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INSTITUTO HISTÓRI​CO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

WALTER GUANDALINI JUNIOR

AS RAZÕES DO DIREITO
ADMINISTRATIVO NA DOUTRINA
BRASILEIRA DO SÉCULO XIX
(1857-1884)

JUNIOR, Walter Guandalini


AS RAZÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO NA
DOUTRINA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX (1857-1884)
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180(481): 219-254, set./dez. 2019

Rio de Janeiro
set./dez. 2019
As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

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AS RAZÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO NA


DOUTRINA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX (1857-1884)
THE REASONS OF ADMINISTRATIVE LAW IN
19TH CENTURY BRAZILIAN LEGAL DOCTRINE (1857-1884)
Walter Guandalini Junior1
Resumo: Abstract:
O presente artigo pretende contribuir para a This article aims to contribute to the
compreensão da cultura jurídica brasileira, em- understanding of Brazilian legal culture, by
pregando o método de análise de conteúdo para employing content analysis method to examine
examinar as “razões” da doutrina administrati- the “reasons” of 19th century Brazilian
vista brasileira do século XIX. A investigação administrative doctrine. The investigation
do quadro de citações mobilizadas pelos juristas of Brazilian jurists’ quotations framework
brasileiros como instrumentos de fundamenta- allowed to observe which were the sources
ção de suas teses jurídicas permitiu observar of administrative law at the time, what type
quais eram as fontes do direito administrativo of dialogue the legal erudite knowledge
no período, que tipo de diálogo o saber jurídi- established with other fields of public law, what
co erudito estabelecia com outros campos de kind of relationship it had with foreign and
circulação do direito público, que padrões de pre-modern legal culture, and what differences
relação mantinha com a cultura jurídica estran- it had in relation to private law. At the end it
geira e pré-moderna, e que diferenças tinha em was possible to perceive that the main source of
relação ao direito privado. Ao final, foi possível Brazilian administrative law in the period was
perceber que a principal fonte do direito admi- positive legislation, which reflects the functions
nistrativo brasileiro no período era a legislação attributed to the discipline by a transitional
positiva, o que reflete as funções atribuídas à legal culture.
disciplina por uma cultura jurídica de transição.
Palavras-chave: história do direito adminis- Keywords: history of administrative law; 19th
trativo; século XIX; fontes do direito; cultura century; legal sources; legal culture.
jurídica.

1 Introdução
No atual estágio das pesquisas, há mais dúvidas que certezas acerca
das características da cultura jurídica brasileira2 do século XIX. Apesar
1  –  Professor adjunto de História do Direito – Universidade Federal do Paraná. Mestre
e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná; Programa de De-
senvolvimento com Estágio no Exterior (doutorado-sanduíche) no Centro di Studi per
la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Università di Firenze. Professor Adjunto de
História do Direito na Universidade Federal do Paraná. Professor no Mestrado em Direito
do Centro Universitário Internacional. E-mail: prof.walter.g@gmail.com.
2  –  Toma-se a expressão “cultura jurídica” no mesmo sentido sugerido por Ricardo Fon-
seca, como “o conjunto de significados (standards doutrinários, padrões de interpretação,
marcos de autoridade doutrinária nacionais e estrangeiras, influências e usos particulares
de concepções jusfilosóficas) que, efetivamente, circulavam na produção do direito e eram
aceitos nesta época no Brasil” – FONSECA, Ricardo Marcelo. Os Juristas e a Cultura Ju-

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de diversos estudos já clássicos de história jurídico-institucional, nos-


sa compreensão específica da cultura jurídica oitocentista se restringe a
análises temáticas tão limitadas, quanto ao objeto e ao recorte temporal,
que impedem qualquer tentativa de construção de uma síntese mais geral
do pensamento jurídico nacional no período3. Diante desses obstáculos,
embora compreendamos razoavelmente bem o panorama intelectual das
escolas de pensamento jurídico na Europa do século XIX, temos muita
dificuldade em compreender qual foi sua real influência na construção de
um pensamento jurídico brasileiro.

Isso faz com que o olhar dirigido pelos historiadores sobre a cultura
jurídica brasileira do século XIX usualmente padeça de duas graves limi-
tações que tendem a eclipsar a adequada percepção de suas peculiarida-
des: por um lado, a carência de empiria, em abordagens exclusivamente
teóricas que, sem as necessárias mediações, limitam-se a transplantar ao
continente americano temas e preocupações típicos da Europa pós-re-
volucionária, e nem sempre compatíveis com os verdadeiros problemas
enfrentados por nossa cultura jurídica; e, por outro, a carência de juridi-
cidade, em pesquisas que, sem reconhecer a dimensão civilizacional do
fenômeno jurídico, reduzem-no a objeto inerte livremente manejado por
conservadores e por liberais como instrumento de disputa política4.

Desse modo, dispomos de algumas “hipóteses fundamentais” acer-


ca da cultura jurídica brasileira do oitocentos, mas pouquíssimas infor-
mações precisas sobre as suas características, influências, diálogos e de-

rídica Brasileira na Segunda Metade do Século XIX. In: Quaderni Fiorentini per la storia
del pensiero giuridico moderno, n. 35. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2006, p. 339-371.
3  –  José Reinaldo Lima Lopes fornece uma síntese do panorama existente, ressaltando
a existência de estudos de história das ideias, sobre a profissão jurídica, sobre as escolas
de direito, sobre o papel dos bacharéis, sobre instituições, mas pouquíssimas análises em-
piricamente fundadas sobre os debates propriamente jurídicos do século XIX – LOPES,
José Reinaldo. O Oráculo de Delfos: o conselho de Estado no Brasil-Império. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. XIV.
4  –  Uma versão mais completa dessa crítica pode ser encontrada em GUANDALINI JR.,
Walter. O Poder Moderador: ensaio sobre o debate jurídico-constitucional no século XIX.
Curitiba: Prismas, 2016, p. 111; e GUANDALINI JR., Walter. Chave ou Fecho? O debate
jurídico erudito sobre a responsabilidade do poder moderador. In: Quaestio Iuris, vol. 09,
nº 02. Rio de Janeiro: UERJ, 2016, p. 1054.

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senvolvimentos. Sabemos, por exemplo, graças à importante síntese de


Ricardo Fonseca5, que o século XIX é, para a ordem jurídica brasileira,
um período de transição, de uma concepção de direito típica das socie-
dades de antigo regime (e, portanto, doutrinária e racionalista) para uma
concepção de direito tipicamente moderna (e, portanto, legalista e volun-
tarista); sabemos que essa transição se manifesta também na passagem
de uma teoria do direito escolástica e jusnaturalista para uma teoria do
direito evolucionista e positivista, marcada por uma razão laica de caráter
científico; sabemos que essa transição é marcada por uma relativa indis-
tinção entre a “ciência jurídica portuguesa” e a “ciência jurídica brasi-
leira”, especialmente nas primeiras décadas do século; por fim, sabemos
que a transição teórica dá origem a um perfil profissional de jurista fluido,
ora pautado por um modelo de atuação “eloquente” (literária, retórica,
política), ora orientado para uma prática profissional “científica” (técnica,
objetiva, teórica), o que levanta algumas questões importantes acerca do
modo como se compreendem as fontes de produção e os campos de cir-
culação do discurso jurídico no período.

Apesar de imprescindíveis como ponto de partida para a compreen-


são da cultura jurídica brasileira no século XIX, essas hipóteses teórico-
-metodológicas ainda são muito abstratas para fornecerem respostas mais
precisas a questões fundamentais como: quais são efetivamente os cam-
pos de circulação do pensamento jurídico brasileiro? Como tais campos
dialogam entre si? Quais são as fontes de produção do direito brasileiro?
Qual é a sua relação com o direito e a cultura jurídica estrangeira? Qual
é a sua relação com o direito pré-moderno? Em suma, quais são e como
circulam as “razões” do direito brasileiro no século XIX.
Buscando responder a algumas dessas questões, António Manuel
Hespanha analisou as fontes citadas por juristas portugueses e brasileiros
do século XIX em quatro obras selecionadas, de modo a identificar “qual
era o direito efetivamente aplicado, em Portugal, depois da promulgação
das primeiras constituições, mas antes da promulgação do [...] Código

5  –  FONSECA, Ricardo Marcelo. Os Juristas e a Cultura Jurídica Brasileira na Segunda


Metade do Século XIX. In: Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico mo-
derno, n. 35. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2006, p. 339-371.

