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Ano Letivo 2020/2021

História do Direito
Português

Mariana Martins Ferreira


Rute Fernandes da Silva

Resumo realizado com base em:


• Apontamentos de aulas teóricas do Doutor David Magalhães;
• Apontamentos de aulas práticas;
• Bibliografia da cadeira:
▪ História do Direito Português, 5.º Edição, Almedina,
Mário Júlio de Almeida Costa.
Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

Contextualização
Há duas disciplinas que se dedicam a todas as áreas do saber: a história e a
filosofia. São comuns a todas as áreas do saber porque o seu objetivo de
incidência é a totalidade da existência humana, enquanto as outras disciplinas
estudam apenas áreas sectoriais. O direito regula e estuda as normas e regras
que regem a vida em comunidade e também a história surge como um ramo
autónomo.

História do Direito
▪ Disciplina que descreve e explica o Direito do passado nos seus
múltiplos aspetos, i.e., qual foi o passado do direito.
▪ Isto engloba duas vertentes: estudo do direito atual numa perspetiva
histórica (historicamente estudado, ou seja, os precedentes do direito
que permanece na atualidade), e o estudo do direito, das figuras do
direito, que já tenham sido superadas ou abolidas (i.e., o que foi direito
no passado e hoje em dia já não é).

Objeto ou conteúdo da História do Direito


Sobre o que incide o estudo jurídico-histórico? Qual a matéria estudada pela
história do direito? Pode dividir-se em três:
1. As fontes – história das fontes;
2. As instituições – história das instituições;
3. O pensamento jurídico – história do pensamento jurídico.

História das fontes:


A expressão fontes do direito pode assumir vários sentidos:
▪ Sentido filosófico: quando se fala em sentido filosófico trata-se do
fundamento ou validade ou obrigatoriedade do direito. Estamos no
domínio da história da filosofia do direito.
▪ Sentido político: entendemos as fontes do direito como os órgãos de
onde emanam as normas jurídicas, os que as produzem. Estamos no
âmbito da história do direito político e constitucional.
▪ Sentido técnico-jurídico ou formal: trata-se dos modos de formação e
revelação do direito (no DR, as fontes manifestandi). O objetivo é saber
se, no momento histórico em que se estuda as normas jurídicas, estas
provêm da lei, do costume, da jurisprudência ou da doutrina, isto é, se
o modo da formação das normas é legislativo, costumeiro, doutrinal ou
jurisprudencial.

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▪ Sentido material ou instrumental: trata do estudo dos textos onde se


encontram as normas jurídicas, nomeadamente, diplomas onde se
encontrem as normas jurídicas (ex.: estudo do Corpus iuris civilis).
▪ Sentido sociológico: trata-se de apurar as razões que foram a causa
das normas jurídicas, isto é, as causas/motivos próximos dessas normas
jurídicas terem aparecido. Estudam-se as causas sociais, de vida social.

História das instituições:


▪ Trata-se do estudo do direito tal como ele se encontra nas normas das
diferentes épocas.
▪ Procuramos no conteúdo das próprias normas jurídicas como é que elas
contêm o direito.
▪ Importa, neste âmbito, averiguar se o que essas normas dispuseram
teve efetiva aplicação, se realmente se efetivaram na prática. Neste
sentido, distinguimos law in books e law in action.
▪ Law in books: o que está previsto nas normas;
▪ Law in action: conteúdo que tem efetiva aplicação.

História do pensamento jurídico:


▪ Consiste no estudo da atividade científico-cultural, bem como prática,
que sempre acompanha o direito.
▪ Aqui estuda-se a atitude mental do jurista na sua tarefa de
intermediação entre os princípios e normas jurídicos e o caso concreto.
▪ A forma de analisar as normas e princípios jurídicos é sempre decisiva
para o resultado que depois se vai obter na sua concretização.
▪ É nessa atitude mental do jurista que temos a história do pensamento
jurídico.
▪ Surge aqui a análise da formação dos juristas (ensino do direito) e das
correntes doutrinais que se foram sucedendo ao longo do tempo.

Sistemas/Famílias do Direito
▪ Cada ordem jurídica tem as suas especificidades. Contudo, uma análise
dos conceitos, técnicas e princípios de cada ordem jurídica permite
verificar uma convergência dos diversos direitos, em famílias ou
sistemas jurídicos, dada a proximidade dos seus traços característicos.
▪ Isto é, apesar das especificidades, há ordens jurídicas que têm traços
característicos próximos e, portanto, ao analisá-las vemos que são
ordens jurídicas próximas e que podem ser agrupadas no mesmo

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▪ O aparato técnico de conceções jurídicas, derivadas do DR, foi


depois acompanhado por uma consciência jurídica influenciada
pelo Cristianismo.
▪ Ex.: direito da igreja, que serviu sempre como uma espécie de
correção para as soluções técnicas do DR.
3. Elemento germânico:
▪ Legou certas compreensões que ajudaram a modelar a formação
dos estados europeus na Idade Média, nomeadamente, ao nível
da organização política e social – certas compreensões sociais e
políticas dos povos germânicos que se tinham instalado no
império romano.

Formação e evolução da ciência da História do Direito


Português:
▪ Antes do século XVIII não faz muito sentido falar de história do direito,
uma vez que até esse século o direito romano e até o direito canónico
eram encarados como direito positivo, ou seja, direito vigente.
▪ As raízes do nosso sistema jurídico (romanas e cristãs) ainda eram o
direito que se aplicava no dia a dia, não eram objeto de um estudo
histórico, porque não eram passado – eram presente.

▪ No século XVI, no renascimento, já há uma certa valorização do estudo


histórico, porque a visão renascentista é uma visão de análise histórica
do que se tinha passado na antiguidade e até de recuperação desses
valores da antiguidade.
▪ André de Resende começa a estudar o DR numa perspetiva histórica
para fazer uma contraposição entre o direito romano clássico e o direito
romano que tinha sido recebido na idade média (o direito romano
justinianeu, do corpus iuris civilis).
▪ Este precedente renascentista não deu frutos imediatos. Ao longo do
século XVII e início do XVIII ainda se estudava sempre o Direito Romano
como direito vigente, positivo.

▪ No século XVIII surge uma disciplina de história do direito porque, por


influência do racionalismo e do iluminismo criam-se as condições para
que também o direito começasse a ser estudado numa perspetiva de
aspeto histórico, que podia ser analisado pela sua evolução do passado.
▪ O racionalismo é um movimento comprometido com aspetos
metodológicos e formais, i.e., um movimento de explicação racional de
factos, de explicar as consequências dos fenómenos, e no direito isso
exige um conhecimento histórico.

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▪ Esta visão experimentalista no direito conduz a uma análise histórica,


análise das causas das normas.
▪ Assim, é no século XVIII, com o racionalismo e com o iluminismo, que o
direito passa a ser visto como possível objeto de uma análise histórica.

▪ Isto projeta-se em Portugal, no governo de D José I.


▪ Em 1772, quanto ao ensino jurídico, consagraram uma disciplina de
história do direito, comum às duas faculdades jurídicas que existiam: a
faculdade de leis e a faculdade de cânones.
▪ Em 1778, cumprindo as diretivas desses estatutos, de que todas as
disciplinas deviam ter um manual, foi publicado o primeiro manual de
História do Direito Português, para acompanhar as lições dessa cadeira.
Este manual deve-se a um ilustre jurista, Mello Freire. Este é o pai da
ciência da história do direito português.

▪ A partir desta fase, os estudos jurídicos históricos intensificaram-se e, no


século XIX, merece destaque o nome de Alexandre Herculano, um
importante historiador, que levou a cabo uma renovação dos estudos
históricos em Portugal, trazendo ao de cima os métodos científicos
fundamentais do estudo histórico. Este presidiu também um trabalho
de consulta e organização de fontes jurídicas, um trabalho de recolha
de fontes.
▪ Com bases nestas, realizou um estudo científico muito importante,
identificando os factos significativos na evolução histórica do país ao
longo dos séculos, dentro desta perspetiva científica. Herculano vai
enquadrar estes dados em épocas histórico-culturais e não por
reinados.

▪ Entre o século XIX e XX merece destaque uma figura: Henrique de


Gama Barros.
▪ Se até aqui se estudava predominantemente as fontes, com Gama
Barros, também se passou a estudar as instituições. Não só estudando
as normas jurídicas, como também o conteúdo (o modo como o direito
se encontra nas fontes).
▪ Com Gama Barros, há uma plenitude da história do direito como
disciplina e como objeto completo de estudo, quer das fontes, quer das
instituições.

▪ No século XX, Paulo Merêa (opôs algumas visões de Herculano),


precedeu a uma cuidadosa análise critica das normas jurídicas e da
história das instituições e do pensamento jurídico – História do direito
integral. Este foi um grande aperfeiçoador da história do direito.

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▪ Estes passos foram seguidos por seu discípulo Guilherme Braga da


Cruz, que é o Mestre do Mário Júlio Almeida Costa (mestre do doutor
que colabora com o livro e é mestre do diretor de Coimbra).

Análise das relações entre a HDP e o Direito Peninsular:


▪ Só se pode falar em direito português e numa História de Direito
Português quando há Portugal.
▪ Em rigor, a HDP só começa em 1140, com a fundação da nacionalidade,
mas evidentemente havia, muito tempo antes disso, com o direito
peninsular.
Direito peninsular (direito antes da fundação da nacionalidade):
Podemos dividir em vários períodos:
1. Período primitivo: dos vários povos que estiveram na península, p.e.,
celtas, fenícios, cartagineses, entre muitos outros. Não temos as suas
fontes.
2. Presença dos romanos: com a sua presença tenderam a vigorar as
fontes de DR de aplicação geral, embora obviamente fosse uma
vigência muito restrita das fontes, existindo até fontes peculiares. Aqui
nunca se terá aplicado na sua plenitude o Direito Romano Clássico.
3. Período germânico: as invasões bárbaras trouxeram as suas
influências, através dos seus costumes, preceitos consuetudinários, de
raiz popular e até as chamadas leis romanas dos bárbaros, i.e.,
coletâneas jurídicas com influências do DR, nomeadamente, o código
visigótico de 654.
4. Período da reconquista cristã: temos uma mistura de elementos
(germânico, muçulmano, hebraico).
A influência germânica pode ver-se na figura dos ordálios e dos juízes
de Deus, que se tratava de práticas de meios de prova, baseados em
provas físicas, que consoante os seus resultados se via se Deus
demonstrava a veracidade ou a falsidade dos factos. Temos, por
exemplo, a prova caldária (meter a mão num caldeirão quente) e prova
do ferro candente (mão a segurar um ferro incandescente). Consoante
a pessoa conseguisse superar essas provas, considerava-se que estava
provada a veracidade dos factos.
Como influência muçulmana vemos a figura da terça. Numa herança, o
falecido podia dispor livremente de um terço dos seus bens e fazer
deles aquilo que quisesse, o restante ia obrigatoriamente, para a família.
Essa figura subsistiu no direito português até 1910.

Periodização do Direito Português


1. Período da individualização do direito português:

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▪ Situa-se entre 1140 e 1248.


▪ Inicia-se em 1140 (a data da fundação da nacionalidade, data em D.
Afonso Henriques se intitula rei de Portugal) e termina em 1248, no
início do reinado de D. Afonso III.
▪ Período de independência política, mas essa independência não
envolveu imediatamente uma independência jurídica, uma autonomia
jurídica.
▪ Manteve-se o sistema jurídico herdado do reino de Leão, do qual
Portugal se separou.
▪ Só progressivamente foram surgindo fontes jurídicas tipicamente
portuguesas.
▪ Tem uma base consuetudinária e foraleira. A base do direto neste
período é composta pelos costumes e pelos forais (diplomas locais).
▪ Época marcada pelo empirismo jurídico, direito empírico, direito da
experiência quotidiana (não de grande elaboração científica, mas sim o
direito que ia sendo construído na experiência do dia a dia).
▪ Surge com grande importância a atividade dos tabeliães. Os tabeliães
eram oficiais públicos que exerciam funções correspondentes às que
hoje são exercidas pelos notários. Perante estes praticavam-se
inúmeros atos jurídicos, p.e., contratos, negócios unilaterais. Foi devido
a esta atividade que se construiu parte do direito aplicável naquela
altura.
2. Período do direito português de inspiração romano-canónica:
▪ Situa-se de 1248 a 1769-72.
▪ Este período é a época da penetração e da vigência em larga escala do
chamado direito comum, que se chama assim porque é o sistema
jurídico comum a todos os territórios europeus, e que é composto pelo
DR justinianeu (CIC) e pelo direito canónico (igreja católica).
▪ Encerra-se em meados do seculo XVIII e é marcado pela penetração do
chamado direito comum. Este período divide-se em duas épocas:
▪ 1248 a 1446-47: Época do direito comum, ou seja, do direito
romano renascido e do direito canónico renovado, marcado
pela receção do direito romano, pela penetração do Corpus Iuris
Civilis na Península Ibérica.
▪ É uma época caracterizada pela penetração e vigência do
direito comum. O estudo desse direito comum foi iniciado
pela escola dos comendadores que foram responsáveis
pelo renascimento do direito romano. Há ainda, uma
renovação do direito canónico. Isto contribui para a
formação do direito comum que é um sistema jurídico de
fundo romano que constitui o essencial da experiência
jurídica europeia até ao seculo XVIII.

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▪ 1446-47 a 1769-72: Época das ordenações: Surgem ordenações


– sucessivas coletâneas de normas gerais aplicáveis a todo o
reino com influência do direito romano comum. Ordenações
Afonsinas de 1446/47.
▪ Iniciam-se em 1446-47 – data do início de vigência das
Ordenações Afonsinas – foram a primeira compilação
oficial de preceitos jurídicos aplicáveis a todo o país. As
ordenações eram muito lacunosas e incompletas, então
recorria-se ao DR e ao direito canónico para resolver os
casos que não tinham solução no sistema jurídico
português.
3. Período da formação do direito português moderno:
▪ Situa-se desde 1769-72 até à atualidade.
▪ O seu início coincide com o consulado do marquês de Pombal e
apontam-se estas datas porque são as datas de dois diplomas
legislativos muito importantes: 1769 – foi promulgada a lei da boa razão
(que introduziu amplas alterações na ciência jurídica e na prática do
direito); 1772 – promulgados os estatutos novos da UC, em que se
introduziram mudanças revolucionárias no ensino do direito.
▪ Tem 3 subperíodos:
1. Época do jusnaturalismo racionalista:
▪ Situa-se entre 1769-1772 e 1820 (data da revolução
liberal);
▪ É uma época marcada pelas correntes do direito natural
racionalista e do iluminismo.
▪ O direito natural é aquele ideal, conjunto de normas que
deve servir de modelo ao direito positivo.
▪ O direito natural racionalista baseia-se na razão do homem
(e não em valores transcendentais - divindade) e no
iluminismo (introduz o ideário dos direitos fundamentais,
limitação do poder do estado, etc.)
2. Época do individualismo:
▪ Inicia-se com o advento do liberalismo em Portugal em
1820 e subsiste até à primeira metade do seculo XX.
▪ Nesta época inicia-se o movimento da codificação (os
ramos do direito serem regidos por um código).
▪ Marcada pelo liberalismo político e económico,
positivismo jurídico e movimento da codificação do
direito.
3. Época do direito social:
▪ Inicia-se por volta da Primeira Guerra Mundial (1914-18),
embora em Portugal legislativamente só se desenvolva
plenamente no fim dos anos 20 e início de 30.

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▪ É uma época que se desenrola até aos nossos dias e que


se pode assinalar uma maior intervenção do estado ao
nível social e uma maior limitação da autonomia privada.

PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS

Fontes de Direito

Fontes de direito do reino de Leão:


▪ No início da nacionalidade continuaram-se a aplicar as fontes jurídicas
herdadas do reino de leão.
Fontes de direito do reino de Leão que se mantiveram em vigor em Portugal:
1. Código visigótico;
2. Leis dimanadas de cúrias ou concílios em Leão, Coiança e Oviedo;
3. Forais de terras portuguesas anteriores à independência;
4. Costume.

1. Código visigótico:
▪ Compilação de preceitos datada de 654, fortemente influenciada pelo
DR anterior ao CIC (justinianeu) e que vigorou no reino visigótico.
▪ Continuou durante o período da reconquista e chegou a vigorar até à
independência de Portugal.
▪ Durante o seculo XII o código visigótico mantém-se em vigor na área
geográfica correspondente ao reino de Portugal.
▪ É frequente a sua citação em documentos da época e por isso é legítimo
concluir que durante esse período ainda foi fonte de direito usada no
reino português.
▪ Desde o início do século XIII essas referências começam a desaparecer
e, portanto, deixa de ser utilizado, i.e., deixa de ter vigência como fonte
de direito.

2. Leis dimanadas em Cúrias ou em Concílios que se reuniram


em Leão, em Coiança e em Oviedo:
▪ Antes da formação da nacionalidade reuniram-se cúrias e concílios nos
quais foram promulgadas leis, ou seja, normas e preceitos gerais
aplicáveis a todo o território a que se destinava.
▪ Cúrias:
▪ A cúria era um órgão auxiliar do rei, em que se reuniam com o rei
representantes das três classes sociais (clero, nobreza e povo);

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▪ Dessas reuniões saiam leis;


▪ A cúria tem uma influência da áurea régia dos reis visigóticos;
▪ Mais tarde, as cúrias deram origem às Cortes que o rei convocava
para se reunir com os representantes de cada classe social. A
grande diferença é que nas Cortes os representantes das classes
podiam tomar a iniciativa de levar ao rei assuntos que queriam
ver decididos (agravamentos). Na cúria isso não existia.
▪ Concílios:
▪ Tinham natureza eclesiástica;
▪ Eram reuniões da igreja.

▪ A distinção entre cúrias e concílios era complicada de fazer, uma vez


que os concílios chegaram a ser convocados pelos reis e participavam
leigos, portanto, é difícil distinguir se se trata de uma cúria ou de um
concílio. Em todo o caso, alguns critérios são usados para fazer a
distinção:
▪ A entidade convocante: se for o rei, provavelmente trata-se de
uma cúria; se for entidade eclesiástica, provavelmente estamos
perante um concílio;
▪ As matérias tratadas: se fossem matérias ligadas à igreja,
provavelmente estamos perante um concílio;
▪ A sanção canónica ou régia: se as leis eram sancionadas
aprovadas num âmbito temporal ou espiritual; como era
sancionado – se era o rei ou a igreja.
▪ Atendendo a estes critérios, parece possível falar-se da cúria de Leão
(1017) e dos Concílios de Coiança (1055) e Oviedo (1115).

▪ As leis emanadas destes continuaram a ter aplicação no Reino de


Portugal, após a independência.
▪ Sabemos disso pois, as disposições gerais (leis) saídas da Cúria de Leão
e do Concílio de Coiança, estão presentes em cartulários portugueses
da época.
▪ Portanto, se não fosse necessário a sua aplicação certamente que não
apareciam em documentos jurídicos dessa época. Por outro lado, as leis
saídas do concílio de Oviedo foram ainda juradas por Dona Teresa e D.
Afonso Henriques.

3. Forais de terras portuguesas anteriores à independência


▪ Os forais que tinham sido concedidos a terras do reino de Portugal,
ainda antes de independência, continuaram a ter plena vigência após a
independência.
▪ Aliás, os monarcas do reino de Leão atribuíram muitos forais a terras
que viriam a ser do Reino Portugal, p.e., o foral de Paredes, de Penela,
de Santarém etc.

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Cartas de privilégio: As cartas de privilégio eram diplomas que criavam, para


certas comunidades, uma disciplina jurídica específica e mais favorável do que
a comum. Dentro destas, podemos falar das cartas de povoação e dos forais.

▪ Cartas de povoação:
▪ Numa primeira fase temos as cartas de povoação, que são as
mais antigas, anteriores aos forais
▪ Eram um instrumento jurídico rudimentar em que o rei, o senhor
da terra ou uma entidade eclesiástica, relativamente à terra sob
o seu domínio, dirigia-se em termos abstratos para se fixar
naquela terra mediante a adesão às condições que estavam
naquele documento.
▪ Isto era tanto para terras despovoadas como também para
núcleos populacionais já instalados, mas em que se queria atrair
mais mão-de-obra (era quase um convite).
▪ Forais:
▪ Numa segunda aparecem-nos diplomas locais que eram mais
desenvolvidos: os forais.
▪ Embora seja difícil a distinção entre cartas de povoação e forais,
porque não existiu uma queda de continuidade entre uma e
outra sendo uma evolução impercetível, podemos dizer que os
forais eram mais complexos.
▪ Era um diploma concedido pelo rei, por um senhor laico ou por
uma entidade eclesiástica, a uma determinada terra/localidade
sob a qual tinham o seu domínio.
▪ Este diploma continha as regras que disciplinavam as relações
entre os habitantes e a entidade que outorgava e concedia o foral
ou até as relações dos habitantes entre si.
▪ Este visava disciplinar a vida social daquela localidade.

