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A Tríplice Transformação do
Adimplemento (Adimplemento
Substancial, Inadimplemento
Antecipado e Outras Figuras)*

Sumário: 1. O direito das obrigações e a boa-fé objetiva. 2. A tríplice trans­


formação do adimplemento: temporal, conceituai e consequencial. 3. O
adimplemento como processo prolongado no tempo. Inadimplemento ante­
cipado (anticipatory breach o f contract). Adimplemento retardado e a mora nas
obrigações negativas. 4. A releitura funcional do conceito de adimplemento.
O adimplemento como atendimento da função concreta do negócio jurídico.
A chamada violação positiva do contrato. 5. O adimplemento substancial.
A posição da jurisprudência brasileira. Parâmetros de substancialidade e o
atual papel do adimplemento substancial. 6. As conseqüências do adimple­
mento e do inadimplemento. Responsabilidade pós-contratual. A resolução
do vínculo como medida extrema. Execução específica e perdas e danos. Res­
ponsabilidade pelo inadimplemento das obrigações de meio e de resultado.

1 O direito das obrigações e a boa-fé objetiva

Em com paração com o u tro s ram os do direito privado, já se afirm ou que o d ireito das
obrigações é de “m ais len ta evolução no te m p o " .1 C am inha a passos vagarosos p o rq u e

Publicado originalmente na Revista Trimestral de Direito Civil, v. 32, p. 3-27.


1 Na íntegra: “O facto de no domínio das obrigações prevalecer desde há muito o princípio da
autonomia privada, de serem relativamente constantes ao longo dos séculos os interesses e as
conveniências das partes, e de as relações creditórias, pela sua natureza intrínseca, sofrerem muito
menos que as relações familiares ou sucessórias e do que a organização da propriedade, a influência
de factores políticos, morais, sociais e religiosos que marcam cada época da história da humanidade,
aliado ao aperfeiçoamento notável que os jurisconsultos romanos clássicos imprimiram ao direito
das obrigações, deram como resultado que este, além da sua vastidão e intensa projecção prática,
acusa ainda agora duas notas particulares, que cumpre realçar: a sua relativa uniformidade nas
98 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

atado a u m a sólida tradição ro m an ista, que se revelou aí p artic u la rm en te eng en h o sa no


desenvolvim ento de categorias e preceitos tão abstratos e intuitivos que são tratados com o
“p rin cíp io s im utáveis da eq u id ad e n a tu ra l”, so b re os quais rep o u sam , “m ais inabaláveis
qu e sobre colunas de bronze, os fu n d am en to s das obrigações” .2 A inda hoje visto com o
“a p arte do d ireito onde, com m aior liberdade, tê m lugar os princípios da razão p u ra ”,3
o d ireito obrigacional vem , não raro, elevado a u m co n ju n to de “verdades eternas, com o
certos p o stu lad o s d a g eo m etria e da aritm ética” .4 N ada disso, e n tre ta n to , te m im pedido
que, p ara além da secular p eren id ad e d a disciplina ju ríd ica das obrigações, a atividade
privada e a p rática co n tratu al se m o difiquem p ro fu n d am en te.
O ad vento do m o d o in d u strial de produção e a m assificação das relações contratuais
acen tu aram , com o se sabe, in ju stiças flagrantes q u e o asceticism o lógico e a p re te n sa
n eu tralid ad e do d ireito das obrigações escondiam . A indiferença do d ireito obrigacional
com o co n teú d o das relações co n tratu ais - exigindo apenas, em fórm ula que ain d a hoje se
rep ete nas codificações, qu e o objeto do contrato seja lícito e possível, não que seja ju sto ou
eq u ilib rad o 5 - associou-se aos princípios d a liberdade de co n tratar e d a obrigatoriedade
dos pactos (pacta su n t servanda ) p ara legitim ar, sob o p o n to d e vista jurídico, a im posição
de condições v erd ad eiram en te p erversas à p arte econom icam ente m ais desfavorecida,6

diferentes áreas do globo e a sua notória estabilidade ou a sua mais lenta evolução no tempo”
(João de Mattos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v. I, Coimbra: Almedina, 2000, p. 25).
2 Giorgio Giorgi, Teoria delle obbligazioni nel diritto moderno italiano, Florença: Fratelli Cammelli,
1924, p. 28.
3 É a opinião de Toulier, registrada por Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de Direito Civil -
Obrigações em Geral, v. II, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 7.
4 A tal postura alude, criticamente, Orosimbo Nonato, Curso de Obrigações, v. I, Rio de Janeiro:
Forense, 1959, p. 55, afirmando: "O conceito de obrigação varia no tempo e no espaço para atender
às peculiaridades do consórcio civil em que se expanda: não foge, não pode fugir à lei da evolução
universal.”
5 A fórmula vem repetida inclusive no recente Código Civil brasileiro, de 2002, cujo art. 104
declara: "A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível,
determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.” A nova codificação
ocupa-se, contudo, do equilíbrio das prestações em dois momentos: o desequilíbrio originário
vem coibido pelas figuras da lesão (art. 157) e do estado de perigo (art. 158); e o desequilíbrio
superveniente encontra remédio nos arts. 478-480 e, por via interpretativa, também no art. 317,
permitindo-se, mediante a configuração dos requisitos necessários, tanto a resolução quanto a
revisão do contrato.
6 “A disparidade de condições econômico-sociais existente, para além do esquema formal da
igualdade jurídica abstracta dos contraentes, determina, por outras palavras, disparidade de ‘poder
contratual' entre partes fortes e partes débeis, as primeiras em condições de conformar o contrato
segundo os seus interesses, as segundas constrangidas a suportar a sua vontade, em termos de dar
vida a contratos substancialmente injustos: é isto que a doutrina baseada nos princípios da liberdade
contratual e da igualdade dos contraentes, face à lei, procura dissimular, e é precisamente nisto que
se manifesta a sua fimção ideológica” (Enzo Roppo, O Contrato, Coimbra: Almedina, 1988, p. 38).
A T ríp l ic e T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 99

com o revelam de m odo em blem ático os co n trato s de tra b alh o estabelecidos no século
XIX. “Q u e m iserável ab o rto dos princípios revolucionários d a burguesia!” - foi a enfática
afirm ação de Paul Lafargue, ao c o n sta ta r que

“os forçados das p risõ es trabalhavam apenas dez horas; os escravos das A ntilhas,
nove h o ras em m édia, en q u an to n a França - que havia feito a revolução de 89, que
havia proclam ado os p o m p o so s D ireitos do H om em - havia m an u fatu ras o n d e a
jo rn a d a de trab alh o era de dezesseis h o ra s”.7

Em reação a tais abusos, os ju rista s co n tem p o rân eo s não apenas se em p en h aram


n a edificação d e n o rm a s p ro tetiv as q u e acabaram se co n v erten d o em novos ram os do
d ire ito público e privado (direito do trabalho, d ireito do co n su m id o r etc.), m as tam b ém
p assaram a in cu tir, g rad ativ am en te, no d ire ito obrigacional preocupações valorativas
que, irradiadas do s tex to s co n stitucionais, vieram im p o r m aio r solidarism o e eticidade
nas relações p riv ad as.8 A ssim , a liberdade de co n tratar, a relatividade dos co n trato s e
o u tro s “princípios tradicionais e pacíficos, cuja im utabilidade parece havia passado em
ju lg ad o ”9 vêm sofrendo, m ais recen tem en te, a contraposição de novos princípios, su b s­
ta n cialm en te o postos, com o a função social do co n trato e o equilíbrio das p restaçõ es.10
Estas genuínas batalhas ideológicas têm sido travadas quase sem pre em sede d o u tri­
n ária e ju risp ru d en cial, su scitan d o rep ercu ssõ es apenas p o n tu ais no d ireito positivo das
obrigações. N a m aior p arte dos o rd en am en to s rom ano-germ ânicos, o tecido norm ativo
das obrigações te m se m a n tid o im u n e a q u alq u er p ro je to de reform a, n ão m erecendo
m ais qu e alterações tím id as da p arte do legislador.11 E xem plo em blem ático tem -se no
n o sso C ódigo Civil d e 2002, onde a im utabilidade da tradição obrigacional veio reforçada

7 Paul Lafargue, O Direito à Preguiça, São Paulo: Hucitec - Unesp, 1999, p. 77.
8 Tem, então, início um processo de contestação à abordagem liberal e individualista que
informava o direito dos contratos, a que Patrick Atiyah denominou “the fali offreedom o f contract” e
que o autor descreve nos seguintes termos: “During the past hundredyears there has been a continuous
weakening ofbelief in the values involved in individual freedom o f choice, and this weakening has been reflected
in the law. The legislation o f the past century has carried to great lengths the circumstances in which the
individual’s freedom o f decision is overridden, either in the direct interests o f a majority, or to give effect to
values which a majority believe to be o f overriding importance” ('The Rise and Fali o f the Freedom o f Contract,
Oxford: Clarendon Press, 1979, p. 726).
9 Lacerda de Almeida, Obrigações, Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1916, p. XXIV.
10 Para a análise destes novos princípios e de sua repercussão na prática contratual, ver Gustavo
Tepedino, Novos princípios contratuais e teoria da confiança: a exegese da cláusula to the best knowledge o f
the sellers, in Temas de Direito Civil, t. II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 241-273.
11 A reforma da parte dedicada ao direito das obrigações no Código Civil alemão (BGB) em 2002
veio romper esse estado generalizado de imobilismo, produzindo ecos em outras experiências
europeias e latino-americanas. Na imensa maioria dos ordenamentos de civil law, contudo, a
disciplina normativa das obrigações permanece ainda muito próxima do desenho romanístico.
100 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

pela ex p ressa p re m issa de “não d ar guarida no C ódigo senão aos in stitu to s e soluções
norm ativ as já d o tad o s de certa sed im entação e estab ilid ad e” .12

Em u m cenário com o esse, to d as as esperanças recaem sobre o in térp rete. C om pete-