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Civil”6. Usando o método de análise de conteúdo, o autor verificou uma


forte tendência, por parte da doutrina civilista portuguesa e brasileira do
século XIX, de encontrar na própria doutrina (e não na legislação) as prin-
cipais “razões” do direito civil no período, o que indica preliminarmente
a sobrevivência de estilos retóricos e argumentativos pré-modernos pelo
menos até a codificação.
O presente estudo pretende contribuir com os projetos de pesquisa
propostos por Fonseca e Hespanha, acrescentando uma pequena peça ao
grande quebra-cabeça incompleto que é a compreensão da cultura jurí-
dica brasileira do século XIX. Assim, empregará o método de análise de
conteúdo para a análise das “razões” do direito administrativo brasileiro
no século XIX, com o objetivo de examinar o quadro de citações mobi-
lizadas pelos administrativistas brasileiros para a fundamentação de suas
teses. O resultado permitirá identificar as fontes do direito administra-
tivo no período, o diálogo com outros campos de circulação do direito
público, a relação com a cultura jurídica estrangeira e pré-moderna, e as
diferenças em relação ao direito privado.
2 Análise de Conteúdo
Foram examinados todos os livros publicados7 sobre o tema no perí-
odo, exceto por obras de caráter menos doutrinário e mais prático, como
os Estudos Práticos sobre a Administração das Províncias no Brasil, de
6  –  HESPANHA, António Manuel. Razões de decidir na doutrina portuguesa e brasileira
do século XIX. Um ensaio de análise de conteúdo. In: Quaderni Fiorentini per la storia
del pensiero giuridico moderno, n. 39. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2010, p. 109-151.
7  –  A lista de livros consultados foi produzida com base em pesquisa realizada nas bi-
bliotecas públicas do país, nas informações constantes de estudos já publicados sobre a
história do direito administrativo e nas indicações bibliográficas das obras publicadas
nos séculos XIX e XX. É possível dizer, com segurança, que foram examinados todos os
livros monográficos, gerais e de natureza exclusivamente teórica publicados no período
sobre o direito administrativo, a saber: Direito Público e Análise da Constituição do Im-
pério, publicada por José Antônio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente) em 1857;
Elementos de Direito Administrativo Brasileiro, publicada por Vicente Pereira do Rego
em 1857; Direito Administrativo Brasileiro, publicada por Prudêncio Giraldes Tavares da
Veiga Cabral em 1859; o Ensaio sobre o Direito Administrativo de Paulino José Soares de
Sousa (Visconde do Uruguai), publicados em 1862; o Excerto de Direito Administrativo
Pátrio de Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, publicado em 1865; o Direito
Administrativo Brasileiro de Antônio Joaquim Ribas, publicado em 1866; e a Epítome de
Direito Administrativo de José Rubino de Oliveira, publicada em 1884.

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Paulino José Soares de Sousa, de 1865, e os formulários e as coletâne-


as práticas que circulavam entre advogados no Império; também foram
deixadas de lado obras de direito público ou constitucional que não en-
frentassem diretamente o direito administrativo, com a exceção pontual
da obra de Pimenta Bueno8, que, afinal de contas, foi o primeiro livro
brasileiro a tratar explicitamente do tema em seu Título Sexto, dedicado
ao exame do Poder Executivo.
A contagem de citações foi realizada manualmente, para a avaliação
qualitativa e contextual das referências encontradas, o que contribuiu para
a maior precisão dos resultados9. Assim, além da identificação completa
de cada referência citada e página em que se encontra, foi possível inserir,
na planilha de acompanhamento, também informações detalhadas acerca
do contexto temático em que a citação é empregada e da sua avaliação
positiva, neutra ou negativa por parte de cada autor. Da mesma forma,
foi possível também excluir citações repetidas da mesma fonte em um
mesmo contexto argumentativo, o que desequilibraria excessivamente as
citações em favor da legislação moderna (por sua estrutura textual em
artigos). As citações foram agrupadas em categorias gerais e específicas
da seguinte forma:
A) Legislação Moderna
a) Direito Constitucional: normas de natureza constitucional
1. Constituição Política do Império do Brasil (1824)
2. Ato Adicional (1834)
3. Lei Interpretativa do Ato Adicional (1840)
b) Legislação Brasileira Moderna: leis promulgadas no Brasil
após 1822.
c) Regulamentos do Executivo Brasileiro

8  –  PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Consti-


tuição do Império. Rio de Janeiro: Tipografia Imp. E Const. De J. Villeneuve E. C., 1857.
9  –  Segundo Hespanha (obra citada, p. 114), uma das limitações de seu trabalho foi jus-
tamente o fato de que, baseando-se na mera contagem de citações, não dava conta do seu
contexto. Assim, o resultado de sua pesquisa exprimia mais o “universo de referência do
autor” que as “fontes”, propriamente ditas, do direito civil. A análise qualitativa e contex-
tual aqui proposta corresponde a um esforço de superação das limitações apontadas pelo
autor em seu estudo.

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d) Legislação Estrangeira Moderna


B) Doutrina Moderna: produção doutrinária após 1822.
a) Doutrina Brasileira
b) Doutrina Estrangeira
C) Jurisprudência Moderna
a) Jurisprudência Brasileira
b) Jurisprudência Estrangeira
D) Direito Anterior a 1822: fontes normativas anteriores à inde-
pendência do Brasil.
a) Direito Comum: citações das fontes normativas que compu-
nham o ius commune da ordem jurídica medieval.
1. Direito Romano
2. Direito Canônico
3. Direito Natural
b) Legislação do Antigo Regime: legislação produzida em
Portugal antes de 1822.
1. Ordenações
2. Legislação de Antigo Regime: legislação portuguesa ante-
rior a 1808.
3. Legislação entre 1808 e 1822
E) Realidade: refere-se à “realidade” como fonte do direito admi-
nistrativo.
a) Natureza das Coisas: referências a ideias como a “ordem na-
tural das coisas”, a “razão natural”, o “bom senso” e outros
topoi argumentativos que pressupõem uma realidade objetiva
anterior à legislação e à doutrina apta a constranger a liberda-
de hermenêutica do aplicador e do intérprete.
b) Experiência Prática
c) Experiência Estrangeira
d) Ciência
e) Parlamento Nacional
f) Parlamento Estrangeiro
g) Imprensa Nacional

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h) Imprensa Estrangeira
Passemos, então, à análise dos resultados.

a) José Antônio Pimenta Bueno – Direito Público Brasileiro e


Análise da Constituição do Império (1857)
José Antônio Pimenta Bueno é um dos mais importantes juristas do
Império. Nascido, em Santos, no dia 4 de dezembro de 1803, formou-
-se em Direito na primeira turma da Faculdade de Direito de São Paulo
(1832) e, poucos anos depois, ocupava a presidência da província do
Mato Grosso (1835-37). Em 1843, obteve o seu doutoramento e iniciou
sua carreira na magistratura, tendo exercido as funções de juiz, de che-
fe de polícia, de desembargador da Relação do Maranhão (1844-46), de
desembargador na Corte (1847) e de ministro do Supremo Tribunal de
Justiça. Paralelamente à bem-sucedida carreira jurídica, também teve
uma importante carreira política: atuou como deputado geral (1848), pre-
sidente da província do Rio Grande do Sul (1850-53), ministro da justiça
(1847-48), ministro de relações estrangeiras (1848; 1870-71), senador do
Império (1853), conselheiro de Estado (1859) e presidente do conselho
de ministros (1870-71). Foi feito Visconde em 1867, e Marquês de São
Vicente em 1872, tendo falecido no Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de
1878, aos 75 anos de idade. É autor de extensa obra jurídica que abarca os
campos de processo civil, processo criminal, direito eclesiástico, direito
constitucional, direito internacional privado e direito financeiro. A obra
que consolidou, contudo, a sua reputação é o Direito Público Brasileiro e
Análise da Constituição do Império (1857).
A obra foi publicada em dois volumes, com um total de 568 páginas,
que abarcam uma análise aprofundada do texto da Constituição Política
do Império do Brasil em nove títulos. Embora seja um livro de direito
constitucional, o que a princípio o excluiria do universo examinado pela
pesquisa, o seu título VI sobre o poder executivo é a primeira obra ju-
rídica nacional a tratar explicitamente do direito administrativo, o que
justifica a sua presença na análise a ser realizada.

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O direito administrativo é definido no título preliminar, mais teórico


e conceitual, que o classifica ora como ciência “que estuda e proclama as
regras e condições gerais que são apropriadas para assegurar o melhor
desempenho do serviço administrativo, o bem-ser, a prosperidade social”,
ora como ramo do direito positivo que contém “o complexo dos princí-
pios e leis positivas de um Estado, que regulam a competência, direção ou
gestão do seu poder executivo quanto aos direitos, interesses e obrigações
administrativas da sociedade e dos administrados na esfera do interesse
geral”10. Assim são apresentadas as duas fontes principais do direito ad-
ministrativo brasileiro: a ciência e as leis positivas. Na sequência, o autor
indica uma breve “bibliografia de direito público e administrativo” com-
posta de 38 obras inglesas, americanas, francesas e portuguesas. Como
explica Hespanha11, contudo, a percepção subjetiva dos autores acerca
das fontes jurídicas que utilizavam deve ser controlada por processos que
nos informem sobre o que os próprios textos nos transmitem, o que nos
leva à análise de conteúdo proposta.
O referido título VI tem um total de 91 páginas, com 272 citações
(média de 2,98 citações por página), que se distribuem na seguinte pro-
porção:
Quadro 1 – Direito Público Brasileiro (Pimenta Bueno, 1857)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 67 24,63%
Ato Adicional 0 0,00%
Lei Interpretativa 0 0,00%
Legislação Mo- 228
derna Legislação Brasileira Moderna 54 19,85% (83,82%)

Regulamentos do Executivo Brasileiro 96 35,29%


Legislação Estrangeira Moderna 11 4,04%
Doutrina Brasileira 0 0,00% 7
Doutrina Moderna (2,57%)
Doutrina Estrangeira 7 2,57%
Jurisprudência Jurisprudência Brasileira 0 0,00% 0
Moderna Jurisprudência Estrangeira 0 0,00% (0,00%)

10 – PIMENTA BUENO, op. cit., p. 11.