Conteúdo dos forais:


▪ Regulavam essencialmente matérias de Direito Público (p.e., liberdades
e garantias das pessoas e dos bens dos habitantes; impostos e outros
tributos devidos pelos habitantes à entidade; penas aplicáveis pela
prática de delitos; serviço militar; o aproveitamento dos terrenos
comuns – baldios; matérias processuais, nomeadamente as provas
judiciais, citações, arrestos, fianças).
▪ No entanto, larga parte do direito público continuou a ser regido por
costumes.
▪ O Direito Privado estava quase completamente ausente do conteúdo
dos forais.

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Debate sobre a distinção de cartas de povoação e forais:


▪ Alexandre Herculano tinha a opinião que só se tratava de um foral
quando o diploma em causa conferisse existência jurídica a um
município – o município seria criado quando se concedia uma
magistratura própria e privativa daquela terra.
▪ Paulo Merea discordou completamente desta visão de Herculano, uma
vez que considera que há exemplos nas fontes de municípios que ainda
não tinham magistratura e, por outro lado, de pequenas povoações que
já tinham juízes e que não eram municípios. Não existia essa
coincidência entre existência de um município e existência de uma
magistratura própria e privativa daquele município.

4. Costume
▪ O costume regulava todos os domínios jurídicos, embora no direito
público já houvesse os forais que tiravam alguma exclusividade ao
costume.
▪ Era a fonte mais importante de direito na época, muito especialmente
no direito privado.
▪ Os costumes herdados da monarquia leonesa mantiveram-se no reino
de Portugal após a independência.
▪ Convém, contudo, ter em atenção que, quando se fala em costume
neste período, nos referimos a um costume em sentido muito amplo.
▪ Este abrange quer o costume em sentido rigoroso (prática constante e
reiterada pelos membros de uma determinada comunidade,
acompanhada de uma convicção de obrigatoriedade), quer também
ainda todas as fontes de direito tradicional sem carácter legislativo.
▪ Ou seja, além do costume em sentido rigoroso, abrangia ainda as
decisões judiciais (a jurisprudência – atividade dos tribunais –
nomeadamente, as sentenças da cúria régia e, até, sentenças de juízes
municipais e arbitrais e, ainda, doutrina, com pareceres de juristas
consagrados), ou seja, fontes de direito tradicional sem caráter
legislativo.

Fontes de direito posteriores à fundação da nacionalidade


1. Leis gerais dos primeiros monarcas;
2. Forais concedidos após a fundação da nacionalidade;
3. Concórdias e concordatas;

1. Leis gerais dos primeiros monarcas:


▪ A atividade legislativa dos reis neste período foi muito escassa.

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▪ Recordemos que ainda estávamos em período de guerras constantes e


havia guerras em duas frentes (primeiro com Castela e Leão, para
consolidar a independência e também face aos muçulmanos, a quem
se queria, continuamente, conquistar território.).
▪ Portanto, obviamente que a atividade legislativa não era uma prioridade
dos reis, o que justifica a escassez de leis.
▪ Em todo o caso, embora pouco, alguma coisa os nossos primeiros
monarcas legislaram.
▪ Por exemplo, há conhecimento indireto, através de Bulas papais, de
uma lei de D. Afonso Henriques sobre as barregãs dos clérigos
(mulheres que vivem em situações ilícitas com os padres). Aqui, terá
promulgado uma lei que estabelecia a prisão dessas mesmas mulheres.
▪ Por outro lado, também se reconhece uma lei isentando do serviço
militar o clero, exceto em situações de invasão muçulmana, levada a
cabo por D. Sancho.
▪ D. Afonso II tem uma atividade legislativa relevante neste período. Este
convocou e presidiu uma reunião da Cúria realizada em Coimbra
em1211, da qual saíram várias disposições que, pela sua natureza de
providências gerais, se podem considerar leis.
▪ Nessas leis saídas da Cúria de Coimbra de 1211 assumiu grande
relevância uma preocupação de proteção do povo contra abusos,
nomeadamente, aqueles praticados por funcionários régios (p.e.,
quando ficavam com bens que não eram deles.
▪ Por outro lado, vê-se a preocupação de proibição da vindictio privada
(justiça privada) e de chamar os tribunais na resolução desses conflitos.
▪ Refira-se, também, uma lei que proibia os casamentos forçados e outra
lei que estabeleceu a inviolabilidade do domicílio.
▪ Ainda há outra lei que proibia aos cavaleiros que tomassem bens aos
vilãos (os habitantes que não tinham esse estatuto).
▪ Estas leis, da Cúria de Coimbra, têm um mote geral de impedir
situações de opressão das populações e de uso da forca nas relações
entre os particulares.
▪ Toda esta legislação é produto da Cúria (não é mera vontade do rei)
porque o rei só promulgou a legislação depois de ouvidas e discutidas
as questões pela cúria – poder central fraco, só atuava mediante o
consenso das várias classes sociais.

2. Forais concedidos após a fundação da nacionalidade:


▪ Estamos numa época em que não havia poder político central forte –
havia centros dispersos de poder. Os reis estavam ocupados com
tarefas militares (proteger território e conquista de terras aos mouros).
▪ Boa parte da vida social era regulada pelos forais. Os forais e cartas de
povoação continuaram a ser abundantes, sendo concedidos em grande
número.

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▪ Mesmo neste período da individualização do direito português, os


forais continuavam com uma grande e crescente importância na
regulação/disciplina do direito público.

3. Concórdias e concordatas
▪ Eram acordos celebrados entre o rei e as autoridades eclesiásticas.
▪ Estamos a falar de uma época em que o poder central (reis) era fraco e
a Igreja era uma instituição fortíssima – era a maior proprietária de terras
e a mais rica.
▪ Devido à mentalidade da época o poder espiritual era notório e,
portanto, com o poder régio fraco e com o forte poder da igreja havia
frequentes conflitos entre os dois poderes.
▪ Estes acordos visavam, então, pôr fim ou evitar estes conflito,s através
do reconhecimento mútuo de deveres e obrigações entre o rei e a
igreja.
▪ Concórdias: quando esses acordos eram celebrados pelos reis e pelas
entidades eclesiásticas nacionais;
▪ Concordatas: quando eram celebrados entre o rei e o Papa (hoje em
dia mantém-se entre os Estados e a Santa Sé).

Sistema jurídico
▪ Era marcado por um direito de base consuetudinária, onde o costume
regulava grande parte da vida social e em que as fontes (cartas de
povoação e forais) tinham grande importância na regulação do direito
público.
▪ Por isso, referimos que o direito português tinha uma base
consuetudinária e foraleiro.
▪ A vida jurídica era regulada pela atividade jurídica do quotidiano, pelo
empirismo, pela experiência jurídica que ia surgindo – não havia um
corpo de normas que se pudesse indicar como reguladora dos
institutos jurídicos.
▪ Para saber como se praticava o direito tem de se recorrer ao que ia
saindo da atividade dos tabeliães (atualmente têm funções iguais aos
notários); o que ia sendo criado pelos tabeliães quanto a contratos e
negócios jurídicos (antes do corpus iuris civilis não se pode falar de um
corpo jurídico).
Assumiu grande importância neste período um conjunto de contratos que
foram traves-mestres da vida económico-social nesta reta final da idade média.
Alguns eram contratos de exploração agrícola e outros contratos de crédito.

Contratos de exploração agrícola


▪ No âmbito destes contratos vamos indicar dois que assumiram grande
importância:

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1. Enfiteuse;
2. Complantação

▪ Ambos os contratos visavam a conceção de terra de uma pessoa a outra


pessoa para que ela cultivasse essa terra.
▪ A importância económica e até o objetivo social presente nesses
contratos é evidente.
▪ Neste período, a atividade agrícola era a principal atividade económica
e era necessário garantir a quem trabalhava na terra condições para que
o pudesse fazer.
▪ Este período era um período de pressão demográfica, se cresce a
população é preciso o aumento da produção, portanto, havia uma
grande necessidade de atrair pessoas para o trabalho agrícola.
▪ Estes contratos vão, precisamente, levar a que sejam asseguradas
condições ao agricultor para com estabilidade poder levar a cabo
praticas agrícolas.
▪ De um ponto de vista jurídico até se pode assinalar um princípio/ideia
de conquista do terreno pelo trabalho agrícola – ou seja, retribuir o
trabalho agrícola através da aquisição de terra pelo agricultor.
▪ Este era um modo de incentivar a atividade agrícola com a conquista de
terra por quem a trabalhava.

1. Enfiteuse
▪ Através da enfiteuse, o proprietário de um prédio (terreno), o senhorio,
concedia a um agricultor a exploração de um terreno com carácter
vitalício ou hereditário.
▪ O agricultor era conhecido como foreiro ou enfiteuta.
▪ O foreiro ou enfiteuta ficava obrigado a fazer um aproveitamento
diligente da terra, ou seja, a cultivá-la de forma cuidadosa para dar o
maior rendimento possível.
▪ Ficava também obrigado a pagar ao senhorio uma prestação anual,
denominada de foro ou cânon, que consistia numa parte dos frutos
produzidos na terra.
▪ Juridicamente entendia-se que havia aqui um desmembramento da
propriedade, ou seja, do domínio, que acabava por ficar dividida.
▪ Para o senhorio ficava o domínio direto e para o enfiteuta ficava o
domínio útil. Ambos eram vistos com partes do domínio pleno.
▪ O domínio direto era o direito de receber a prestação anual e o domínio
útil era a posição jurídica do enfiteuta, que tinha a obrigação de cultivar
o prédio e de pagar a prestação anual ao senhorio.
▪ Atentamos que isto é uma divisão jurídica e não física. O prédio tinha
de ser todo cultivado pelo enfiteuta de qualquer forma. Simplesmente,

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

juridicamente, entendia-se que a propriedade era fracionada entre


esses domínios.

▪ O foreiro ou enfiteuta poderia transferir o domínio útil de um prédio a


um terceiro e esse passava a ficar ele, com as prerrogativas e obrigações
inerentes ao domínio útil. Se ocorresse essa situação e este transmitisse
este domínio útil, o senhorio tinha dois direitos em alternativa: o direito
de preferência ou o direito ao laudémio:
▪ Direito de preferência: era o direito que o senhorio tinha de,
pagando ao enfiteuta a mesma quantia que um terceiro iria
pagar, adquirir o domínio útil (voltava-se a ter o domínio ou
propriedade plena). Isto implicava que o foreiro notificasse o
senhorio dizendo que pretendia transferir o domínio útil para um
terceiro. O senhorio poderia ficar com este direito útil, pagando
a mesma quantia que o terceiro pagaria caso tivesse interesse em
ficar com a propriedade (se o terceiro pagasse 1000, o senhorio
pagaria 1000 também).
▪ Direito ao laudémio: Se o senhorio não tivesse interesse em ele
mesmo explorar a terra, fazia-se o negócio de transmissão com o
terceiro. Contudo, aí o enfiteuta tinha de pagar ao senhorio 2%
do que recebesse: o chamado laudémio.
Exemplo:

2. Complantação
▪ Contrato através do qual o proprietário de um prédio concedia a sua
exploração a um agricultor, para que o agricultor fertilizasse esse
terreno.
▪ Portanto, tratava-se de um contrato que incidia muito especialmente
sobre terrenos que estivessem por cultivar.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ Essa fertilização era feita através da plantação de espécies duradouras,


como vinhas e oliveiras.
▪ Normalmente, estabelecia-se que a conceção do prédio duraria um
prazo variável, mas que em regra ia de 4 a 8 anos.
▪ No final desse prazo dividia-se o prédio pelos contraentes. Fazia-se uma
divisão material em partes iguais – o proprietário e o agricultor dividiam
entre si materialmente o prédio, ficando cada um com metade.
▪ Ambas as partes tinham interesse na celebração deste contrato.
▪ Apesar de o anterior proprietário exclusivo ficar sem metade do prédio,
antes tinha apenas um terreno baldio (um terreno por cultivar). Pelo
que, embora fique agora com um terreno mais pequeno, fica com um
terreno que já está pronto para produzir.
▪ O agricultor, por sua vez, graças ao seu trabalho e ao seu esforço fica
com a propriedade de terra que lhe corresponde.
▪ Também neste contrato, se vê (talvez até melhor do que no enfiteuse) a
conquista da propriedade pelo trabalho.
Exemplo:

Contratos de crédito
Os contratos de crédito também tiveram grande importância económico-
social neste período da individualização.
▪ Tinham também a terra como objeto mas, apesar disso, têm uma
finalidade primordial de financiamento ou de conceção de crédito.
▪ No fundo, a terra acaba por ser uma forma de se alcançar a conceção
de financiamento ou de crédito.
▪ Veremos dois tipos de contratos de crédito.

1. Compra e venda de rendas (ou censo consignativo)


▪ Neste contrato, o proprietário de um prédio, que estava carecido de
capitais (que não tinha dinheiro), recebia de outra pessoa, uma

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

determinada quantia monetária. Mas, recebia-a a título definitivo, ou


seja, não a tinha de restituir (“a quantia para sempre recebida”).
▪ Isto, desde logo, afasta a natureza de mútuo deste contrato. Não era um
mútuo porque não há a obrigação de restituir a quantia, o que não
acontece neste contrato.
▪ O que o proprietário tinha como obrigação era o pagamento de uma
prestação monetária anual a quem lhe tivesse concedido o dinheiro.
▪ Essa prestação monetária anual era estabelecida como um encargo
sobre o prédio, ou seja, como um ónus real – um encargo sobre a res.
▪ Portanto, se o proprietário do prédio que recebeu o capital, mais tarde,
transferisse a propriedade do prédio a um terceiro, era esse terceiro,
como novo proprietário do prédio, que tinha de pagar a prestação
monetária anual a quem lhes tinha fornecido o capital. Isto porque, a
prestação monetária anual era vista como um encargo sobre o imóvel
e, portanto, tinha de ser satisfeito por quem fosse proprietário do
imóvel. Se a propriedade fosse transferida era sempre o novo
proprietário que tinha de pagar a quantia.
▪ Este contrato, em boa medida, visava contornar a proibição canónica
do empréstimo dinheiro a juros. A Igreja Católica via o empréstimo do
dinheiro a juros como algo pecaminoso e, portanto, havia uma
proibição desse negócio que, devido à grande influência que a Igreja
Católica tinha na sociedade europeia naquele tempo, era uma
proibição que se praticava no domínio temporal. A compra e venda de
rendas visava contornar essa proibição.
▪ As prestações monetárias anuais que fossem pagas ao concedente do
dinheiro acabavam, a certa altura, por lhe permitir receber mais do que
aquilo que tinha concedido. Por isso, acabava por ser uma recuperação
do capital dado + juros.

Exemplo:

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

2. Penhor imobiliário
▪ Contrato através do qual uma pessoa recebia de outra uma
determinada quantia de dinheiro e em contrapartida cedia-lhe um
prédio.
▪ O prédio só seria restituído ao seu proprietário após o pagamento da
dívida.
▪ A pessoa que tinha cedido o dinheiro e que ficava com o prédio ia
desfrutando do prédio. Era frequente estabelecer que esse desfrute ia
amortizando a dívida e, portanto, como quem tinha concedido o
dinheiro já tinha tido algum desfrute do prédio, depois já lhe teria que
ser restituído uma menor quantia uma vez que já teria compensado
através do desfrute do prédio – através do seu uso e da colheita de fruto
que o prédio produzisse.

PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA

▪ Abre com a época da receção do direito romano renascido e do direito


canónico renovado ou direito comum, que se desenrola entre 1248
(com o reinado de D. Afonso III) e 1446-47 (com as Ordenações
Afonsinas.
▪ A receção do direito romano renascido e do direito canónico renovado
são dois fenómenos que marcaram profundamente esta época.

Direito romano renascido


Renascimento do direito romano:
▪ No século VI, entre 530 e 534, o imperador Justiniano mandou
organizar uma coletânea que abrangesse uma grande parte de direitos
romanos, o Corpus Iuris Civilis. Este dividia-se em 4 partes: as
institutiones, o digesto, o codex, e as novellaes. É um fenómeno da parte
oriental do império.
▪ Na Europa Ocidental, entre o século VI e o século XI, não se pode dizer
que tenha havido uma absoluta falta de conhecimento do CIC – ele era
conhecido em centros de cultura eclesiástica, onde terá sido objeto de
algum estudo, mas tratou-se de um estudo e de um conhecimento
muito modesto, muito escasso.
▪ É a partir do século XI e especialmente do século XII que, na Europa
Ocidental, vai passar a haver um estudo intenso e uma divulgação em
larga escala do Corpus Iuris Civilis.
▪ A isto chamamos o renascimento do direito romano.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ Do século XI em diante (especialmente no XII) o CIC passa a ser a peça


fundamental do desenvolvimento jurídico europeu, e por isso se fala de
um renascimento do direito romano justinianeu.
Fatores determinantes do renascimento do direito romano:
Pré renascimento do direito romano – deve-se a fatores estruturais de evolução
histórica.
1. Fatores políticos:
▪ Com a restauração do império do ocidente, o chamado Sacro
Império Romano-Germânico, volta-se a ter na Europa Ocidental a
ideia de unidade em torno do império.
▪ Se se ressuscita a ideia imperial encontram-se no Corpus Iuris Civilis
um sistema jurídico adequado a esta ideia imperial.
▪ Portanto, ali se encontrava apoio para o fortalecimento da posição
imperial que o imperador do Sacro Imperio Romano-Germânico
tanto necessitava.
2. Fatores religiosos:
▪ A fé cristã era comum a todos os povos europeus, permitindo o
surgimento de uma civilização com uma base jurídica comum.
▪ Essa base jurídica comum encontrava-se no direito romano que era
também ele comum a toda a Europa.
3. Fatores económicos:
▪ Verificou-se nesta época uma grande expansão económica com o
aumento da população e o êxodo rural (a ida do campo para a
cidade).
▪ Isso deu origem a uma crescente economia citadina.
▪ Com esta nova realidade, colocaram-se ao direito problemas de
uma maior complexidade que levaram a que se recorresse a um
corpo jurídico mais perfeito para os resolver.
▪ Esse corpo jurídico foi o Corpus Iuris Civilis.
▪ Uma economia pujante, como foi a desta fase, leva a mais negócios,
a mais transações e à colocação de problemas mais complexos.
▪ O direito consuetudinário, baseado em fontes de direito local, já não
dava resposta a esses novos desafios, portanto, passou a recorrer-se
a um corpo normativo mais desenvolvido – o Corpus Iuris Civilis.
4. Fatores culturais:
▪ Assistiu-se a um progresso geral da cultura. Numa fase de maior
pujança económica as pessoas já se podiam dedicar mais à cultura.
▪ Sendo o direito uma parte da cultura, também se passou a estudar
um direito mais sofisticado, mais elaborado.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

Quem operou o funcionamento do Direito Romano Justinianeu? Quem foi o


responsável por esse movimento?