-lhe em p reen d er a rele itu ra da disciplina do d ireito obrigacional, especialm ente a p a r­
tir d o recurso às n o rm as co n stitu cio n ais e às cláusulas gerais in stitu íd as, ainda qu e de
form a acanhada, pelo legislador de 2002. E, n e sse p articular, não re sta dúvida d e que
os m ais significativos avanços têm sido prom ovidos p o r m eio da boa-fé objetiva, verda­
deira táb u a de salvação co n tra as injustiças albergadas pela dogm ática tradicional das
obrigações. A m elh o r d o u trin a b rasileira já identificou o fu n d am en to constitucional da
boa-fé objetiva,13 consagrou a fórm ula útil d a sua tríplice fu n ção ,14 enfatizou o seu papel
de oxigenação do siste m a o b rig acio n al,15 co n stru in d o -lh e, em sín tese, um arcabouço

12 Miguel Reale, O Projeto de Código Civil - Situação Atual e seus Problemas Fundamentais, São Paulo:
Saraiva, 1986, p. 76. Sobre o tema, confira-se a análise de Gustavo Tepedino: “Daí o desajuste maior
do projeto: ele é retrógrado e demagógico. Não tanto por deixar de regular os novos direitos, as
relações de consumo, as questões da bioética, da engenharia genética e da cibernética que estão
na ordem do dia e que dizem respeito ao direito privado. E não apenas por ter como paradigma
os códigos civis do passado (da Alemanha, de 1896, da Itália, de 1942, de Portugal, de 1966), ao
invés de buscar apoio em recentes e bem-sucedidas experiências (como, por exemplo, os Códigos
Civis do Quebec e da Holanda, promulgados nos anos noventa). O novo Código nascerá velho
principalmente por não levar em conta a história constitucional brasileira e a corajosa experiência
jurisprudência!, que protegem a personalidade humana mais que a propriedade, o ser mais do
que o ter, os valores existenciais mais do que os patrimoniais." (O Novo Código Civil: duro golpe na
recente experiência constitucional brasileira, Revista Trimestral de Direito Civil, ano 2, v. 7, Rio de Janeiro:
Padma, 2001, editorial).
13 Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-fé, Rio
de Janeiro: Renovar, 1998.
14 A referida tripartição funcional, inspirada nas funções do direito pretoriano romano, foi
m odernam ente sugerida por Boehmer, Grundlagen der bürgerlichen Rechtsordnung, apud Franz
Wieacker, El principio general de la buenafe, Madrid: Civitas, 1986, p. 50: “el parágrafo 242 BGB
actúa también iuris civilis iuvandi, supplendi o corrigendigatia”. No Brasil essa classificação foi adotada
e difundida por Antonio Junqueira de Azevedo, Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto
de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos, Revista Trimestral de Direito Civil, v. 1, p. 7:
“Essa mesma tríplice função existe para a cláusula geral de boa-fé no campo contratual, porque
justam ente a ideia é ajudar na interpretação do contrato, adjuvandi, suprir algumas das falhas
do contrato, isto é, acrescentar o que nele não está incluído, supplendi, e eventualmente corrigir
alguma coisa que não é de direito no sentido de justo, corrigendi.” No mesmo sentido, Ruy Rosado
de Aguiar Jr., A boa-fé na relação de consumo, Revista de Direito do Consumidor, v. 14, p. 25, ao tratar
especialmente das relações de consumo: “Na relação contratual de consumo, a boa-fé exerce três
funções principais: a) fornece os critérios para a interpretação do que foi avençado pelas partes,
para a definição do que se deve entender por cumprimento pontual das prestações; b) cria deveres
secundários ou anexos; e c) limita o exercício de direitos.”
15 Judith Martins-Costa, A Boa-fé no Direito Privado - Sistema e tópica no processo obrigacional, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, especialmente p. 381-515.
A T ríp lice T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 101

teó rico d os m ais respeitáveis. O P oder Judiciário agarrou-se ao in stru m e n to e passou


a aplicá-lo a u m a in fin itu d e de h ip ó teses fáticas, chegando a resu ltad o s m ais ju sto s na
solução dos casos co n creto s.16
Sem em bargo disso, com o já se havia verificado em o u tro s países, a au tên tica pai­
xão pelo seu potencial tra n sfo rm ad o r vem ensejando invocações p o r vezes excessivas,
qu e o ra em p reg am a boa-fé objetiva d e form a m eram en te decorativa, o ra lhe atrib u em
papéis p ró p rio s de o u tro s in stru m e n to s jurídicos, su scitan d o o risco de esvaziam ento
d o co n ceito .17 Por essa razão, o m o m e n to atu al parece não ser ta n to o de defender o já
cristalizado reco n h ecim en to da boa-fé objetiva, m as o de identificar, sem em bargo do
seu caráter d e cláusula geral, su as m anifestações m ais concretas, a fim de fornecer d ire­
trizes relativ am en te seguras p ara a solução das controvérsias judiciais. O esforço é im ­
prescindível n a m ed id a em q u e in stitu to s os m ais diversos, derivados m u itas vezes de
bases dogm áticas e experiências ju rídicas to ta lm e n te diferenciadas, tê m encontrado na
boa-fé objetiva o fu n d am en to norm ativo único a p e rm itir seu acolhim ento no direito b ra­
sileiro. E, n esse sen tid o , especial relevância assu m em aquelas figuras que se relacionam
ao ad im p lem en to das obrigações, noção que te m sofrido significativa transform ação no
processo d e re le itu ra d o direito obrigacional.

2 A tríplice transformação do adimplemento: temporal, conceituai


e consequencial

D ito “o m ais n a tu ra l” 18 d e n tre os m eios extintivos da obrigação, o adim plem ento


recebe, desde sem pre, atenção red o b rad a do d ireito obrigacional. N a perspectiva tra d i­
cional, o ad im p lem en to vem definido com o “o efetivo cu m p rim en to da prestação”, 19 ou o
ato pelo qual "recebe o credor o qu e lhe é devido”.20 A contrario sensu, o inadim plem ento
é u su a lm e n te co nceituado com o a inexecução d a p restação debitória, a “significar p u ra e

16 Ver, entre outras aplicações da boa-fé objetiva, Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial
32.89O/SP, j. 14.11.1994; Recurso Especial 184.573/SP, j. 19.11.1998; Recurso Especial 370.598/
RS, j. 26.2.2002; Recurso Especial 554.622/RS, j. 17.11.2005; e Agravo Regimental na Medida
Cautelar 10.015/DF, j. 2.8.2005.
17 Sobre a superutilização da boa-fé objetiva, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, A
Proibição de Comportamento Contraditório - Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, 2. ed., p. 120-125.
18 Clovis Bevilaqua, Direito das Obrigações, Campinas: Red, 2000, p. 137. Trata-se, na sua lição,
do modo extintivo “que foi visado no momento de atar-se o vínculo, e o que melhor corresponde
à teleologia social, que evocou, do caos originário, a prodigiosa força ético-jurídica emanada dos
contratos e de todas as obrigações”.
19 Orlando Gomes, Obrigações, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 88.
20 Antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, v. 2 ,1. 1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 157.
102 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

sim p lesm en te qu e a p restação não é realizada tal com o era devida”.21 C om o se vê, am bas
as noções vêm g eralm en te lim itadas à análise do cu m p rim en to ou d escu m p rim en to da
prestação principal, “n o s precisos te rm o s em q u e ela e stá co n stitu íd a ”.22

A tu alm en te, co n tu d o , reconhece-se que a obrigação transcende, em m u ito , o dever


consubstanciado n a prestação principal. A própria noção de obrigação, identificada com um
vínculo de subm issão do devedor ao credor,23 vem sendo, gradativam ente, abandonada em
favor d o conceito m ais equilibrado de relação obrigacional, com posta p o r direitos e deveres
recíprocos, dirigidos a u m escopo com um . A vultam , nesse sentido, em im portância os
cham ados deveres anexos o u tu telare s, q u e se em b u tem n a regulam entação contratual,
n a ausência o u m esm o em co n traried ad e à von tad e das p artes, im pondo c o m p o rta m e n ­
to s qu e vão m u ito além da literal execução da p restação principal.24
O p ró p rio c u m p rim e n to ou d e scu m p rim en to d a p restação aju stad a deve ser exa­
m in ad o à luz do p ro p ó sito efetivam ente p erseguido pelas p artes com a co n stitu ição da
específica relação obrigacional. Im põe-se, n a lição de Perlingieri, “u m a investigação em
chave funcional, isto é, qu e te n h a em co n ta a valoração dos in teresses considerados não
g e n ericam en te”, m as q u e os ex am ine “sin g u larm en te e co n c re ta m e n te ”.25 R ejeita-se,
assim , a visão m eram en te e s tru tu ra l das obrigações q u e identifica a satisfação dos in te ­
resses envolvidos com a realização da p restação principal, a guiar m esm o a tipologia das
obrigações, qu e red u z a com plexidade d a concreta regulação de in tere sses das p artes à
fórm ula sim p lista do dar, fa z e r ou não fa ze r.
A estreiteza d a leitu ra tradicional, lim itada ao dever de prestar, não se coaduna com a
rica m ultiplicidade de in teresses subjacente aos m ecanism os obrigacionais da atualidade,
que, com cada vez m aio r frequência, su p eram a singularidade de u m único in stru m e n to
co n tratu al, p ara abarcar “gru p o s d e c o n tra to s”, “co n trato s conexos”, “co n trato s coliga­
d o s”, "c o n tra to s-q u ad ro ”, “red es c o n tra tu a is” .26 T am pouco a te n ta ao caráter dinâm ico

