidade e oportunidade de comprimir a autodeterminação em matéria de
saúde tendo em vista a proteção dos demais bens constitucionais envolvidos,
para fins de «preservar a saúde alheia» em nome de um vínculo de solidarieda­
de caracterizado pela reciprocidade. A Corte declarou infundadas as questões
de legitimidade constitucional, argumentando que - em particular, à luz do art.
32 da Constituição - o direito à saúde do indivíduo deve ser conciliado com o
direito à saúde dos outros e com os interesses da comunidade.

Antonio Rlamini a cura di R. Favale e L. Ruggeri, Edizioni Scientifiche Italiane, 2020, no prelo,
onde bibliografia ulterior.
37 Cf. C. Del Bò, Diritto alia salute e solidarietà, disponibile on line, para quem «A necessi­
dade de proteger não só a própria saúde, mas também a dos outros, adaptando-nos às restrições
que nos são impostas, torna-se então uma forma de alcançar outro valor, (...) a solidariedade. (...)
A pandemia de Covid-19 dá-nos a oportunidade de exercer concretamente uma solidariedade
mutualística, na qual a saúde de cada um está ligada à saúde de todos e na qual o dever de cuidar
de nós mesmos, o dever de se estar bem expressa aquele pacto de cidadania que mantem uma
comunidade em pé».
Um exemplo emblemático temos no Brasil, onde, diante da ausência do Estado, as comu­
nidades mais vulneráveis e mais expostas à morte encontram a capacidade de autoorgamzaçao
e de proteção coletivas. Reveste importância a iniciativa comunitária dos coletivos «Mães de
Manguinhos» e «Foro Social» cujo trabalho pode ser sintetizado na expressão utilizada por Ana
Paula Oliveira, «nós por nós mesmos». Para um aprofundamento dessa questão v. a palestra
de Betiiania Assy, Covid-19 en Brasil una ética de la cohabitación resiliente más alia de la bio-
polilica, no Congreso Internacional Cátedra Unesco Derechos Humanos y Violência: gobierno
y gobernanza de 2020, https://m.facebook.com/story.php?storyJLid=2647877552LS9cHQ&
id=214654265619159.
38 Assim, A. Ruggeri, Rigore costituzionale ed etica repubblicana, nelpensiero e nelíopera di
Temistocle Martines, in https://www.associazionedeicostituzionalisti.it.
39 Sobre esse ponto, A. Ai.PlNl, «Vaceinazioni obbligatorie» e «obiezione di coscienza».
Rass. dir civ.t 2011,4, pp. 1035 ss.
4(J Corte cost., 18 gennaio 2018, n. 5, disponibile online, que declarou infundada a questão
de legitimidade constitucional das disposições do d.l. n. 7 3 del 2017, conv. pela 1. n. 119 de 2017.
na parte em que introduz um amplo número de vacinas obrigatórias, em relação aos arts 2, 3, e 32
Const, e atribuem ao à legislação estatal o poder de ditar uma disciplina uniforme em matéria de
políticas vacinais e de profilaxia internacional, em relação ao art. 117 Const.
32 De Cicco - O PAPEI. DOS DEVERES NA CONSTRUÇÃO DA LfXIAI,IDADE CONSTmjCfONAf

5. Ao colocar a pessoa cm um contexto social cm relação a outras pessoas


o art. 2 const., alem ele garantir direitos, impõe também deveres, de modo que
aos direitos correspondem também deveres inderrogáveis de solidariedade po­
lítica, econômica e social.
Alguns deveres são constitucionalizados na Itália, por exemplo, o dever
de contribuição previsto no art. 53: «Todos são obrigados a contribuir para as
despesas públicas de acordo com a própria capacidade de contribuição». Sa­
be-se que as receitas públicas são os meios indispensáveis para a realização das
atividades do Estado já que, sem recursos as instituições não podem atender
às necessidades das pessoas. O sonegador fiscal tira recursos da comunidade,
explora os serviços e as prestações públicas sem contribuir com os custos, com
consequente desequilíbrio na distribuição de riqueza e poder: ele não prejudi­
ca o Estado, uma entidade estranha e distante, prejudica a todos. Um compor­
tamento, além de tudo, que, reproduzindo processos de aprendizado falhos,
promovem uma cultura perniciosa, distorcendo a realidade e fazendo apare­
cer como legítimos, comportamentos que não o são. A esse propósito, Rodotà
alertava para a necessidade de evitar que direitos sejam restringidos ou mesmo
cancelados, ou que «se tornem um luxo incompatível com a crise econômica,
com a redução dos recursos financeiros»41. De fato, é sabido que a proteção à
saúde muitas vezes é «condicionada» pela distribuição de recursos, principal­
mente no setor farmacêutico42.
Apesar da constitucionalização de deveres, a situação não muda porque o
paradigma predominante da sociedade continua centrado nos direitos. Como
não poderia deixar de ser, esse sentimento de predomínio dos direitos se reflete
no sentimento comum. Se todos somos iguais, todos nós merecemos as mes­
mas coisas, na mesma medida. Esquece-se, porém, que esse sentimento espelha
somente o princípio da igualdade formal enquanto o princípio da igualdade