11 – HESPANHA, op. cit., p. 110.

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Direito Romano 0 0,00%


Direito Canônico 4 1,47%
Direito Natural 2 0,73% 32
Direito pré-1822 (11,76%)
Ordenações 1 0,36%
Legislação Antigo Regime 16 5,88%
Legislação 1808-1822 9 3,30%
Natureza das Coisas 3 1,10%
Experiência Prática 0 0,00%
Experiência Francesa 2 0,73% 5
Realidade (1,83%)
Ciência 0 0,00%
Parlamento 0 0,00%
Imprensa 0 0,00%
272
TOTAL (100%)

Apesar da importância atribuída pelo próprio autor à ciência e à dou-


trina como fontes do direito administrativo, é a legislação que se destaca
como principal referência citada. Nela, sobressai a importância do tex-
to constitucional, compreensível em face da natureza e dos objetivos da
obra, mas se verifica que a principal “razão jurídica” empregada pelo autor
para fundamentar as suas afirmações são os regulamentos emitidos pelo
Executivo brasileiro. As fontes específicas mais citadas são o art. 102 da
Constituição, que estabelece as atribuições do imperador (11% dos dispo-
sitivos constitucionais citados); a Lei 234/1841, que cria o Conselho de
Estado (31% das leis citadas); e o Regulamento 124/1842, que estabelece
o regimento do Conselho de Estado (37,5% dos regulamentos citados).
Tudo isso indica a importância dos debates sobre a atuação do imperador
para a visão do autor sobre o direito administrativo.

A legislação do antigo regime também tem importância considerá-


vel, mas não o suficiente para afetar a predominância da legislação mo-
derna. A doutrina é exclusivamente francesa: os únicos autores menciona-
dos são Alexandre-François Vivien, que havia publicado os seus Études
Administratives em 1853, e Jean-Jacques Gaspard Foelix, autor da Révue
Étrangère et Française de Législation, de Jurisprudence et d’Économie
Politique (1833-43). Não há participação da doutrina nacional, nem
quaisquer referências à jurisprudência. A “realidade” aparece com uma
participação insignificante, e concentrada na “natureza das coisas” e na

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experiência francesa, sem quaisquer menções a debates parlamentares ou


à imprensa.

As referências são realizadas em contexto predominantemente neu-


tro ou positivo, o que indica que eram, de fato, consideradas “fontes” do
direito administrativo pelo autor. As exceções são as poucas referências
às fontes categorizadas como de “direito comum” (direito romano, canô-
nico e natural), citadas negativamente em 50% dos casos, quando se afir-
ma a impossibilidade de sua execução no império sem prévia aprovação
da assembleia geral12.

b) Vicente Pereira do Rego – Elementos de Direito Administrativo


Brasileiro (1857)

João Vicente Pereira do Rego nasceu em 3 de junho de 1812 no


Recife. Ali, se formou bacharel em Direito em 1840 e passou a advogar.
Em 1855, se tornou professor da Faculdade de Direito do Recife e as-
sumiu a recém-criada cadeira de “Direito Administrativo Pátrio”. Após
alguns anos de uso da doutrina francesa no ensino da disciplina, decide
publicar, em 1857, uma sistematização escrita das suas aulas, que intitula
Elementos de Direito Administrativo Brasileiro – primeira obra latino-
-americana sobre a matéria. Faleceu ainda em 1857, mas o seu compên-
dio foi formalmente aprovado para uso nas Faculdades de Direito pelo
Ministério dos Negócios do Império em agosto de 1864. Foi uma obra
importante para a formação dos juristas brasileiros apesar da crítica de
Paulino de Sousa, que o considerava excessivamente resumido e depen-
dente do modelo francês13.

A obra, aqui consultada na segunda edição de 1860, foi publicada


em um volume de 235 páginas, divididas em três partes que tratam da
estrutura administrativa do país, da administração contenciosa e das ma-
térias específicas de direito administrativo. O direito administrativo é
conceituado como “ciência da ação e competência do poder central, das
12 – PIMENTA BUENO, op. cit., p. 243.
13 – SOUSA, Paulino José Soares. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1862, p. XIII.

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administrações locais e dos tribunais administrativos em suas relações


com os direitos e interesses dos administrados, e com o interesse geral do
Estado”14, e o seu estudo compreende as “leis administrativas” e as “au-
toridades administrativas”, estendendo-se também às “leis sociais” – que
são, assim, consideradas as principais fontes do direito administrativo.

Nessas 235 páginas, o autor realiza 1269 citações – 5,4 citações por
página distribuídas na seguinte proporção:
Quadro 2 – Elementos de Direito Administrativo Brasileiro (Rego, 1857)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 76 5,97%
Ato Adicional 30 2,35%
Lei Interpretativa 3 0,23%
Legislação Mo- 951
Legislação Brasileira Moderna 317 24,92%
derna (74,76%)
Regulamentos do Executivo Brasileiro 497 39,07%
Legislação Francesa Moderna 25 1,96%
Legislação de Outra Nacionalidade 3 0,23%
Doutrina Brasileira 7 0,55%
Doutrina Mo- 139
Doutrina Francesa 122 9,59%
derna (10,92%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 10 0,78%
Jurisprudência Jurisprudência Brasileira 6 0,47% 7
Moderna Jurisprudência Estrangeira 1 0,07% (0,55%)
Direito Romano 4 0,31%
Direito Canônico 3 0,23%
Direito Natural 3 0,23% 116
Direito pré-1822 (9,11%)
Ordenações 18 1,41%
Legislação Antigo Regime 48 3,77%
Legislação 1808-1822 40 3,14%
Natureza das Coisas 10 0,78%
Experiência Prática 0 0,00%
Experiência Francesa 41 3,22%
59
Realidade Experiência Outros Países 5 0,39%
(4,63%)
Ciência 3 0,23%
Parlamento 0 0,00%
Imprensa 0 0,00%
1272
TOTAL (100%)

14 – REGO, Vicente Pereira. Elementos de Direito Administrativo Brasileiro, para uso


das Faculdades de Direito do Império. 2. ed. Recife: Tipografia Comercial de Geraldo
Henrique de Mira & C., 1860, p. 6.

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A tabela demonstra a predominância absoluta da “Legislação


Moderna” como fonte do direito administrativo, e ressalta a importância
dos regulamentos do executivo e da legislação brasileira, que respondem
por quase 64% do total de referências. Entre elas, se destacam a Lei de 1º
de outubro de 1828, que dá nova forma às Câmaras Municipais (9,46%
da legislação citada), e os Decretos 2343/1859, 736/1850 e 870/1851, que
reformam o Tesouro Público Nacional (7,64% dos decretos citados).

Quanto às referências doutrinárias, permanecem predominantemen-


te francesas. O autor mais citado é Paul Pradier-Foderé (Précis de droit
administratif, 1853 – 25,89% da doutrina citada), seguido por Louis
Antoine Macarel (Cours d’administration et de droit administratif, 1852
– 13,66%) e Louis Cabantous (Répétitions Écrites sur le droit administra-
tif – 12,94%). A referência à doutrina brasileira se limita a obras de direito
financeiro, com destaque para os Apontamentos de Direito Financeiro de
José Maurício Fernandes Pereira de Barros (1855), que recebe 4 citações
(2,87%). A França também é uma referência importante quando se trata
da experiência prática de administração pública, embora proporcional-
mente as referências à realidade não sejam tão relevantes na obra.

A análise contextual mostra pouquíssimas referências negativas, li-


mitadas a críticas pontuais à legislação francesa sobre caça e patentes15.
Mas 75% das citações de “direito comum” e 48,07% das citações de le-
gislação anterior a 1822 são empregadas em análises históricas dos pro-
cessos de formação dos institutos jurídicos analisados, o que contribui
para redimensionar o pequeno papel desempenhado pelas fontes pré-
-modernas. Novamente, não aparecem referências aos debates perante a
opinião pública no parlamento ou na imprensa.

c) Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral – Direito


Administrativo Brasileiro (1859)

Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral nasceu em Cuiabá no


dia 22 de abril de 1800. Estudou Direito na Universidade de Coimbra e

15 – REGO, Vicente Pereira. op. cit., p. 129 e 180.

230 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

retornou ao Brasil em 1822, logo após a formatura. Atuou como juiz de


fora, ouvidor de Comarca, auditor geral do Exército, desembargador na
relação do Maranhão e conselheiro de Estado. Em 8 de abril de 1829,
assumiu a cadeira de Direito Civil Pátrio na Faculdade de Direito de São
Paulo e, por duas vezes, foi nomeado diretor da instituição. Faleceu em 9
de janeiro de 1862, um ano após o seu jubilamento.