21 Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra: Coimbra Editora, 1983, p. 260.
22 Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, Coimbra: Almedina, 1966, p. 277.
23 Como explica Hans Hattenhauer, a ideia do vínculo obrigacional, já associada desde os romanos
a um poder do credor, ganhou, sob a influência da filosofia kantiana, a conotação de verdadeiro
apossamento de parte da liberdade do devedor: “La obligación se producía porque alguien conseguia
poseer una determinada cantidad de la libertad de otra persona, y, en armonia con los leyes generales de la
libertad, podia forzar a cumplir lo prometido y actuar sobre la voluntad dei otro, cuya libertad se convertia -
en una parte exactamente determinada - e n s u propia libertad” (Conceptos Fundamentales dei Derecho Civil,
Barcelona: Ariel, 1987, p. 82).
24 Os deveres anexos abrangem, em conhecida classificação, deveres de proteção, de esclarecimento
e de lealdade. Sobre o tema, ver Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa fé no Direito
Civil, Coimbra: Almedina, 1997, p. 605 ss.
25 Pietro Perlingieri, Ilfenomeno delTestinzione nelle obbligazioni, Camerino-Napoli: E.S.I., 1980,
p. 21.
26 Sobre todas essas noções, é imprescindível a leitura de Carlos Nelson Konder, Contratos
Conexos - Grupos de Contratos, Redes Contratuais e Contratos Coligados, Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
especialmente p. 148-187.
A T ríp lice T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 103

d a relação obrigacional - cu n h ad o com a célebre expressão de Clovis do C outo e Silva,


"obrigação com o p ro cesso ” - , q u e se exprim e em u m co n ju n to de atos in terd e p e n d e n ­
tes cujo gradual d esenvolvim ento rep ercu te co n tín u a e m u tu a m e n te sobre os in teresses
envolvidos,27 de form a tam b ém exacerbada n a p rática co n tem p o rân ea p o r relações con­
tra tu a is co n tin u ad as, de longa duração, ou pelos cham ados contratos relacionais ,28

E x am inando sob essas novas len tes a noção de ad im p lem en to (e, p o r conseguinte,
de in ad im p lem en to ), identifica-se u m a g en u ín a transform ação, q u e se pode, p o r razões
didáticas, ex am in ar sob trê s aspectos d istin to s: (i) tem poral; (ii) conceituai; e (iii) con-
sequencial. E m o u tra s palavras, alteram -se o m o m en to de verificação do ad im p lem en to
(tem po), as condições p ara sua configuração (conceito em se n tid o e s trito )29 e os efeitos
qu e dele d eco rrem (conseqüências). Em cada u m desses aspectos, pode-se co n statar a
p resen ça d e novas figuras e co n stru çõ es q u e vêm sen d o vinculadas, d ire ta ou in d ire ­
tam e n te, à boa-fé objetiva, com o o in ad im p lem en to antecipado, a violação positiva do
co n trato , o ad im p lem en to substan cial e a responsabilidade p ó s-contratual.

3 O adimplemento como processo prolongado no tempo.


Inadimplemento antecipado (anticipatory breach of contract).
Adimplemento retardado e a m ora nas obrigações negativas

Identificado, n a abordagem tradicional, com o cu m p rim en to exato da p restação ajus­


tada, o ad im p lem en to resu m ia-se a u m ato p o n tu al do devedor: a en treg a d a coisa, a res­
titu ição d o objeto, a realização d o ato devido. A o que se passava an tes ou depois desse
ato p o n tu al era in d iferen te o d ireito obrigacional. A inda hoje, rep ete-se a lição enfática,
segundo a qual “o su jeito passivo d a obrigação só tem de cum pri-la n a época do venci­

27 “Com a expressão ‘obrigação como processo' tenciona-se sublinhar o ser dinâmico da obrigação,
as várias fases que surgem no desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si se ligam
com interdependência” (Clovis V. do Couto e Silva, A Obrigação como Processo, São Paulo: José
Bushatsky, 1976, p. 10).
28 A expressão, derivada dos relational contracts do common law, foi adotada pioneiramente no
Brasil por Ronaldo Porto Macedo Jr., Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor, São Paulo: Max
Limonad, 1998. Claudia Lima Marques refere-se, em sentido semelhante, aos “contratos cativos
de longa duração” (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 82-83).
29 Diz-se "em sentido estrito” porque, a rigor, as transformações verificadas no momento de
aferição do adimplemento e em seus efeitos traduzem também alterações conceituais, relacionadas à
maneira de enxergar e compreender o adimplemento. Entretanto, para os fins da tripartição adotada
desde o título deste estudo, será denominada conceituai tão somente a transformação relacionada
às condições necessárias à configuração do adimplemento, restando as demais inovações alocadas
no plano temporal e consequencial.
104 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

m e n to ”, de tal m odo q u e “ao cred o r não é lícito antecipar-se, p ed in d o a satisfação da


dívida an tes do v encim ento”.30 C om pete-lhe aguardar im passível o tem p o do pagam ento.
Em direção op o sta, a rele itu ra funcional e dinâm ica d a obrigação, com o relação que
se d esd o b ra n o tem p o , im põe reco n hecer “o encadeam ento, em form a processual, dos
atos qu e te n d em ao ad im p lem en to do dever".31 Sob o im pério da boa-fé objetiva, o com ­
p o rta m e n to das p artes an te s e dep ois do c u m p rim en to d a p restação principal p assa a
p ro d u zir efeitos jurídicos diferenciados, que podem m esm o ultrapassar, em im portância,
aqueles q u e resu lta m d o cu m p rim en to em si. E m u m cenário m arcado por relações con­
tra tu a is d u rad o u ras, to m a -se não apenas u m direito, m as u m efetivo dever d e am bas as
p artes diligenciar pela utilid ad e d a p restação antes, d u ran te e depois do seu vencim ento,
p ara m u ito além d o m o m e n to p o n tu al de sua execução.
N esse sentido, já se reconhece ao credor o direito de agir d ian te de situações que
vêm sen d o d en o m in ad as d e inadim plem ento antecipado , n a e ste ira da d o u trin a anglo-saxã
do anticipatory breach o f co n tra ct}2 A ssim , m esm o a n te s do vencim ento da obrigação, a
recusa do devedor em cum prir a prestação no fu tu ro já se equipararia ao inadim plem ento,
au to rizan d o ao cred o r o ingresso em ju ízo p ara p leitear o cu m p rim en to d a prestação, ou
m esm o a resolução d o vínculo obrigacional com a condenação do devedor às perdas e
d an o s.33 E p arte da d o u trin a te m su sten tad o até q u e o credor tem n ão o direito, m as o
dever de agir co n tra a recu sa an tecip ada do devedor, m itigando os d an o s.34

A figura do inadim plem ento antecipado - a rigor, antecipada recusa ao adim plem ento
- assu m e im p o rtân cia elevada n a m edida em que su a configuração pode se d ar de form a

30 Clovis Bevilaqua, Direito das Obrigações, cit., p. 149-150 e 151.


32 Clovis do Couto e Silva, A Obrigação como Processo, cit., p. 13.
32 O caso pioneiro, sempre referido, é o de Hochster v. De la Tour, julgado em 1853. Hochster,
contratado para prestar serviço de mensageiro para o demandado, durante uma viagem que deveria
ter início em 1Qde junho, recebeu de De la Tour, em meados de maio, a comunicação de que seus
serviços não mais seriam necessários. O juiz decidiu que não seria necessário aguardar o termo
inicial da prestação dos serviços para que o demandante reclamasse seus direitos. Sobre o caso,
confira-se Fortunato Azulay, Do Inadimplemento Antecipado do Contrato, Rio de Janeiro: Ed. Brasília/
Rio, 1977, p. 101-102.
33 Como observa Jorge Cesa Ferreira da Silva, A Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato, Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 257, “em que pese a ausência de uma unitária conformação da hipótese,
pode-se afirmar que, hoje, é em grande medida aceito na família Romano-Germânica e sobretudo
fora dela, o entendim ento de que a manifestação antecipada no sentido do inadimplemento
provoca-o ou é capaz de provocá-lo”.
34 Nesse sentido, sustenta Anelise Becker que “não é permitido ao credor manter o contrato
com o propósito de, cumprindo a sua parte, em oposição direta à recusa do devedor,exigir-lhe
o pagamento do preço total do contrato. Trata-se de uma hipótese peculiar de abuso de direito,
pois ao credor lesado pela recusa em adimplir da contraparte não é legítimo considerar firme o
contrato. Está ele obrigado, nesta hipótese, a considerar o contrato antecipadamente rompido, para
mitigar os danos da parte inadimplente” (Inadimplemento Antecipado do Contrato, Revista de Direito
do Consumidor, v. 12, out./dez. 1994, p. 74).
A T ríp lice T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 105

im plícita, a p a rtir de condições fáticas que d em o n strem o d esin teresse do devedor, de


m o d o a co m p ro m ete r o cu m p rim en to da obrigação. E m caso em blem ático, o T ribunal
d e Ju stiça do Rio G rande d o Sul exam inou pedido de rescisão de co n trato de participação
em e m p reen d im en to ho sp italar, prom ovido p o r co n tra ta n te que, m ed ian te o p agam ento
d e preço em parcelas m ensais, ad quirira q u o tas q u e lhe asseguravam participação nos
lucros e d ire ito a ate n d im e n to m édico g ra tu ito n a u n id ad e de saúde a ser construída.
C o n statan d o q u e não foi to m ad a “a m ínim a providência p ara co n stru ir o p ro m e tid o h o s­
pital, e as p ro m essas ficaram n o p lano das m irag en s”, concluiu o trib u n al q u e “ofende
to d o s os princípios de com utatividade co n tratu al p re te n d e r q u e os su b scrito res d e q u o ­
ta s estejam a d strito s à integralização de tais q u o tas, sob p en a d e p ro te sto dos títu lo s ”,
d an d o com o pro ced en te, p o r fim , a ação de rescisão do co n trato .35
À im plícita recu sa do d evedor ao ad im p lem en to fu tu ro po d e-se eq u ip arar q u alq u er
situação em que se verifique risco efetivo de d escum prim ento d a prestação. M elhor, to d a­
via, q u e igualar tais h ip ó teses ao inadim plem ento, com o su g ere a sim ples im portação
acrítica da figura do anticipatory breach o f contract, seria lhes reservar a aplicação analógica
d o art. 4 77 d o C ódigo Civil, q u e dispõe:

“A rt. 477. Se, dep o is de concluído o co n trato , sobrevier a u m a das p artes co n tra­
ta n te s d im inuição em seu p atrim ô n io capaz de co m p ro m eter ou to rn a r duvido­
sa a p restação pela qual se obrigou, pode a o u tra recusar-se à p restação q u e lhe
incum be, até q u e aq u ela satisfaça a q u e lhe com pete ou dê garantia b a sta n te de
satisfazê-la.”