<' S. Rodotà, Perche i diritti non sono un lusso in tempo di crisi, in www.repubbliea.it.
42 O Tribunal constitucional nos últimos anos tem sido várias vezes chamado a rever e ava­
liar a complexa questão da relação entre os direitos sociais dos cidadãos e as necessidades finan­
ceiras do Estado e dos organismos públicos obrigados a respeitar o princípio constitucional do
equilíbrio orçamental (art. 81 const.). Para uma análise, cf. A. Carosi, Prestazioni sociali e víhcoU
di bilancio. 16 novembre 2016, in http://www.giuristidiamministrazione.com/wordpress/presta-
zioni-sociali-vincoli-bilanci/. Do mesmo modo E Gabriiile e A.M. NlCO, Oxftwitt/cw/ “d pnfMd
leitura’ sulla sentenza delia Corte costituzionale n. 10 dei 2015: dalla illegittbnitã dei "toghere ai
ricchi per dare ai poveri” alia legittirnità dei “chi ha avuto, ha aeuto, ha avuto.. .scordiamoa il pjssd~
lo”, em Rivisla A1C, n. 2/2015, advertem que se os direitos e liberdades tradicionais foram inte­
grados pelos Constituintes em nome dos princípios da igualdade substancial e da solidariedade,
torna-se insustentável reconhecer os direitos fundamentais aos grupos mais frágeis somente «se
e quando os recursos disponíveis, ou a situação económica permitirem».
34 De Cicco - O PAPEL DOS DEVERES NA CONSTRUÇÃO DA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL

substancial impõe a todos o cumprimento de deveres inderrogáveis de solida­


riedade política, econômica e social43.
Como enfatizou o Constituinte, o princípio da solidariedade ocupa uma po­
sição central, conformando, por assim dizer, a estrutura unificante de todo o
ordenamento. O simples reconhecimento na Constituição da igualdade (formal
e substancial) certamente não é suficiente, de fato, para assegurar a coesão de
tantos componentes heterogêneos da comunidade organizada como um Estado;
mais do que isso, é necessária uma instância a mais, que é justamente aquela so-
lidarista44. O art. 2 const., desse modo, colocando no mesmo plano, em relação
de balanceamento, os direitos fundamentais e os deveres inderrogáveis de soli­
dariedade, propõe-se como uma cláusula geral não somente de direitos, como
geralmente é tida, mas também de deveres, igualmente fundamentais, invioláveis
e inderrogáveis45. A necessária presença do binômio deveres/direitos para carac­
terizar uma sociedade como democrática é confirmada, assim, pela assertiva de
Stefano Rodotà de que somente a presença efetiva de sinais de solidariedade nos
permite continuar a definir um sistema político como democrático46.

6. A solidariedade é ínsita na arquitetura do sistema, institucional ou não.


Sistema político, familiar, de mercado, de empreitada, licitações e organização.
Basta pensar na responsabilidade civil por culpa da organização administrativa
de uma instituição. Quando a organização é realizada sem respeitar os deveres
de solidariedade, de precaução, é'possível e altamente provável que o risco de
causar danos seja maior. Se o diretor de uma instituição de saúde não organi­
zar bem os turnos de trabalho, por exemplo, prevendo turnos massacrantes, o