Escola de Bolonha ou dos Glosadores:


▪ Escola dos Glosadores ou de Bolonha – renascimento do direito
romano propriamente dito.
▪ Teve como grande nome, nos seus primórdios, Irnério, que teve o
grande mérito de conferir autonomia ao estudo do direito – antes a
analise jurídica fazia-se dentro das várias disciplinas do saber medieval,
como por exemplo da lógica e da ética. É com ele que se começa a
estudar autonomamente o direito como ciência com objeto próprio.
▪ Irnério era visto como um mestre/jurista tão importante, que é como se
ele fosse com uma candeia à frente a iluminar o caminho dos que o
seguiam – por isso fala-se em Irnério como a “lucerna iuris", i.e., a
candeia do direito.
▪ A escola de Bolonha não começa logo como universidade.
▪ Inicialmente tratava-se de um pequeno centro de ensino em que um
grupo de discípulos ouvia as lições de Irnério.
▪ Paulatinamente, a escola transforma-se numa universidade, que nos
seus dois primeiros séculos se destinou exclusivamente para o ensino
do direito romano e que acabou por ser o grande polo de irradiação do
poder jurídico de toda a Europa.
▪ Destacaram-se nomes como Irnério (o seu fundador) e os seus 4
discípulos Martinus, Hugo, Jacobus e Bulgarus. Ao longo do
desenvolvimento da Escola referem-se nomes como Placentino e Azo
e, numa fase final, Acúrsio, o responsável pela organização da Magna
Glosa, que reuniu perto de 97 mil das glosas através das quais foi
estudada o Corpus Iuris Civilis.
Sistematização do «Corpus Iuris Civilis»
▪ Os glosadores (membros da escola de Bolonha) estudaram o Corpus
Iuris Civilis, mas sistematizaram-no de forma diferente de original, por
questões pedagógicas, didáticas e históricas.
▪ Fizeram uma alteração na esquematização do CIC, dividindo-o em 5
partes diferentes das originais:
1. Digesto velho: desde o livro 1 até ao livro 24 título II;
2. Digesto esforçado: desde o livro 24 título III do Digesto até ao
livro 38;
3. Digesto Novo: compreende os restantes livros do digesto (até
ao livro 50);
4. Código (ou códex): composto pelos noves primeiros livros do
Códex de justiniano (que tinha 12 livros);

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

5. Volume pequeno: incluía os três restantes livros do Codex de


Justiniano, as institutiones, uma coletânea de novellaes e, mais
tarde, algumas fontes de direito da sua época.
▪ Esta divisão manteve-se por largos séculos, pacificamente aceite na
Europa.
Instrumento de trabalho:
▪ O principal instrumento dos glosadores foi o chamada glosa.
▪ Glosa: pequena interpretação escrita dos textos do Corpus Iuris Civilis.
▪ Inicialmente não passava de um pequeno esclarecimento de
algum excerto do CIC, com intenção de o interpretar, de modo
que se conseguisse percebê-lo. Este pequeno esclarecimento
inseria-se nas linhas do texto (entre as linhas do texto) e, portanto,
eram as glosas interlineares.
▪ Com o tempo as glosas tornaram-se mais extensas e mais
complexas, passando a ser interpretações cada vez mais
desenvolvidas. Começaram a não ser apenas interpretações de
um excerto, mas sim interpretações sobre um título do digesto e,
por isso, já não era possível escrever entre as linhas. Surgiram,
assim, as glosas marginais, que eram escritas na margem do
texto.
Método de trabalho:
▪ Era um método exegético, de índole interpretativa e literária.
▪ Visava acima de tudo uma análise da letra dos textos do Corpus Iuris
Civilis e chegar à conclusão do que ela significava.
O trabalho no estudo do Corpus Iuris Civilis:
▪ Os glosadores tiveram uma atitude dogmática e legalista face ao CIC
porque foi uma atitude de seguimento da sua letra.
▪ Nunca houve, da parte dos glosadores, uma vontade de inovação,
porque o CIC era um corpus jurídico muito avançado para aquilo que
era hábito na altura. Houve um deslumbramento com ele e aquilo que
havia em termos jurídicos até então e que era a prática do direito ficava
muito aquém do CIC.
▪ Consequentemente, os glosadores entenderam que não era preciso
qualquer inovação, uma vez que já era um corpo jurídico de grande
perfeição e, portanto, tiveram essa atitude exegética, puramente de
interpretação literal e de respeito pelas soluções contidas no CIC.

▪ O trabalho dos glosadores também foi marcado por uma ignorância


nos domínios filológicos (o latim deles não era o melhor e, por vezes,
não conseguiram captar com o devido acerto o que significavam várias
passagens do CIC – tinham falta de conhecimentos linguísticos) e nos

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

domínios históricos (desconheciam o contexto histórico das várias


normas do direito romano, o que fez com que tivessem interpretações
incorretas – não conseguiam entender o verdadeiro alcance das normas
porque não conheciam as suas circunstâncias históricas – como também
os levou a manter princípios obsoletos porque correspondiam a
peculiaridades de um tempo que já tinha passado).
▪ Nas primeiras décadas do século XIII, a Escola dos Glosadores começou
a manifestar sinais de esgotamento, porque já havia um estudo não do
texto do CIC, mas sim das glosas, i.e., estudava-se o estudo do Corpus
Iuris Civilis.
▪ Portanto, pode dizer-se que a metodologia dos glosadores já estava a
esgotar as suas potencialidades.
Magna Glosa:
▪ Entre 1220 e 1240 há que referir a chamada Magna Glosa, Glosa de
Acúrsio ou, simplesmente Glosa.
▪ Acúrsio, um jurista, reuniu uma grande parte das glosas que tinham
sido escritas a propósito do Corpus Iuris Civilis, selecionando-as e
confrontando as várias opiniões que tinham surgido.
▪ Dessa reunião de glosas surgiu a chamada Magna Glosa, que passou a
acompanhar as cópias do CIC.
▪ A Magna Glosa foi trabalho gigantesco e que acumulou quase 97 mil
glosas – graças a esta Glosa conhecemos em boa parte o trabalho dos
glosadores.
▪ A Glosa de Acúrsio foi fonte de direito subsidiário em Portugal – usada
para colmatar as lacunas do direito português. Nas ordenações teve
esse papel reconhecido oficialmente.
Causas da difusão do DR Justinianeu e da Obra dos Glosadores:
▪ Os Glosadores, na Escola de Bolonha, fizeram este estudo denso do CIC
e dali irradiou essa obra a toda a Europa
A. Causas da Difusão na Europa em Geral
1. Presença de estudantes estrangeiros em Bolonha: a escola de
Bolonha, pelo seu prestígio e estudo jurídico, atraiu grande número de
estudantes de outros países da Europa para aprender o Direito Romano
Justinianeu. Quando regressavam ao seu país traziam consigo esses
conhecimentos baseados no Corpus Iuris Civilis e traziam também os
próprios textos do CIC e as glosas. O facto de trazerem isso para os seus
países levou a que se difundisse o Direito Romano renascido e a obra
dos glosadores.
2. Fundação de Universidades: a figura da universidade surgiu na
Europa Medieval como centro de ensino, como corporação que reunia
mestres e estudantes. Durante o século XII e XVIII assistiu-se à criação

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

de universidades por toda a Europa onde se cultivava os vários ramos


do saber. O direito romano justinianeu era um desses ramos e ensinava-
se segundo o método dos glosadores. Também se estudava o direito
canónico. As universidades foram surgindo de formas diferentes e isso
leva a que possamos distinguir as universidades como ex consuetudine,
ex previlegio e ex secessione.
▪ Ex consuetudine: iam aparecendo progressivamente. Surgia um
pequeno centro de estudos em torno de um mestre, muitas vezes
já tendo raízes em alguma escola eclesiástica, que se ia
desenvolvendo progressivamente até se tornar na forma de uma
corporação de mestres e estudantes, como por exemplo, a
universidade de Bolonha;
▪ Ex privilegio: eram universidades criadas por iniciativa de um
soberano. Criavam aquele centro de estudo dando-lhe os
privilégios próprios de uma corporação com determinadas
regras e prerrogativas que permitissem o ensino naquela
corporação. Também dependiam de confirmação pelo Papa,
pois só aí os graus académicos adquiririam universalidade, i.e.,
só assim quem tivesse um desses graus académicos poderia
ensinar em todo o lado – “ius ubique docendi”.
▪ Ex secessione: universidade por divisão, por cesseção, que se
verificavam quando uma instituição universitária resultava de
separação de outra e, muitas vezes, até passava por crises e
conflitos. Temos por exemplo a Universidade de Cambridge, que
foi fruto de uma divisão com a Universidade de Oxford.
B. Causas da Difusão na Península Ibérica e especialmente em Portugal
Só começou uma verdadeira difusão no século XIII, pois só aí verificou numa
efetiva prática – os tribunais decidiam com base no texto do Corpus Iuris Civilis
e a prática tabeliónica, ou seja, a prática de atos jurídicos, já tinha influência do
CIC.
Em Portugal não se verifica isso antes do reinado de D. Afonso III e, portanto,
a data que indicamos para o início desta época é 1248.
1. Presença de estudantes peninsulares em escolas jurídicas italianas
e francesas e a presença de jurisconsultos estrangeiros na
Península: verifica-se desde o início do seculo XIII uma presença muito
significativa de estudantes da Península Ibérica, principalmente
eclesiásticos, nos centros do ensino do direito Italianos e Franceses, mas
muito especialmente na Universidade de Bolonha. Na verdade, houve
juristas peninsulares que lá ficaram a exercer o ensino ocupando
cátedras de direito romano e canónico mas, normalmente, regressavam
quando concluíam os seus estudos e ocupavam lugares importantes na
administração pública, na política, no ensino e na carreira eclesiástica

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

(no exercício dessas funções eram amplamente influenciados pelo DR


justinianeu que aprenderam na sua estadia). Também se verificou a
vinda de jurisconsultos estrangeiros para a Península Ibérica quer como
conselheiros do rei, quer como docentes universitários e, também eles,
acabavam por exercer essas funções influenciados pelas doutrinas do
direito romano que tinham aprendido.
2. Difusão dos textos romanísticos: das próprias coletâneas do Corpus
Iuris Civilis e das glosas, porque quer os juristas nacionais que voltavam,
quer juristas estrangeiros que para cá vinham, traziam os textos da
disciplina que estudavam e isso ajudou na sua difusão.
3. Ensino do Direito Romano nas Universidades da Península Ibérica:
destacamos a Universidade de Coimbra que é fundada em 1290 por D.
Dinis. O Papa Nicolau IV confirma a criação do Estudo Geral através de
uma bula que faz referência expressa à obtenção do grau de licenciado
em direito romano e canónico. Trata-se de uma universidade ex
privilegio porque a sua base foi uma base por conceção régia. De referir
que a universidade não foi criada em Coimbra, mas sim em Lisboa. Foi
transferida várias vezes entre as cidades.
4. Legislação e prática de inspiração romanista: as leis promulgadas
pelos monarcas vão absorvendo os quadros conceituais do DR
justinianeu. Já as leis da cúria têm alguma influência do DR justinianeu.
Só a partir de D. Afonso III as leis dos monarcas já são todas
influenciadas por o direito romano justinianeu. Por outro lado, na
prática do tabelionato também foi sentindo a influência do direito
romano renascido, ou seja, os atos jurídicos praticados perante os
tabeliães começam a ser modelados de acordo com as regras contidas
no Corpus Iuris Civilis.
5. Obras doutrinais e legislativas de conteúdo romano: obras que, não
sendo portuguesas, (eram castelhanas) tiveram muita importância em
Portugal. Vamos salientar duas obras da autoria do mestre Jácome das
Leis que são “Flores de Derecho” e “Nueve tiempos de los pleitos” que
eram manuais relativos ao processo civil e que eram fortemente
inspirados pelo direito romano canónico. Estas duas obras tiveram
grande importância na substituição do sistema consuetudinário e
foraleiro da época anterior por um sistema processual de feição
romana. Estas duas obras também foram muito importantes na
modernização do processo civil.
Por outro lado, outras obras legislativas que tiveram grande importância
nesta época são de responsabilidade do Rei Afonso X. Tiveram o
objetivo de centralizar no monarca a criação do Direito e renovar o
sistema jurídico. O Rei Afonso X muito se apoiou nos ensinamentos do
DR Justinianeu na sua atividade. Destacamos duas obras legislativas
dele: “Fuero real” (compilação de normas municipais que se destinavam
às cidades que não tinham diploma local, i.e., não tinham “fuero”, ou às

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

cidades que, tendo “fuero”, o quisessem substituir por uma coletânea


mais perfeita e atualizada). Em Portugal, o fuero corresponderia aos
forais. O “fuero real” foi composto por preceitos do código visigótico, e
também por costumes locais, mas já há uma receção no fuero real de
soluções jurídicas advindas do CIC, do DR justinianeu e do direito
canónico. Outra das obras importantes de Afonso X é “Siete partidas”
(obra jurídica de caráter enciclopédico, é uma receção total do Direito
Romano-Canónico. Teve uma enorme importância na formação dos
juristas e foi oficialmente consagrada em Castela como fonte de Direito
subsidiário, i.e., à qual se recorria para preencher as lacunas do Direito).

Escola dos Comentadores:


▪ De uma forma natural, o estudo do DR jutinianeu foi-se desenvolvendo
para lá dos termos em que a Escola dos glosadores o tinha feito.
▪ Foi uma evolução natural na qual podemos identificar o surgimento de
outra Escola de estudo do DR justinianeu: a Escola dos Comentadores,
que se desenvolve a partir de finais do séc. XIII e especialmente no séc.
XIV.
▪ Não houve uma queda de continuidade entre os glosadores e os
Comentadores. Simplesmente, agora os juristas que se dedicavam ao
DR justinianeu começam a fazê-lo com uma muito mais ampla e
profunda utilização do método escolástico ou dialético, ou seja,
generaliza-se a utilização da dialética aristotélica no estudo do direito.
▪ Por outro lado, começa-se também a estudar com amplitude, ao lado
das fontes justinianeias, outras fontes de direito, nomeadamente, os
direitos locais, costumes, estatutos das cidades italianas e até o direito
canónico. Dadas essas novas características pode falar-se de uma nova
Escola.
▪ O seu instrumento de trabalho é o comentário. Este é um instrumento
muito mais desenvolvido e rico do que as glosas.
▪ Dentro desta nova fase verifica-se que a perspetiva com que se encara
as fontes jurídicas é muito menos exegética e literal, sendo sim lógico-
sistemática, i.e., pretende-se retirar conclusões lógicas das fontes
jurídicas e sistematizá-las para se chegar a conclusões gerais. Pretende-
se chegar a uma estrutura sistematizada, ao interpretar cada passo do
CIC e interligando-os.
▪ Por isto, pode dizer-se que os comentadores tiveram um muito menor
apego às coletâneas justinianeias e por isso, não só foram estudando
outras fontes de direito, como até estudaram as glosas e os comentários
que iam sendo feitos relativamente ao direito romano.
▪ Tudo isto foi um avanço muito grande da ciência jurídica, aliando-se a
teoria à prática, pois, tal como os glosadores, os comentadores queriam
retirar do CIC regras aplicáveis aos problemas sociais do seu tempo:
por isto fala-se de uma atitude de grande pragmatismo.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ O esforço de sistematização desta fase (fase dos comentadores) levou


à criação de novos institutos/figuras jurídicas e até de novos ramos do
direito, p.e., o direito comercial e o direito internacional privado são, em
boa medida, fruto da obra dos Comentadores.

▪ Podemos apontar como origem da Escola dos Comentadores a célebre


Escola francesa de Orleães (fins do séc. XIII e início do séc. XIV), com
dois juristas muito significativos: Jacques de Revigny e Pierre de
Belleperche.
▪ Apesar desta origem francesa foi em Itália que, ao longo do século XIV,
se desenvolveu plenamente a Escola dos Comentadores. Nesta época
surgiram juristas de primeira grandeza como Cino, Bártolo, Baldo e
Paulo de Castro (já no séc. XIV e XV) – são autores de maior relevância
que deram contributos enormes para a ciência jurídica.
▪ Destacou-se, principalmente, Bártolo (1314-1357), que deixou uma
obra tão vasta, profunda e brilhante de uma argúcia analítica tão forte
que, ainda hoje, é considerado um dos maiores nomes do direito de
sempre. Foi o mais representativo jurista do século XIV. Criou-se até
uma máxima de que “ninguém é bom jurista se não for bartolista”
(“nemo bónus iurista nisi sit bartolista”). A autoridade de Bártolo era tão
forte que em Portugal a sua opinião, as suas obras/comentários foram
estabelecidas oficialmente como fonte de direito subsidiário e,
portanto, aplicável na falta de direito português.

▪ Todavia, ao longo da segunda metade do século XV, já com juristas


como Jasão, começa a verificar-se uma decadência da Escola dos
Comentadores. Isto porque, a sua metodologia deixou de conduzir a
resultados criativos uma vez que o método escolástico acabou por ser
usado de uma forma rotineira e em que havia uma mera repetição de
argumentos e autores. Isto levou ao abuso do princípio da autoridade –
apenas se seguia o que alguém tinha dito, pela sua autoridade, e sem o
necessário espírito crítico ou pelo menos o espírito de partir para outros
desenvolvimentos.
▪ Neste sentido, surge a figura da opinião comum dos doutores, ou seja,
a doutrina. Através dessa análise exaustiva dos argumentos favoráveis
e desfavoráveis a certa solução e sobre quem tinha formulado esses
argumentos, procurava-se descobrir qual era a opinião comum dos
doutores, i.e., a doutrina dominante, a que reunia maior consenso, para
a seguirem.
▪ Esta figura teve uma maior importância, especialmente a partir do séc.
XV, porque se seguia as opiniões que conseguissem um mais amplo
consenso entre os mestres.
▪ Houve questões levantadas a esse propósito, p.e., sobre critérios
quantitativos (o número de doutores necessário para a sua fixação),

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critérios qualitativos (os moldes em que devia atender à categoria e ao


prestígio de cada um deles) e até uma conjugação destas orientações
(um critério de maioria qualificada).
▪ O espírito de respeito pelo princípio da autoridade a que o uso do
método escolástico acabou por conduzir teve como epílogo a opinião
doutrinal dominante.
Método escolástico
▪ O método escolástico, nesta fase, constituía a base intelectual com que
se estudava o direito.
▪ Nos séculos XII a XIII desenvolveu-se como método de ensino e foi
também aplicado ao direito, especialmente em inícios do século XIV.

A palavra «escolástica» vem do latim «schola». O termo «scholasticus», embora


também tenha sido sinónimo de «rethor» ou professor de eloquência (como em
Quintiliano, retórico romano), veio a designar, em especial, o homem letrado, culto
ou sábio, referindo-se fundamentalmente ao professor de uma schola (magister
scholarum).

A escolástica corresponde ao método didáctico utilizado na especulação filosófico-


teológica das escolas medievais (que primeiramente eram catedralícias e
monásticas e só depois passaram a ser universidades), assim como à forma de
literatura dele proveniente; ou, também, à finalidade do ensino, ao seu conteúdo
ou ao período de tempo em que vigorou, ainda que este último sentido,
cronológico, devido aos renascentistas (que davam a designação de «philosophia
scholastica» à ensinada nas escolas da Idade Média), seja menos exato (em virtude
de a filosofia escolástica ter subsistido para além desse período histórico).

O método escolástico vai ganhando forma ao longo do tempo. No séc. XII apresenta
já a estruturação em que assenta a fisionomia perfeita que alcançou no séc. XIII e
que acabou por constituir o género literário típico das obras dos grandes doutores.
ANTÓNIO ALBERTO VIEIRA CURA, O método escolástico - Algumas notas

Assentava em 3 elementos essenciais: a lectio, a quaestio e a disputatio.


Lectio: era constituída pela leitura de um texto que era comentado/explicado
pelo mestre. A partir desse texto colocava-se uma quaestio.
Quaestio: era uma questão ou problema para o qual se buscava uma resposta
ou solução. Provinha da lectio.
Os autores desses textos que se estudava e a propósito dos quais se colocava
uma questão eram vistos como autoridades (auctoritates).
Disputatio: para resolver a quaestio eram analisadas as opiniões das
auctoritates sobre o assunto, indicando-se as razões para a resposta ser num
determinado sentido e as razões apontadas em sentido contrário. Depois
desta confrontação, obtinha-se a solutio, a resposta, em que se refutavam as

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

opiniões contrárias. Consistia, portanto, no raciocínio desenvolvido com vista


a fornecer a resposta ou solução da quaestio, assente na variedade de
opiniões e no confronto das auctoritates pró e contra.

▪ No âmbito do método escolástico utilizou-se a dialética aristotélica,


caracterizada pelo silogismo – discurso através do qual se retira de duas
preposições uma preposição nova. Temos uma premissa maior, uma
premissa menor e depois uma conclusão que se retira das anteriores.
▪ Aristóteles admitiu, ao lado do silogismo demonstrativo, em que
figuram preposições verdadeiras, um silogismo dialético, em que as
preposições são prováveis (opiniões geralmente aceites).
▪ Foi este silogismo dialético que se utilizou na Escola dos Comentadores.