O seu Direito Administrativo Brasileiro, publicado em 1859, foi


redigido com a intenção explícita de fornecer um plano de Código
Administrativo Brasileiro, com projetos de reformas para o melhoramen-
to das administrações provinciais e municipais16. Percebe-se o objetivo
declaradamente prático e reformador da obra, embora o autor se preocupe
também com a exposição dos “princípios e a legislação em que se coorde-
nam os elementos da ciência”17, afirmando que ela se dirige a estadistas,
a funcionários públicos, a alunos das Faculdades de Direito e a cidadãos
em geral. Para isso, redige 541 páginas divididas em quatro partes, que
tratam da ciência e da estrutura administrativa, do direito administrativo
nas suas relações com a conservação da sociedade, do direito administra-
tivo nas suas relações com o fim da sociedade e da administração local.
O direito administrativo é conceituado como aquele “que regula a ação e
competência da administração nas suas relações com os centros parciais
da população, ou os cidadãos individualmente para a execução de leis,
decretos e ordens expedidas por interesse geral ou local”, esclarecendo
que “compreende todas as leis sociais, à exceção daquelas que servem de
fundamento à organização constitucional, e as que entram no domínio do
poder judiciário”18. Aproxima-se, assim, da definição que havia sido apre-
sentada por Pereira do Rego (embora não o cite), tomando a legislação
como principal fonte jurídica.

Na obra de 541 páginas, o autor emprega 1284 citações, em uma


média de 2,37 citações por página, distribuídas na seguinte proporção:

16  –  VEIGA CABRAL, Prudêncio Giraldes Tavares. Direito Administrativo Brasileiro.


Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1859, p. V.
17  –  VEIGA CABRAL. op.cit, p. VI.
18  –  VEIGA CABRAL. op.cit, p. 12.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 231


Walter Guandalini Junior

Quadro 3 – Direito Administrativo Brasileiro (Veiga Cabral, 1859)


Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 53 4,12%
Ato Adicional 25 1,94%
Lei Interpretativa 5 0,38%
1042
Legislação Moderna Legislação Brasileira Moderna 373 29,04%
(81,15%)
Regulamentos do Executivo Brasileiro 575 44,78%
Legislação Francesa Moderna 10 0,77%
Legislação de Outra Nacionalidade 1 0,07%
Doutrina Brasileira 1 0,07%
63
Doutrina Moderna Doutrina Francesa 52 4,04%
(4,90%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 10 0,77%
Jurisprudência Mo- Jurisprudência Brasileira 4 0,31% 4
derna Jurisprudência Estrangeira 0 0,00% (0,31%)
Direito Romano 9 0,70%
Direito Canônico 7 0,54%
Direito Natural 1 0,07% 115
Direito pré-1822 (8,95%)
Ordenações 11 0,85%
Legislação Antigo Regime 47 3,66%
Legislação 1808-1822 40 3,11%
Natureza das Coisas 13 1,01%
Experiência Prática 21 1,63%
Experiência Outros Países 1 0,07% 60
Realidade (4,67%)
Ciência 21 1,63%
Parlamento 3 0,23%
Imprensa 1 0,07%
1284
TOTAL (100%)

Também aqui se percebe uma clara predominância da “Legislação


Moderna”, que corresponde a mais de 80% das referências citadas pelo
autor. Sobressaem a legislação brasileira e os regulamentos do executivo,
com destaque para a Lei de 1º de outubro de 1828, que regula o funcio-
namento das Câmaras Municipais (4,28% das referências legislativas),
e para o Decreto 124/1842, que estabelece o regimento do Conselho de
Estado (2,60% das referências regulamentares).

A pouca importância proporcional da doutrina não nos impede de


perceber também aqui a predominância da doutrina francesa, sem ênfase
em um autor determinado (a obra mais citada é o Traité du Domaine
Public, de Jean-Baptiste-Victor Proudhon, com apenas 6,3% do total).

232 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

Quanto à doutrina brasileira, há uma citação pontual aos Elementos de


Direito Eclesiástico, de Manoel do Monte Rodrigues (1857), e mais nada.
As referências à realidade permanecem irrelevantes, e concentradas na
“natureza das coisas”, na “experiência prática” e na “ciência”, com pou-
quíssimas referências à imprensa ou ao parlamento. As poucas citações
de fontes anteriores a 1822 têm considerável relação com revisões his-
tóricas de institutos jurídicos (20,40% das citações classificadas como
“Legislação pré-1822” e 17,64% das citações classificadas como “Direito
Comum”).

d) Paulino José Soares de Sousa – Ensaio sobre o Direito


Administrativo (1862)

Paulino José Soares de Sousa é um dos maiores publicistas da histó-


ria do país e, sem dúvida, o maior administrativista do século XIX. Filho
de pai mineiro e mãe francesa, nasceu em Paris, em 4 de outubro de 1807.
Após a queda de Napoleão, em 1814, viajou com a família para Portugal
e, em 1818, retornou ao Brasil, fixando-se em São Luís do Maranhão.
Em 1823, ainda não havia faculdades de Direito no Brasil, o que o fez
retornar a Portugal para estudar em Coimbra. A revolta do Porto de 1828
interrompeu as aulas e forçou o seu retorno ao Brasil, onde concluiu o
curso em 1831, na Faculdade de Direito de São Paulo. No ano seguinte,
iniciou a vida pública na magistratura, tendo atuado como juiz de fora e
ouvidor da comarca de São Paulo. Em 1833, se transferiu para a sede da
Corte, onde foi Intendente Geral de Polícia e juiz. Elegeu-se deputado em
1836, mesmo ano em que foi nomeado presidente da Província do Rio
de Janeiro (1836-1840). Ao final da década de 30, participou da forma-
ção do Partido Conservador, de que foi líder. Como ministro da justiça
(1840, 1842-1843), fez aprovar as leis do Regresso e, como ministro dos
negócios estrangeiros (1843-1844, 1849-1853), desempenhou importante
papel na extinção do tráfico de escravos e na guerra do Prata. Foi sena-
dor (1849), desembargador da relação da Corte (1852) e conselheiro de
Estado (1853), tendo recebido o título de Visconde do Uruguai em 1854.
Após retornar de uma missão diplomática na França, decidiu se afastar
da luta política: aposentou-se como ministro do Supremo Tribunal de

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 233


Walter Guandalini Junior

Justiça em 1857 e restringiu suas atividades ao Senado e ao Conselho de


Estado, dedicando-se mais à família e aos livros – quando publicou o seu
monumental Ensaio sobre o Direito Administrativo (1862) e os Estudos
Práticos sobre a Administração das Províncias no Brasil (1865). Faleceu
aos 58 anos de idade no Rio de Janeiro, em julho de 1866.

O Ensaio sobre o Direito Administrativo foi publicado em dois volu-


mes. O primeiro, com 322 páginas, é dividido em 26 capítulos dedicado a
questões teóricas gerais sobre o direito administrativo, como a sua auto-
nomia científica, as suas fontes e a estrutura geral da administração públi-
ca graciosa e contenciosa brasileira. Ali, o direito administrativo é defini-
do com base em Laferrière, como “a ciência da ação e da competência do
Poder Executivo, das administrações gerais e locais, e dos conselhos ad-
ministrativos, em suas relações com os interesses ou direitos dos adminis-
trados, ou com o interesse geral do Estado”19. Em seguida, são mencio-
nados conceitos produzidos por outros autores (Dégerando, Cabantous,
Blanche, Gandillot et Boileux, Chantagrel, Colmeiro, Foucart, Macarel,
Dalloz) que, na opinião do autor, não divergem da definição adotada. A
presença mais sólida da doutrina no texto de Sousa é acompanhada tam-
bém de outra novidade: um capítulo explicitamente dedicado à apresen-
tação das fontes do direito administrativo: a antiga legislação portuguesa,
a constituição, as leis do império, os regulamentos do governo e as reso-
luções imperiais tomadas a partir de consultas ao conselho de Estado20.

O segundo volume da obra, com 275 páginas, tem apenas 5 capítulos


e é dedicado ao exame do poder moderador e da questão de sua respon-
sabilidade, em polêmica direta com Zacarias de Góes e Vasconcellos21. O
livro conclui com dois apêndices, nos quais se encontram projetos de lei,

19  –  SOUSA, Paulino José Soares. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1862, p. 7 – grifos no original.
20  –  SOUSA, Paulino José Soares. op.cit, p. 42.
21  –  Sobre a polêmica ver GUANDALINI JR., Walter. O Poder Moderador: ensaio so-
bre o debate jurídico-constitucional no século XIX. Curitiba: Prismas, 2016; e GUAN-
DALINI JR., Walter. Chave ou Fecho? O debate jurídico erudito sobre a responsabilidade
do poder moderador, In: Quaestio Iuris, vol. 09, nº 02. Rio de Janeiro: UERJ, 2016, p.
1031-1059.

234 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

emendas legislativas, debates parlamentares e discursos proferidos pelo


autor no Parlamento – elementos emblemáticos dessa mescla entre pro-
dução científica e atuação política, tão característica dos grandes juristas
do período.