43 O fenômeno da imigração na Itália reflete bem essa situação. Aos imigrantes é imputato
o fato de receber sem dar nada em troca. O problema é que também os cidadãos, no sentido po­
lítico do termo, muitas vezes agem da mesma forma e é lógico que os imigrantes, em um círculo
vicioso, não podem deixar de perceber isso e de adequar-se à situação.
Para uma análise dos valores, princípios e objetivos da UE em relação à promoção, controle
e gestão dos fluxos migratórios, v. A. Latino, Valori, principi e obiettivi delia dimensione esterna
delia politica migratória dell’Unione europea, in I valori deWUnione europea e Vazione estema a
cura di E. Sciso, R. Baratta, C. Morviducci, Giappichelli, 2016, pp. 186 ss.
44 V., contudo, a análise crítica de P. BlANCl li, Deveres inderrogáveis de solidariedade e renda
de cidadania: as relações perigosas, infra, da Renda da Cidadania como instrumento para com­
bater a pobreza e promover níveis mais altos de emprego estável, em relação aos princípios
constitucionais como igualdade, solidariedade, proteção do trabalho e o dever de assistência aos
«deficientes».
45 V., sobre o tema, G. Barone, Diritti, doveri, solidarietà, con uno sguardo aliEuropa, m
Riv. it. dir. pubbl. com., 2004, pp. 1243 ss.
46 S. Rodotà, Solidarietà. Un’utopia necessária, Laterza, 2014, que alerta também para o
fato de que «A experiência histórica nos mostra que se os tempos para a solidariedade se tornam
difíceis, o serão também para a democracia» (p. 10).
36 De Cicco - O PAPEL DOS DEVERES NA CONSTRUÇÃO DA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL

risco de violar os direitos fundamentais aumenta'*7. Ele não sabe quem sofrerá
dano, mas sabe que alguém sofrerá um dano cm razão dessa (falta de) organi­
zação'*8.
Um questão que também se apresenta em relação à privacidade, tanto que
a nova lei sobre a proteção de dados pessoais coloca uma ênfase maior na ac-
countabiliryW. De fato, o responsável pelo banco de dados deve organizá-lo de
tal forma que a proteção da privacidade seja garantida o máximo possível. Não
podendo controlar o resultado, ele deve controlar o procedimento, que deverá
ser o mais seguro possível50
47. 48 49
A previsão da responsabilidade no centro da disciplina também confirma
a relação entre privacidade e dignidade evidenciando-se assim a necessidade
cada vez mais sentida de eliminar ou reduzir a interferência de assuntos exter­
nos na esfera privada das pessoas, que dessa forma são colocadas em condição
de agir com plena autonomia e de desenvolver livremente sua posição, parti­
cipando autonomamente da vida política e social, sem condicionamento deri­
vadas de pressões públicas e privadas51. Essa forma de atuação, é importante
destacar, é premissa para a autonomia e o respeito mútuo.

7. A cidadania, como afirmado na Introdução, é uma conquista diária que


requer dar e ter; é uma adesão consciente a uma comunidade entrelaçada com
afetos e não apenas com interesses; é uma parceria emocional e simbólica, cujo

47 Cass. pen. 19 febbraio 2019, n. 32477, onde se afirma que o diretor médico «tem uma
posição de garantia juridicamente relevante», de modo que «é o garante último dos cuidados de
saúde aos doentes e da coordenação do pessoal de saúde que atua na estrutura, para que esta
atividade seja sempre baseada em critérios de qualidade e segurança».
48 Fala-se nesses casos de responsabilidade derivada da organização, prevista no d.lgs. 8 de
junho de 2001, n. 231. Sobre o descumprimento das normas de diligência exigidas na realização
da atividade empresarial que expõe a empresa à responsabilidade por crime, v. Cass. pen, Sez.
VI, 17 de novembro de 2009, n. 36083 e 16 de julho de 2010, n. 27735.
49 Em relação à accountability, o Regulamento europeu 2016/679 (GDPR), no art. 24 prevê
que o controlador de dados seja obrigado a adotar políticas e implementar medidas adequadas
para garantir e ser capaz de demonstrar que o tratamento de dados pessoais ocorreu de acordo
com o próprio Regulamento. Sobre esse ponto v. S. Dl MlNCO, Rpd, nuova figura come supervisor
delia protezione, in Dossier monográfico La tutela delia privacy e il regolamento europeo, in Guida
al Diritto, ll Sole 24 ore, n. 6 Novembre - Dicembre 2018, p. 26 ss.
50 II GDPR adotou o conceito de privacy by design (art. 25) que impõe ao titular e ao res­
ponsável dos dados pessoais de controlar, antes de tratá-los, que o tratamento tenha um risco
residual baixo.
51 Assim, S. RoixrrÀ, Privacy, liberta, dignità. Discorso conclusivo delia Conterenza inter-
nazionale sulla protezione dei dati, in www.garanteprivacy.it, para quem «Isso explica por que
os próprios requisitos de segurança pública nunca podem reduzir a privacidade de maneiras in­
compatíveis com as características de uma sociedade democrática; e porque a lógica econômica
não pode legitimar a redução de informações pessoais a uma mercadoria».
38 De Cicco - O PAPEL DOS DEVERES na construção DA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL

elo primário é a mazziniana «solidariedade de deveres»52, que se concretiza na


ética da responsabilidade53, configurando-se, por conseguinte, um dever erga
omnes ao lado dos direitos erga omnes.
Todavia, a noção de cidadania, hoje, perdeu-se nos labirintos da luta pela
liberdade sem precedentes e pelo direito de usufruir intensamente dos bene­
fícios da lei, ainda que a custa de um desequilíbrio social. Estamos diante de
uma sociedade centrada no individualismo e na exacerbação de direitos que
afirmou o indivíduo como epicentro das atenções em detrimento de valores
fundamentais ao convívio harmônico da sociedade. Esquece-se da reciprocida­
de entre direitos e deveres, imprescindível para a concretização plena da digni­
dade da pessoa porquanto «uma sociedade democrática formada por cidadãos
persuadidos de que eles só têm direitos degenera no domínio dos valentões so­
bre os fracos, dos espertos sobre os honestos, dos tolos sobre os sábios»54. No
entanto, o senso do dever, no sentido adotado no texto não pode surgir e se de­
senvolver por imposição forçada. Deve existir apenas por profunda convicção
de consciência porque valores não se impõem, estabelecem-se, somente, «as
premissas para a autonomia e o respeito mútuo»55. A reivindicação continua­
da de direitos sem qualquer referência a deveres, aumenta o egoísmo social e
afrouxa os laços de pertencimento à comunidade civil56, violando, assim, a raiz
mesma do dever de solidariedade consistente na passagem do «eu» ao «nós».
No sentido de uma cidadania ética coloca-se Alex de Tocqueville57, quando
sustenta que o indivíduo é o inimigo do cidadão, na medida em que o cidadão
procura o bem-estar por meio do bem-estar da sociedade, ainda que à custa de
restrições à sua Uberdade, enquanto o indivíduo não aceita qualquer restrição
à busca de seu próprio e único interesse.
A ética da cidadania pode ser promovida retornando ao conceito de «de­
ver» para fazer viver plenamente a força da democracia porquanto «direitos
sem deveres transformam desejos em pretensões, sacrificam o mérito e acabam
legitimando egoísmos individuais»58. A promessa de direitos sem a correspon-

52 G. Mazzini, Socialism Process, II Borghese, 1972, p. 127.


” E. Crisafulli, La solidarietà dei doveri, in https://fondazionenenni.blog/2017/10/27/
la-solidarieta-dei-doveri/.
54 M. Viroli, LItalia dei doveri, cit., p. 10
55 S. Rodotà, Privacy, liberta, dignità, cit.
56 De fato, a conduta ética do cidadão não pode se limitar ao «respeito da lei enquanto
obrigação geral e abstrata», mas deve se caracterizar pela «observância pedagógica da lei funda­
mental como princípio de convivência comum e civil»: G. CiiiARiNt, I doveri giuridicineWordina-
mento costituzionale italiano, in Rev. dir. bras., genn./aprile 2019, p. 236.
57 A. De Tocqueville, A Democracia na América. Livro I Leis e Costumes, Martins Fontes,
2005; Id., A Democracia na América. Livro II Sentimentos e Opiniões, Martins Fontes, 2004.
58 L. VlOLANTE, o.c.
40 De Cicco - O papel dos deveres na construção da legalidade constitucional