N ão h á dúvida d e qu e o p ressu p o sto expresso d a norm a, rep etid a de form a p a rti­


cular n a disciplina de diversos co n trato s específicos (e. g ., arts. 495 e 590), consiste n a
d im inuição su p erv en ien te n o p a trim ô n io de u m a das p artes. C um pre, todavia, assegu­
rar, p o r analogia, id êntico efeito tam b ém a o u tra s situações de elevada probabilidade de
inadim plem ento. Tal construção parece oferecer, diferentem ente da usual assim ilação com
o in ad im p lem en to - d en u n ciad a já n a term inologia anticipatory breach o f contract , ou seja,
in ad im p lem en to antecipado, e, p o rta n to , espécie de in ad im p lem en to - , a gen u ín a van ta­
gem de s u b stitu ir o exercício do direito de resolução (conseqüência do inadim plem ento)
p or u m rem édio m enos drástico, e m ais com patível com a situação de incerteza que ainda
pende sobre o cu m p rim en to da prestação no term o futuro, autorizando ao co n tratan te tão
so m en te “recusar-se à prestação q u e lhe incum be, até que aquela satisfaça a que lhe com ­
p e te ou d ê g aran tia b a sta n te d e satisfazê-la”. A resolução ficaria, d este m odo, reservada
àqu eles casos em qu e o cu m p rim en to d a obrigação no vencim ento fu tu ro se afigurasse,
d esd e já, im possível (e. g ., co n stru ção do h o sp ital em 15 dias); e n q u an to que, n a m era
im p ro b ab ilid ad e do cu m p rim en to (construção do ho sp ital em seis m eses), o efeito seria
não a resolução, m as a aplicação, p o r analogia, do d isp o sto n o art. 477 do C ódigo Civil.

35 TJRS, Apelação Cível 582000378,8.2.1983, Rei. Athos Gusmão Carneiro, Revista deJurisprudência
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, v. 97, 1983, p. 397.
106 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

In d e p en d en tem en te d a tese qu e ora se propõe, o certo é que, seja na h ip ó tese de im ­


possibilidade, seja n a de im probabilidade do cum prim ento, parece injustificável conservar
o cred o r em e sta d o de ab so lu ta paralisia até o vencim ento da obrigação, p reserv an d o um
verdadeiro vácuo n a relação obrigacional, que, em bora regularm ente constituída, n en h u m
efeito p ro d u z até qu e se verifique a sua já anunciada frustração.
C u m p re reco n h ecer que, p o r m ais q u e se afigure cientificam ente ú til u m a análise
s e g m e n ta d a das fases d a obrigação - Schuld (débito) e H a ftu n g (resp o n sab ilid ad e) - ,
as p a rte s vivem a ex periência obrigacional com o u m p ro cesso co n sta n te , com efeitos
econôm icos e psicológicos q u e se p ro lo n g am d esd e an tes d a c o n stitu ição a té depois
do ad im p lem en to . N esse contexto, ao devedor com pete não apenas efetu ar a prestação
n o m o m en to ju sto , m as tam b ém p rep arar-se p ara efetuá-la a tem p o e d e m o d o a alcan­
çar da form a m ais plena o p ro p ó sito com um q u e deu ensejo à co n stitu ição do negócio
jurídico. T am bém ao cred o r co m p ete a persecução do escopo com um , exim indo-se de
a te n ta r co n tra a relação q u e o conecta ao devedor, e n q u a n to o resu ltad o esperado p u d e r
ain d a se r alcançado. E sob essa perspectiva q u e se deve ex am in ar o u tra questão: a do
ad im p lem en to retard ad o ou im po n tual.
D a m esm íssim a form a qu e se veda ao devedor fru stra r a obrigação an tes de seu ven­
cim ento, deve-se im p ed ir o credor de frustrá-la p o sterio rm en te. A ssim , cum pre acolher o
ad im p lem en to retard ad o sem p re qu e possível, p referindo-se a m o ra ao in ad im p lem en to
ab so lu to , d esd e qu e con serv ad a a função socioeconôm ica d a relação obrigacional em
cada caso concreto. E m sen tid o diverso cam inhou o legislador de 2002, ao elim inar a
referência à m o ra n o art. 390, su g erin d o o acolhim ento d a posição tradicional pela qual
o in ad im p lem en to n a s obrigações negativas é sem p re ab so lu to .36
A alteração n o rm ativ a a te n d e à lição d o u trin ária segundo a qual "a obrigação n eg a­
tiva não c o m p o rta variante. O u o devedor não p ratica o ato p roibido e está cum p rin d o
a obrigação; ou pratica, e dá-se a inexecução” .37 Ignora, contudo, que, se a m áxim a vale
p ara obrigações de cu m p rim en to im ediato, p o d e não se afigurar im perativa em relações
obrigacionais d e caráter co n tin u ad o , nas quais a abstenção em retard o p o d e m o strar-se
útil ao cred o r e ao a te n d im e n to da função co n cretam en te d esem p en h ad a pela relação
obrigacional. A ssim , se o devedor se obriga a n ão co ncorrer com o credor, e ev en tu al­
m e n te o faz, n ad a im p ed e que, p u rg an d o a m o ra (com as ev en tu ais p erd as e d an o s),
volte a se a b ste r.38

36 “Art. 390. Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que
executou o ato de que se devia abster.” O Código Civil anterior determinava em seu art. 961: “Nas
obrigações negativas, o devedor fica constituído em mora, desde o dia em que executar o ato de
que se devia abster.”
37 Agostinho Alvim, Da Inexecução das Obrigações e Suas Conseqüências, São Paulo: Saraiva, 1955,
p. 148.
38 Era já a lição de Pontes de Miranda, para quem, existindo “possibilidade de ser elidido o efeito
da inexecução, o devedor pode ser admitido a purgar a mora e continuar abstendo-se” (Tratado de
Direito Privado, tomo XXII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, p. 199).
A T ríp lice T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 107

C om efeito, seja nas obrigações negativas, seja n as positivas, o ad im p lem en to não


se lim ita ao in sta n te sin g u lar d o seu cu m p rim en to , m as se esp raia p ela co n tin u id ad e
d a relação obrigacional, p ara a tra ir em seu favor a co n d u ta das p artes an tes e depois do
v encim ento d a obrigação. A ssim , à luz da boa-fé objetiva, o ad im p lem en to p assa a ser
co m p reen d id o com o u m p ro cesso q u e se e ste n d e tem p o ralm en te, abrangendo o com ­
p o rta m e n to das p artes an tes e após o m o m en to p o n tu al do vencim ento.

4 A releitura funcional do conceito de adimplemento. O adimplemento


como atendim ento da função concreta do negócio jurídico. A
chamada violação positiva do contrato

A co m p reen são d o ad im p lem en to com o u m processo co n tin u ad o , p rolongado no


tem p o , conecta-se, indissociavelm ente, a u m a alteração m ais profunda, d e caráter m ais
e strita m e n te conceituai. Longe de se restrin g ir à p rática do ato p ro m e tid o pelo devedor,
o ad im p lem en to se reveste, n o d ireito contem porâneo, de caráter funcional, vinculado
ao aten d im en to dos efeitos essenciais do negócio ju ríd ico co n cretam en te celebrado pelas
partes.
U rge, desse m odo, revisitar o critério distintivo en tre o inadim plem ento absoluto e o
in ad im p lem en to relativo p ara co m p reen d er de form a m ais eq u itativ a a u sual fórm ula do
interesse do credor. A d o u trin a tradicional afirm a que, n essa m atéria, “o interesse do devedor
acha-se su b o rd in ad o ao d o cred o r”.39 Todavia, cum pre reconhecer q u e o adim plem ento
dirige-se n ão à satisfação a rb itrária do credor, m as ao aten d im en to da função socioeco-
nôm ica, identificada com a p ró p ria causa do ajuste estabelecido e n tre am bas as p artes.
Em o u tra s palavras, o qu e o ad im p lem en to exige não é tan to a satisfação do in te ­
re sse u n ilateral d o credor, m as o aten d im en to à causa do contrato, que

“se co n stitu i, efetivam ente, do encontro do concreto in tere sse das p artes com os
efeitos essenciais a b stra ta m e n te previstos no tip o (ou, no caso dos co n trato s a tí­
picos, da essencialidade qu e lhe é a trib u íd a pela p ró p ria a u to n o m ia negociai)”.40

Se o co m p o rta m e n to do devedor alcança aqueles efeitos essenciais que, p reten d id o s


co n cretam en te pelas p artes com a celebração do negócio, m o stram -se m erecedores de
tu te la jurídica, tem -se o ad im p lem en to da obrigação, in d ep en d en tem en te da satisfação
psicológica ou não do credor.
N ote-se, porém , que não b asta a verificação da causa em abstrato, norm alm en te iden­
tificada, n o direito das obrigações, com a realização das prestaçõ es principais integrantes

39 Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, cit., p. 10.