Nas 597 páginas dos dois volumes, foram realizadas 1089 citações,
em uma média de 1,82 citações por página. A média é bastante inferior à
das demais obras analisadas, o que talvez se explique pelo tipo de fontes
predominante empregadas no seu texto: as citações de textos legislativos
tendem a se repetir em grande quantidade, em razão da necessidade de
referência explícita a diversos dispositivos de uma mesma norma, ou até
mesmo diversas normas que regulam um mesmo assunto; as referências
doutrinárias e contextuais, porém, são usualmente mencionadas apenas
uma vez e, a partir delas, se desenvolvem livremente os argumentos pro-
postos pelo autor. Estas últimas tem uma participação proporcional no
texto bastante superior à verificada em outras obras do período, como se
infere da tabela abaixo:
Quadro 4 – Ensaio sobre o Direito Administrativo (Sousa, 1862)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 52 4,77%
Ato Adicional 13 1,19%
Lei Interpretativa 2 0,18%
Legislação Brasileira Moderna 83 7,62%
368
Legislação Moderna Regulamentos do Executivo Brasileiro 96 8,81%
(33,78%)
Legislação Francesa Moderna 65 5,96%
Legislação Portuguesa Moderna 21 1,92%
Legislação Americana Moderna 12 1,10%
Legislação de Outra Nacionalidade 24 2,20%
Doutrina Brasileira 9 0,82%
Doutrina Francesa 234 21,48%
322
Doutrina Moderna Doutrina Inglesa 37 3,39%
(29,56%)
Doutrina Espanhola 10 0,91%
Doutrina de Outra Nacionalidade 32 2,93%
Jurisprudência Mo- Jurisprudência Brasileira 21 1,92% 27
derna Jurisprudência Estrangeira 6 0,55% (2,47%)
Direito Romano 13 1,19%
Direito Canônico 0 0,00%
Direito Natural 3 0,27% 42
Direito pré-1822 (3,85%)
Ordenações 6 0,55%
Legislação Antigo Regime 17 1,56%
Legislação 1808-1822 3 0,27%

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019. 235


Walter Guandalini Junior

Natureza das Coisas 105 9,64%


Experiência Prática 11 1,01%
Experiência França 55 5,05%
Experiência Inglaterra 22 2,02%
Experiência Portugal 27 2,47%
Experiência Estados Unidos 15 1,37%
330
Realidade Experiência Espanha 14 1,28%
(30,27%)
Experiência Outros Países 18 1,65%
Ciência 4 0,36%
Parlamento Nacional 40 3,67%
Parlamento Estrangeiro 14 1,28%
Imprensa Nacional 1 0,09%
Imprensa Estrangeira 4 0,36%
1089
TOTAL (100%)

É impossível evitar a impressão de que a obra de Paulino de Sousa


é um ponto fora da curva na história do direito administrativo brasilei-
ro. Embora a Legislação Moderna permaneça uma importante referência
em seus escritos (33,78% do total), o autor não a considera mais im-
portante que a doutrina (29,56%) ou as referências à realidade (30,27%)
como fontes do direito administrativo. Talvez essa especificidade possa
ser explicada pelo caráter mais teórico do Ensaio, planejado como obra
introdutória a livro posterior que deveria se dedicar a uma análise mais
detalhada da legislação administrativa brasileira (mas que nunca chegou
a ser publicado).

Mas a verdade é que, mesmo no interior da categoria geral


“Legislação Moderna”, as fontes legislativas citadas por Sousa são muito
mais variadas e dispersas do que nas obras de seus contemporâneos, com
uma distribuição muito semelhante entre os diversos itens que compõem
a categoria – 6,14% para o direito constitucional, 7,62% para a legislação
brasileira, 8,81% para os regulamentos e 11,18% para a legislação es-
trangeira. Ressalte-se, especialmente, a enorme variedade de citações da
legislação estrangeira, que abrangem regras provenientes de países como
França, Portugal, Estados Unidos, Espanha, Inglaterra, Bélgica, Rússia,
Argentina, Áustria e Vaticano. Destacam-se, entre as fontes mais citadas,
a Lei 234/1841 (10,84% da legislação brasileira citada), que dispõe so-

236 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

bre a criação do conselho de Estado, e o Regulamento 124/1842 (12,5%


dos regulamentos citados), que estabelece o seu regimento. Confirma-se a
tendência já percebida anteriormente, de ênfase na atuação do imperador
e do conselho de Estado como instrumentos de compreensão do direito
administrativo brasileiro.

A mesma complexidade de referências textuais é percebida tam-


bém nas citações da doutrina, embora aí já se possa perceber uma nítida
predominância da doutrina francesa (72,66% do total de obras citadas)
– com especial destaque das obras de Adolphe Chaveau (Principes de
Compétence et de Juridiction Administratives, 1841; Code d’Instruction
Administrative, 1860 – 7,14% das obras citadas) e Louis Antoine Macarel
(Des Tribunaux Administratifs, 1828; Éléments de Droit Politique, 1833;
Cours d’administration et de droit administratif, 1852 – 4,96% das obras
citadas). Há referências também a obras provenientes da Inglaterra,
Espanha, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica e Portugal. Quanto aos li-
vros brasileiros, o mais citado é o Direito Público Brasileiro e Análise da
Constituição do Império de Pimenta Bueno (1857), que recebe 4 men-
ções. As obras de Rego e Veiga Cabral são apenas mencionadas de pas-
sagem em uma nota de rodapé no preâmbulo, na qual Sousa as critica
com sutileza22. A pequena relevância das obras nacionais não pode nos
impedir de observar que, no Ensaio, começa a aparecer na nossa doutri-
na, pela primeira vez, algum diálogo efetivo com o pensamento jurídico
brasileiro.

Por fim, a terceira fonte digna de nota são as referências à Realidade


(30,27% do total). A sua importância no pensamento de Sousa talvez pos-
sa ser compreendida por sua intensa atuação política e administrativa,
mas esse fator sozinho não é suficiente para explicar a enorme diferença
entre a proporção de referências à realidade no seu pensamento e o de
Pimenta Bueno, por exemplo. A crítica se torna especialmente pertinente
22  –  A obra de Rego “não deixa de ter merecimento”, apesar de muito baseada no direito
francês e “bastantemente resumida”; quanto a Veiga Cabral, limita-se a informar que foi
seu lente de Direito Pátrio na Faculdade de Direito de São Paulo e, por esse motivo, pre-
fere delicadamente “[abster-se] de observações” – Sousa, Paulino José Soares. op. cit.,
p. XIII.

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Walter Guandalini Junior

quando se observa que a maior parte das citações não se refere à sua expe-
riência prática como administrador (1,01% do total) ou à sua atuação po-
lítica (5,40% do total, somando-se os debates parlamentares e na impren-
sa), mas ao conceito geral de “Natureza das Coisas” (9,64% do total) e à
experiência prática francesa (5,05% do total). Talvez, então, elas possam
ser melhor interpretadas como efeitos da influência do pensamento de
Montesquieu na teoria jurídica brasileira do século XIX, e da concepção
segundo a qual a interpretação do direito não deve se limitar à tradução
semântica do texto normativo, mas à explicitação da racionalidade objeti-
va que a fundamenta, na medida em que é compreendido como resultado
de relações objetivas derivadas da natureza das coisas23.

Também, no Ensaio, as referências às fontes citadas são predominan-


temente neutras ou positivas. As exceções relevantes são 17 citações da
experiência prática estrangeira (5,15% das referências à realidade), criti-
cadas como inadequadas ou incompatíveis à realidade jurídica nacional,
o que demonstra a preocupação do autor com a construção de um direito
administrativo ajustado às circunstâncias locais; e também 21 referências
ao “Direito Comum” e à legislação anterior a 1822 (50% das referências
ao direito pré-1822), que não os tomam como direito vigente, mas como
referências históricas para a compreensão do direito contemporâneo.

e) Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça – Excerto de


Direito Administrativo Pátrio (1865)

Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça nasceu em Luanda,


Angola, no ano de 1812. Foi nomeado professor da Faculdade de Direito
de São Paulo em 1839. Tornou-se, em seguida, delegado de polícia; em
1848, foi nomeado bibliotecário da Academia de Direito e, em 1850, pu-
blicou um Repertório Geral ou índice alfabético das leis do Império do
Brasil publicadas desde o começo do ano de 1808 até o presente. Em
1856, assumiu a cadeira de direito administrativo da Faculdade de Direito
de São Paulo e, poucos anos depois, publicava o seu Excerto de Direito

23  –  MONTESQUIEU, Charles Secondat. De L’Esprit des Lois. Paris: Gallimard, 1995,
p. 22.

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

Administrativo Pátrio (1865), redigido “para servir de compêndio na aula


da 3ª cadeira do 5º ano da Faculdade de Direito da imperial cidade de São
Paulo”24. Aposentou-se em 1882 e faleceu em 1890.

O Excerto foi redigido em 191 páginas, que contêm 2857 citações,


média espantosa de 14,95 citações por página. O livro se divide em três
grandes partes, que abordam a ciência da administração, a teoria do di-
reito administrativo e a organização e as atribuições dos empregados ad-
ministrativos. O direito administrativo é conceituado como “o complexo
das leis que regulam a ação e competência da administração central e
local, em suas relações com os interesses e direitos dos administrados e
o interesse geral do estado, ou especial dos centros parciais de popula-
ção”, constituindo “uma ciência positiva, verdadeira e completa”25. São
identificadas como suas fontes as leis, os atos do poder executivo puro e
a jurisprudência administrativa26.
Quadro 5 – Excerto de Direito Administrativo Pátrio (Furtado de Mendonça, 1865)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 152 5,32%
Ato Adicional 90 3,15%
Lei Interpretativa 24 0,84% 2257
Legislação Moderna (78,99%)
Legislação Brasileira Moderna 514 17,99%
Regulamentos do Executivo Brasileiro 1474 51,59%
Legislação de Outra Nacionalidade 3 0,10%
Doutrina Brasileira 0 0,00% 1
Doutrina Moderna (0,03%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 1 0,03%
Jurisprudência Brasileira 298 10,43% 298
Jurisprudência Moderna (10,43%)
Jurisprudência Estrangeira 0 0,00%
Direito Romano 4 0,14%
Direito Canônico 17 0,59%
Direito Natural 0 0,00% 257
Direito pré-1822 (8,99%)
Ordenações 14 0,49%
Legislação Antigo Regime 187 6,54%
Legislação 1808-1822 35 1,22%

24  –  FURTADO DE MENDONÇA, Francisco Maria de Souza. Excerto de Direito Ad-


ministrativo Pátrio. São Paulo: Tipografia Alemã de Henrique Schroeder, 1865, p. 3.
25  –  FURTADO DE MENDONÇA. op. cit., p. 20.
26  –  FURTADO DE MENDONÇA. op. cit., p. 22.