dente exigência do cumprimento de deveres aumenta o ressentimento social


impondo-se, portanto a necessidade de se desenvolver a consciência de que
direitos e deveres não podem ser satisfeitos separadamente; somente em sua
realização conjunta, eles adquirem seu significado mais genuíno e qualificado
para a vida da comunidade.
Se, como já foi dito59, a efetividade dos direitos pressupõe a educação aos
direitos humanos, no sentido de fazer as pessoas refletirem sobre sua existên­
cia e conteúdo, a efetividade da cidadania e do senso cívico pressupõem uma
educação para o respeito próprio e dos outros. Central mostra-se assim o papel
da educação à responsabilidade para evitar que se crie a situação descrita por
Bruno Garschagen60 ao denunciar o risco do recurso (abusivo) a privilégios por
parte do Estado: a previsão somente formal de novos direitos cria a expectativa
na sociedade de que esses novos direitos contribuam à efetividade daqueles
já existentes. A consequência mais negativa dessa situação pode-se notar no
comportamento daqueles que não se sentem responsáveis por seus deveres,
justificando a própria conduta irresponsável «pelo não recebimento daquilo a
que tinha direito». Frequentemente, como lembra Garschagen, os privilégios
são criados como forma de compensação ou reparação, de maneira que uma
parcela cada vez mais numerosa da sociedade acredita ter direito a algo, jusü-
ficando-se assim qualquer tipo de privilégio. O lema passa a ser «quanto mais
privilégios, melhor», transformando o país «numa nação de credores» onde «o
direito perde valor e autoridade». Torna-se fundamental, assim, adquirir cons­
ciência da necessidade de se evitar um individualismo exasperado61.
De fato, quanto mais um direito é extremo na exploração de seu potencial,
maiores serão as repercussões em termos de violações de direitos alheios62. Um
exemplo pode ser indicado na objeção de consciência, sobretudo por parte
dos médicos e dos profissionais da saúde, cujo exercício exasperado63, princi-

59 Cf. M.C. De Cicco, Uéducation aux droits de 1'homme: 1'expérience italienne, in Pedagoga
et droits de 1’homme a cura di Véronique Champeil-Desplats, Presses Universitaires de Paris
Ouest, 2014, p. 245 ss., onde outras indicações; Iü, Le contribuzioni delta Cattedra UNESCO
«Diritti umani e violenza», in A Efetividade da Dignidade Humana na Sociedade Globalizada a
cura di Marco Antonio Marques da Silva, Quartier Latin, 2017, p. 167.
“ B.Gaksciiagen, Direitos máximos, deveres mínimos. O festival de privilégios que assola o
Bwn7,Record, 2019, p-316.
61 Para um exemplo eficaz das consequências do individualismo exasperado v., infra>
Mura, Os direitos e os deveres dos genitores entre modelos sócio-culturais e superior interesse da
criança.
62 G. Zagrebelsy, ox., p. o.
63 Como pode-se ler no Jornal da Cremesp, n. 342, de novembro de 2016, disponível on
line segundo o teólogo Mário Antônio Sanches, Objeção de Consciência: Reflexões no Contexto
da Bioética, «apesar de a expressão objeção de consciência” abrigar princípios morais inalie-
42 De Cicco - O PAPEL DOS DEVERES NA CONSTRUÇÃO DA LEGALIDADE CONSTTnja^

palmente em relação à interrupção voluntária da gravidez , de fato, frustra a


concretização do direito da mulher à autodeterminação em relação ao próprio
corpo.
Essas considerações aplicam-se também à liberdade de expressão e ao di­
reito de manifestar o próprio pensamento que certamente são direitos funda­
mentais, mas não direitos absolutos, porque encontram o limite da dignidade
e do respeito do outro. Basta pensar ao seríssimo problema das fake news, do
cyberbvdlismo, dos discursos de ódio que crescem em maneira exponencial,
situações em manifesto contraste com o sistema de valores do ordenamento.