Renovação do direito canónico


Direito Canónico:
▪ O direito canónico é o conjunto de normas jurídicas que disciplinam as
matérias de competência da Igreja Católica. É o direito da Igreja
(cânone vem do grego que significa regra/norma).
▪ Atendendo à origem ou ao modo de formação das normas do direito
canónico estabelece-se a distinção entre fontes de direito divino e
fontes de direito humano:
▪ Fontes de direito divino: são a Sagrada Escritura, o Antigo e
Novo Testamento e a tradição (composta pelos ensinamentos de
Jesus Cristo que não ficaram registados por escrito, mas foram
transmitido oralmente ao longo do tempo – conhecemos,
principalmente, devido às obras dos santos padres);
▪ Fontes de direito humano: podemos incluir o costume, os
diplomas dos papas (decretos e decretais), leis ou cânones dos
concílios ecuménicos (ex: concílios de Latrão), diplomas de
outras entidades religiosas subordinadas ao Papa (ex: bispos),
concórdias e concordatas, decisões dos tribunais eclesiásticos e
normas jurídicas civis que a Igreja mandava aplicar aos próprios
tribunais.
▪ O direito canónico anteriormente ao séc. XII foi marcado por um
desenvolvimento das fontes de direito humano, que se tornaram o
modo normal de criação das normas da Igreja.
▪ Atendendo à crescente produção dessas normas, elas foram reunidas e
sistematizadas em coletâneas de direito da Igreja.
▪ Apesar disso, antes do séc. XII não se pode falar de uma ciência do
direito canónico, i.e., um sistema de direito canónico com uma
suficiente autonomia em relação à teologia e ao direito romano.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ Por essa razão, falamos do movimento renovador do direito canónico a


partir do séc. XII, que encontra causas justificativas idênticas às do
renascimento do direito romano e que foi marcado por dois vetores
fundamentais:
1. Organização de novas coletâneas das normas mais perfeitas que
substituíram as anteriores;
2. Reelaboração científica do direito canónico baseada nessas
novas coletâneas mais perfeitas das normas da igreja.

1. A organização de novas coletâneas de normas canónicas, mais perfeitas


do que as anteriores:
▪ Coletâneas de direito canónico elaboradas desde o séc. XII;
▪ Verifica-se, nesta altura, um esforço papal de unificação normativa da
Igreja, i.e., um esforço para construir um sistema unitário de normas da
Igreja, contrário a particularismos nacionais ou regionais e que atribuía
à Santa Sé um exclusivo da criação dos preceitos jurídico-canónicos.
▪ Neste novo contexto o papa chama a si a criação de todas as normas
canónicas – era o Papa que tinha o exclusivo da criação do direito da
Igreja. Ex.: Papa Inocêncio III.
▪ Foram elaboradas as seguintes coletâneas de direito canónico:
1. Decreto de Graciano – elaborado em 1140, procurou fazer uma
síntese e compilação dos princípios e normas vigentes do direito
canónico. Ficou assim conhecida porque a sua organização é
atribuída ao monge João Graciano.
2. Decretais de Gregório IX – coletânea de normas papais
posteriores ao decreto de Graciano e que um canonista
peninsular (mais tarde canonizado – elevado à posição de santo),
São Raimundo de Peñafort, organizou a pedido do Papa
Gregório IX. O Papa promulgou a coletânea em 1234. As
decretais de Gregório IX estão organizadas em 5 livros.
3. Sexto de Bonifácio VIII – uma coletânea que abrangeu as
normas canónicas aparecidas depois das decretais e que foi
promulgada em 1298 pelo Papa Bonifácio VIII. Ficou conhecida
como o “Livro Sexto” porque era como se fossem o sexto livro
das decretais (uma vez que as de Gregório tinham 5 livros).
4. Clementinas – uma coletânea ordenada pelo Papa Clemente V e
promulgada em 1317 pelo Papa João XXII. Ficaram conhecidas
como clementinas pois quem ordenou foi o Papa Clemente V.
Estas 4 coletâneas foram publicadas conjuntamente por volta de 1500 e o
editor acrescento-lhes duas compilações de diplomas papais posteriores a
1317 (posteriores às clementinas).

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

5. As extravagantes de João XXII e as Extravagantes Comuns –


eram diplomas dos papas (decretais) que estavam fora das
coletâneas oficiais (daí “extravagantes”, porque estavam fora).
Uma contém decretais promulgadas por João XXII
(Extravagantes de João XXII) e outra decretais dos papas
subsequentes (Extravagantes Comuns).

▪ Todas estas coletâneas de direito canónico vieram a integrar o chamado


Corpus Iuris Canonici (corpo do direito canónico), promulgado em
1580 pelo Papa Gregório XIII e que vigorou até 1917.
▪ Em 1917 houve um novo Corpus Iuris Canonici e em 1983 foi
promulgado pelo Papa João Paulo II o atual.
▪ Este foi o primeiro vetor de renovação do direito canónico: novas
coletâneas de preceitos da Igreja.

2. A reelaboração científica do direito canónico, com base nessas novas


coletâneas
▪ Os processos de interpretação textual (nomeadamente, das glosas e
comentários) e a metodologia usada pelos glosadores e pelos
comentadores em relação aos textos romanos, foram transpostos para
o estudo das coletâneas de direito canónico (muito especialmente, no
Decreto de Graciano e as Decretais).
▪ Os canonistas (juristas que se dedicavam ao direito canónico) eram
designados de decretistas (estudavam o Decreto de Graciano) ou de
decretalistas (estudavam as Decretais de Gregório IX).

Penetração do direito canónico renovado na Península Ibérica


Fatores de penetração na Península Ibérica:
Em boa medida coincidiram com o que se passou no direito romano.
▪ Os estudantes peninsulares que se deslocaram para aprender direito
em universidade italianas e francesas eram, na sua maioria,
eclesiásticos. E, embora também estudassem o direito romano,
estudavam sobretudo o direito canónico. Refira-se o canonista João de
Deus, português, um dos maiores do seu tempo.
▪ A divulgação dos textos de direito canónico através de cópias e
traduções. Os canonistas que estavam no estrangeiro quando
regressavam traziam os textos, as novas coletâneas e até as obras
doutrinais que as interpretavam e comentavam.
▪ Ensino do direito canónico nas universidades peninsulares,
especialmente na Universidade de Coimbra.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

Aplicação judicial do direito canónico:


Falamos aqui da aplicação do direito canónico nos tribunais.
▪ Aplicação nos tribunais eclesiásticos:
▪ Naquele tempo, certas matérias eram consideradas como
exclusivo da jurisdição canónica, i.e., eram decididas apenas
pelos tribunais eclesiásticos. Temos como exemplo, questões de
matrimónio, bens da Igreja, testamentos feitos com legados à
Igreja, e outros benefícios eclesiásticos.
▪ Além disso, certas pessoas só podiam ser julgadas pelos
tribunais da Igreja, como é o caso dos clérigos e todos aqueles a
quem fosse concedido esse privilégio.
▪ Aplicação nos tribunais civis:
▪ Coloca-se a hipótese de, num primeiro momento, o sistema
jurídico canónico ter prevalecido sobre o direito português – o
que, segundo uma certa interpretação, resultaria de uma das leis
saídas da Cúria de Coimbra de 1211, na qual se determinava que
as leis do reino não valeriam contra os direitos da Igreja. É
duvidoso se isso não seria, contudo, apenas um reconhecimento
dos privilégios da Igreja e não qualquer prioridade do direito
canónico sobre as leis portuguesas – o texto não é muito claro, é
um quanto enigmático. Portanto, as opiniões dividem-se: os
professores Espinosa Gomes da Silva, Rui e Martim Albuquerque
pronunciam-se no sentido que essa lei estariam a dar a tal
prioridade ao direito canónico; já o professor Guilherme Braga
da Cruz e José Matoso entendem que não se vê naquele preceito
uma prevalência do direito canónico sobre o português, mas
apenas um reconhecimento dos privilégios da Igreja.
▪ Em todo o caso, em pouco tempo o direito canónico já era
considerado fonte subsidiária, i.e., que só intervinha na falta de
fontes do direito português.
▪ Portanto, apenas podia ser utilizado nos tribunais portugueses
para colmatar lacunas do direito pátrio – só quando não houvesse
normas no direito português que respondessem ao problema
em causa.

Direito Comum
▪ O direito comum é o produto da receção do renascimento do direito
romano e da renovação do direito canónico.
▪ Foi o sistema jurídico que constituiu a base da experiência jurídica
europeia desde o século XI e XII até ao século XVIII.
▪ Tem como elemento essencial o direito romano justinianeu, i.e., o
direito romano contido nas coletâneas do CIC.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ Fala-se em direito comum porque se tratava do direito que era comum


aos vários territórios europeus – repare-se que o direito romano
justinianeu era um direito comum aos territórios europeus (o mesmo se
pode dizer do direito canónico).
▪ Por esta razão, fala-se também do direito comum romano-canónico,
porque apesar da sua base fundamental ser o direito romano
justinianeu também há um importante contributo do direito canónico
para essa experiência jurídica comum europeia.
▪ A esta figura de direito comum contrapunham-se os direitos próprios,
ou seja, os ordenamentos jurídicos de cada território, constituídos por
direitos locais, pelas suas normas legislativas e consuetudinárias.
▪ A relação entre o direito comum e os direitos próprios nem sempre foi
fácil de entender, uma vez que estamos numa época de pluralismo
jurídico, em que coexistiam diversos ordenamentos jurídicos.
▪ Contudo, podemos dizer que se foi afirmando o direito comum como
um direito subsidiário, i.e., que se aplicava na falta de direito próprio.
▪ Isto significa que o direito comum romano-canónico teve uma enorme
importância porque os direitos próprios tinham muitas limitações, eram
muito incompletos. Já o direito comum era um sistema jurídico
altamente completo.

Fontes do direito português desde meados do século XIII até às


Ordenações Afonsinas
▪ Fontes de direito na época do direito romano renascido e do direito
canónico renovado, desde 1248 – início do reinado de D. Afonso III – até
1446-47.
▪ As fontes de direito nesta época revelam uma autonomização
progressiva do direito português perante as ordens jurídicas dos outros
estados da península.
▪ Caracteriza-se esta época também pela introdução do DR justinianeu e
direito canónico renovado que vão influenciar as fontes.

1. Lei
▪ Nesta época a legislação geral assume grande importância.
▪ A legislação dos reinos é abundante e as leis passam a ser o principal
modo de formação de direito novo, de preceitos novos. Até então, o
costume tinha prevalência na criação jurídica. Agora, na criação de
preceitos novos o costume perde essa relevância a favor da legislação
dos monarcas. Não quer isto dizer que o costume parou de ser uma
fonte importantíssima, mas na criação de novas regras jurídicas é a lei
que tem primazia.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ A lei passa a ser concebida como um produto da atividade normal do


rei, tanto que as leis passam a ser elaboradas sem o apoio político das
cortes – é por iniciativa única do rei e é sem qualquer auxílio das cortes
que o rei emana as normas jurídicas.
▪ Esta mudança verifica-se pela influência do direito romano renascido.
Repare-se que este é um claro reflexo da visão imperial contida no CIC,
segundo a qual o príncipe/monarca cria livremente direito – no CIC
estavam plasmadas as constituições imperiais.
▪ Com base nestas conceções é que são agora concebidas as leis pelo
monarca. O monarca é um imperador no seu território e cria livremente
direito por sua iniciativa e, por isso, se afasta o concurso das cortes na
produção legislativa.
▪ Por outro lado, o próprio conteúdo das leis revela uma manifesta
influência do direito romano-canónico pois os monarcas recorreram ao
apoio técnico de legistas e canonistas, i.e., especialistas em direito
romano e direito canónico.
▪ A propósito da publicação e entrada em vigor das leis, não havia neste
período um regime jurídico fixo, ou seja, um conjunto de normas
jurídicas que regulassem de forma constante e estável esta matéria.
▪ Nesta altura não havia imprensa e, portanto, as leis eram manuscritas e
depois reproduzidas através de cópias também manuscritas.
▪ Os diplomas eram registados na chancelaria régia – uma repartição
pública que servia para o depósito dos diplomas legislativos.
▪ Para dar publicidade aos preceitos legais fora da corte, no território
nacional, recorreu-se aos tabeliães. As cópias dos diplomas eram
enviadas a estes, que deviam registá-las nos seus livros e tinham a
obrigação de proceder à leitura pública desses diplomas.
▪ Quanto ao início de vigência da lei também não havia regras pré-
estabelecidas. Foi prática corrente a aplicação imediata, embora vários
diplomas tenham previsto para si mesmos as regras de vacatio legis.

2. Resoluções régias
▪ Eram providências emitidas pelo rei em resposta aos agravamentos que
lhe eram apresentados nas cortes pelos representantes das três classes
sociais.
▪ Nas cortes, os representantes dirigiam ao rei petições e reclamações,
solicitando-lhe que tomasse providências para resolver determinado
problema.
▪ A resposta que o rei dava a esses agravamentos eram as chamadas
resoluções régias. Se continham normas para o futuro,
substancialmente seriam leis. A diferença é que as leis são emitidas pelo
monarca por sua própria iniciativa e as resoluções são tomadas a
pedido dos representantes.
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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

3. Costume
▪ Apesar de manter uma grande importância na época, perde para a lei a
primazia na criação de normas jurídicas novas.
▪ Por outro lado, estamos num período de centralização da criação
jurídica (o rei chama a si a criação jurídica – o que se vê no surto
legislativo que ocorre nesta época). Esta ideia de centralização jurídica
tem reflexos na conceção de costume.
▪ O costume, por influência das conceções romanísticas que penetravam
na época, passa a ser visto como expressão da vontade do monarca.
▪ A vigência do costume nesta época é justificada não só como consenso
do povo, mas também como vontade do rei.
▪ O costume seria também vontade do monarca, mas uma vontade tácita,
i.e., se o monarca não promulgou uma lei que revogasse o costume é
porque tacitamente o aceitava.
▪ Assim, a lei seria a vontade jurídica expressa do monarca e o costume
passa a ser visto como uma vontade jurídica tácita do monarca.
4. Forais
▪ A importância dos forais na disciplina da vida das comunidades
manteve-se e ainda foram emitidos vários forais nos reinados de D.
Afonso III e de D. Dinis.
▪ A partir do reinado de D. Afonso IV não se outorgaram mais forais,
apesar de que os que já existiam continuaram a vigorar com grande
importância.
5. Foros, costumes ou estatutos municipais
▪ Também eram, tal como os forais, compilações de direito local, ou seja,
regulavam a vida social numa determinada comunidade.
▪ Por um lado, são diplomas muito mais extensos e completos do que os
forais. Aliás, em Espanha, a distinção entre foros/costumes e forais
corresponde às designações “fueros extensos” e “fueros breves”,
respetivamente.
▪ Também podiam ser concedidos aos municípios e por vezes eram
organizados por iniciativa do próprio município.
▪ Tinham um conteúdo muito mais abrangente que os forais: além de
normas de direito político e administrativo, de direito penal e de
processo penal (direito público que se encontrava igualmente nos
forais), também se encontram normas de direito privado (algo que não
acontecia nos forais), nomeadamente, relativamente a contratos,
direitos reais, direito da família e direito das sucessões.
▪ Para a elaboração dos foros ou costumes, recorreu-se a diversas fontes
prévias, nomeadamente, preceitos consuetudinários, jurisprudência,
doutrina, normas anteriores criadas pelo próprio município.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ Além de se recorrer a fontes prévias, muitas vezes, estes diplomas


continham normas inovadoras já de natureza legislativa, ou seja, de
regulação da vida do município para o futuro.
▪ Já é visível no conteúdo dos foros ou costumes uma influência do direito
romano justinianeu.
6. Concórdias e Concordatas
▪ Persistiram múltiplos problemas e conflitos entre o rei e a igreja e,
portante, aumentaram os acordos celebrados entre estes para pôr fim
a esses conflitos.
▪ As concórdias e as concordatas mantiveram a importância que já
tinham.
▪ Refira-se, p.e., as concordatas celebradas com a Santa Sé no reinado de
D. Dinis.
▪ Beneplácito régio: exigência de ratificação pelos reis das
determinações da Igreja respeitantes a Portugal.
7. Direito subsidiário
▪ Todas estas fontes até analisámos até aqui são fontes de direito pátrio.
Contudo, muitas vezes essas fontes não tinham solução para os
problemas da vida social que iam surgindo – tínhamos aqui um
problema de lacunas, de falta de solução jurídica.
▪ Nesta época não houve uma regulamentação oficial desta matéria do
preenchimento de lacunas e, portanto, o problema ficou ao critério dos
juristas e dos tribunais que, para a solução dos casos que tinham de
decidir recorriam a outras fontes de direito.
▪ A título subsidiário, recorreu-se ao direito romano e ao direito canónico,
p.e, coletâneas do CIC e às coletâneas de direito canónico. Sucede que
essas fontes estavam escritas em latim e não era nada fácil aos
operadores jurídicos da época terem acesso a eles, uma vez que não
tinham conhecimentos suficientes de latim.
▪ Isso explica que tenham circulado em Portugal, neste período, como
fontes subsidiárias, as obras jurídicas castelhanas de conteúdo romano-
canónico, p.e., Flores de Derecho, entre outras.
▪ Assumiu especialmente importância o recurso subsidiário as “Siete
Partidas”.
▪ O recurso tão intenso a estas fontes chegou a pôr num plano secundário
as fontes originais do direito romano e direito canónico, o que foi objeto
de crítica e até de protestos, levados pelos estudantes da universidade
ao rei D. Pedro I.
▪ Para se pôr fim a esse uso excessivo e intenso das obras castelhanas,
começaram a traduzir-se os textos legislativos romano-canónicos e até
textos doutrinas que esclareciam essas fontes legislativas,
nomeadamente a Glosa de Acúrsio e os trabalhos de Bártolo.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

Coletâneas privadas de leis gerais anteriores às Ordenações Afonsinas


▪ A partir de D. Afonso III verificou-se um surto legislativo que tem um
problema associado: o conhecimento dessas leis – tratava-se de
diplomas avulsos, dispersos e isso gerava problemas e incómodos de
consulta e de conhecimento do direito vigente.
▪ Para obstar a isso organizaram-se determinadas coletâneas de leis do
reino, numa tentativa de as concentrar num único corpo.
▪ Nesta época da receção, essas coletâneas tiveram sempre caráter
privado, i.e., não forma promulgadas oficialmente.
▪ Coletâneas privadas: Livro das leis e posturas e Ordenações de D.
Duarte.
▪ Livro das Leis e Posturas: elaborado entre fim do século XIV e início do
séc. XV, reunindo preceitos legislativos promulgados por D. Afonso II,
D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso IV, embora tenha uma lei acrescentada
posteriormente de D. Pedro I. É uma coletânea ainda muito primária,
básica e rudimentar. Tratou-se apenas de uma reunião da legislação
régia, sem um propósito de organização e de coordenação.
▪ Ordenações de D. Duarte: tem esse nome porque pertenceu à
biblioteca de D. Duarte e não por ser uma coletânea promulgada por
D. Duarte (não foi! É uma coletânea privada). D. Duarte acrescentou-
lhes um índice da sua autoria e um discurso sobre as virtudes do bom
julgador. Compreendem leis de D. Afonso II a D. Duarte. É uma
coletânea muito mais perfeita do que o Livro das Leis e Posturas – não
só reúne mais leis, como as repetições já são raras, e já há um plano de
sistematização da coletânea (os diplomas estão dispostos por reinados
e dentre de cada reinado dividem-se por matérias).
Evolução das instituições
▪ Neste período há uma substituição do empirismo por uma crescente
importância da ciência jurídica do direito romano e do direito canónico
– começam a penetrar no sistema jurídico português dois sistemas
jurídicos muito abrangentes.
▪ Em matéria de direito político vemos que há um enorme
desenvolvimento do poder real e da centralização do poder político e
jurídico nas mãos do monarca (por influência das conceções imperiais
do CIC).
▪ Por outro lado, o fenómeno de centralização vai manifestar-se de forma
muito clara numa hostilidade à figura da justiça privada, da autotutela.
O que se pretende é que haja um monopólio da realização da justiça
nas mãos do poder público. Há uma reação muito forte, nomeadamente
legislativa, contra a autotutela, ou seja, trazer para o domínio exclusivo
do estado o poder punitivo.
▪ Acrescido a isto, vê-se uma autonomização do processo criminal em
relação ao processo civil. Nesta época vai seguir o sistema inquisitório,
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i.e., o sistema através do qual o processo penal se desenvolve numa


atuação oficiosa – eram os órgãos do poder público que atuavam por
sua iniciativa e não através de uma queixa dos ofendidos, como no
sistema acusatório.
▪ Quanto ao direito criminal substantivo (definição de determinados
comportamentos sociais como crimes e as respetivas sanções) há uma
tendência para as sanções corporais, ou seja, castigos físicos (ex.:
acoites, corte de membros, pena de morte, entre outros). Há, ainda,
uma tendência para a uniformização dos delitos e das penas respetivas
em todo o território. As penas aplicadas variavam muito de acordo com
o estatuto social do ator do delito.
▪ No direito privado há que assinalar o grande contributo das doutrinas
de direito romano, nomeadamente, para a criação de novos institutos
para a individualização de novas figuras jurídicas com regimes próprios
e bem definidos.
▪ Na disciplina da família era muito larga a influência do direito canónico
porque se considerava que era uma matéria muito influenciada por
valorações de pecado.

