Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FACULDADE DE DIREITO
CAMPINAS
2021
c) Soberania, exceção e legalidade;
Para o jurista alemão, soberano é “aquele que decide sobre o estado de exceção”
e “soberania é o ponto culminante do poder e não o desvio de poder”. Portanto, aqui já
há de ser observada a relação entre dois conceitos, isto é, exceção e soberania. Além disso,
as concepções acerca de soberania não causam conflitos maiores (sobretudo em relação
à sua definição), mas sim como tal conceito é aplicado. Em geral, briga-se para saber
sobre sua aplicação concreta, ou seja, quem toma as decisões em caso de conflitos, quem
determina aspectos sobre a segurança e a ordem pública, por exemplo.
Em relação às definições de “estado de exceção”, já não há certa concordância em
relação aos diversos doutrinadores, pois esse tema, nas tradições jurídicas dos Estados
europeus, apresenta uma divisão, sobretudo entre ordenamentos que regulamentam o
estado de exceção no texto da constituição ou por meio de uma lei e ordenamentos que
preferem não regular expressamente o problema. Ao primeiro grupo, pertencem a França
– berço do estado de exceção moderno, por conta da revolução – e a Alemanha; ao
segundo, a Itália, a Suíça, a Inglaterra e os EUA. Além dessa divisão, há segmentações
no que se refere aos que defendem a oportunidade de uma previsão constitucional ou
legislativa do estado de exceção e outros. Dentre essa parcela, se destaca Carl Schmitt,
que critica sem restrição a pretensão de se regular por lei o que, por definição, não se
pode ser normatizado (AGAMBEN, 2003, p.22).
Conforme Agamben (2003), embora a famosa definição de Schmitt do soberano,
como "aquele que decide sobre o estado de exceção" tenha sido amplamente comentada
e discutida ainda hoje, falta uma teoria do estado de exceção no direito público; e tanto
juristas quanto especialistas em direito público, parecem considerar o problema muito
mais como uma quæstio facti (questão de fato) do que como um genuíno problema
jurídico. Não só a legitimidade de tal teoria é negada pelos autores que, retomando a
antiga máxima de que necessitas legem non habet (a necessidade não tem lei), afirmam
que o estado de necessidade, sobre o qual se baseia a exceção, não pode ter forma jurídica,
mas a própria definição do termo tornou-se difícil por se situar no limite entre a política
e o direito.
Portanto, o estado de exceção é um assunto paradoxal. Tal conceito se apresenta,
muitas vezes, com forma legal daquilo que, no plano ideal, não deveria poder ter forma
legal – por conta de todas as prerrogativas que dão margem às violações de direitos e
garantias fundamentais. Por outro lado, se a exceção é um dispositivo originado graças
ao direito à vida, e a inclui em si por meio de sua própria suspensão, uma teoria do estado
de exceção é, então, condição primária para se definir a relação que liga e abandona,
simultaneamente, o vivente do direito. É esse vácuo, entre o direito público e o fato
político, e entre a ordem jurídica e a vida (AGAMBEN, 2003, p.12).
Eis aí a convergência entre os três temas propostos, isto é, soberania, exceção e
legalidade. Soberania é quem detém o poder, sobretudo no estado de exceção. No que
tange à legalidade, como exposto acima, há divergências doutrinárias em relação ao tema.
Uma parcela de juristas considera o conceito como fator legal – tendo Carl Schmitt como
exemplo, que tenta articular em suas obras relações entre o estado de exceção e a ordem
legal, e, alguns outros consideram, muitas vezes, com parâmetros e artifícios que fogem
do escopo da legalidade, sendo, assim, prejudicial ao Estado de Direito e a ordem legal.
Por fim, vale citar que, para Schmitt, grosso modo, todo o Estado dotado de poder
decisório deveria ter um elemento que constituísse o estado de exceção em sua
constituição (Ausnahmezustand). Soberania é, para ele, a capacidade e o direito de
exercer o estado de exceção, como muito bem retratado em suas obras e esclarecido por
Agamben.