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Walter Guandalini Junior

Natureza das Coisas 34 1,19%


Experiência Prática 0 0,00%
Experiência Outros Países 0 0,00%
Ciência 10 0,35% 44
Realidade (1,54%)
Parlamento Nacional 0 0,00%
Parlamento Estrangeiro 0 0,00%
Imprensa Nacional 0 0,00%
Imprensa Estrangeira 0 0,00%
2857
TOTAL (100%)

O quadro demonstra a continuidade da tendência brevemente in-


terrompida por Paulino de Sousa, de se tomar a “Legislação Moderna”
como principal fonte do direito administrativo – correspondem a quase
80% das fontes citadas. O destaque especial deve ser dado aos regula-
mentos do Executivo, que correspondem a 65,30% das fontes legislativas
mencionadas, seguidas, em um distante segundo lugar, pela legislação
brasileira (22,77% das fontes legislativas). As fontes mais citadas são o
Regulamento 124/1842, que contém o regimento do Conselho de Estado
(2,57% dos regulamentos), e o Código Criminal (8,36% da legislação
brasileira). Além de indicar a importância atribuída pelo autor, delegado
de polícia, à legislação penal, a baixa frequência de repetições e a disper-
são das citações demonstram também a sua erudição legislativa, que se
expande inclusive para a legislação do antigo regime (6,54% do total de
citações).
Mas, se a perspectiva do delegado pôde contribuir para a visão do
autor sobre as fontes do direito administrativo, a perspectiva do bibliote-
cário não foi tão influente. A erudição de Furtado de Mendonça é estrita-
mente legislativa, e o seu livro contém somente uma referência doutriná-
ria: ao Direito Civil de Portugal, publicado por Manuel Borges Carneiro
em 1851. As demais categorias de referências são igualmente irrelevantes,
exceto pelas citações da jurisprudência do conselho de Estado, que cor-
respondem a 10,43% do total de citações. A atenção especial à jurispru-
dência, todavia, não é suficiente para reduzir a importância avassaladora
da legislação como principal fonte do direito administrativo nacional. Por
fim, o contexto das citações é predominantemente neutro ou positivo, mas

240 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (481):219-254, set./dez. 2019.


As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

mais da metade das referências ao direito anterior a 1822 se faz para a


reconstituição histórica de institutos (50,58% das citações da categoria).

f) Antônio Joaquim Ribas – Direito Administrativo Brasileiro (1866)

Antônio Joaquim Ribas nasceu no Rio de Janeiro em 23 de maio de


1818. Formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo em 1840 e,
no ano seguinte, ingressou como professor no Curso Anexo. Em 1849,
foi eleito deputado provincial, função que desempenhou continuamente
por mais de uma década. Tornou-se professor substituto da Faculdade de
Direito de São Paulo em 1854 e, no ano seguinte, assumiu a recém-criada
cadeira de direito administrativo. Na ocasião, substituía o primeiro pro-
fessor da disciplina, José Inácio Silveira da Mota que, por não ter encon-
trado um livro que pudesse servir à disciplina, havia decidido tomar como
compêndio o orçamento do império, para a indignação dos alunos27. Ao
enfrentar a mesma dificuldade, Ribas decidiu organizar apontamentos
para o acompanhamento dos estudantes que, depois se converteram no
Direito Administrativo Brasileiro, aprovado pela resolução imperial de
9 de fevereiro de 1861 para servir como compêndio nas Faculdades de
Direito do Recife e de São Paulo, e publicada no Rio de Janeiro em 1866.
Em 1856, Silveira da Mota requer a sua jubilação e Ribas perde a discipli-
na de Direito Administrativo, assumida por Furtado de Mendonça; passa a
lecionar as disciplinas de Direito Natural, Direito Administrativo, Direito
Público, Direito Eclesiástico, Economia Política e Direito Civil, até ser
nomeado lente catedrático desta última no ano de 1860. Em 1861, com-
pletou o seu último mandato como deputado provincial e mudou-se para
o Rio de Janeiro, onde passou a atuar como advogado. Foi um autor pro-
lífico: em 1865, publica o seu clássico Curso de Direito Civil Brasileiro
e, no ano seguinte, publica as suas já mencionadas anotações sobre o
Direito Administrativo Brasileiro (1866). Em 1871, é incumbido pelo go-
verno imperial de organizar uma compilação da legislação brasileira de
processo civil, que recebe força de lei pela resolução imperial de 28 de

27 – BARROS JÚNIOR, Carlos S. Antonio Joaquim Ribas (o conselheiro Ribas). In:


Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 69, nº 2. São Paulo:
USP, 1974, p. 242.

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Walter Guandalini Junior

dezembro de 1876 e é publicada, em 1878, sob o título Consolidação das


Disposições Legislativas e Regulamentares concernentes ao Processo
Civil. No ano seguinte, publica um comentário à sua própria consolidação
e, em 1881, é convidado a integrar uma comissão para avaliação do proje-
to de Código Civil, que abandona em 1883 – mesmo ano em que publica
o seu estudo Da Posse e das Ações Possessórias segundo o direito pátrio
comparado com o direito romano e canônico (1883). Publicou também
ensaios literários e poemas, entre os quais se encontram uma História dos
Paulistas (1850) e um texto sobre a Navegação do Paraná e seus afluen-
tes (1863). Faleceu em Petrópolis em 22 de fevereiro de 1890.

Quanto ao seu Direito Administrativo Brasileiro, foi redigido em


376 páginas, que contêm 1405 citações, média de 3,73 citações por pá-
gina. Preparado como obra introdutória28, destinava-se a ser o primei-
ro volume de um trabalho composto de cinco partes, nas quais seriam
sequencialmente examinadas as noções preliminares, a organização da
administração espontânea, os serviços administrativos relativos aos inte-
resses do estado, os serviços relativos aos interesses dos administrados e
a administração contenciosa. A obra se limita a uma discussão sobre as
categorias básicas do direito administrativo, dividida em três títulos: o
primeiro dedicado à ciência do direito administrativo; o segundo à estru-
tura da organização administrativa; e o terceiro aos administrados.

Após apresentar um panorama dos conceitos de direito administrati-


vo adotados por autores estrangeiros e nacionais (De Gerando, Laferrière,
Pradier-Foderé, Pereira do Rego, Furtado de Mendonça, Veiga Cabral,
Macarel, Pimenta Bueno), Ribas o define como a ciência que ensina a
organização administrativa e define os direitos e deveres recíprocos da
administração e dos administrados29. As fontes do direito administrativo
são classificadas em três categorias: atos do poder constituinte, atos do
poder legislativo ordinário e atos do poder executivo30 - justamente as ca-

28 – RIBAS, Antonio Joaquim. Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro: F. L.


Pinto & C. Livreiros Editores, 1866, p. XI.
29 – RIBAS, Antonio Joaquim. op.cit., p. 17.
30 – RIBAS, Antonio Joaquim. op. cit., p. 37.

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

tegorias básicas da “Legislação Moderna”, que correspondem a 74,09%


do total de fontes citadas:
Quadro 6 – Direito Administrativo Brasileiro (Ribas, 1866)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 96 6,83%
Ato Adicional 17 1,20%
Lei Interpretativa 1 0,07%
1041
Legislação Moderna Legislação Brasileira Moderna 283 20,14%
(74,09%)
Regulamentos do Executivo Brasileiro 612 43,55%
Legislação Francesa Moderna 13 0,92%
Legislação de Outra Nacionalidade 19 1,35%
Doutrina Brasileira 25 1,77%
112
Doutrina Moderna Doutrina Francesa 58 4,12%
(7,97%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 29 2,06%
Jurisprudência Jurisprudência Brasileira 4 0,28% 4
Moderna Jurisprudência Estrangeira 0 0,00% (0,28%)
Direito Romano 30 2,13%
Direito Canônico 6 0,42%
Direito Natural 1 0,07% 167
Direito pré-1822 (11,88%)
Ordenações 17 1,20%
Legislação Antigo Regime 94 6,69%
Legislação 1808-1822 19 1,35%
Natureza das Coisas 31 2,20%
Experiência Prática 0 0,00%
Experiência França 4 0,28%
Experiência Outros Países 28 1,99%
81
Realidade Ciência 14 0,99%
(5,76%)
Parlamento Nacional 3 0,21%
Parlamento Estrangeiro 0 0,00%
Imprensa Nacional 1 0,07%
Imprensa Estrangeira 0 0,00%
TOTAL 1405

Na categoria “Legislação Moderna”, sobressaem a legislação brasi-


leira (27,18% das citações na categoria) e os regulamentos do executivo
(58,77% das citações na categoria). As fontes mais citadas são o Código
Criminal (10,60% da legislação brasileira) e o Regulamento sobre a po-
lícia de 31 de janeiro de 1842 (2,45% dos regulamentos), reiterando as
tendências percebidas em Furtado de Mendonça, de ênfase no Direito
Criminal e ampla dispersão das referências aos regulamentos.