Época das Ordenações


▪ Decorre de 1446/1447 até 1769/1772.
▪ Esta nova época tem início com as Ordenações Afonsinas – a primeira
coletânea oficial de preceitos jurídicos extensivos a todo o reino de
Portugal.
Ordenações Afonsinas
Elaboração e início de vigência:
▪ Começava a verificar-se uma grande quantidade de diplomas dispersos
que dificultavam o conhecimento do direito aplicável aos diversos casos
da vida social, que tinham que ser resolvidos, nomeadamente, pelos
tribunais.
▪ Isso levou a que se pedisse várias vezes nas Cortes que os monarcas
elaborassem uma coletânea do direito vigente e que reunissem as
várias normas aplicáveis.
▪ O Rei D. João I mostrou-se sensível ao problema e, por isso, encarregou
o jurista, que era corregedor da Corte, João Mendes, de preparar essa
coletânea. D. João I e João Mendes acabaram por falecer.
▪ O sucessor de D. João I, D. Duarte, encarregou outro jurista, Rui
Fernandes, de continuar esses trabalhos preparatórios da coletânea.
Este era um jurista muito conceituado que pertencia ao concelho do rei.
▪ D. Duarte teve um reinado breve de apenas 5 anos e faleceu ainda antes
da obra estar terminada. O seu irmão, o infante D. Pedro, ficou como

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regente do reino enquanto o filho de D. Duarte, D. Afonso V não subia


ao trono.
▪ D. Pedro incentivou Rui Fernandes a continuar o trabalho e, por isso, Rui
Fernandes concluiu o projeto a 28 de julho de 1446 na vila de Arruda.
▪ Este projeto foi submetido a uma apreciação de juristas da qual fazia
parte o próprio Rui Fernandes. Foram feitos alguns retoques ao projeto
e acabou por ser publicado em 1447 sob o título de Ordenações
Afonsinas.
▪ Não se sabe quando é que entrou em vigor. Sabe-se, contudo, que não
foi antes de 1450 que houve uma generalização das Ordenações
Afonsinas pelo reino.
▪ O que facilitou o conhecimento e a difusão das ordenações foi o facto
de estas não serem muito inovadoras, porque em grande medida
assentaram nas fontes de direito anteriores, apesar de que também
houve alguns pontos de inovação.
Fontes utilizadas:
▪ Na elaboração das Ordenações Afonsinas utilizaram-se as várias fontes
anteriores quer do direito pátrio/português quer do direito subsidiário
(aquele que se recorria para preencher as lacunas do direito pátrio)
nomeadamente, as leis gerais do monarca, resoluções régias,
concórdias e concordatas, costumes, jurisprudência, normas extraídas
das Siete Partidas e, também, os textos do Corpus Iuris Civilis e textos
das coletâneas da Igreja).
▪ Houve, portanto, um intuito de consolidar e reunir o direito vigente e
recorreu-se em grande medida as fontes que já vigoravam.
Técnica Legislativa:
Como foram redigidos os preceitos das Ordenações Afonsinas? Podem
distinguir-se dois estilos de redigir as normas legislativas:
1. Estilo Compilatório: estilo mais antigo e arcaico. Transcrevem-se as
fontes anteriores e, seguidamente, declara-se em que termos estas
fontes estão confirmadas, alteradas ou até afastadas.
2. Estilo Decretório ou legislativo: mais moderno. Consiste numa
formulação direta dos preceitos sem qualquer referência às fontes
precedentes, portanto, já não é necessário a referenciação da fonte
anterior, pois redige-se a norma sem referências.

▪ Nas Ordenações Afonsinas utilizou-se o estilo compilatório com


exceção do livro I. Neste utilizou-se o estilo decretório ou legislativo em
grande parte. Isto deve-se à diferença do tipo de matéria em causa – no
Livro I trata-se de matérias de direito administrativo.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

Sistematização e conteúdo das Ordenações Afonsinas:


▪ As Ordenações Afonsinas estão divididas em 5 livros, sendo cada um
precedido de uma introdução. Os livros dividem-se em títulos e os
títulos dividem-se em parágrafos.
▪ O livro I contém matéria de direito administrativo, nomeadamente,
relativo ao governo, à justiça, ao exército e à fazenda (finanças).
▪ O livro II contém providências de natureza política ou constitucional,
como os privilégios da igreja, os privilégios do rei, as prerrogativas da
nobreza e, ainda, o estatuto dos judeus e dos mouros, que na altura
ainda tinham populações significativas no nosso país e tinham estatutos
especiais.
▪ No livro III disciplinava-se o processo civil e isto incluía o processo
executivo.
▪ No livro IV era tratado o direito civil substantivo, ou seja, os vários ramos
do direito civil. É a base do direito privado.
▪ No Livro V disciplinava-se o direito criminal e o respetivo processo.
▪ As ordenações Afonsinas tiveram uma enorme importância na História
do Direito Português. Foram uma obra de consolidação, pois
consolidam as fontes de direito anteriores num único corpo aplicável a
todo o país.
▪ Foram um ponto de chegada e um ponto de partida pois são a base
fundamental da evolução posterior do direito português.
▪ Por outro lado, as Ordenações Afonsinas consolidam plenamente a
autonomização do direito português perante Castela, perante o Sacro
Império e perante a própria Igreja (porque o direito romano e o direito
canónico são colocados pelas ordenações na posição subalterna de
fontes subsidiárias).

Ordenações Manuelinas
Elaboração:
▪ Em 1505, o Rei D. Manuel I encarregou uma comissão de juristas de
proceder à atualização das ordenações do Reino.
▪ O processo legislativo e trabalhos preparatórios tiveram várias
vicissitudes, inclusivamente, chegou-se a resultados que não
agradaram e até houve instruções expressas para destruir os
exemplares desses resultados que não agradaram.
▪ Só em 1521, ano da morte do rei D. Manuel I, se terminaram as novas
ordenações. O ano de 1521 ficou conhecido como a data das
Ordenações Manuelinas.
▪ Resolveu-se substituir as Ordenações Afonsinas pelas Ordenações
Manuelinas por dois motivos fundamentais:

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▪ Um dos motivos é a introdução da imprensa nos finais do século


XV no nosso país. Uma das obras que tinha de ser levada à
imprensa para impressão era a coletânea básica de direito do
reino. Ora, se tinham que levar as ordenações a ser impressas na
tipografia então, aproveitava-se e fazia-se um trabalho de
reforma prévia, e alterava-se aquilo que se julgava que era
necessário alterar – isto explica esta mudança de ordenações.
▪ Por outro lado, há também que ter em conta que D. Manuel I quis
ligar o seu nome a uma reforma legislativa importante. D. Manuel
I foi o monarca que assistiu aos pontos mais altos dos
descobrimentos (descoberta do caminho marítimo para a Índia,
rotas comerciais, descoberta do Brasil, Lisboa torna-se a capital
de um império vasto e poderoso).
Sistematização e conteúdo das Ordenações Manuelinas:
▪ Quanto à sistematização e conteúdo das Ordenações Manuelinas
manteve-se com a estrutura básica das Ordenações Afonsinas: 5 livros
divididos em títulos e os títulos divididos em parágrafos.
▪ A distribuição das matérias continuou a mesma, embora haja algumas
diferenças de conteúdo muito importantes, nomeadamente:
▪ Foram suprimidos os preceitos aplicáveis aos judeus e aos
mouros (como vimos estavam contidos no livro II das Ordenações
Afonsinas, mas agora desaparecem) porque os judeus e os
mouros tinham sido expulsos do território nacional.
▪ Houve ainda uma segunda alteração importante que foi a saída
da matéria financeira que estava no livro I, que foi trocado por
umas autónomas ordenações na fazenda.
▪ Em terceiro lugar, foi incluída nas Ordenações Manuelinas a
disciplina dos assentos da Casa da Suplicação.
▪ Por último, foram feitas alterações muito significativas em matéria
de direito subsidiário.
Técnica legislativa:
▪ Todos os preceitos, em todos os livros, estão redigidos em estilo
decretório.

Coleção das leis extravagantes de Duarte Nunes do Lião


▪ É uma obra legislativa, que não é uma ordenação.
▪ Foi uma coletânea que surge em 1569 e que vigorou, a partir daí, ao
mesmo tempo que as Ordenações Manuelinas.
▪ As Ordenações Manuelinas, ao longo da sua vigência, foram sendo
rodeadas por muitos diplomas avulsos, diplomas que eram diferentes
das coletâneas oficiais. A isso, acresceram ainda muitas interpretações

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vinculativas da lei através de assentos da Casa da Suplicação, ou seja,


diplomas dispersos muitas vezes até em contradição com o que
estabeleciam as ordenações e isto fazia com que ficasse em causa o
bom conhecimento do direito vigente e a sua coordenação.
▪ Este problema foi sentido e, para lhe dar resposta, o cardeal D.
Henrique, encarregou um jurista, Duarte Nunes de Lião, de organizar
uma coletânea que contivesse o chamado direito extravagante, ou seja,
que vigorava fora das ordenações.
▪ O cardeal D. Henriques encarregou Duarte Nunes uma vez que este já
tinha feito um repositório de direito extravagante para a Casa da
Suplicação. Este elaborou a obra e optou pelo resumo dos preceitos em
causa, uma síntese dos diplomas ou assentos.
▪ A essa síntese, compilada nesta coleção, foi dada a mesma autoridade
das disposições originais, através do alvará 14 de fevereiro de 1569,
portanto, esta coleção de leis extravagantes reunia sínteses do direito
extravagante anterior. Contudo, este alvará deu a tais sínteses a mesma
força dos originais e, para se solucionarem as dúvidas interpretativas
que eventualmente surgissem, tudo indica que o legislador apontava
como caminho a consulta dos originais.
▪ Teve este nome mesmo que contivesse preceitos extraídos de fontes
que não tinham natureza legislativa, nomeadamente os Assentos, que
eram interpretações de leis pela Casa da Suplicação.

Ordenações Filipinas
Elaboração:
▪ As Ordenações Manuelinas não foram uma obra particularmente
inovadora, sendo que em grande parte seguiram as Ordenações
Afonsinas.
▪ Havia um sentimento de que as Ordenações Manuelinas precisavam de
ser reformadas e atualizadas e quem vai determinar essa reforma é D.
Filipe I.
▪ Este era um monarca politicamente muito astuto e, sabendo que havia
necessidade de uma reforma das ordenações, mandou fazê-la. Com
isso, quis demonstrar o seu respeito pela autonomia de Portugal.
▪ Os trabalhos preparatórios foram iniciados entre 1583-85, mas o
trabalho só ficou concluído em 1595.
▪ Todavia o início de vigência só se dá em 1603, já no reinado do Rei D.
Filipe II.
Sistematização e conteúdo das Ordenações Filipinas:
▪ Manteve-se a sistematização anterior, a divisão e o conteúdo e
procurou-se uma pura revisão atualizadora das Ordenações
Manuelinas, sem grandes alterações.
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▪ Portanto, acima de tudo, as Ordenações Filipinas consistiram na reunião


de um único corpo constitutivo dos preceitos das Ordenações
Manuelinas e dos preceitos posteriores às Ordenações Manuelinas que
ainda se mantinham em vigor. No fundo, reunir num único corpo os
preceitos manuelinos e os preceitos extravagantes que tinham vindo a
aparecer.
▪ Houve duas alterações muito importantes:
▪ A matéria do direito subsidiário avançou do Livro II para o Livro
III, o que mostra uma perspetiva muito diferente no
preenchimento de lacunas.
▪ Para além disso, pela primeira vez no ordenamento jurídico
português é tratada a matéria do direito da nacionalidade, ou
seja, o conjunto de preceitos que estabelece quem é cidadão
português e, para isto, recorre-se aos ius sanguini e ao ius soli.
Confirmação destas ordenações por D. João IV:
▪ As Ordenações Filipinas são um produto político do período de união
ibérica e, em 1640, essa união termina e Portugal volta a ter um rei
português D. João IV.
▪ D. João IV logo em 1640 ratificou a legislação promulgada no período
da união ibérica. Em 29 de janeiro de 1643 voltou-se a confirmar a
vigência das Ordenações Filipinas, mas ao mesmo tempo que
confirmou, mostrou a intenção de as reformular, o que nunca
aconteceu. Por isso, as ordenações filipinas continuaram a vigorar em
Portugal pacificamente após a restauração da independência.
▪ Houve um fenómeno que ficou conhecido como Filipismos: é uma
expressão pejorativa para se referir aos defeitos das Ordenações
Filipinas, que foram assim designados no final do século XVIII. Os
defeitos eram, por exemplo, a falta de originalidade. Isto porque, até
por intenção política, os compiladores filipinos quiseram reduzir ao
máximo as inovações (para não criar mau estar político). Portanto, foram
uma mera obra de revisão e coordenação do direito vigente, aditando-
se às ordenações manuelinas preceitos novos que, entretanto, tinham
surgido. Deixaram-se ficar nas ordenações normas revogadas, já caídas
e em desuso. Para além disso, até houve contradições nas Ordenações
Filipinas porque se deixaram ficar preceitos das Ordenações
Manuelinas que eram já contrariados por outros.

Fontes de direito segundo as Ordenações


▪ Segundo as ordenações, estabelecia-se uma distinção fundamental nas
fontes de direito. Por um lado, tínhamos as fontes de direito pátrio e por
outro, as de direito subsidiário.

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Fontes de direito pátrio


1. Lei
▪ Qualificava-se como lei toda e qualquer manifestação de vontade do
rei, no sentido de introduzir alterações na ordem jurídica.
▪ Nesta fase reconhecia-se que, em princípio, a lei devia ser de aplicação
geral e abstrata, i.e., dirigindo-se a um número indeterminado de
destinatários e regulando um número indeterminado de casos da vida
social. Contudo, não era incomum dar-se a designação de lei a
diplomas que não tivessem essas características, nomeadamente,
diplomas individuais e concretos.
▪ Nesta fase das ordenações podemos dizer que os diplomas legislativos
disciplinaram, em regra, matérias de direito público. O direito privado
teve muito menor importância legislativo porque em grande medida se
confiava às fontes de direito subsidiário a regulamentação do direito
privado.
▪ Duas espécies de diplomas legislativos que já manifestavam uma clara
tendência de centralização da criação do direito na mão do monarca: as
cartas de lei e os alvarás, que tinham em comum a sua publicação
através de registo na chancelaria régia.
▪ Cartas de lei: começavam pelo nome próprio dos monarcas,
aparecendo na assinatura a expressão “El-rei”. Eram o modo de
promulgação das disposições que se destinassem a vigorar mais
de um ano.
▪ Alvarás: iniciavam-se pela expressão “Eu, El-rei”, aparecendo na
assinatura somente a palavra rei. Serviam para promulgar
disposições que vigorassem menos de um ano.
▪ Esta distinção não foi fixa e havia pouca consistência prática dessa
distinção. Os diplomas tenderam a confundir-se aparecendo as figuras
dos alvarás de lei, com força de lei e em forma de lei. Os vários tipos de
diplomas não obedeciam a características muito fixas e definidas.
▪ Publicação e início de vigência da lei nas ordenações: ainda não se
encontra nas Ordenações Afonsinas uma disciplina sobre a matéria.
Continuou o que era a prática anterior – com a função do chanceler
more de proceder ao registo dos diplomas na chancelaria. Com as
Ordenações Manuelinas atribui-se a publicação da lei ao chanceler
more na chancelaria da corte, devendo depois enviar traslados (cópias)
dos diplomas aos corregedores das comarcas, ou seja, aos
representantes da Coroa em cada comarca. Quanto à vacatio leges, o
alvará de 10 de dezembro de 1518 estabeleceu que as leis teriam
eficácia em todo o país após 3 meses da sua publicação na chancelaria
régia. As ordenações Manuelinas e Filipinas repetiram este preceito, ou
seja, mantiveram o prazo de 3 meses, mas reduzindo o prazo de vacatio
leges para 8 dias no que diz respeito à corte. Um alvará de 25 de janeiro

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de 1749 estabeleceu que as leis apenas produziriam efeitos nos


territórios ultramarinos depois de serem publicadas nas cabeças das
respetivas comarcas (isto era demorado).
▪ Interpretação da lei através dos assentos: o alvará de 10 de
dezembro de 1518 estabeleceu que a Casa da Suplicação (o tribunal
superior do reino) podia fazer uma interpretação vinculativa dos
preceitos da lei. Significa isto que, a partir daqui, todos os tribunais
tinham de interpretar aquele preceito do mesmo modo que o fazia a
Casa da Suplicação. Quando houvesse dúvidas entre os
desembargadores (juízes) da Casa da Suplicação sobre a interpretação
de algum preceito legal, deveriam levar essas dúvidas ao regedor da
Casa. O regedor convocava os desembargadores e, com eles, fixava a
interpretação que considerasse mais adequada. Se subsistissem ainda
dúvidas o regedor podia até recorrer ao monarca para que ele
proferisse uma resolução sobre a matéria. As interpretações legais
assim definidas ficavam registadas no Livro dos Assentos e tinham força
vinculativa para os futuros casos.
▪ Esta disciplina dos assentos estabelecida pelo alvará de 1518 e que
depois foi incluída nas Ordenações Filipinas e Manuelinas foi objeto de
fortes abusos. Em rigor, apenas era atribuída esta prerrogativa de
proferir assentos à Casa da Suplicação, mas outros tribunais arrogaram-
se do mesmo poder e começaram a proferir assentos (ex.: Tribunal da
Relação do Porto). Dentro da sua esfera de competência começaram
também os tribunais da relação a arrogar-se a competência de
estabelecer interpretações vinculativas da lei e que a partir daí deviam
ser seguidas pelos tribunais que estivessem na sua jurisdição. Isto era
um abuso porque nenhuma norma legal lhes reconhecia essa
competência. A competência para proferir assentos, i.e., para
interpretar vinculativamente a lei para o futuro era conferida legalmente
apenas à Casa da Suplicação.
▪ Só com a lei da Boa Razão de 1769 se pôs termo a esse abuso, quando
se definiu que só os assentos da Casa da Suplicação tinham uma eficácia
interpretativa obrigatória.
▪ Funcionavam em Lisboa dois tribunais superiores: a Casa da Suplicação
e a Casa do Cível.
▪ A Casa do Cível era um tribunal que tinha competência para julgar
recursos de causas cíveis, exceto se a sentença de primeira instância
fosse proferida no lugar onde se encontrava a corte ou 5 léguas em
redor (aí seria competência da Casa da Suplicação).
▪ A Casa da Suplicação tinha competência para conhecer os recursos das
causas criminais, exceto se provenientes de Lisboa e seu termo (essas
seriam da competência da Casa do Cível).