náveis, como o respeito à autonomia plena e consciente da pessoa e sua liberdade, “não pode
esconder, nem se fundamentar em caprichos pessoais, subjetivismos nem intransigente obstina­
ção”». Observação, esta última, corroborada pelo bioeticista Julian Savulescu, para quem «os
pacientes deveriam ser melhor protegidos dos valores pessoais de médicos, particularmente, em
relação à assistência em fase de morte; aborto e contracepção». Na sua opinião, se é verdade
que «crenças religiosas profundamente arraigadas, por vezes, entram em conflito com alguns
aspectos da prática médica», por outro lado, eles «não podem fazer julgamentos morais em
nome dos pacientes»
64 A objeção de consciência deve ser analisada a partir de dois perfis distintos pois há casos
em que afeta diretamente os direitos de outras pessoas e outros em que não afeta diretamente
esses direitos, como adverte Rodotà. A questão é muito complexa e diz respeito não só à inter­
rupção da gravidez, mas também, por exemplo, à vacinação obrigatória, ao tratamento médico,
à recusa de magistrados e funcionários públicos de registrar uniões homossexuais, merecendo,
portanto, estudos e análises mais aprofundados. Ver, entre outros, S. Rodotà, Obiezione di CO’
scienza e diritti fondamentali, em P. Borsellino, L. Forni, S. Salardi (org.), Obiezione di co­
scienza. Prospettive a confronto, Notizie di Politeia, Anno XXVII, n. 101, p. 32; Id., Perche laico.
Laterza, 2009; S. Attollino, Obiezione di coscienza e interruzione delia gravidanza: la prevalenza
di un interpretazione restrittiva, disponível online; A. Alpini, «Vaccinazioni obbligatorie» e «obie­
zione di coscienza», in Rass. dir civ., 2011, 4, p. 1035 ss; para uma visão de conjunto, E GraNDU
Doveri costituzionali e obiezione di coscienza, Editoriale Scientifica, 2014.
Cf. C. Flamigni, Poslilla di dissenso dal documento presentato dal CNB, Obiezione di co­
scienza e bioetica, p. 22, disponível online, que relembrando a tese de G. Gemma, Brevi note
critiche contro Vobiezione di coscienza, in R. Botta (a cura di), Lofoezíowe di coscienza ira tutela
delia liberta e disgregazione dello Stato democrático, Giuffrè, 1991, pp. 319 ss.; e Obiezione di
coscienza ed osservanza dei doveri, in S. Mattarelli (a cura di), Doveri, cit.» pp. 55 ss., lembra que
«a objeção se traduz em um instrumento de negação do princípio do laicismo, pois permite ao
titular de uma função pública antepor suas próprias convicções pessoais ao respeito pelos seus
deveres institucionais, ou seja, os que decorrem do seu cargo». Gemma contesta a existência de
um nexo lógico entre o reconhecimento dos direitos de consciência e a prefiguração do «Institu­
to da Objecção de Consciência» no Direito Positivo e o considera um «Instituto irracional por
constituir a combinação de elementos irreconciliáveis».
Para além da doutrina, a autonomia da objeção de consciência não é pacífica nem mesmo
para a jurisprudência do 1 ED11: v. a sentença definitiva, Eweida and others v. United Kingdom»
de 15 de janeiro de 2013, que não reconhece a acionabilidade direta do direito à objeção dc
consciência nos casos de inexistência de disposição legislativa da cláusula de objeção, por tale*
de reconhecimento pelo legislador do direito em causa.
44 De Cicco - O papel dos deveres na construção da legalidade coNsmucit

Mesmo a liberdade de imprensa, característica dc uma sociedade democrátí


não é absoluta e encontra limites, antes de todos, o respeito pela dignid í
das pessoas, que passa sempre pela verdade e pelo princípio de continência
A Corte de Cassação italiana foi clara nesse ponto ao estabelecer, em 1984
decálogo ao qual os jornalistas devem se ater no exercício da profissão65

8. Pelo exposto até agora, fica claro que o declínio do individualismo e a emer­
são do personalismo, com o reconhecimento na Constituição do princípio da soli­
dariedade, afeta profundamente a forma de entender o direito e, consequentemen­
te, a teoria da interpretação, que não pode deixar de ser teleológica e sistemática,
em um ordenamento funcionalizado aos valores da pessoa e sua dignidade.
O Direito não se esgota na lei e uma prova dessa assertiva está no renovado
interesse pela categoria do abuso do direito que aqui poderá ser somente acena­
do66. Uma importante categoria, negada e denegrida por alguns, mas que há como
tarefa principal mediar o exercício do direito, não no interno da regra, mas em um
contexto sistemático coerente com um ordenamento regido por princípios67.
Assiste-se cada vez mais à constitucionalização do direito civil, por meio do
qual o direito deve servir à promoção de uma sociedade mais justa, ética e soli­
dária. Mais do que nunca, portanto, a teoria da interpretação deve se orientar
para realizar os valores fundamentais do ordenamento68, em atuação voltada
não ao mero respeito da lei, mas à realização da justiça do caso concreto69. No
âmbito contratual, em particular, os valores constitucionais, em especial o prin­
cípio de solidariedade, penetram através das cláusulas gerais que se tomam,
assim, decisivas na ótica do direito civil na legalidade constitucional'0. Nessa