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Walter Guandalini Junior

Quanto às demais fontes, merecem destaque as referências à dou-


trina (7,97% do total) e ao direito anterior a 1822 (11,88% do total).
Na doutrina, há uma nítida predominância de obras francesas, mas o
autor mais citado é o brasileiro José Antônio Pimenta Bueno (9,82%
das referências doutrinárias). O segundo colocado é Joseph-Marie De
Gerando (7,14% das citações de doutrina são dos seus Institutes de Droit
Administratif Français, 1836). Além deles, há também referências a au-
tores da Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra
e Portugal. As referências a normas jurídicas editadas antes de 1822 tam-
bém são relevantes, em especial da legislação portuguesa de antigo regi-
me e do direito romano. Deve-se ressaltar, no entanto, que 27,54% das
referências a essa categoria são realizadas em contexto histórico ou ne-
gativo, o que contribui para redimensionar sua importância na estrutura
argumentativa do autor. Por fim, merecem menção também as referências
à realidade (5,76% do total), com ênfase na “natureza das coisas”, na ex-
periência administrativa estrangeira e na ciência (administração, direito,
economia política e estatística). A jurisprudência é claramente irrelevan-
te, assim como o debate perante a opinião pública no parlamento ou na
imprensa.

g) José Rubino de Oliveira – Epítome de Direito Administrativo se-


gundo o programa do curso de 1884 (1884)

José Rubino de Oliveira nasceu em Sorocaba, em 24 de agosto de


1837. Tem uma trajetória profissional e intelectual diferente dos demais
autores de nossa coletânea: negro, proveniente de família pobre, cedo se
tornou órfão de pai e foi educado pelo padrasto, que comerciava arreios
na “cidade dos tropeiros” e lhe ensinou as primeiras letras. Adotou inicial-
mente a profissão de seleiro, mas se matriculou no Seminário Episcopal
de São Paulo em 1859. Ali, passou quatro anos estudando humanidades
e teologia, disciplinas que o prepararam para a Academia Jurídica de São
Paulo logo após a saída do seminário, em 1864 – estratégia largamen-
te utilizada por sujeitos pobres do século XIX31. Durante a graduação,

31  –  PORTES E CRUZ. op. cit., p. 161.

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

sustentou-se como professor particular, o que o permitiu dar continuidade


aos seus estudos e se formar em 1868. Em 1871, abriu banca de advogado
em Atibaia, mas logo retornou a São Paulo. Na capital, foi reprovado em
oito concursos consecutivos para atuar como professor na Faculdade de
Direito, tendo sido aprovado somente na nona tentativa, em 1879, para a
disciplina de direito natural – quando se tornou o primeiro professor ne-
gro da história da Faculdade de Direito de São Paulo. A sequência de con-
cursos fracassados motivou a publicação das teses que apresentou às ban-
cas de avaliação, sobre direito tributário, direito de família, direito civil e
direito criminal. Em 1882, se tornou catedrático de direito administrativo
e, dois anos depois, publicou a sua Epítome de Direito Administrativo
segundo o Programa do Curso de 1884, redigida para servir como texto-
-base da disciplina. Faleceu em 4 de agosto de 1891, aos 54 anos de idade.

A Epítome de Direito Administrativo tem 243 páginas e 443 cita-


ções, com uma média de 1,82 citações por página. Dividida em cinco
grandes partes, a obra trata do estatuto e da posição científica do direito
administrativo; da ciência da administração; da estrutura da administra-
ção brasileira; dos administrados; e da justiça administrativa. O direito
administrativo é definido com base em Laferrière, para quem é “a ciência
da ação e da competência do poder executivo, das administrações gerais
e locais e dos conselhos administrativos, em suas relações com os interes-
ses ou direitos dos administrados, em face do interesse geral do Estado”32.
Quanto às suas fontes, são identificadas como “fontes próximas” as leis
que regulam as relações entre a administração e os administrados; as
leis concernentes à organização administrativa e às relações hierárqui-
cas entre os seus agentes; os atos regulamentares do poder executivo;
e a jurisprudência administrativa, composta das decisões dos tribunais
administrativos e dos pareceres dos órgãos de consulta da administração.
E são fontes remotas do direito administrativo as leis constitucionais, as
leis ordinárias em geral, os tratados com as potências estrangeiras e as

32  –  RUBINO DE OLIVEIRA, José. Epítome de Direito Administrativo Brasileiro se-


gundo o Programa do Curso de 1884. São Paulo: Leroy King Bookwalter, 1884, p. 5.

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concordatas com a Santa Sé33. A distribuição das referências pode ser


observada no quadro abaixo:
Quadro 7 – Epítome de Direito Administrativo (Rubino de Oliveira, 1844)
Categorias Gerais Categorias Específicas Citações Percentual Total
Constituição do Brasil 122 27,53%
Ato Adicional 68 15,34%
Lei Interpretativa 9 2,03% 339
Legislação Moderna (76,52%)
Legislação Brasileira Moderna 73 16,47%
Regulamentos do Executivo Brasileiro 67 15,12%
Legislação de Outra Nacionalidade 0 0,00%
Doutrina Brasileira 31 6,99%
55
Doutrina Moderna Doutrina Francesa 24 5,41%
(12,41%)
Doutrina de Outra Nacionalidade 0 0,00%
Jurisprudência Jurisprudência Brasileira 0 0,00% 0
Moderna Jurisprudência Estrangeira 0 0,00% (0,00%)
Direito Romano 0 0,00%
Direito Canônico 1 0,22%
Direito Natural 1 0,22% 5
Direito pré-1822 (1,12%)
Ordenações 1 0,22%
Legislação Antigo Regime 0 0,00%
Legislação 1808-1822 2 0,45%
Natureza das Coisas 31 6,99%
Experiência Prática 3 0,67%
Experiência Outros Países 1 0,22%
Ciência 8 1,80% 44
Realidade (9,93%)
Parlamento Nacional 1 0,22%
Parlamento Estrangeiro 0 0,00%
Imprensa Nacional 0 0,00%
Imprensa Estrangeira 0 0,00%
443
TOTAL (100%)

Percebe-se, em primeiro lugar, novamente, a clara predominância da


“Legislação Moderna” (76,52% do total de citações). Surpreendentemente,
nela, se destaca uma das “fontes remotas” do direito administrativo, já
que o conjunto das referências ao direito constitucional abarca 58,70%
da categoria. O restante é composto por referências à legislação brasilei-
ra (21,53% da categoria) e aos regulamentos do executivo (19,76% da
categoria), sem citações da legislação estrangeira. Os dispositivos mais
33  –  RUBINO DE OLIVEIRA. op. cit., p. 18.

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

citados são o art. 102 da Constituição (10,61% das referências consti-


tucionais) e o art. 10 do Ato Adicional de 1834 (9,49% das referências
constitucionais), que tratam, respectivamente, das atribuições do Poder
Executivo e da competência legislativa das Assembleias Provinciais.
A lei mais citada é a de 1º de outubro de 1828, que regula as Câmaras
Municipais (24,65% das referências legislativas) e o regulamento mais
citado é o de 5 de fevereiro de 1842 (32,83% das citações de regulamen-
tos), que contém o regimento do Conselho de Estado.

A doutrina continua importante (12,41% do total), mas ainda mais


importante é o fato de que, pela primeira vez, a doutrina brasileira é mais
citada que a estrangeira, compondo 56,36% das referências doutrinárias.
O autor mais citado é Antônio Joaquim Ribas, cujo Direito Administrativo
Brasileiro (1866) corresponde a 25,45% de toda a doutrina. As obras es-
trangeiras se limitam à doutrina francesa, sem que predomine um autor
específico – o Cours de Droit Public et Administratif (1839) de Firmin
Laferrière corresponde a 10,90% da doutrina.

As referências à realidade também desempenham um papel impor-


tante na Epítome (9,93% do total), e se concentram principalmente na
“natureza das coisas” (70,45% da categoria) e na ciência (18,18% da ca-
tegoria). As citações do direito anterior a 1822 são insignificantes, assim
como o debate na imprensa e no parlamento.