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▪ Numa intenção de descentralizar os tribunais de recurso, Filipe I em


1582, desloca a Casa do Cível para o Porto e, com isso, transformou-a
na relação do Porto.
▪ A relação do Porto era o tribunal de última instância em matéria
criminal nas comarcas do Norte e em matéria cível apenas não seria
última instância quando a causa ultrapassasse determinados montantes.
Os desembargadores da relação do Porto sentiram-se, de algum modo,
com as mesmas prerrogativas dos desembargadores da Casa da
Suplicação.
▪ Em suma, os assentos eram a fixação de uma interpretação de preceitos
legais que a partir daí tinha de ser obrigatoriamente seguida por todos
os tribunais.
2. Os estilos da Corte
▪ Entre nós, em Portugal, entenderam-se os estilos da Corte como uma
jurisprudência uniforme e constante dos tribunais superiores em rigor
apenas da Casa da Suplicação, ou seja, acabavam por ser um costume
judicial (repetição de decisões judiciais).
▪ Apesar de não serem requisitos formulados nas próprias Ordenações
para que os estilos da Corte fossem fonte de direito pátrio, de acordo
com a opinião dominante, os estilos da corte para serem fontes deviam
obedecer a três requisitos:
▪ Não se apresentarem contrários à lei;
▪ Deviam possuir uma antiguidade de 10 anos ou mais;
▪ Deviam ser introduzidos pelo menos através de dois atos
conformes do tribunal superior.
▪ Em 1605, uma carta régia estabeleceu que quando houvesse dúvidas a
respeito dos estilos da Corte e até quando fosse alterada essa prática
do tribunal, tal devia ser objeto de assento.
3. Costume
▪ Falamos aqui de direito consuetudinário.
▪ A este propósito, diga-se que as Ordenações Afonsinas definiram que
vigorava o costume do reino antigamente usado.
▪ Contudo, as Ordenações Manuelinas (e as Filipinas no seu seguimento)
já estabeleceram uma disciplina um pouco mais densa do costume.
▪ Por um lado, reconhecem que os costumes gerais e os costumes locais
estavam no mesmo plano e, portanto, quer os costumes aplicados a
todo o reino, quer os costumes aplicados apenas a uma determinada
zona, eram reconhecidos como fonte de direito.
▪ Por outro lado, restringe-se a vigência do costume como fonte de
direito aos casos em que a doutrina romanística e canonística admitisse
a sua vigência, i.e., fazia-se uma remissão para as doutrinas do direito

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comum romano-canónico e apenas se reconheceria o costume como


fonte de direito se essas doutrinas o reconhecessem.
▪ Neste sentido, podemos dizer, que continuou a ser reconhecido no
ordenamento jurídico nacional o costume conforme a lei (“secundum
legem”), o costume para além da lei (“praeter legem”) e até se
reconhecia o costume contrário à lei (“contra legem”). Qualquer destes
costumes era admitido.
▪ Foi dominante uma orientação proveniente das doutrinas do direito
canónico de que o costume contrário à lei só era aceite ressalvados os
preceitos de ordem pública, ou seja, não se admitia o costume contrário
à lei em matérias de ordem pública (o conjunto de princípios e valores
de tal modo fundamentais no sistema jurídico que não admitem
derrogação).
▪ Por outro lado, também se pode dizer que continua o conceito do
costume como vontade do monarca, mas uma vontade tácita.
▪ Quanto aos requisitos do costume para ser fonte de direito, por
determinação das Ordenações, tinha de se recorrer ao que as doutrinas
de direito comum romano-canónico estabelecessem. Temos dois
requisitos para tal:
▪ Antiguidade – foi genericamente aceite a doutrina do direito
comum que exigia um período de vigência do costume igual ou
superior a 10 anos. Alguns autores, para o costume contra legem,
exigiam uma duração mínima de 40 anos para que fosse aceite
como fonte de direito.
▪ Número de atos necessários à demonstração de vigência do
costume – ou seja, número mínimo de atos de prática do
costume. As opiniões divergiram entre 1 e 10 atos, mas a que
acabou por prevalecer foi a que exigia um mínimo de 2 atos que
podiam até ter natureza judicial (atos praticados em Tribunal).

Fontes de direito subsidiário


O direito subsidiário é um sistema de normas jurídicas a que se recorre para
preencher as lacunas de outro sistema.
▪ Podemos distinguir entre direito subsidiário geral e especial.
▪ Direito subsidiário geral: aquele a que se recorre para o
preenchimento de lacunas de uma ordem jurídica na sua totalidade.
Apresenta-se como direito subsidiário outro sistema jurídico e nele
tenta-se encontrar solução ou resposta para as lacunas de uma ordem
jurídica na sua totalidade. Era o que se passa nas Ordenações, nas quais
estas remetiam em bloco para outros sistemas jurídicos (direito romano
e direito canónico) para o preenchimento das lacunas de todo o direito
português.

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▪ Direito subsidiário especial: preenche as lacunas apenas de um ramo


de direito ou de uma simples instituição. Por exemplo, o Código de
Processo Penal remete para o Código de Processo Civil para
preenchimento das suas lacunas; o artigo 1165.º CC estabelece que as
disposições sobre o contrato de mandato são extensivas com as
necessárias adaptações às modalidades do contrato de prestação de
serviço que a lei não regule especialmente, i.e., quando algum contrato
de prestação de serviços não tiver disciplina própria na lei, deve-se
recorrer às normas aplicáveis ao contrato de mandato. É o que vigora
hoje em dia.
▪ Podemos dizer, ainda, que na época das Ordenações havia um direito
subsidiário geral porque na verdade não havia um sentido de
verdadeira autonomia (exclusividade nacional) dos diversos
ordenamentos jurídicos. Entendia-se que o ordenamento jurídico
nacional não era completamente estanque e tinha de ser visto dentro
de um contexto mais amplo (do direito comum). Não existia, ainda, o
dogma da autossuficiência do ordenamento jurídico. Vermos, aliás, que
o problema da integração de lacunas mudará completamente os seus
quadros com o Código de Seabra, no século XIX, já sob influência do
positivismo jurídico e da pretensão de autossuficiência
regulamentadora do ordenamento jurídico nacional.

Segundo as Ordenações Afonsinas


1. Direito romano e direito canónico
▪ Segundo as Ordenações Afonsinas devia-se recorrer primeiramente ao
direito romano e ao direito canónico, que eram designados,
respetivamente, como leis imperiais e santos cânones.
▪ Para delimitar o âmbito de aplicação subsidiária do direito romano e do
direito canónico temos aqui dois critérios: critério da natureza da
matéria da lacuna e o critério do pecado.
▪ As Ordenações Afonsinas estabeleciam, neste sentido, que o direito
romano era aplicável às questões jurídicas de natureza temporal, exceto
se a solução contida no direito romano conduzisse a uma solução
pecaminosa, i.e., contrária à fé cristã. Já o direito canónico era aplicável
nas matérias de ordem espiritual e nas matérias temporais em que a
solução do direito romano conduzisse a pecado – verifica-se uma
combinação entre dois critérios.
▪ As Ordenações Afonsinas exemplificavam o critério do pecado com a
figura da usucapião (forma de aquisição do direito de propriedade
através do exercício da posse ao longo de um certo tempo), que era
admitida pelo direito romano em benefício do possuidor de má fé se a
posse fosse exercida durante 30 anos, mas o direito canónico rejeitava
porque isso seria pecaminoso.
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2. Glosa de Acúrsio
▪ Era a segunda fonte subsidiária a que se devia de recorrer.
▪ Se não se encontrasse disciplina para o caso omisso nem no direito
romano, nem no direito canónico, devia ser aplicada a glosa de Acúrsio.
3. Opinião de Bártolo
▪ Em terceiro lugar, recorria-se à opinião (trabalhos e comentários) de
Bártolo, ainda que outros doutores tivessem opiniões diferentes.
4. Resolução do monarca
▪ Se nestas fontes ainda não se conseguisse disciplina para o caso omisso,
devia recorrer-se ao rei. Este proferiria uma resolução que valeria de
futuro para todos os casos semelhantes.
▪ Também se devia recorrer à resolução do monarca quando o caso
omisso, não envolvendo matéria de pecado e não tendo disciplina nos
textos de direito romano, tivesse soluções diferentes por um lado no
direito canónico e por outro na Glosa de Acúrsio e na opinião de
Bártolo.
Tratava-se de uma aplicação hierarquizada destas fontes! Deve recorrer-se a
estas pela ordem.

Segundo as Ordenações Manuelinas (alterações)


▪ As Ordenações Manuelinas tiveram o cuidado de justificar a vigência
subsidiária do direito romano – justificaram isto através de um
sublinhar da autoridade intrínseca do direito romano, do seu valor
intrínseco, porque o DR era em si mesmo um direito superior e fundado
na boa razão, racional, muito perfeito.
▪ Com isto, o legislador manuelino quis afastar qualquer subordinação do
direito português ao Sacro Império – não se aplicava o direito romano
por ser o direito do império, mas sim por ser em si mesmo um direito
racional, justo e adequado – tratava-se de uma justificação não da razão
do império, mas do império da razão.
▪ Quanto à aplicação dos direitos romano e canónico, as Ordenações
Manuelinas afastam a distinção entre problemas temporais e
problemas espirituais, consagrando apenas o critério do pecado,
qualquer que fosse a matéria da lacuna. Recorria-se, então, ao direito
romano. Só se aplicaria o direito canónico se a solução contida no
direito romano constituísse pecado – portanto, a importância do direito
canónico diminuiu.
▪ Estabelece-se, agora, que a Glosa de Acúrsio e a opinião de Bártolo
só seriam aplicadas subsidiariamente se não fossem contrariadas
pela opinião comum dos doutores, i.e., pela doutrina dominante,

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opinião maioritária dos doutores. Embora, quanto a Bártolo, só se tinha


em conta os autores que tivessem escrito depois dele. Portanto, a
opinião comum dos doutores acabava por ser um filtro da Glosa de
Acúrsio e da opinião de Bártolo. Isto acabou por levar a uma
interpretação abusiva que viu na opinião comum dos doutores uma
fonte subsidiária autónoma, a que se deveria recorrer mesmo antes de
recorrer à Glosa e à opinião de Bártolo.
Segundo as Ordenações Filipinas (alterações)
▪ Há apenas uma alteração puramente sistemática.
▪ Até então, a matéria de direito subsidiário era disciplinada no livro II das
Ordenações, a propósito das relações entre estado e Igreja. As
Ordenações Filipinas passaram a matéria de direito subsidiário para
o livro III, relativo ao processo civil.
▪ Esta mudança sistemática tem um significado político muito profundo.
Com isto, o legislador filipino quis mostrar que desligava
completamente a questão do preenchimento de lacunas de uma ideia
de conflito entre poder temporal e poder da Igreja – era meramente
uma questão técnico-política.

Utilização das fontes


▪ Uma coisa é a “Law in Books”, o que está prescrito nas fontes de direito.
Outra diferente, é a “Law in Action”, o direito efetivamente praticado.
▪ Na verdade, houve frequentes confusões e violações do que as
Ordenações estabeleciam quanto às fontes de direito.
▪ Verificava-se, frequentemente, uma preterição do direito pátrio a favor
do direito romano, i.e., aplicar prioritariamente o direito romano em
prejuízo do direito português – que era uma violação do que consta nas
Ordenações.
▪ Notava-se, ainda, um abuso da opinião comum dos doutores, dando-
lhe uma excessiva importância que não constava nas Ordenações,
como vimos anteriormente.
▪ Refira-se, ainda, um outro gravíssimo atropelo ao que as Ordenações
estabeleciam: mesmo durante a vigência das Ordenações chegou a
aplicar-se direito castelhano.
▪ Segundo as lições, também prevalecia uma regra interpretativa de que
as normas de direito nacional deviam receber uma interpretação
extensiva ou restritiva, consoante fossem de acordo com o direito
romano ou opostas ao direito romano – regra metodológica.
▪ As várias questões de incumprimentos práticos pelas decisões dos
tribunais daquilo que estava estabelecido nas ordenações é referente
aos tribunais mais elevados, porque ao nível concelhio, dos juízes dos
concelhos, os problemas eram ainda maiores. Muitas vezes estes juízes

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até eram analfabetos – nem sequer os textos de direito conseguiam ler,


quanto mais aplicá-lo. Um alvará de 13 de novembro de 1642
estabeleceu que não podiam servir de juízes pessoas que não
soubessem ler e escrever.
▪ Portanto, o sistema de direito estabelecido nas Ordenações não foi, na
prática, respeitado de forma rigorosa. A prática dos tribunais esteve
várias vezes muito afastada do que o legislador determinava.

Reforma dos Forais


▪ Os forais tiveram destacada importância como fonte de direito no
período da individualização e no período seguinte.
▪ Todavia, os forais cessaram de ser outorgados em meados do século
XIV e, portanto, com a avançar dos tempos tornaram-se uma fonte de
direito antiquada.
▪ Verificou-se um fenómeno de desatualização dos forais e até de
graves problemas trazidos por essa desatualização: havia uma
contrariedade entre o amplo papel que tinham tido os forais e o novo
contexto político de centralização da criação jurídica no Rei. Os forais
eram fonte de direito local e, com o avançar dos tempos, a centralização
político-jurídica na coroa tinha afastado essa pulverização da criação
jurídica através de fontes de direito local.
Desatualização dos forais
▪ Uma parte significativa do conteúdo dos forais já estava revogada pela
legislação no geral. Isto é, as leis dos monarcas que tinham sido
emitidas ao longo dos anos muitas vezes já tinham revogado matérias
da disciplina dos forais, nomeadamente, matérias administrativas,
processuais e até de direito penal. Portanto, os forais continuavam a
conter normas já revogadas pelas leis dos monarcas.
▪ Várias normas contidas nos forais, que ainda se mantinham vigentes,
relativas aos encargos e isenções tributárias (i.e., aquilo que devia ser
pago pelos habitantes aos senhores das terras e as situações de isenção
de tributos) muitas vezes já estavam obsoletas, porque se referiam a
pesos, moedas e medidas em desuso.
▪ Muitos forais estavam muito deteriorados, eram já muito antigos – o
tempo tinha feito com que, fisicamente esses, documentos se
deteriorassem e já nem se conseguiam ler bem.
▪ Já se tinham tomado determinadas providências para atualizar as
prestações devidas pelos habitantes das terras, devido à desvalorização
monetária. Tudo isto dava origem a incertezas porque os senhores das
terras, ao atualizarem as prestações devidas, obviamente que tentavam
aumentar o que pudessem para o seu lado. Portanto, isso levou a
problemas de arbitrariedades e opressões sentidas pelas pessoas.

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Pedidos de reforma dos forais


▪ Precisamente por todos estes problemas da desatualização dos forais
que estes acarretavam, em 1472-73, os procuradores (representantes
das populações) dos concelhos no âmbito das cortes, pediram ao rei D.
Afonso V uma reforma dos forais, para de algum modo se pôr fim as
opressões injustas nas populações.
▪ Nas cortes de Évora e Viana do Alentejo em 1481-82 fizeram-se pedidos
semelhantes ao rei D. João II, que os atendeu: numa carta régia de 1481
determinou que se enviassem à Corte todos os forais para serem
reformados. Se isso não acontecesse, estes perderiam validade. Este foi
um processo muito demoroso e D. João II entretanto faleceu.
▪ Nas cortes de Montemor-o-Novo, em 1495, os representantes do
concelho voltaram a pedir ao rei D. Manuel I que se fizesse uma revisão
dos forais. Assim, o rei determinou, em 1497, que fossem enviados para
a Corte todos os forais que ainda não tivessem sido e, ao mesmo tempo,
nomeou uma comissão para rever os forais. Foi um trabalho também
muito lento, porque eram muitos forais e porque houve resistências. De
qualquer modo, a reforma ficou concluída em 1520, com resultados
muitos variados.
▪ Assim, os forais passaram a ser conhecidos pela seguinte terminologia:
os forais velhos são os forais anteriores à reforma; os forais novos ou
manuelinos são aqueles que surgiram da reforma; os forais novíssimos,
que foram os concebidos após a reforma de D. Manuel I, mas que foram
em muito escassos.
Conteúdo dos forais novos ou manuelinos
▪ Quanto ao conteúdo dos forais reformados, podemos dizer que o seu
papel de principal estatuto de disciplina do direito público nos
conselhos desapareceu.
▪ Agora, os forais novos limitam-se a disciplinar os encargos e tributos ao
monarca e aos senhores das terras, ou seja, tornam-se apenas estatutos
tributários.
▪ Estávamos agora num contexto de centralização do poder, de
unificação jurídica do território e da concentração da criação do direito
na coroa. Portanto, essa pulverização de criação normativa que tinha
sido tão típica de períodos anteriores, desaparece completamente e
esta reforma dos forais é fruto disso.

Humanismo jurídico
▪ O humanismo jurídico é uma corrente da ciência jurídica europeia que
foi o reflexo, no mundo do direito, dos ideais do renascimento,

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portanto, esse é o movimento cultural, filosófico e político da segunda


metade do século XV e no século XVI.
▪ Os ideais do renascimento tiveram reflexo no mundo do direito através
desta corrente do humanismo jurídico.
▪ A escola humanista tem o seu início em Itália tendo sido o seu grande
percursor o milanês Alciato. Acaba também por se desenvolver ao
longo do século XVI, em França, onde encontrou terreno fértil para o
seu crescimento.
Fatores que estiveram na base do desenvolvimento da escola humanista:
▪ Em primeiro lugar, o progresso do humanismo renascentista, ou seja,
os ideais renascentistas de recuperação dos textos e da cultura da
antiguidade clássica não puderam deixar de ter espelho/eco na ciência
do direito.
▪ Por outro lado, ao mesmo tempo, verifica-se a decadência da escola
dos Comentadores com o uso rotineiro do método escolástico que,
juntamente com um abuso do princípio da autoridade, acabou por
conduzir a uma repetição de argumentos e de autores a favor ou contra
de uma determinada posição, já sem qualquer tipo de originalidade.
▪ Estes dois fatores vão se conjugar no sentido de se desenvolver uma
metodologia jurídica alternativa aos métodos iniciados pelos
comentadores.
▪ Era, aliás, muito forte a crítica dos humanistas à escola Bartolista e seus
seguidores, nomeadamente, pelo seu desconhecimento dos aspetos
históricos do direito romano. Os comentadores encaravam o direito
romano numa perspetiva prática de retirar dos textos do Corpus Iuris
Civilis soluções para os casos do seu tempo, sem terem uma
preocupação de contextualização histórica do acontecimento daqueles
pretextos. Ora, isto é particularmente criticado pelos humanistas que
preferiram encarar os textos do Corpus Iuris Civilis como uma
manifestação da cultura da Antiguidade Clássica e, portanto, uma
manifestação histórica de um produto de um determinado momento
histórico.
▪ Os humanistas foram os iniciadores de um estudo crítico dos textos
de direito romano, no sentido de os perceberem como produto de um
momento histórico já há muito passado e que esse mesmo produto
histórico tinha sofrido diversas alterações.
▪ Os humanistas dedicaram-se, nos textos de Direito Romano, a distinguir
o que seria clássico e o que já teria sido alterado na época Justinianeia.
Tinham uma visão completamente diferente de como estudar o direito
romano: aliás, isso conduziu a uma relativização do valor do direito
romano: Se se vir o direito romano como produto de um tempo
histórico, muito mais facilmente é visto como um conjunto de preceitos
que pode não ser aplicável ao tempo presente. Esta visão crítica do

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

humanismo jurídico vai realmente chocar com a perspetiva dos


Comentadores.
▪ Por outro lado, o espírito individualista e racionalista do renascimento
tem também o seu reflexo no humanismo jurídico que vai defender a
liberdade e autonomia do jurista no estudo do direito na interpretação
dos textos, ou seja, o livre exame das fontes romanas sem a necessidade
de se seguir a opinião dominante. Esta atitude vai ser decisiva num
afastamento dos humanistas em relação aos legados da escola dos
comentadores.

▪ O italiano Alciato, grande percursor do humanismo jurídico, era um


jurista milanês que acabou por ensinar em França na universidade de
Burges. O percurso dele acabou por ser o percurso da própria escola
do humanismo jurídico, porque apesar de ter surgido em Itália vai-se
desenvolver em França do séc. XVI. Aí encontrou terreno fértil, porque
França era um reino muito desligado do império e do papado e,
portanto, era onde havia condições mais favoráveis a uma visão do
direito que relativizasse o valor do direito romano
▪ Aliás, considera-se que o jurista mais importante do humanismo jurídico
foi Cujácio, jurista de uma rigorosíssima interpretação dos textos
romanos numa perspetiva histórica, ou seja, de descobrir nos textos as
suas origens históricas e as alterações que tinham depois sofrido após
a época clássica com a compilação Justinianeia e até numa perspetiva
filológica, ou seja, numa perspetiva linguística (os humanistas criticaram
muito a falta de conhecimento dos comentadores em termos do bom
latim clássico, pois estes desconheciam as regras mais profundas do
latim clássico).

▪ Assim sendo, podemos dizer que há, ao longo dos séculos XVI e XVII,
uma contraposição entre humanismo e bartolismo, ou seja, entre o
humanismo jurídico resultante dos ideais da renascença e o legado da
escola dos comentadores ainda da idade média. Assim se fala de um
debate entre “mos galicus” e “mos italicus”, ou seja, um debate entre a
metodologia jurídica dos humanistas e o modo italiano, das escolas
italianas (glosadores e comentadores).
▪ Não se pode dizer que o humanismo tinha conseguido prevalecer de
imediato sobre o bartolismo, porque os humanistas tinham um
programa teórico que exigia uma preparação científica muito rigorosa,
muito pormenorizada ao nível linguístico e histórico e isso não era
atrativo para rotina forense, para a prática dos tribunais.
▪ As metodologias dos comentadores que queriam acima de tudo retirar
dos textos romanos soluções para os casos concretos: eram de muito
mais fácil aceitação perante os operadores do direito.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ Por isso, podemos dizer que o “mos galicus” não teve aceitação
generalizada durante os séculos XVI e XVII. Teve adeptos e a sua
influência, mas o cerne da prática jurídica continuou dominado pela
herança dos comentadores.
▪ Em Portugal, após a instalação definitiva da Universidade em Coimbra,
no período seguinte a essa instalação, houve um certo florescer dos
ideais humanistas no estudo do direito. Contudo, isso não passou dos
meados do século XVI e, na segunda metade do século XVI, pode-se
dizer que o bartolismo, o legado dos comentadores, tinha sido de novo
perfeitamente assumido e sem haver uma vitória dos ideais do
humanismo jurídico. Portanto, Portugal é um exemplo desta
incapacidade humanística de se afirmar como alternativa ao
bartolismo. Mesmo em França o humanismo jurídico nunca se impôs
completamente.