40 Maria Celina Bodin de Moraes, A Causa dos Contratos, Revista Trimestral de Direito Civil, v. 21,
p. 109.
108 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

do tip o negociai em su a previsão norm ativa. Im põe-se o exam e d a cham ada "causa em
co n creto ”, isto é, do aten d im en to dos in teresses efetivam ente perseguidos pelas p artes
com a reg u lam en tação co n tratu al. T ranscende-se, em sín tese, a e s tru tu ra do negócio -
form a e co n teú d o (o como e o quê) - p ara se p erq u irir a sua função (o seu porquê).41 É o
aten d im en to a e sta função co n creta do negócio, e não m ais o cu m p rim en to m eram en te
e stru tu ra l da p restação principal co ntratada, que define o ad im p lem en to , em su a visão
contem porânea.
A qui, h á de se exam inar, em particular, a cham ada violação positiva do contrato. D esen­
volvida pelo ju ris ta alem ão H erm an Staub, no início do século XX,42 a violação positiva
do co n trato n asce n ão com o u m in stitu to rig id am en te definido, m as com o u m a noção
am pla e flexível d estin ad a a absorver h ip ó teses de d escu m p rim en to não contem pladas
pelo BGB, em especial aquelas relacionadas ao m au cu m p rim en to da p restação .43 As crí­
ticas form uladas co n tra a teo ria de Staub, que vão desde a negativa da p reten d id a lacuna
n o C ódigo Civil alem ão44 a objeções term inológicas variadas,45 não lograram in u tilizar
a sua construção.
N o Brasil, a am p litu d e da definição legal de m o ra - a qual, tra n scen d en d o a m era
questão tem poral, abrange a não realização ou não recebim ento do pagam ento "no tem po,
lugar e form a q u e a lei ou a convenção estabelecer” (art. 394) - e a regulação do cu m ­
p rim e n to in ex ato em se to res específicos do n o sso C ódigo Civil - ora, em term o s m ais
gerais, com o n o s vícios red ib itó rio s (arts. 441-445), ora em tip o s co n tratu ais d e te rm i­
nados, com o nos co n trato s de em p reitad a e de tra n sp o rte (arts. 618, 754 etc.) - não têm

41 Emilio Betti, Causa dei Negozio Giuridico, in Novíssimo Digesto Italiano, v. III, Torino: UTET, 1959,
p. 32: “Solo cosi, esaminata la struttura -fo rm a e contenuto (il come e il che cosa) dei negozio, può riuscire
fruttuoso indagarne lafunzione (il perché).”
42 Hermann Staub, Die positiven Vertragsverletzungen und ihre Rechtsfolgen, in Festschrift fiir den XXVI.
Deutschen Juristentag, Berlim: J. Guttentag, 1902. A obra foi publicada também em italiano: Hermann
Staub, Le violazioni positive dei contratto, Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2001.
43 Como esclarecem Zweigert e Kõtz, “Vinfelice frammentazione dei tipi di inadempimento, própria dei
BGB -c h e viene a distinguere tra impossibilità soggettiva ed oggettiva e tra entrambe e la mora - configura
un vero e proprio errore di impostazione. Ed è proprio 1’istituto delia violazione positiva dei credito che sta a
testimoniare chiaramente la lacunosità di questa disciplina” (Introduzione al diritto comparato, v. II, Milano:
Giuffrè, 1995).
44 Sobre o tema, registra Rocco Favale: "È opportuno precisare che studi successivi hanno sollevato dubbi
sulTutilità delia scoperta di Staub, in quanto hanno sottolineato che il legislatore aveva previsto, e quindi
anche indirettamente regolata, la Schleschterfullung, mascherata come ipotesi di impossibilità parziale delia
prestazione” (prefácio a Hermann Staub, Le violazioni positive dei contratto, cit., p. 15).
45 Nesse particular, tem-se criticado a expressão “violação positiva do contrato” ao argumento
de que o adjetivo “positiva” negaria relevância à conduta omissiva do devedor. Afirma-se, além
disso, que a violação positiva, consoante a própria fórmula de Staub, poderia ser aplicada também
a outras relações obrigacionais fundadas em negócios jurídicos unilaterais, e não contratos, daí
decorrendo tentativas variadas de oferecer expressões alternativas, dentre as quais tem merecido
destaque a “violação positiva do crédito” (positive Forderungsverletzung) .
A T ríp lice T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 109

sido consideradas suficientes a excluir a utilidade, ao m enos residual, da violação positiva


d o co n trato , conceito que, se n u n ca foi reco rre n te n a p rática ju risp ru d en cial brasileira,
veio m ais recen tem en te ganhar novo fôlego m ediante sua associação ao “descum prim ento
culposo de dever lateral” im p o sto pela boa-fé objetiva.46
Sem em bargo das suas diversas acepções, a noção de violação positiva do contrato, em
seus co n to rn o s fluidos, vem sen d o aplicada pelas cortes brasileiras ex atam en te naquelas
h ip ó teses em que, em b o ra se verificando u m com p o rtam en to do devedor correspondente
à realização d a p restação co n tratad a, não se alcança, p o r algum a razão, a função concre­
ta m e n te a trib u íd a p elas p artes à regulam entação c o n tra tu a l.47 C om efeito, a ju ris p ru ­
dência b rasileira reconhece a configuração de violação positiva do co n trato em situações
com o a de “instalação d e p iso lam inado” com defeito caracterizado pelo “afu n d am en to
de m io lo ”,48 o u ain d a a m á execução de co n trato de seguro p o r “dem o ra excepcional na
realização do co n serto de veículo sin istrad o ”.49
N a perspectiva tradicional, em que o adim plem ento consiste sim p lesm en te no cum ­
p rim e n to d a p restação principal, a tu te la do créd ito em tais h ip ó teses exige m esm o o
recu rso a algum a figura ou n o rm a ex tern a à disciplina do adim plem ento, com o a viola­
ção positiva do co n trato ou o (m ais direto) recurso à cláusula geral de boa-fé objetiva
(art. 4 2 2 ). N ão é, todavia, o q u e ocorre em u m a perspectiva funcional, n a qual o cum ­
p rim en to d a p restação principal n ão b a sta à configuração do ad im p lem en to , exigindo-se
o efetivo aten d im e n to da função co n cretam en te perseg u id a pelas p artes com o negócio
celebrado, sem o qual to d o co m p o rtam en to (positivo ou negativo) do devedor m o stra-se
in suficiente. Vale dizer: revisitado o conceito de adim plem ento, de m o d o a corroborar a
n ecessidade de u m exam e q u e ab arq u e o cu m p rim en to da p restação co n tratad a tam b ém
sob o seu p rism a funcional, as h ip ó teses hoje solucionadas com o u so da violação p o si­
tiva do co n trato te n d em a recair n o âm ago in te rn o d a p ró p ria noção de adim plem ento.
Vale n o ta r que, n esse cam po, tam b ém a recíproca se revela verdadeira. Da m esm a
form a q u e o cu m p rim e n to m e ram en te e s tru tu ra l da p restação principal não configura
adim plem ento, exigindo u m a análise m ais aten ta à função concreta do negócio celebrado,
a inadequação form al do co m p o rtam en to do devedor ao débito, tal com o e stru tu ralm e n te
definido pelas p artes, não ensejará in ad im p lem en to , desde que aten d id o o escopo esp e­

46 Jorge Cesa Ferreira da Silva, A Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato, Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 268. Na definição integral apresentada pelo autor: “No direito brasileiro, portanto, pode-
-se definir a violação positiva do contrato como inadimplemento decorrente do descumprimento
culposo de dever lateral, quando este dever não tenha uma vinculação direta com os interesses
do credor na prestação."
47 “Exemplo clássico é o do criador que adquire ração para alimentação dos seus animais, a qual,
porém, muito embora tenha sido entregue no prazo, se encontrava imprópria para o uso e, por
conta disso, acarreta a morte de diversas reses” (Gustavo Tepedino et al., Código Civil Interpretado,
v. I, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 693).
48 TJRS, Tirm a Recursal, Recurso Cível 71000626697, j. 29.3.2005.
49 TJRS, Turma Recursal, Recurso Cível 71000818146, j. 21.12.2005.
110 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

cificam ente perseg u id o pelas p artes com a co n stitu ição do vínculo obrigacional. A qui se
chega à q u estão do ad im p lem en to substancial.

5 O adim plem ento sub stan cial. A posição da ju risp ru d ê n cia


brasileira. Parâm etros de substancialidade e o atual papel do
adimplemento substancial

A o tra ta r do ad im p lem en to , afirm a a d o u trin a tradicional que “o princípio fu n d a­


m en tal n e sta m atéria é o da pontualidade . O cu m p rim en to deve ser p o n tu al em todos os
sen tid o s (não apenas n o sen tid o tem poral); deve coincidir p onto por p o n to com a p re s ­
tação a qu e o d evedor e stá obrigado; deve ajustar-se-lhe in te ira m e n te ”.50 D esse dogm a
se distan cia a teo ria do ad im p lem en to substancial, q u e p erm ite, em sín tese, rejeita r a
reso lu ção d o vínculo obrigacional sem p re q u e a d esconform idade e n tre a co n d u ta do
devedor e a p restação estabelecida seja de pouca relevância.
In sp irad a n a substantial performance d o d ireito anglo-saxônico,51 tal co n stru ção surge
com o p ro p ó sito d e au to riz ar a avaliação de gravidade do in ad im p lem en to an tes de defla­
grar a co n seq ü ên cia d rástica co n su b stan ciad a n a reso lu ção d a relação obrig acio n al.52
“A ssim , su ced e q u an d o alguém se obriga a c o n stru ir um prédio e a co n stru ção chega
p ratic am en te ao seu térm in o (ad im plem ento substancial); não se faculta sem pre, n e ste
caso, a perda da retribuição contratada, ou a resolução do contrato p o r inadim plem ento.”53
T rata-se, com o se vê, de u m exam e de suficiência pelo qual deve o m agistrado “aplicarse

50 Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, cit., p. 277.