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3 Conclusões
A análise dos dados coletados nos conduz a resultados gerais que
permitem traçar um panorama abrangente das fontes de produção do di-
reito administrativo brasileiro durante o século XIX, conforme o quadro
abaixo:

Quadro 8 – Fontes do Direito Administrativo Brasileiro (Média Geral)

Categorias Gerais Categorias Específicas Percentual Total

Direito Constitucional 14,79%

Legislação Brasileira Moderna 20,08%


Legislação Moderna 71,85%
Regulamentos do Executivo Brasileiro 34,03%

Legislação de Outra Nacionalidade 2,95%

Doutrina Brasileira 1,46%


Doutrina Moderna 9,75%
Doutrina de Outra Nacionalidade 8,30%
Jurisprudência Mo-
Jurisprudência 2,01% 2,01%
derna
Direito pré-1822 Direito pré-1822 7,94% 7,94%

Realidade Realidade 8,38% 8,38%

TOTAL 100%

Verifica-se uma clara predominância das fontes legislativas, em es-


pecial da legislação brasileira e dos regulamentos do executivo, embo-
ra haja uma participação significativa também do direito constitucional.
Percebe-se o nítido interesse da doutrina na análise das atribuições do im-
perador e de seus órgãos auxiliares, o que pode ser compreendido levan-
do-se em consideração as funções desempenhadas pela disciplina na cul-
tura jurídica brasileira do século XIX – de fundação e de estruturação do
Estado brasileiro pelo fortalecimento da posição política do Imperador,
como já se demonstrou anteriormente34. Chama a atenção também, con-
tudo, a importância atribuída às regras de direito criminal como fontes do
direito administrativo, o que talvez se explique pela importância da polí-

34 – GUANDALINI JR., Walter. História do Direito Administrativo Brasileiro: Forma-


ção (1821-1895). Curitiba: Juruá, 2016, p. 253.

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

cia administrativa para as discussões da disciplina, ou pelo simples fato


de se tratar de direito codificado, diante da profusão de normas esparsas
em vigência no período (também não são poucas as citações do Código
de Processo Criminal e do Código Comercial).

A doutrina tem uma importância relativamente pequena, aparecendo


em um distante segundo lugar, apesar das transformações que aparecem
na análise diacrônica. A peculiaridade acentua as diferenças em relação
ao campo do direito privado, no qual Hespanha havia percebido a sua pre-
dominância como fonte jurídica35. Há um nítido predomínio da doutrina
francesa, mas não se verifica a preferência por uma obra em especial. É
possível que a influência francesa se justifique não somente pela impor-
tância e pela vanguarda da doutrina francesa na estruturação do direito
administrativo moderno, mas também pelo fato de o direito administrati-
vo ter sido incorporado à ordem jurídica brasileira essencialmente como
direito científico (e não jurisprudencial ou legislativo), a extrair seus prin-
cipais fundamentos justamente da doutrina de referência do período36. A
doutrina brasileira é pouco importante em face da doutrina estrangeira,
o que é compreensível diante da pequena quantidade de estudos sobre o
direito administrativo em circulação no país.

A pequena proporção de referências doutrinárias também reforça a


profunda influência das teorias francesas sobre o direito administrativo
brasileiro. Como explica François Burdeau37, as primeiras gerações de
administrativistas franceses se distinguiam pelo culto revolucionário à
lei como manifestação da soberania popular, nos termos do que então
propunha o prestigioso pensamento da Escola da Exegese. Incorporando
os padrões argumentativos e os estilos narrativos das suas inspirações
francesas, os autores brasileiros acabam incorporando também os seus

35  –  HESPANHA, António Manuel (2010). Razões de decidir na doutrina portuguesa e


brasileira do século XIX. Um ensaio de análise de conteúdo. In: Quaderni Fiorentini per
la storia del pensiero giuridico moderno, n. 39. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, p. 149.
36  –  A hipótese foi melhor desenvolvida em Guandalini Junior, Walter. A tradução do
conceito de direito administrativo pela cultura jurídica brasileira do século XIX. In: Revis-
ta da Faculdade de Direito da UFMG, nº 74. Belo Horizonte: UFMG, 2019, p. 473-498.
37 – BURDEAU, François (1995). Histoire du Droit Administratif. Paris: PUF, p. 111.

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Walter Guandalini Junior

pressupostos teóricos implícitos, que se manifestam nos interstícios de


seus estudos sobre a matéria.

A jurisprudência é pouquíssimo mencionada, e sempre está restrita


às decisões em consultas ao conselho de Estado. As atas das reuniões não
eram todas publicadas, e o acesso ao seu conteúdo não era simples; na im-
possibilidade de acesso estruturado às decisões do conselho não era pos-
sível tomá-las como fonte de um pensamento científico acerca do direito
administrativo. A doutrina da época se ressentia disso, como demonstra a
crítica de Paulino de Sousa a essa falta de organização38:
As Consultas das Seções e do Conselho de Estado não têm a força e
importância que têm, por exemplo, na França.
Não tem sido coligidos, nem se trata de coligir, as tradições e arestos,
que podem servir, como na França servem, de regra e guia, pelo que a
jurisprudência administrativa contenciosa é entre nós muito arbitrária
e obscura, e apenas acessível aos que têm entrada nas secretarias, e
coragem bastante para desempoeirar maços de papel enormes, onde
tudo jaz sepultado no pó do esquecimento.

As referências a normas jurídicas anteriores a 1822 podem parecer


importantes à primeira vista, mas são citadas em contexto negativo ou de
recuperação histórica, o que mostra que não eram tomadas como fontes
do direito administrativo.

Por fim, as referências à realidade aparecem em terceiro lugar, o


que é significativo, especialmente por ultrapassarem outras fontes de
produção usualmente consideradas mais relevantes pela cultura jurídica
contemporânea (como a própria jurisprudência); trata-se especialmente
de referências à “natureza das coisas”, à ciência e à experiência práti-
ca francesa, o que indica que a “realidade” a que os autores se referiam
era a realidade teórica correspondente às relações objetivas derivadas da
natureza das coisas de que falava Montesquieu39, e não propriamente a
realidade empírica da sociedade e da administração pública brasileira no

38  –  SOUSA, Paulino José Soares. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1862, p. 128.
39 – MONTESQUIEU, Charles Secondat. De L’Esprit des Lois. Paris: Gallimard, 1995,
p. 22.

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

período. Nessa preocupação com a realidade, não há sociologia, que viria


a se tornar importante para o pensamento jurídico brasileiro somente ao
final do século; são recuperações, mais ou menos, sistematizadas de ex-
periências pessoais, abstraídas em reflexões filosóficas sobre as “relações
naturais” existentes entre os fenômenos observados. Essa interpretação
ajuda a compreender também a pequena importância atribuída pelos au-
tores examinados à opinião pública e ao debate político brasileiro como
instrumentos de compreensão de nosso direito administrativo, indicando
o baixo índice de circulação entre “alta” e “baixa” cultura jurídica para a
disciplina.

A análise diacrônica também conduz a algumas conclusões interes-


santes:
Quadro 9 – Razões do Direito Administrativo Brasileiro (1857-1884)

As normas constitucionais aparecem como referências importantes


para a disciplina somente no início e no final do período; uma hipótese
que pode explicar que a discrepância talvez seja, para o período inicial, a
necessidade de criação de um campo disciplinar autônomo para a matéria,
que a torna ainda bastante dependente do direito constitucional; e, para o
período final, as transformações por que vinha passando o direito público
brasileiro na crise final do império e na transição para a República, que
podem ter tornado necessário o retorno ao direito constitucional como
fundamento último da autoridade de governo.

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Quanto às referências à legislação nacional, têm uma tendência de-


crescente, aparentemente resultado de sua progressiva substituição pelos
regulamentos. A tendência parece indicar uma crescente especialização
da disciplina, que se torna cada vez menos dependente da legislação abs-
trata de direito público, e cada vez mais atenta às normas e regulamentos
especiais emitidos pelo executivo – e que constituem, afinal de contas, a
sua essência específica como campo disciplinar autônomo.

As referências à legislação estrangeira também têm tendência de-


crescente, a indicar a progressiva independência da doutrina nacional em
relação ao direito administrativo exógeno, o que se percebe igualmente
na proporção decrescente de referências à doutrina estrangeira e na pro-
porção crescente de referências à doutrina nacional. Vê-se que os dados
indicam, ao final do século XIX, a consolidação da doutrina brasileira
sobre o direito administrativo como saber científico autônomo em relação
aos demais campos de saber jurídico e à doutrina francesa que o havia
inspirado.

As referências à jurisprudência, ao direito anterior a 1822 e à realida-


de se mantêm, de modo geral, estáveis, apesar de variações pontuais em
obras de autores específicos.

Em síntese, a pesquisa realizada chegou às seguintes conclusões so-


bre as “razões” do direito administrativo brasileiro:
Razões do Direito Administrativo Brasileiro – Conclusões Gerais
Brasileiros
Formados em São Paulo
Membros da Alta Burocracia de Estado
Perfil dos Juristas Professores nas Faculdades de Direito
Divididos entre Políticos e Profissionais
Divididos entre Perfil Eloquente e Perfil Cientista
Especialistas
Obras de Maturidade
Características das Obras Obras Especializadas
Voltadas ao público acadêmico e profissional

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As razões do Direito Administrativo
na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884)

Fontes Legislativas
Predominância de Regulamentos do Executivo
Ênfase nas atribuições do imperador
Importância do direito constitucional no início e no final do período
Transição da doutrina francesa para a doutrina brasileira
Fontes do Direito
Irrelevância da jurisprudência
Direito anterior a 1822 como contexto histórico
Atenção à “natureza das coisas”
Sem diálogo com a “baixa cultura jurídica”
Influência da Escola da Exegese

Texto apresentado em maio de 2019. Aprovado para publicação em


outubro de 2019.

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