Segunda Escolástica
▪ Desenvolveu-se nos séculos XVI e XVII, na Península Ibérica, uma
corrente do pensamento jurídico que ficou conhecida como Segunda
Escolástica, Escola Espanhola ou Escola Peninsular do Direito
Natural, que procedeu a uma importante reflexão filosófico-jurídica
sobre o direito e o Estado, em face da conjuntura do tempo que se vivia.
▪ Fala-se em Escola Espanhola do Direito Natural, mas talvez se devesse
falar de Escola Peninsular do Direito Natural, porque também houve
autores portugueses importantes que para ela contribuíram.
▪ A base na segunda escolástica foi a escolástica medieval e o
pensamento de São Tomás de Aquino, à luz dos quais a segunda
escolástica e os seus autores identificaram os princípios fundamentais
de uma ordem de direito natural inspirada em Deus.
▪ Essa ordem jurídica superior era o modelo pelo qual se aferia a validade
do direito positivo, isto é, a validade do direito efetivamente vigente.
▪ A segunda escolástica foi um movimento jus naturalista, partindo do
centro do pressuposto da existência de uma ordem jurídica superior,
que continha as exigências abstratas de justiça e de correção.
Contributos da Segunda Escolástica
▪ A especulação filosófica sobre o direito e o Estado levada a cabo pelos
teólogos juristas da segunda escolástica trouxe contributos muito
relevantes à teoria do estado, ao direito penal, ao direito privado e ao
debate de problemas, como a usura e sua legitimidade, ou seja,
legitimidade do empréstimo de dinheiro a juros e o preço justo (a
chamada “laesio enormis”: a lesão enorme) ou seja, quando o preço da
coisa vendida se afastasse mais de metade do valor considerado justo.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ A segunda escolástica destacou-se sobretudo pela criação do moderno


direito internacional público, que foi impulsionada pelos
descobrimentos e pelas questões que estes suscitaram sobre a
liberdade de navegação, a ocupação dos territórios descobertos ou
conquistados e até os estatutos jurídico dos habitantes desses
territórios.
▪ Foi a segunda escolástica que começou a dar resposta a estes
problemas criando o moderno direito das gentes (“ius gentium”), ou
seja, o direito internacional: o direito das relações entre os diversos
povos.
▪ Todos estes problemas trazidos pelos descobrimentos não tinham
resposta capaz até então e foi a segunda escolástica que começou a
fazer a necessária reflexão para se encontrarem soluções para eles.
▪ Alguns dos juristas da segunda escolástica que tiveram grande
importância: Francisco de Vitória, que é considerado o pai do
moderno Direito Internacional Público; Domingo de Souto; Luís de
Molina; Francisco Soares, que ensinou na UC.
▪ A Segunda Escolástica abriu caminhos e teve uma grande importância
na especulação filosófica e até na análise jurídica sobre diversos
problemas que se levantaram na sua época.
Questão da liberdade de navegação:
▪ Com os descobrimentos descobriram-se novas rotas marítimas e
suscitou-se a questão de saber se havia uma liberdade de navegação
por todos os povos (“mare liberum”) ou se essas rotas marítimas eram
monopólio de Portugal e Espanha (“mare clausum”), os países que as
tinham descoberto.
▪ O mare liberum foi defendido por um grande jurista holandês, Hugo
Grócio, baseado numa perspetiva filosófica.
▪ Já na defesa do mare clausum tivemos um jurista português, Serafim
de Freitas, que era professor de direito canónico na universidade em
Espanha. Contrapôs-se às ideias de Grócio com a teoria do mare é
clausum, que assenta em bases do Direito Romano e da teoria dos
juristas que estudaram o Direito Romano da escola dos comentadores.
Portanto, aqui há uma perspetiva mais de direito positivo que
propriamente de reflexão filosófica como a de Grócio. Aliás, a teoria do
mare é clausum teve outros defensores fora do âmbito peninsular,
como por exemplo, um jurista inglês, John Saldam (?).
▪ Contudo, era óbvio que esta situação não era um debate inocente em
termos de interesses políticos e económicos – a Holanda tinha todo o
interesse em poder usar as novas rotas marítimas e Portugal e Espanha
tinham todo o interesse em monopolizar essas rotas marítimas para si
mesmas. No final, o mare liberum acabou por se impor.

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PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

▪ Divide-se em 3 épocas.

Época do jusnaturalismo racionalista


▪ A época do jusnaturalismo é a primeira época do período da formação
do direito português moderno. Desenvolve-se de 1769-72 até 1820. É
uma época marcada, acima de tudo, pelas importantíssimas reformas
pombalinas, ou seja, reformas introduzidas pelo governo do Marquês
de Pombal no direito português.
Correntes do pensamento jurídico europeu que inspiraram essas reformas
pombalinas:
1. Escola direito natural racionalista;
2. Usus modernus pandectarum;
3. Jurisprudência elegante;
4. Iluminismo;
5. Humanitarismo.

1. Escola do Direito Natural Racionalista


▪ O direito natural é um conceito muito antigo, vindo do pensamento
grego e romano. No fundo, corresponde às ideias abstratas de justiça
contidas num sistema jurídico ideal e que serve até para aferir o caráter
justo ou não do direito positivo, ou seja, do direito vigente.

▪ Na Idade Média, a concessão de direito natural é baseada na ideia de


Deus, numa visão teocêntrica – com Deus no centro.
▪ São Tomás de Aquino teve um papel muito importante na elaboração
da ideia de direito natural na Idade Média e defendia que Deus aprovou
o direito natural porque nesse direito existe uma verdade racional e
eterna, ou seja, por si mesmo o direito natural tem uma verdade.
▪ Esta posição idealista ou nominalista defendida por São Tomás de
Aquino quanto ao direito natural foi desenvolvida por vários autores,
nomeadamente, por autores da segunda escolástica.
▪ O raciocínio levado a cabo pelos autores idealistas acaba por levar a um
afastamento da ideia de direito natural em relação a Deus.
▪ Este raciocínio era de que, mesmo que não existisse razão divina,
haveria sempre algo que faria com que o conteúdo do direito natural
fosse o mesmo. São Tomás de Aquino defendia que o direito natural
contém uma verdade racional e eterna, por isso Deus o quer. Então, o
raciocínio que surgiu apresentou a ideia de que mesmo que, por

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

absurdo, Deus não existisse, o direito natural seria o mesmo, dado esse
caráter de verdade eterna e racional. Está preparada, portanto, a cisão
entre a ideia de direito natural e a ideia de Deus.

▪ O holandês Hugo Grócio serviu-se desse argumento, mas como ponto


de partida de uma concessão de direito natural que já não se baseia em
Deus – a ordem jurídica superior a partir da qual se avalia o direito
positivo deixa de ser de cariz divino e é fundada na razão do homem.
▪ Ele vai desenvolver esse raciocínio da segunda escolástica, mas como
ponto de partida para afastar completamente a ideia de Deus e
construir um sistema de direito natural exclusivamente baseado na
razão do homem.
▪ Segundo Hugo Grócio, o direito natural é por si mesmo um direito que
contém a verdade. O homem através da sua razão, da sua capacidade
de entender, alcança-o.
▪ É assim que vários autores que, seguindo os pressupostos da obra de
Hugo, vão desenvolver uma compreensão do direito natural
completamente desvinculada de pressupostos metafísicos ou
religiosos.
▪ Para estes, o direito natural era livremente encontrado pela razão do
homem. Assim como as leis do mundo físico eram imanentes a natureza,
por exemplo, a lei da gravidade, também as normas que disciplinam as
relações sociais são inerentes à própria natureza e o homem, através da
sua capacidade de raciocinar, vai alcançá-las e, para isso, não precisa
minimamente de recorrer a ideia de Deus.

▪ Este direito natural racionalista vai avançar em relação às concessões de


direito natural da segunda escolástica, porque os autores da segunda
escolástica limitaram-se a enunciar princípios gerais, i.e., ideias
genéricas do que seria o direito natural. Agora, vão-se construir
verdadeiros sistemas de direito natural, com exposições sistemáticas
que baseiam em axiomas básicos e que vão sendo dedutivamente
decompostos em regras cada vez mais especificas, até haver
verdadeiros sistemas jurídicos altamente densos de direito natural.
▪ Este direito natural racionalista, assim construído, vai ter uma enorme
importância porque muito influenciou a ciência jurídica da época,
nomeadamente, o estudo do direito positivo.

2. Usus Modernus Pandectarum


▪ É o uso moderno das pandectas (designação grega do digesto), i.e., uso
moderno do direito romano.
▪ O nome desta escola advém do título de uma obra de um dos seus
autores Samuel Stryck. Este escreveu uma obra bastante volumosa de

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

comentário ao digesto, intitulada de “Usus Modernus Pandectarum”


que foi considerada tão representativa que acabou por batizar a
corrente.
▪ Podemos assinalar nesta corrente os seguintes vetores: vetores
práticos, vetores racionalistas, vetores de racionalismo jurídico: três
pontos capitais no usus modernus pandectarum.
Confluência de vetores:
▪ Vetor prático: O usus moderno pandectarum, uma escola que surge na
Alemanha no início do século XVII (embora tenha passado a outros
países, nomeadamente, a Portugal) tinha como ponto capital distinguir
o direito romano que ainda era direito vivo/aplicável às condições
daquele tempo, do direito romano que se tinha tornado obsoleto (que
já não estava adaptado as circunstâncias do tempo e que correspondia
a situações romanas peculiares). Portanto, o jurista apenas devia
aproveitar as primeiras pondo de parte as segundas.
▪ Vetor racionalista: Ligado a isto, surge-nos a vertente racionalista do
usus modernus pandectarum. Numa segunda fase, já em finais do
século XVII e século XVIII, os autores do usus modernus pandectarum
usaram as concessões do direito natural racionalista, ou seja, as
reflexões usadas pelos autores da escola do direito natural racionalista,
para se aferir se os preceitos romanos eram ou não atuais, se eram
suscetíveis de uma prática atualizada.
▪ Ou seja, o direito natural racionalista ver-se-ia como um padrão para
saber se as normas do direito romano eram ou não suscetíveis de
continuar a ser aplicadas. Obviamente que aquilo que fosse contrário
ao que se entendia como direito natural baseado na razão do homem
não devia ser aplicado.
▪ Vetor de racionalismo jurídico: o usus modernus pandectarum é
marcado fortemente pelo racionalismo jurídico, ou seja, ao lado das
normas romanas que ainda eram suscetíveis de ser aplicadas no tempo
presente, o usus moderno pandectarum chamava a atenção para a
importância do direito pátrio, que era uma parte fundamental do
ordenamento vigente.
▪ Portanto, temos aqui os três vetores fundamentais da escola do usus
modernus pandectarum: um carácter prático, um carácter racionalista e
um carácter de racionalismo jurídico.
Comparação face à escola do direito natural racionalista:
▪ Já numa época avançada da escola, os autores do usus modernus
pandectarum usaram as reflexões do jusnaturalismo racionalista para
averiguar da atualidade das normas romanas.
▪ Contudo, jusnaturalismo racionalista e usus modernus pandectarum
não se confundem – o primeiro é um movimento de especulação

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

filosófica, já o segundo era uma escola dogmática de estudo do direito


positivo, ou seja, do direito vigente. E, embora muitas vezes se tenha
seguido as reflexões do jus racionalismo no seu trabalho, outras vezes
não se o fez. Isto porque os autores entendiam que as normas romanas
não estavam reformuladas de tal ordem que não permitiam uma
derrogação pelo direito natural.

3. Jurisprudência elegante
▪ No século XVI, cresceu em França o humanismo jurídico – a corrente
que foi o reflexo da renascença do direito.
▪ No século XVII, as ideias humanistas passam a ter o seu centro na
Holanda, devido às perseguições religiosas que os jurisconsultos
humanistas da escola culta sofreram, uma vez que muitos deles
aderiram ao protestantismo e foram fortemente perseguidos em
França. Por esta razão, muitos deles fixaram-se nos Países Baixos, onde
continuaram os seus estudos jurídicos com base nos pressupostos
humanistas.
▪ Chama-se jurisprudência elegante porque os seus autores tinham uma
grande preocupação no rigor das formulações jurídicas e na correta
expressão escrita. Por isso, de algum modo qualificando o seu estilo,
ficaram conhecidos como os jurisconsultos elegantes.
▪ Entenda-se que esta jurisprudência elegante, apesar da sua inspiração
humanista, não deixou de também revelar influência do usus modernus
pandectarum, especialmente nas suas preocupações práticas.
▪ Portanto, podemos dizer que a jurisprudência elegante de algum modo
é uma mescla entre humanismo jurídico e usus modernus pandectarum.

4. Iluminismo
▪ Corrente cujo nome se deve à ideia de que os seus representantes eram
iluminados, porque tinham recebido as luzes da razão.
▪ Marca o século XVIII e tem as suas raízes mais profundas no próprio
humanismo jurídico, com aquele seu espírito de liberdade individual e
que depois é acentuado e está muito presente nas conceções do jus
naturalismo racionalista.
▪ No fundo, o iluminismo acaba por ser o culminar desse movimento
progressivo de ênfase do espírito individual e da razão humana.
▪ Vai ter uma concessão individualista liberal do direito e do Estado, que
tem no seu centro os direitos originários e naturais do indivíduo. É aqui
que surge a ideia dos direitos fundamentais, ou seja, direitos inatos que
nascem com qualquer indivíduo e que são a base de qualquer sistema
jurídico que não podem ser postos em causa – a ordem jurídica tem que

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

os respeitar visto que eles são o fulcro de qualquer sistema jurídico,


porque são inerentes a cada indivíduo.
▪ O iluminismo teve diferentes facetas consoante os espaços em causa,
i.e., o iluminismo inglês assumiu determinadas formas, o iluminismo
alemão outras, tal como o iluminismo francês.
▪ Nos países do sul da Europa, p.e., Portugal e Espanha, o iluminismo teve
uma inspiração católica que não teve o carácter revolucionário e
antirreligioso. Foi este o iluminismo português que foi introduzido entre
nós por Luís António Verney.
▪ O iluminismo em Portugal, tendo esta moderação do iluminismo
italiano, não assumiu aquelas facetas francesas e reduz-se à segunda
metade do século XVIII, com os reinados de D. José e D. Maria I.

5. Humanitarismo
▪ É uma corrente derivada das ideias do iluminismo, mas cujo objeto de
incidência é o direito penal e o tratamento penitenciário, ou seja, o
tratamento dos reclusos das cadeias.
▪ Teve nomes muito importantes como Montesquieu e Voltaire em França
e Beccaria e Filangieri na Itália.
▪ Não se deve confundir humanitarismo com humanismo jurídico. O
humanismo jurídico é uma corrente do pensamento jurídico do século
XVI e que foi a faceta da renascença no mundo do direito. O
humanitarismo, por sua vez, é um movimento do século XVIII derivado
do iluminismo e que tratou especificamente das questões penais.
Aspetos básicos que marcaram o humanitarismo:
▪ Conteúdo do próprio direito penal: no entender do humanitarismo o
direito penal devia desvincular-se da religião, não devia ter qualquer
pressuposto religioso e devia apenas tutelar os valores necessários à
vida coletiva. Ou seja, na visão humanitarista, a religião era uma questão
íntima/individual, só dizia respeito a essa pessoa. Não há qualquer
interesse social em punir quem não siga os preceitos religiosos. Isto é
um corte com o direito penal que vinha da idade média e de grande
parte da idade moderna, que estava bem presente nas nossas
ordenações.
▪ Finalidade das penas: para os humanitaristas, a ideia ético-retributiva
subjacente à aplicação de uma pena criminal, ou seja, o castigo de um
facto passado não faz sentido. Para eles, a finalidade da punição
criminal deve ser preventiva, ou seja, não é para castigar o que se
passou no passado, mas sim para evitar que se volte a repetir aquela
conduta no futuro e, consequentemente, evitar futuras violações das leis
criminais. Esta ideia de prevenção tem duas vertentes: prevenção geral
(no sentido de intimidar a generalidade das pessoas) e prevenção

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

especial (através de uma ação relativamente ao próprio delinquente,


quer intimidando-o, quer até reeducando para que o delinquente não
volte a delinquir).
▪ Respeito pela dignidade humana: para o humanitarismo esta finalidade
preventiva das penas criminais tinha limites. Dois limites fundamentais:
justiça e dignidade humana. A justiça como uma exigência de
proporcionalidade entre a pena e a gravidade do delito, ou seja, a
delitos mais graves deviam corresponder penas mais pesadas e a
delitos menos graves deviam corresponder penas mais leves. O
humanitarismo condenava as penas que não respeitassem a dignidade
do ser humano. Aqui se incluíam as penas culturais, ou seja, penas
físicas que deixassem marca no corpo do delinquente (pena de morte,
o açoite, corte de membros, meter agulhas pela língua, etc.). Este tipo
de penas era censurado pelo humanitarismo porque eram contrárias à
dignidade humana e uma vez que essas penas visavam aludir à
humilhação, vergonha pública de alguém. Para o humanitarismo só
podia haver a pena de prisão.
▪ Processo penal: ao contrário do que se passava no processo penal
anterior que tinha uma estrutura inquisitória, dava-se agora preferência,
no ideário humanitarista, ao processo de estrutura acusatória, em que
há uma separação entre entidade que investiga e acusa e a identidade
que julga. O processo de estrutura inquisitória do período anterior dava
um poder total ao juiz que, além de julgar, investigava, acusava. O
humanitarismo vai defender o processo criminal de estrutura acusatória,
i.e., uma entidade investiga e acusa e, uma outra entidade, por uma
questão de independência, julga.

Reformas pombalinas respeitantes ao direito e à ciência jurídica


▪ Estas reformas tiveram a sua inspiração nas correntes de pensamento
jurídica vistas anteriormente.
▪ Todas essas novas ideias entraram em Portugal por intermédio dos
chamados “estrangeirados”, i.e., os intelectuais portugueses que
estiveram noutros países europeus e que, quando regressaram,
trouxeram a nova mentalidade e os pontos essenciais das novas ideias.
Destaca-se Luís António Verney.
▪ Com o governo de Marquês de Pombal, secretário de Estado do rei D.
José I, a nova forma de pensar e as novas ideias foram introduzidas
oficialmente no sistema jurídico português, através de todo um
conjunto de reformas.
▪ Essas reformas produziram-se em três setores:
1. Modificações legislativas pontuais;
2. Ciência do direito – Lei da Boa Razão;
3. Ensino do direito – novos estatutos da Universidade de Coimbra.

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1. Modificações Legislativas Pontuais


▪ Tratou-se de alterações por via legislativa de vários institutos e figuras
jurídicas, revogando preceitos anteriores e introduzindo a nova
disciplina.

▪ Várias alterações legislativas levadas a cabo pelo governo do Marquês


de Pombal trouxeram um progresso significativo a certas áreas do
direito e permaneceram, p.e., legislação relativa às companhias
comerciais, que foram a raiz das futuras sociedades por ações.
▪ Todavia, em outras áreas, essas alterações legislativas não tiveram
sucesso e não sobreviveram à queda política do Marquês. Como se
sabe, D. José falece em 1777, mas o Marquês sobreviveu-lhe, morrendo
apenas em 1782 – e isso acarretou a queda política de Pombal – a rainha
D. Maria I, filha de D. José afastou o Marquês do governo. Portanto,
certas providências legislativas acabaram por cair com a queda desse
governo. É exemplo disso, os diplomas que disciplinaram o direito
sucessório, de acordo com as novas diretrizes jusraturalistas mas em
total contradição com a tradição jurídica portuguesa – pode dizer-se
que se tratou de um reformismo jurídico abstrato, sem ter em conta as
realidades portuguesas. Portanto, esses diplomas foram logo
suspensos no reinado de D. Maria I e voltaram a vigorar as regras das
Ordenações Filipinas nessa matéria.