51 Sobre o tema, ver E. Allan Farnsworth, William F. Young e Carol Sanger, Contracts - Cases
and Materials, New York: Foundation Press, 2001, p. 700-707, especialmente os esclarecedores
comentários às decisões proferidas em Jacob & Youngs v. Kent (Court o f Appeals o f New York, 1921);
e Plante v. Jacobs (Supreme Court o f Winsconsin, 1960).
52 A teoria surge vinculada à distinção entre condition e warranty, limitando-se o direito de
resolução à primeira hipótese, em que a prestação descumprida configura condição ou pressuposto
do negócio jurídico celebrado, e não mero elemento acessório. Caso paradigmático no direito inglês
é Bonee v. Eyre, de 1779, em que “o demandante havia transmitido ao demandado uma plantação
nas índias Ocidentais pelo valor de quinhentas libras e uma renda vitalícia de cento e sessenta
libras anuais, assegurando ser proprietário e legítimo possuidor dos escravos lá existentes. Eyre
atrasou o pagamento da renda anual, o que fez com que Bonee ingressasse com ação exigindo tal
pagamento. Em reconvenção, Eyre buscou a resolução do contrato, baseado no descumprimento
do contrato pelo demandante, sob o fundamento de que não era ele o legítimo proprietário dos
escravos. Lorde Mansfield decidiu pelo não-cabimento do pedido de resolução do contrato, pelo fato
de que não poderia a obrigação descumprida por Bonee ser considerada uma condition” (Eduardo
Luiz Bussatta, Resolução dos Contratos e Teoria do Adimplemento Substancial, São Paulo: Saraiva, 2007,
p. 35-36).
53 Clóvis do Couto e Silva, O Princípio da Boa-fé no Direito Brasileiro e Português, in Estudos de Direito
Civil Brasileiro e Português, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 68.
A T ríp lice T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 111

a medir o apreciar en cuanto el incum plim iento es capaz de afectar el operamiento o los resultados
de um a relación oblicatoria determ inada y considerada en su totalidad”,54

A te o ria d o ad im p lem en to substancial en co n tra previsão ex p ressa em n u m ero sas


codificações. A C onvenção d e V iena, acerca da com pra e venda intern acio n al de m erca­
dorias, exige p ara a resolução do aju ste u m a "violação fu n d am en tal do co n tra to ” (arts.
49 e 64) e define com o fu n d am en tal aquela violação que

"causa à o u tra p arte u m p rejuízo tal q u e prive su b stan cialm en te daquilo q u e lhe
era legítim o esp erar do co n trato , salvo se a p a rte faltosa não previu e ste resu ltad o
e se u m a p esso a razoável, com id ên tica qualificação e colocada n a m esm a situ a­
ção, não o tivesse ig u alm en te p rev isto ” (art. 25).

N o Brasil, o silên cio do leg islad o r d e 2 0 0 2 não te m im p ed id o o aco lh im e n to da


noção, com base, m ais u m a vez, n a boa-fé objetiva. D e fato, afirm a-se que, no âm bito
d a seg u n d a função d a boa-fé objetiva, c o n siste n te n a vedação ao exercício abusivo de
posição jurídica, "o exem plo m ais significativo é o d a proibição do exercício do direito
de reso lv er o co n tra to p o r in ad im p lem en to , ou de su scitar a exceção do co n trato não
cum prido, q u a n d o o in cu m p rim en to é insignificante em relação ao co n trato to ta l”.55
O atu al desafio d a d o u trin a e stá em fixar p arâm etro s que p e rm itam ao P oder Ju d i­
ciário dizer, em cada caso, se o ad im p lem en to afigura-se ou não significativo, su b sta n ­
cial. A falta de su p o rte teórico, as cortes brasileiras tê m se m o stra d o tím id as e invocado
o ad im p lem en to substan cial apenas em abordagem qu an titativ a. A ju risp ru d ê n cia tem ,
assim , reconhecido a configuração d e ad im p lem en to su b stan cial q u a n d o se verifica o
cu m p rim en to d o co n trato "com a falta apenas da ú ltim a p restação ”,56 ou o recebim ento
pelo cred o r de "16 das 18 parcelas do fin an ciam en to ”,57 ou a "h ip ó tese em que 94% do
preço do negócio de p ro m e ssa de com pra e venda de im óvel encontrava-se satisfeito ”.58
E m o u tro s casos, a an álise ju d icial te m descid o m e sm o a u m a im p re ssio n a n te aferi­
ção p e rcen tu al, d eclaran d o su b stan cial o a d im p lem en to nos casos "em q u e a parcela
co n tratu al in adim plida rep resen ta apenas 8,33% do valor total das prestações devidas”,59
ou de p ag am en to “q u e re p re se n ta 62,43% do preço c o n tra ta d o ”.60

54 Jorge Priore Estacaille, Resolución de Contratos Civiles por Incumplimiento, Montevideo, t. II,
1974, p. 54-55.
5;> Ruy Rosado de Aguiar Jr., Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor (Resolução), São
Paulo: Aide, 1991, p. 248.
56 STJ, Recurso Especial 272.739/MG, j. 1.3.2001.
57 TJMG, 13? Câmara Cível, Apelação Cível 1.0521.05.043572-1/001, j. 9.2.2006.
58 TARS, 7a Câmara Cível, Apelação Cível 194.194.866, j. 30.11.1994.
59 TJDF, 4? Câmara Cível, Apelação Cível 2004.01.1.025119-0, j. 9.5.2005.
60 TJRS, 19a Câmara Cível, Apelação Cível 70015436827, j. 8.8.2006.
112 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

P or o u tro lado, com base n o m esm o crité rio p e rc e n tu a l - e às vezes no m esm o


p ercen tu al em si - as cortes brasileiras têm negado a aplicação da teo ria ao arg u m en to de
qu e “o ad im p lem en to de apenas 55% do to tal das prestações assu m id as pelo p ro m iten te
com prador não autoriza o reconhecim ento da execução substancial do contrato”,61 ou que
“o p ag am en to de cerca de 43% contra-indica a h ip ó tese de adim plem ento su b stan cial,”62
ou ain d a qu e “a teo ria d o ad im p lem ento substancial do co n trato te m vez q u ando, com o
o p ró p rio n o m e alude, a execução d o co n trato abrange q u ase a to talid ad e das parcelas
ajustadas, o que, p o r certo, não é o caso do p agam ento de apenas 70% ”.63
Pior q u e a in congruência e n tre decisões proferidas com base em situações fáticas
sem elh a n tes - n o tad am en te, aqu elas em q u e h á cu m p rim en to q u an titativ o de 60 a 70%
do c o n tra to 64 - , o qu e e sp a n ta é a ausência de u m a análise qualitativa, im prescindível
p ara se saber se o cu m p rim en to não integral ou im perfeito alcançou ou não a função
qu e seria d esem p en h ad a pelo negócio ju ríd ico em concreto. Em o u tras palavras, urge
reco n h ecer qu e não h á u m p arâm etro num érico fixo que p o ssa servir de divisor de águas
en tre o ad im p lem en to substan cial ou o in ad im p lem en to to u t court, p assando a aferição
de su b stan cialid ad e p o r o u tro s fatores q u e escapam ao m ero cálculo percentual.
D o exam e da d o u trin a e da ju ris p ru d ê n c ia com parada, p o d em -se e x tra ir alguns
p arâm etro s que, sem a p rete n são de encerrar o debate, têm sido apo n tad o s com o índices
capazes de su g erir a configuração d o adim plem ento substancial, auxiliando o ju iz em sua
delicada tarefa. Para além da u su al com paração en tre o valor d a parcela d escum prida com
o valor do bem ou do co n trato , e de o u tro s índices q u e p o ssam su g erir “a m an u ten ção do
equilíbrio e n tre as prestaçõ es correspectivas, não chegando o d escu m p rim en to parcial a
abalar o sinalagm a”,65 a ten d ên cia te m sido, hoje, a de perquirir, em cada caso concreto,
a existência de o u tro s rem édios capazes de a ten d er ao in tere sse do credor (e. g ., perdas
e d an o s), com efeitos m en o s gravosos ao devedor - e a eventuais terceiros afetados pela
relação obrigacional - qu e a reso lu ção do vínculo.66

61 TJRS, 18a Câmara Cível, Apelação Cível 70015215510, j. 8.6.2006.


62 TJRS, 18a Câmara Cível, Apelação Cível 70014803209, j. 8.6.2006.
63 TJRS, 20a Câmara Cível, Apelação Cível 70015167893, j. 16.8.2006.
64 Verifique-se, por exemplo, entre as decisões já citadas, a situação do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, que, em 8 de agosto de 2006, considerou aplicável a teoria do adimplemento
substancial diante de pagamento “que representa 62,43% do preço contratado” (TJRS, 19a Câmara
Cível, Apelação Cível 70015436827) e, apenas uma semana depois, emitiu decisão que considerava
a mesma teoria inaplicável à hipótese de “pagamento de apenas 70%” das prestações ajustadas
(TJRS, 20? Câmara Cível, Apelação Cível 70015167893, j. 16.8.2006).
65 Teresa Negreiros, Teoria do Contrato: Novos Paradigmas, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 145.
66 Como afirm ou Athos Gusmão Carneiro, em parecer sobre o assunto: “Sopesando as
circunstâncias do caso concreto, impende ponderar se o alegado inadimplemento, ou melhor, o
alegado adimplemento irregular, apresentaria gravidade suficiente a justificar o remédio extremo
da resolução [...]” (Ação de Rescisão Contratual - Doutrina da Gravidade Suficiente do Inadimplemento -
Faculdade Discricionária do Juiz, Revista Forense, v. 329, 1995, p. 177).
A T ríp lice T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 113

D e fato, a te o ria d o a d im p le m en to su b stan cial veio in icialm en te associada a um