A cunho de curiosidade, Agamben ainda destaca que Schmitt passou a se opor ao
estado de exceção, que fomentaria a manutenção da ordem legal – que seria a suspensão
temporária a fim de garantir a reestruturação política, jurídica, social e econômica de um
país, sendo esta vertente dotada de princípios morais e regidas pelo direito legal. Schmitt
passou a defender, portanto, o estado de exceção, não para a manutenção da constituição,
mas sim para a criação de uma outra. E foi assim que Hitler ascendeu ao poder, pois a
Constituição de Weimar nunca foi ab-rogada, mas sim suspensa por quatro anos, sendo a
primeira suspensão em 28 de fevereiro de 1933 pelo Decreto do Incêndio do Reichstag,
e os atos de suspensão passaram a ser renovados a cada quatro anos, decretando-se um
contínuo estado de emergência, ou melhor, um estado de exceção, sendo estas posições
de Schmitt essenciais para o apoio jurídico, político e filosófico para a nova ordem legal
que estava sendo construída na Alemanha.
d) Constituição de Weimar, democracia e heterogeneidade;
Estes são apenas alguns direitos, pertencentes a um extenso rol, que tinham como
intuito oferecer melhores condições de vida paras a população. Ao serem analisado no
campo das ideias, são direitos inéditos, que permitiriam ao povo uma proteção e
assegurariam o acesso a bens até então restritos a uma parcela da sociedade. Em outras
palavras, eram direitos que compreendiam a heterogeneidade social, mas que não previam
mecanismos para impedir a ascensão de ideais contrárias a visão democrática prevista na
Constituição. O que aparentava ser um avanço, rumo a uma sociedade realmente
igualitária, não passou de uma ilusão.
Apesar de garantir o acesso a diversos direitos, na prática, a Constituição não
possuía efetividade; as elites continuaram tendo poder sobre o âmbito jurídico, impedindo
a participação política e não colocando em prática os direitos sociais e até mesmo
fundamentais – havia (e ainda há) uma grande diferença entre prever e garantir. A
constituição era um instrumento jurídico das elites que governavam a república
parlamentarista; ela se camuflava, através de leis que previam uma democracia - uma
forma de governo equânime, que garantiria direitos iguais a todos, a liberdade, e
entenderia, no âmbito legal e social, a população de forma equitativa -, com o intuito de
aquietar a população e defender os interesses políticos e econômicos dos dominantes.
É interessante colocar em perspectiva o impacto que a Constituição teve no campo
teórico e no empírico. As inovações que ela abarcou aparentavam contemplar as
reivindicações sociais que assolavam toda a Alemanha, isto é, ela incorporou os desejos
da população, que era extremamente heterogênea, o que acabou dando brecha para a
criação e o fortalecimento de grupos extremistas. Ao garantir os mais diversos direitos, a
Constituição não se atentou para as fissuras do projeto, que foram percebidas por alguns
cidadãos, que tinham como intuito a construção de um novo projeto político, o nacional-
socialismo.
Ao se mostrar incapaz de assegurar todos estes direitos, o Estado passou a sofrer
diversos ataques, afinal, que Estado era esse que deveria proteger e impedir a violação
dos direitos, mas ele mesmo os violava, em prol dos interesses das elites econômicas?
Esse descaso, que impediu a instituição de uma sociedade democrática, propriamente
dita, na qual os indivíduos teriam não só direitos como acesso a eles, e viveriam em
igualdade, no sentido de terem condições igualitárias, acabou servindo de base para o
crescimento de um movimento popular que iria acabar com a República de Weimar - e
ab-rogar a constituição, suspendendo-a por 4 anos - e instaurar um sistema, de acordo
com seu projeto político, capaz de “superar” a crise socioeconômica alemã.
Há, de certa forma, uma romantização, por parte da doutrina constitucional acerca
da Constituição de Weimar, pois apesar de conter e apresentar direitos inéditos, tanto
fundamentais quanto sociais, a não garantia dos mesmos teve drásticas consequências.
Houve uma mudança no campo jurídico, mas a estrutura social permaneceu inalterada, as
desigualdades sociais continuaram a imperar, e a Alemanha continuou se afundando em
crises intermitentes. A população, detentora de diversos direitos, não conseguiu usufruir
dos mesmos, pois a elite continuou negando o acesso a tais direitos - o acesso significaria
o fim dos privilégios das camadas abastadas.
Portanto, de forma superficial, é possível concluir que a Constituição
revolucionou o Direito, mas ao destrinchar sua redação e entender os projetos políticos
que a compuseram, assim como os impactos reais das leis na sociedade, é possível
concluir que a Carta não visava uma democracia, muito menos atender aos gritos dos
populares ( a heterogeneidade intrincada na sociedade alemã), pois ela foi penas um
instrumento ilusório, responsável, num primeiro momento, por apaziguar a relação entre
governo e população, e, num segundo, por reestabelecer a ordem e os interesses
econômicos da elite.
REFERÊNCIAS