65 Cass., sez.civ. I, 18 ottobre 1984, n. 5259, disponível online. ~


66 Entendido como exercício «contrafuncional» do direito, ou seja, «exercício da situação jun-
dica colocado de forma contrária ou estranha à função da mesma»: P. Perlingleri e P. Femia, Nozioni
inlroduttive eprincípifondamentali deidiritto civiley 2. ed., Edizioni Scientifiche Italiane, 2004, p- H-7,
67 Para uma análise mais profunda, v. L. Tullo, Postfazione, La lotta agli abusi nella vigora
sa ricerca di un ‘nuovo equilíbrio*\ em L. Josserand, L abuso dei diritti^ trad. di L. Tullo, Ediztotn
Scientifiche Italiane, 2018, pp. 73 ss. Em sentido mais amplo, a própria GEDH, no art. 17, p^ve
a proibição do abuso de direito, estabelecendo que «Nenhuma das disposições da presente Con­
venção se pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualqu^
direito de se dedicar a atividade ou praticar atos em ordem à destruição dos direitos ou liberda­
des reconhecidos na presente Convenção ou a maiores limitações de tais direitos e liberdades do
que as previstas na Convenção».
68 No sentido do texto é fundamental o reenvio a P. Permngieri, O Direito Civil na legaliaa-
cie Constitucional, trad. de M. C. De Cicco, Renovar, 200«.
69 V., sobre esse aspecto, a interessante análise dc T. AsCAKlil.l.l, z-lw/^owu e Pónia, trad. de
M Cicco, em Civtltslica.com, 2016, a.5, n. 2, pp. 3 ss.
7U P. PiuciJNGlHKl, Giustizia secondo costituzione ed ermeneutica. Linterpretazione c.d. ade-
guatrice, em Llordinamento vigente e i suoi valori. Problemi di diritto civile, Napoli, 2006, PP-
46 De Cicco - () papei . ix >s ijeveres na cxjnstruçAo da legai,idade constitu

perspectiva, se a figura do abuso, que já penetrou cm diversos setores doord


namento jurídico, tem como objetivo evitar que o direito subjetivo, que cabe*
qualquer pessoa que seja seu titular, possa chegar ao arbítrio71, é possível inferi
o abuso do direito do art. 2 const. que, cm uma perspectiva marcadamente
lidaria, exige que todos se comportem de acordo com as regras de probidadec
boa fé ex arts. 1175 e 1375 c.c.72.
E sabido que o magistrado, interprete por excelência, está sujeito apenas
à lei, goza de independência por lei. Mas, segundo Gherardo Colombo, não
basta a existência da lei; é imprescindível que «o beneficiário desta indepen­
dência tenha a cultura da importância de ser independente» o que, segundo o
ex-magistrado, nem sempre acontece75.
E aqui emerge um dos deveres primários do juiz, além da imparcialidade,
a avaliação atenta do caso concreto74, que leve em consideração todos os seus
aspectos específicos em um contexto caracterizado pela primazia da pessoa e
de seus valores, da sua liberdade e autonomia. Desse modo, verificar se uma
determinada situação se configure como exercício ou abuso do direito exige
uma argumentação bem elaborada, estruturada e coerente que embase a deci­
são75, como não deixou de enfatizar a Suprema Corte76 ao valorizar o princípio
da boa fé objetiva e da exceptio doli generalis, declinando-os caso a caso em
relação às condutas abusivas específicas.