" d e sc u m p rim e n to de p a rte m ín im a ”,67 a u m in a d im p le m e n to d e scarsa im p o rta n za ,68
em abordagem h isto rica m en te im p o rtan tíssim a para ffear o rig o r do d ireito à extinção
co n tratu al e d esp e rtar a co m u n id ad e ju ríd ica p ara o exercício quase m alicioso do direito
d e reso lu ção em situações q u e só fo rm alm en te não se qualificavam com o adim plem ento
integral. Em u m a le itu ra m ais contem porânea, contudo, im põe-se reservar ao adim ple­
m e n to substan cial u m papel m ais abrangente, qual seja, o de im p ed ir q u e a resolução - e
o u tro s efeitos ig u alm en te d rástico s q u e p o d eriam ser deflagrados pelo inadim plem ento
- não v enham à to n a sem u m a p o nderação judicial en tre (i) a utilid ad e da extinção da
relação obrigacional p ara o credor e (ii) o prejuízo q u e adviria p ara o devedor e p ara te r­
ceiros a p a rtir da resolução.69

Veja-se, a títu lo ilustrativ o , o caso ju lg ad o pelo T ribunal de Ju stiça do Rio G rande


d o Sul, em q u e se p rete n d eu a resolução de certo in stru m e n to d e transação p o r se te r
p raticad o valor m e n o r qu e o ali estabelecido p ara a alienação de unidades residenciais.
A sen ten ça qu e ju lg ara p ro ced en te a dem an d a foi objeto de severa crítica p o r A th o s G us­
m ão C arneiro, qu e ressaltou:

"M esm o se verídica a assertiva - que a prova dos au to s n ão au to riza - , d e que os


10 ap artam en to s e 4 garagens (referidos n a inicial) teriam sido alienados abaixo do
preço de m ercado [...], ain d a assim a resolução judicial da tran sação configuraria
indevida aplicação de rem édio extrem o, reservado aos casos de inadim plem ento
ab so lu to e q u an d o im possível, de o u tra form a, facilm ente rem ediar a lesão sofri­
da pelo c o n tra tan te ad im p len te!”70

67 Nas palavras de Araken de Assis: “Então, a hipótese estrita de adimplemento substancial -


descumprimento de parte mínima - eqüivale, no direito brasileiro, grosso modo, ao adimplemento
chamado de insatisfatório: ao invés de infração a deveres secundários, existe discrepância qualitativa
e irrelevante na conduta do obrigado” (Resolução do Contrato por inadimplemento, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 134).
68 A expressão vem da codificação italiana que, em seu art. 1.455, dispõe: “// contratto non si può
risolvere se 1’inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo alTinteresse delialtra".
69 Também favorável à ponderação de interesses no adimplemento substancial, embora em
outros termos, é de se registrar o ensinamento de Judith Martins-Costa, A boa-fé e o adimplemento
das obrigações, Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro: Instituto de Direito Comparado
Luso-Brasileiro, nQ25, p. 265: "O que se observa no exame dos casos concretos já julgados pela
jurisprudência brasileira, é que a doutrina do adimplemento substancial sinaliza uma ponderação de
bens, de interesses jurídicos: entre o interesse do credor em ver cumprida a prestação exatamente
como pactuada, e o interesse do devedor em evitar o drástico remédio resolutivo, prevalece o
segundo.”
70 Athos Gusmão Carneiro, Ação de Rescisão Contratual - Doutrina da Gravidade Suficiente do
Inadimplemento - Faculdade Discricionária do Juiz, cit., p. 177.
114 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

C om efeito , a im p o rtâ n cia do ad im p le m e n to su b stan cial n ão e stá h o je ta n to em


im p ed ir o exercício d o d ire ito extintivo do credor com base em u m cu m p rim en to que
apenas fo rm alm en te p o d e ser tid o com o im perfeito - com o revelam os casos m ais p ito ­
rescos de não p ag am e n to d a ú ltim a p restação q u e povoam a ju risp ru d ê n c ia do n osso
S uperior T rib u n al de Ju stiç a - , m as em p e rm itir o con tro le judicial d e legitim idade n o
rem édio invocado p ara o in ad im p lem en to ,71 especialm ente p o r m eio do balanceam ento
en tre, d e u m lado, os efeitos do exercício da resolução (e o u tra s m edidas sem elhantes)
p ara o devedor e ev entuais terceiros, e, d e o u tro , os efeitos do seu não exercício p ara o
credor, qu e pode d isp o r de o u tro s rem éd io s m u itas vezes m en o s gravosos para o b ter a
ad eq u ad a tu te la d o seu in teresse. N ão q u er isso significar a prevalência do in tere sse do
devedor sobre o in teresse do credor ao cum p rim en to exato do avençado. M esm o n a acep­
ção m ais restritiv a e form al do ad im p lem en to substancial, não se deixa de reconhecer o
descu m p rim en to parcial, concedendo ao credor o u tro s m ecanism os de tutela, com o o res­
sarcim en to das p erd as e danos ou a exigência de cu m p rim en to do acordado; veda-se, tão
so m en te, a extinção do vínculo obrigacional, com o rem édio extrem o co n tra o devedor.72
A q u estão rem e te ao ú ltim o p o n to d a transform ação aludida ao início, relacionado
às conseqüências do ad im p lem en to e do inadim plem ento.

6 As conseqüências do adim plem ento e do inadim plem ento.


R esp o n sab ilid ad e p ó s-c o n tra tu a l. A reso lu ção do vínculo
como m edida extrem a. Execução específica e perdas e danos.
Responsabilidade pelo inadimplemento das obrigações de meio
e de resultado

N a visão tradicional, o ad im p lem en to , identificado com a realização d a p restação


prin cip al, e x tin g u e o víncu lo obrigacional, e, p o r co n seg u in te, a resp o n sab ilid ad e do
devedor. Sob a perspectiva funcional, ao contrário, o ad im p lem en to não apenas se inicia
m u ito a n tes do efetivo cu m p rim en to da prestação, m as tam bém se prolonga p ara além
desse ato, im p o n d o a conservação dos seu s efeitos e a concreta utilidade d a su a realiza­
ção. H oje já se reconhece am p lam en te a existência d e u m a responsabilidade pós-contratual
- a rigor, pós-negocial - , a alcançar as p artes d a relação obrigacional no perío d o q u e se
sucede ao cu m p rim en to da prestação.

71 A idêntica constatação chega J. A. Corry: “Through the doctrine o f substantial performance, thejudges
installed themselves as administrators o f the execution and discharge o f contracts. Theyfreed themselves from
rigid rules and adopted a broad standard under which they could apply a policy o f making contract effective”
(Law and Policy - The W. M. Martin Lectures, Toronto: Clarke, Irwin & Company Limited 1959, p.
41-43).
72 O mesmo método ponderativo deve ser aplicado, embora com cores menos intensas, a efeitos
outros que poderiam decorrer do inadimplemento não significativo como a exceção do contrato
não cumprido.
A T ríp lice T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 115

Explica, assim , a m elh o r d o u trin a que:

“é possível exigir-se das partes, para depois d a prestação principal, u m a certa con­
duta, desde qu e indispensável à fruição da posição jurídica adquirida pelo contrato.
É o dever do m o d elista de n ão en treg ar ao co n co rren te os m esm o s m odelos com
os quais cu m p rira a su a p restação ”.73

E a ju risp ru d ê n cia tem chancelado a existência d este “dever geral de colaboração que
se en co n tra n a fase p ó s-co n tratu al”, a exigir a responsabilização, p o r exem plo, da socie­
dade rev en d ed o ra de autom óvel que, d ian te do defeito invocado pelo ad q u iren te p o ste ­
rio rm e n te à alienação, “seq u er exam inou o veículo, para afastar a responsabilidade pelo
defeito e suas co n seq ü ên cias”;74 ou, ainda, da in stitu ição financeira que, após receb er o
pagam ento, n ã o com prova te r ad o tad o as “m edidas necessárias p ara o reco lh im en to do
títu lo p o sto em cobrança bancária” e p o sterio rm e n te p ro te stad o .75
D o m esm o m o d o qu e o cu m p rim en to d a p restação principal não encerra a resp o n ­
sabilidade d o devedor, o d escu m p rim en to da p restação principal n ão autoriza, ipsofacto,
o p ed id o de reso lu ção d o vínculo obrigacional. C om efeito, “o exam e d e se m e lh a n te
pedido traz consigo u m a causa petendi e desce às causas e aos efeitos do in ad im p lem en to ”,
bem com o à “qualidade d o a d im p lem en to ”, de tal m o d o que cum pre sem pre avaliar se “o
d esfazim en to im p o rtaria u m sacrifício desproporcional, co m parativam ente à m a n u te n ­
ção do c o n tra to ”.76 E m o u tra s palavras, o d ireito resolutivo não vem atrib u íd o ao credor
com o u m in stru m e n to de p u nição do devedor pela ausência de realização da prestação
principal, m as lhe é asseg u rad o sob a p rem issa de q u e o in ad im p lem en to seja tal que

73 Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor (Resolução),
cit., p. 248.
74 TJRS, Apelação Cível 70014298624, j. 29.6.2002. Argumentou a sociedade que não podia
ser responsabilizada por "eventuais problemas surgido meses depois da realização do negócio,
até porque quem estava no uso exclusivo do veículo era o autor”. Muito ao contrário, decidiu o
tribunal que "a conduta desidiosa da apelada para com o apelante, deixando de cumprir com os
deveres anexos e secundários da contratação, posto que sequer examinou o veículo, para afastar
a responsabilidade pelo defeito e suas conseqüências, insere-se no dever geral de colaboração que
se encontra na fase pós-contratual”.
75 TJRS, Apelação Cível 70001037597, j. 14.6.2000. Decidiu a corte: "o devedor ao efetuar o
pagamento da dívida, mesmo que depois de vencida, esperava, como qualquer ‘homem médio’,
que a cobrança fosse sustada, portanto, que não tivesse sido levado o título já pago a protesto.
Destarte, tendo sido rompido esse dever pelo apelante, a responsabilidade na reparação dos danos
daí decorrentes é imputável ao fornecedor”.
76 Araken de Assis, Resolução do Contrato por Inadimplemento, São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p. 131 e 133.
116 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

po ssa co m p ro m e te r o ate n d im en to à função co n cretam en te d esem p en h ad a pelo negócio


juríd ico em cu rso .77
N esse contexto, o d ireito à resolução do contrato, laconicam ente m encionado no art.
475 d o C ódigo Civil de 2 0 0 2 ,78 p erd e a feição (que lhe vem n o rm alm en te atribuída) de
u m a altern ativ a ao arb ítrio d o cred o r p ara se converter em ratio extrem a, cujo exercício
pode ser obstad o sem pre q u e rem édios m enos nocivos estiverem ao alcance do seu titular.
O p o d er de extinguir a relação obrigacional deve m esm o ser reservado ao inadim plem ento
qu e afete a função concreta d o negócio celebrado, não b astan d o a sim ples irrealização da
prestação principal, to m ad a em a b strato e sob o aspecto p u ra m e n te e stru tu ral.

A p referência p or rem édios q u e n ão prom ovam o ro m p im en to do vínculo negociai


foi e x p re ssa m e n te m an ife stad a p elo leg islad o r b rasileiro , q u e reg istro u , em diversas
passag en s d o C ódigo Civil d e 2002, sua sim patia pela execução específica das obriga­
ções (v. g ., arts. 249, 251, 464). Bem m ais que u m in stru m e n to a cargo das preferências
do credor, com o sugere a literalid ad e do o art. 475, a execução específica deve ser vista
com o m ed id a p rio ritá ria , a ser afa stad a so m e n te n aq u elas h ip ó te se s em q u e já reste
co m p ro m e tid a a função c o n c re ta m e n te d e se m p e n h a d a p ela relação c o n tra tu a l. C om
isso, o princípio da cojiservação dos contratos, q u e vem sen d o invocado no Brasil de m odo
algo aleatório e m eram en te p o n tu al, p o d eria ad q u irir u m papel efetivo e ab ran g en te n o
o rd en am en to pátrio , a revelar u m a atuação global e sistem ática em p ro l d a m an u ten ção
dos negócios jurídicos.
Cabe u m a ú ltim a palavra sobre as perdas e danos, asseguradas pelo direito brasileiro,
seja n a h ip ó te se d e resolução, seja n aq u ela de execução específica. C om o com pensação
fin an ceira do s p re ju íz o s sofridos pelo cred o r em deco rrên cia do d e sc u m p rim e n to da
prestação principal, as p erd as e d an o s têm lugar m esm o naquelas h ip ó teses em q u e haja
ad im p lem en to substan cial e o u tra s form as de inexecução que, em b o ra não sejam aptas
a deflagrar a extinção d o vínculo, p reju d iq u em de algum a form a o titu la r do crédito. O
dever d e ressarcir as p erd as e danos depende, contudo, da verificação de prejuízo e de
culpa p o r p arte do devedor. E tam b ém aqui a análise deve ser funcional e dinâm ica, n ão
se restrin g in d o a u m exam e e stru tu ral e ab strato das causas e efeitos do descum prim ento.

Paradigm ático n esse p articu lar é o em prego q u e se faz d a conhecida distinção e n tre
obrigações de m eio e de resu ltad o . N estas ú ltim as, com o se sabe, o devedor obriga-se a
alcançar certo resu ltad o , e n q u an to naquelas assu m e apenas o co m prom isso de envidar

77 Em sentido semelhante, Luigi Mosco, La risoluzione dei contratto per inadempimento, Napoli:
Jovene, 1950, p. 14: “Laspetto specifico di questa azione sta in ciò ch’essa viene concessa al debitore sul
presupposto che 1’inadempimento dell’obbligazione gravante suWaltra parte sia di tale importanza dafar venir
meno il suo interesse alia conservazione dei rapporto contrattuale.”
78 “Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não
preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e
danos.”
A T ríp lice T r a n s f o r m a ç ã o d o A d i m p l e m e n t o 117

seus m elh o res esforços n a perseguição do objetivo final, sem obrigar-se a ob tê-lo .79 N as
obrigações de resu lta d o , a não o b ten ção do re su lta d o configura já o in ad im p lem en to ,
a a tra ir a resp o n sab ilização d o devedor. N as obrigações d e m eio, ao co n trário , a não
ob ten ção d o resu ltad o não configura inadim plem ento, que depende d a falta de diligência
e em p en h o do devedor n os esforços em preendidos. A d em o n stração de que houve falta
d e diligência do devedor, p or seu caráter subjetivo, afigura-se bem m ais árd u a do q u e a
prova d e irrealização de certo resu ltad o . Tem -se, p o r isso m esm o, u m a responsabiliza­
ção, de regra, m ais fácil nas h ip ó teses em q u e a obrigação é de resu ltad o , pois a prova
se lim ita ao dado objetivo d a su a não obtenção.80

A d o u trin a brasileira ap ressa-se em classificar em a b strato e de m o d o absoluto as


obrigações, separando-as en tre as de m eio e as de resu ltad o . D iz-se, n esse sentido, que
“o clínico não p o d e a sse g u rar q u e livrará o cliente d e to d o s os m ales d e q u e padece;
jam ais p o d erá g aran tir resu ltad o feliz [...] e sim q u e em p en h ar-se-á com zelo, carin h o e
dedicação. O m esm o fará o advogado para q u e os seus serviços profissionais ap resen tem
resu ltad o s positivos. M as, se o p acien te m o rre r ou se a causa m alograr, nem o m édico,
n e m o advogado p erd e rã o o d ireito aos h o n o rário s c o n tra ta d o s” .81 E id ên tica p o stu ra
ad o ta a ju risp ru d ê n cia ao afirm ar: “n o s casos de cirurgia estética o u plástica, o cirurgião
assu m e obrigação de re su lta d o ”.82

O equívoco d essa classificação in abstracto é evidente. Se, p o r exem plo, se atrib u i à


obrigação d o m édico o caráter de obrigação d e m eio em plano teórico, beneficia-se, com
isso, o charlatão, q u e em b o ra p ro m e ta em concreto o resu ltad o que não obtém , te m seu
vínculo com o p aciente considerado lim itado aos seus m elhores esforços, co n trariam en te
ao qu e re sto u pactu ad o ou p ro m e tid o no caso concreto. D a m esm a form a, se a obrigação
d o cirurgião plástico vem tid a com o de resu ltad o , em a b strato , d esestim u la-se a con­
d u ta do bom p ro fissional q u e in fo rm a o pacien te dos riscos e da im previsibilidade do

79 Orlando Gomes, Obrigações, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 16-17.


80 A distinção entre as obrigações de meio e de resultado assume, na visão tradicional, particular
relevância para fins de distribuição do ônus probatório nas ações de responsabilidade obrigacional.
A doutrina mais recente critica, contudo, tal expediente, fundada especialmente na teoria da carga
dinâmica da prova, a reservar a quem tem mais condições de efetuar a demonstração de certo
fato o ônus de fazê-lo, independentemente de sua posição na relação obrigacional, da natureza da
obrigação ou de outros fatores externos à prova em si. De qualquer modo, é inegável que, pela
sua interferência na própria configuração do adimplemento - e, portanto, do inadimplemento -,
a qualificação de certa obrigação como de resultado facilita em muito a situação do credor que
persegue a responsabilização do devedor. Sobre a questão, ver Miguel Kfouri Neto, Culpa Médica e
Ônus da Prova, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 237 ss.
81 Antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, v. II, 1.1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, 3.
ed., p. 48-49.
82 TJRJ, Apelação Cível 2007.001.08531, j. 21.3.2007.
118 D i r e i t o C ivil e C o n s t i t u i ç ã o • S c h r e i b e r

pro ced im en to , m as acaba, nada o b stan te, resp o n d en d o pela não obtenção d e u m re su l­
tado qu e n u n c a p ro m e te u .83
U m a classificação considerada tão relevante p ara fins d e configuração do in ad im ­
plem ento não pode prescindir do exam e da função concretam ente atribuída pelas p artes ao
negócio jurídico, p erq u irin d o -se efetivam ente os in teresses dos envolvidos e o m odo p ar­
ticu lar de desenvolvim ento d o p ro g ram a contratual, com ênfase sobre o aten d im en to do
dever de inform ação - tu d o em franca oposição à abordagem a b strata e p u ra m e n te e s tru ­
tu ral qu e te m im p erad o n essa m atéria e em o u tra s tan tas searas do d ireito obrigacional.
De tem as com o estes advêm , à falta de conclusão, duas anim adoras constatações: a
de qu e o d ireito das obrigações, ao qual se atrib u i lentidão e até im obilism o, te m avan­
çado a p asso s largos; e a d e que, sem em bargo dessas conquistas, ainda te m m u ito a
avançar. O m o m en to qu e vivem os não é o de alterar radicalm ente os seu s ru m o s, m as
o de acom panhá-lo com u m o lh ar m ais livre, despido de antigos dogm as e velhas con­
cepções. Vale, n e sta estrada, o verso claro do p o eta am azo n en se Thiago de M ello: "N ão,
não te n h o cam inho novo. O qu e te n h o de novo é o jeito de cam in h ar.”84

83 Registre-se, ainda, a crítica de Gisela Sampaio da Cruz: “Contra a dicotomia obrigações de


meio e de resultado, objetou-se que toda prestação comporta, de certa forma, um resultado mais
ou menos determinado e que a chamada obrigação de meio pode ser mais ou menos precisa quanto
ao seu conteúdo, dependendo da previsão contratual que a estipule [...] Não se pode perder de
vista que toda obrigação comporta, evidentemente, um resultado que corresponde à sua utilidade
econômico-social para o credor” (Obrigações alternativas e com faculdade alternativa. Obrigações de
meio e de resultado, in Gustavo Tepedino, Obrigações - Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional, Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 170 e 174).
84 Thiago de Mello, A Vida Verdadeira, in Vento Geral, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984,
p. 213.

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