9. Os deveres são a expressão da socialidade e impedem de «implancar o


egoísmo na alma e ordenar por último o domínio dos fortes sobre os traços» •

371 ss.,403; S. Rodotà, Le clausole generali, em G. Alpa, M. Bessone (diretto da), Gzwwp’*’
denza sistemática di diritto civile e commerciale. I contratti m generale, UTET, 1991, pp. 389 ss.
71 Cf. Cass., 18 de setembro de 2009, n. 20106, disponível online, para quem «os princípios
da boa fé e da probidade (...) entraram na estrutura do ordenamento jurídico. O dever de boa-te
objetiva ou probidade constitui, de fato, um dever jurídico autônomo, expressão de um princi­
pio geral de solidariedade social, cuja constitucionalização já é pacifica».
72 Cf. L. FerroNI, Spunti per lo studio dei divieto d'abuso delle situazioni soggetttve patnmo-
niali, em Aa.Vv., Temi e problemi delia civilistica contemporânea, Edizioni Scientiáche Italiaiie.
2005, pp. 313 ss., para quem a proibição de abuso «permite, em outras palavras, a superação Jo
dogma segundo o qual nerno ad factum praecise cogi putest, que resulta plenamente justificaJo
pelo princípio constitucional da solidariedade.» (p. 318).
” G.Couomho, inG. Ci >u >mi« > e P. Davigo, Lu tua giustizja non è la mia, Longancsi, 2014, p. !<*!•
74 Cabe, portanto, ao juiz avaliar a real conduta de ambas as partes da relação obrigacional,
a fim de identificar a normativa a ser aplicada ao caso concreto: Cass. eiv„ sez. I, 2 4 de novembro
de 2015, n. 23868.
” Cf. N. Lipaiii, 11 diritto cimle tra leggi e giudizio, Giuttrè, 2017.
76 Cass., 18 de setembro de 2009, n. 20106, cit.
77 G. Mazzini, lnteressiepnncipi, disponível em http://www.intrutext.com/lXr/rrA3 399/_
48 De Cicco - O PAPEL DOS DEVERES na construção da legalidade constitucional

No quadro assim individuado, portanto, pode-se reconhecer que a cons­


trução da legalidade constitucional passe necessariamente pela consciência de
que os valores subjacentes à nossa Carta Constitucional podem ser totalmente
implementados somente quando o princípio democrático - que significa acima
de tudo respeito por si e pelos outros - for respeitado, antes de tudo, nos locais
em que vivemos e realizamos diariamente nossas atividades, família, trabalho
em primeiro lugar. Daí a exigência de sensibilizar sobre a importância dos de­
veres para a realização dos direitos, a fim de evitar que a democracia fique à
mercê dos egoísmos individuais e para melhorar as consciências de todos nós
em relação aos outros. Somente assim poder-se-á contribuir para a efetiva con­
cretização da legalidade constitucional.
Essa conclusão por outro lado parece confirmar quanto já previsto na De­
claração Americana dos Direitos e dos Deveres do Homem de 194878 que,
sintetizando a relação entre direitos e deveres, afirma no seu preâmbulo: «O
cumprimento do dever de cada um é exigência do direito de todos. Direitos e
deveres integram-se correlativamente em toda a atividade social e política do
homem. Se os direitos exaltam a liberdade individual, os deveres exprimem a
dignidade dessa liberdade».
Na esteira dessa declaração solene e recordando que a ética do comporta­
mento começa sempre com as pequenas coisas, pode-se dizer que o respeito
pelos deveres é da responsabilidade de todos indistintamente, na medida em
que diz respeito à vida, do mesmo modo indistintamente, de todos, adultos e
crianças, pessoas físicas e jurídicas. Por conseguinte, ninguém pode ficar isento
de respeitar as regras da convivência civil79 e nas relações com os outros30.
De qualquer forma, se a palavra «dever» assusta porque requer compro­
misso, constância e sacrifício81, podemos substituí-la com «responsabilidade»,
melhor ainda, «respeito e responsabilidade».

78 Adotada durante a IX Conferência internacional dos Estados americanos realizada


em Bogotá, Colombia, em abril dei 1948.
79 Nesse sentido, a Declaração universal dos direitos do homem, ONU, 1948, art. 29, n. I:
«Todos os seres humanos têm deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvol­
vimento da sua personalidade é possível».
™ Sobre este ponto, cf. Cass. civ., sez. 111, 14 de maio de 2008, n. 7050 que, ao estabelecer
os critérios com base nos quais a responsabilidade pelos atos ilícitos cometidos por filhos me­
nores deve ser imputada aos pais, insiste na necessidade de que eles dêem aos seus rilhos uma
educação ao respeito às regras da convivência civil, nas relações com os outros e na realização de
atividades extrafamiliares, identificando, no caso concreto, na inobservância das regras de trân­
sito em termos tais que ponham em peiigo os bens ou a segurança de outrem, a configuração de
comportamentos negativos que acusam deficiências objetivas da atividade educativa.
m S. Mai'IAKHI.1.1, Dialogo suidoveri, cit., p. 19.

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