▪ Se o Marquês queria fazer uma reforma geral do direito nacional de


acordo com as novas diretrizes jusracionalistas e iluministas, isso
acarretaria um trabalho quase ciclópico de revisão.
▪ Então, sabendo que esse não era um caminho realista, o governo
pombalino decidiu seguir outra via – alterar o sistema de fontes do
direito. Como é sabido, grande parte do direito da época era regulado
pelas fontes subsidiárias e também dependia da forma como se
interpretavam as normas.
▪ Por isso, ao invés de fazer uma revogação e substituição de milhares de
diplomas, o governo do Marquês preferiu fazer uma reforma profunda
do sistema das fontes de direito e do ensino jurídico.
2. Ciência do direito – Lei da Boa Razão
▪ Nas reformas no âmbito da ciência do direito com a Lei da Boa Razão
fez-se uma profunda revisão do sistema das fontes jurídicas.
▪ Lei da Boa Razão: lei de 18 de agosto de 1769. Só no séc. XIX fica
conhecida com esse nome, devido ao jurista Corrêa Telles que, num
comentário que fez sobre a lei assim a nomeou, uma vez que essa lei
fazia constantemente referência à boa razão, i.e., o direito natural
racionalista.

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Soluções consagradas na lei da boa razão:


1. A lei da Boa Razão veio introduzir alterações à disciplina dos estilos da
Corte, determinando que estes só valeriam como fonte de direito
quando aprovados através de assentos da Casa da Suplicação. Os
estilos da Corte eram jurisprudência uniforme e constante dos tribunais
superiores em rigor apenas do tribunal supremo, a casa da Suplicação
e eram fonte de direito pátrio. A lei da boa razão vem ditar que os estilos
da Corte só são fonte de direito se for aprovada por assento da Casa da
Suplicação. Isso significa que os estilos da Corte perderam eficácia
autónoma como fonte de direito.
2. Apesar de as Ordenações apenas conferirem o poder de proferir
assentos à Casa da Suplicação, os tribunais da relação começaram a
fazer o mesmo – isso era um abuso, uma violação da lei. Portanto, a lei
da Boa Razão veio corrigir isso e declarou expressamente que os
assentos proferidos pelas relações apenas teriam valor vinculativo
quando fossem confirmados pela Casa da Suplicação.
3. A lei da Boa Razão estabeleceu que para o costume valer como fonte
de direito tinha de obedecer a 3 requisitos: ser conforme a boa razão
(tinha de ser aceite pelo direito natural); não podia contrariar a lei (o
costume “contra legem” é afastado da lista das fontes de direito); o
costume tinha de ter mais de 100 anos de existência.
4. A lei da Boa Razão trouxe importantíssimas alterações à disciplina do
direito subsidiário. Quanto ao preenchimento de lacunas, a lei trouxe
4 alterações fundamentais:
▪ O direito romano como fonte de direito subsidiário, só era
aplicável desde que se apresentasse conforme a boa razão, i.e.,
as conceções do direito natural racionalista. Mas este é um
critério muito vago e abstrato porque é difícil de saber o que era
o direito natural, a boa razão. Por isso, em 1772, os novos
estatutos da Universidade de Coimbra estabeleceram um
conjunto de regras que concretizasse o que era o direito romano
conforme a boa razão. Esses estatutos estabeleceram que o
direito romano conforme à boa razão era aquele que os
jurisconsultos das nações europeias modernas faziam um uso
moderno, ou seja, o intérprete tinha de averiguar o uso moderno
que faziam dos preceitos romanos. Só era aceite como fonte
subsidiária o direito romano que fosse usado dessa forma. Isto
acabou por significar que o direito romano aplicável
subsidiariamente segundo a lei da Boa Razão se identificasse
com o direito romano que era aceite nas obras dos jurisconsultos
da escola do usus modernus pandectarum. Isto acaba por levar
ao resultado de que as obras doutrinais dessa escola fossem
fontes subsidiárias do direito português, ainda que por via
indireta.

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▪ Se a lacuna do direito pátrio fosse em matérias políticas,


económicas, mercantis ou marítimas afastava-se a aplicação
subsidiária do direito romano, considerado desadequado à
disciplina dessas matérias, pela sua antiguidade. Aplicar-se-ia
subsidiariamente as leis das nações cristãs iluminadas e polidas –
estas nações eram também um conceito muito difícil de
concretizar.
▪ Afasta-se como fonte subsidiária o direito canónico. Determina
que o direito canónico é de aplicação exclusiva nos tribunais
eclesiásticos. D. José I diz expressamente que os tribunais do
reino não servem para ver se algo é pecaminoso ou não. Com os
estatutos pombalinos da Universidade acaba por se estabelecer
que algumas matérias podiam continuar a ser reguladas pelo
direito canónico quando certas alterações do direito canónico no
direito romano já tivessem constituído uso moderno.
▪ Afastaram-se como fontes subsidiárias a Glosa de Acúrsio e a
opinião de Bártolo (e da opinião comum dos doutores). A lei da
Boa razão dita expressamente que essas eram fontes que
enfermavam de falta de conhecimentos históricos, linguísticos e
das normas fundamentais do direito natural e do direito divino.
5. Portanto, a lei da Boa Razão produziu uma reforma muito profunda do
sistema de fontes do direito e, agora, havendo uma lacuna no direito
pátrio, aplicar-se-ia o direito romano conforme a boa razão ou as leis
das nações cristãs iluminadas e polidas.

3. Ensino do direito – novos estatutos da Universidade de Coimbra


▪ Tendo já feito a reforma do sistema de fontes através da lei da Boa
Razão, o governo de Pombal também quis fazer uma reforma do ensino
do direito, uma vez que esse ainda estava sob profunda influência da
mentalidade anterior. Quis-se mudar a formação dos juristas, para que
fossem formados já com a nova mentalidade.
▪ Por essa razão, surgem os novos estatutos.
▪ Em 1770, o rei D. José nomeia uma comissão, a Junta de Providência
Literária, para se pronunciar sobre aquilo que se considerava a
decadência do ensino universitário e as providências que se deviam
levar a cabo para o reformar.
▪ Em 1771, essa junta apresentou um relatório “Compêndio Histórico da
Universidade de Coimbra”, onde se faz uma crítica demolidora dos
estudos universitários existentes, na qual se ataca ferozmente a
influência jesuítica no ensino universitário. Aliás, o título completo é
“Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra no
tempo da invasão dos denominados Jesuítas e dos estragos feitos nas
ciências e nos professores e diretores que a regiam pelas maquinações

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e publicações dos novos estatutos por eles fabricados”. Era um relatório


demolidor.
▪ A propósito do ensino do direito, o compêndio apontou os seguintes
defeitos que prejudicariam a boa pedagogia jurídica:
▪ Dava-se uma preferência absoluta ao ensino do direito romano e
canónico, ignorando-se na prática o direito pátrio.
▪ Abusava-se do método bartolista, i.e., ainda se ensinava o direito
de acordo com as diretrizes da escola dos comentadores.
▪ Respeito sagrado, cego pela opinião comum dos doutores.
▪ Não se estudava o direito natural e a história do direito.
▪ Perante este quadro negro que o compêndio traça dos estudos
universitários, a Junta de Providência Literária elaborou os novos
estatutos da UC – Estatutos Pombalinos. Estes foram aprovados por
D. José I, por uma carta de lei de 28 de agosto de 1772.
▪ Ao nível do ensino do direito, os novos estatutos estabeleceram várias
alterações:
▪ Incluem-se nos estudos jurídicos novas matérias: uma cadeira do
direito natural e das gentes (influência jusracionalista); uma
cadeira de história do direito (influência do humanismo jurídico);
uma cadeira de instituições de direito pátrio (influência da escola
do usus modernus pandectarum). Ainda assim, o núcleo central
da faculdade de leis é constituído pelo direito romano; e o núcleo
central na faculdade de cânones é constituído pelo direito
canónico.
▪ Determinou-se que agora as cadeiras jurídicas deviam ser
ensinadas aos estudantes dentro do método sintético
demonstrativo compendiário, que já se usava nas universidades
alemãs. Sintético – estabelecia-se que se devia apresentar uma
ideia geral de cada disciplina aos estudantes através de
definições e de uma sistematização de matérias do mais fácil para
o mais difícil. Demonstrativo – a matéria devia ser exposta através
de um encadeamento lógico. Compendiário – tudo isto devia ser
acompanhado pela elaboração de manuais pelos professores.
Os estatutos determinavam que estes compêndios deviam ter
aprovação oficial, mas muito pouco aqui foi aprovado, com
exceção dos manuais da autoria de Mello Freire. O método
anterior (analítico) consistia na análise pormenorizada de um só
título/lei, mas esse método é abandonado, com exceção em duas
cadeiras do final do curso, respeitantes à interpretação e
execução das leis.
▪ Os estatutos vieram traçar minuciosamente os programas de
cada cadeira e estabeleceram que o direito romano e o direito
canónico deviam passar a ser estudados segundo as diretrizes da

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

escola do humanismo jurídico (diretrizes histórico-críticas ou


cujacianas).

Os estatutos pombalinos vigoraram até 1836. Nesse período de vigência,


assinala-se uma pequena reforma dos estatutos em 1805 em que se deu maior
relevância ao direito pátrio. Contudo, à luz dos estatutos de 1772, o núcleo
fundamental dos estudos jurídicos era constituído pelo direito romano e pelo
direito canónico. Só a partir de 1836, com os novos estatutos outorgados pelo
governo setembrista, as faculdades de leis e de cânones foram fundidas na
nossa atual faculdade de direito e aí, essencialmente, era estudado o direito
pátrio.

Literatura Jurídica
▪ A orientação compendiária que os estatutos pombalinos da UC tinham
estabelecido – os professores deviam elaborar manuais para as cadeiras
que lecionavam – não foi bem sucedida, pois apenas os manuais de
Mello Freire foram aprovados.
▪ Os manuais aprovados de Mello Freire foram um respeitante à história
do direito pátrio (por isso se diz que este é o pai da História do Direito
Português), outro relativo às instituições de direito pátrio e, ainda, um
manual autónomo de instituições de direito criminal (em que Mello
Freire demonstra influência das doutrinas humanitaristas).
▪ Mello Freire foi o autor que marcou profundamente esta época. Foi um
autor típico do usus modernus pandectarum.
▪ Na falta de compêndios aprovados, escritos por professores das
faculdades, recorreu-se a manuais de professores estrangeiros,
especialmente, italianos e alemães.

Novo Código
▪ Foi uma tentativa de reforma das Ordenações Filipinas.
▪ Apesar de ter este nome “novo código”, isto não passou de uma
tentativa, não se materializou em qualquer diploma legislativo.
▪ Em finais do séc. XVIII vigoravam ainda as Ordenações Filipinas –
portanto, um diploma legislativo que já estaria a caminhar para os seus
200 anos. Este tinha sido um diploma que se limitou a ser uma revisão
das Ordenações Manuelinas que, por sua vez, tinham sido uma reforma
das velhinhas Ordenações Afonsinas de 1446-47. Deste modo, temos
aqui um diploma legislativo que estava já rodeado de um contexto
histórico que lhe era adverso.
▪ A época do iluminismo nada tem a ver com uma velha consolidação
jurídica, ainda de sabor medieval.

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▪ O Marquês de Pombal, além de algumas modificações legislativas


pontuais em algumas matérias a que se procedeu no ser governo, não
optou por uma reforma geral do direito vigente, o que seria muito difícil.
Portanto, preferiu introduzir uma nova disciplina de fontes de direito
com a Lei da Boa Razão e um novo sistema de pedagogia jurídica com
os estatutos da UC de 1772.
▪ Temos aqui, então, um sistema jurídico num novo contexto iluminista, já
com diretrizes oficiais de interpretação jurídica e de integração de
lacunas no espírito iluminista, mas o principal diploma legislativo do
reino (Ordenações) vinha de uma época muito anterior.
▪ Por isso, no reinado de D. Maria I, um decreto da monarca de 31 de
março de 1778, criou uma comissão denominada “Junta de Ministros”,
que tinham a obrigação de se reunirem uma vez por semana e cujo
objetivo era o de proceder à reforma das Ordenações Filipinas.
▪ O grande objetivo era o de rever as Ordenações Filipinas e suprimir leis
antiquadas, extravagantes, que já estivessem revogadas ou as que a
reforma aconselhasse que fossem revistas.
▪ Não se pode dizer que tenha estado em causa a elaboração de um
código no sentido moderno (como p.e. os códigos civis prussiano e
francês). Pretendia-se uma reforma das ordenações, mas mantendo a
sua sistematização – embora com introdução de novos preceitos,
supressão de normas – mas não era um código moderno propriamente
dito.
▪ A Junta de Ministros acabou por não chegar a grandes resultados.
Houve algum trabalho em matérias de direito privado e de processo,
mas não houve sucesso.
▪ Entretanto, ainda no espírito de reforma das ordenações para as
atualizar, em 1783, Mello Freire, foi encarregue de fazer uma revisão do
livro II (matéria de natureza constitucional) das ordenações e do livro V
(direito e processo criminal).
▪ Neste sentido, Mello Freire, apresentou um projeto de código de
direito público (para reformar o livro II) e um projeto de código
criminal (para reformar o livro V).
▪ Em 1789, através de um decreto de 3 de fevereiro, foi nomeada uma
comissão, a Junta de Censura e Revisão, que teve como lição apreciar
esses projetos de Mello Freire.
▪ Na apreciação do projeto de código de direito público, António
Ribeiro dos Santos, um jurista que integrava a comissão, fez várias
críticas ao projeto de Mello Freire. Este não gostou das críticas e
respondeu-lhe com veemência – aí surgiu uma polémica que veio mais
tarde a ser conhecida como “a formidável sabatina” (uma sabatina é uma
revisão da matéria).
▪ Mello Freire era um adepto do despotismo esclarecido, isto é, do
modelo de monarquia absoluta inspirada pelo iluminismo. Já António

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

Ribeiro dos Santos tinha simpatias pelos ideais do liberalismo, que


começavam a despontar. Obviamente, isso não foi alheio à polémica de
discussão que se gerou entre os dois.
▪ O projeto de código de direito público apresentado por Mello Freire
acabou por não ter seguimento e o livro II manteve-se igual.
▪ O projeto de código criminal nem discutido foi, portanto, o livro V ficou
também igual.
▪ Fracassou, então, esta tentativa de reforma das Ordenações Filipinas –
fracassou este “novo código”.
▪ A formidável sabatina é uma das melhores ilustrações do fracasso desta
reforma. Aqui estávamos num período de transição, com o liberalismo
a começar a impor-se e o absolutismo a decair. Ou seja, estamos num
período em que um mundo começa a desaparecer e outro a surgir.
Contudo, uma reforma legislativa de fundo necessita de estabilidade
ideológica, de pensamento, o que não era o caso.

Época do Individualismo
▪ Foi marcada pelo liberalismo político e económico, tendo início com a
Revolução Liberal de 1820.

Breves considerações sobre o liberalismo:


▪ A ideia iluminista de que o homem nasce dotado de direito naturais e
inaliáveis, cabendo ao estado apenas reconhecê-los e defendê-lo, vai
ser aprofundada e continuada pelo liberalismo do séc. XIX.
▪ Aqui, acaba por se impor o princípio da soberania nacional, i.e., deixa
de residir no monarca e passa a residir na nação; as ideias do governo
representativo, da monarquia constitucional com a existência de
constituições escritas que contêm os direitos fundamentais dos
cidadãos e o princípio de separação dos poderes.
▪ Do ponto de vista económico, entende-se que o estado deve ter um
papel pouco interventivo apenas disciplinando o mínimo indispensável
da vida económica.

Transformações no âmbito de direito político


▪ O sistema liberal português inaugura-se com a Revolução de agosto de
1820. Em finais desse mesmo ano, completa-se um processo eleitoral
em que os cidadãos escolheram eleitores de comarca que, por sua vez,
elegeram os deputados às Cortes Constituintes.
▪ Essa assembleia constituinte aprovou, em 1822, a primeira constituição
portuguesa.

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

▪ A constituição de 1822 consagrou os princípios ligados aos ideais


liberais da época – o princípio da soberania nacional, princípio
democrático, princípio representativo, princípio da separação dos
poderes, princípio da igualdade jurídica e vários direitos pessoais do
cidadão, como a liberdade, a segurança e a propriedade privada. O
princípio da igualdade, aliás, levou a que a própria constituição
suprimisse alguns privilégios da nobreza. Consagra-se, contudo, o
sufrágio censitário, isto é, baseado na capacidade económica.
▪ O período inicial do liberalismo foi muito conturbado. Logo em 1823,
as forças do absolutismo, reunidas em torno da rainha Carlota Joaquina
e do infante D. Miguel, levam a cabo um golpe de estado – a chamada
Vila Francada – por estar ligada à cidade de Vila Franca de Xira. Esse
golpe absolutista põe termo à vigência da constituição de 1822.
▪ Segue-se, portanto, um período de indefinição política. Na revolta da
Abrilada, no ano seguinte, as forças absolutistas enfraquecem.
▪ Em 1826 entra em vigor uma nova constituição – a Carta
Constitucional – esta é outorgada à nação pelo rei D. Pedro IV.
▪ A Carta Constitucional reflete um liberalismo mais conservador do que
o liberalismo da Constituição de 1822 – por exemplo, instala-se um
sistema bicameralista de cortes: a câmara dos pares (composta por
membros vitalícios e hereditários, nomeados pelo rei) e a câmara dos
deputados (era eleita); o poder legislativo continua a pertencer às
cortes, mas a Carta Constitucional atribui ao rei um poder de veto
efetivo (sanção real – tinha efeito absoluto – se esta não fosse dada, os
diplomas não entravam em vigor) e um poder moderador (um quarto
poder – no exercício deste poder, o rei podia dissolver
discricionariamente a câmara dos deputados).
▪ A carta constitucional acabaria por terminar a sua vigência em 1828,
com o reinado absolutista de D. Miguel, que fica no trono até 1834.
▪ Nesse reinado de D. Miguel, como se tratou de uma restauração
absolutista, não houve constituição escrita. Nesse período houve a
dilacerante guerra civil – entre liberais e absolutistas – em que os liberais
acabam por vencer.
▪ Em 1834, com esse triunfo liberal é reposta em vigor a Carta
Constitucional.
▪ Em setembro de 1836, o chamado movimento setembrista, que é
tributário de um liberalismo mais radical, volta a pôr em vigor a
constituição de 1822.
▪ Logo, em novembro de 1836 há, por sufrágio direto, a eleição de novas
cortes constituintes, que vão aprovar uma terceira constituição – a
Constituição de 1838, jurada pela rainha D. Maria II.
▪ Esta constituição é uma espécie de um compromisso entre o liberalismo
mais progressista da Constituição de 1822 e o liberalismo de tendência
conservadora da Carta Constitucional de 1826. Estabelece-se, de novo,

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

um sistema bicameralista, mas com uma câmara dos senadores e uma


câmara dos deputados, sendo ambas eleitas.
▪ A constituição de 1838 têm a sua vigência terminada em 1842, com o
Golpe de Costa Cabral e é reposta, pela terceira vez, a Carta
Constitucional, que vai vigorar até ao final da monarquia, em 1910,
embora alterada por diversos atos adicionais.
Constituição de 1911:
▪ A constituição de 1911 é aprovada durante a primeira república,
portanto, já não estamos a falar de constitucionalismo monárquico e sim
de constitucionalismo republicano.
▪ Contudo, esta constituição ainda está dentro da tradição do
constitucionalismo liberal. Apesar de já não ser uma constituição
monárquica, é uma constituição liberal, i.e., uma constituição que trata
fundamentalmente da organização do poder político.
▪ É aprovada por uma Assembleia Nacional Constituinte em 1911.
Consagra o sufrágio direto de eleição do parlamento, a soberania da
nação e a tripartição de poderes. É afastado o sufrágio censitário, mas
não foi estabelecido o sufrágio universal (as mulheres e analfabetos
estavam impedidos de votar). O parlamento, designado Congresso da
República, era composto por duas câmaras: câmara dos deputados e o
Senado. O Congresso elegia o chefe de estado – o Presidente da
República – e, a partir de uma revisão constitucional em 1919, este
passou a poder dissolver o congresso.
▪ Portanto, ainda se situa esta constituição republicana de 1911 na
tradição do constitucionalismo liberal, que só virá a ser interrompida
com a Constituição de 1933, aprovada já no Estado Novo, com
Oliveira Salazar como Presidente do Conselho de Ministros. Esta já é
uma constituição própria de Estado Social e de pendor intervencionista
porque, além da organização do poder político, também trata da
organização socioeconómica do estado (inspirada pela constituição
alemã de Weimar).

Transformações no âmbito do direito privado


▪ No âmbito do direito privado, houve uma ausência de reformas
legislativas profundas, desde 1820 até ao Código Civil de 1867.
Portanto, o liberalismo não trouxe, do ponto de vista legislativo,
grandes mudanças no âmbito do direito privado.
▪ Ainda assim, assinalam-se certos reflexos das alterações legislativas no
direito públicas sentidas no direito privado, p.e., as reformas judiciárias
e a extinção dos forais.
▪ Além disso, houve certas medidas legislativas avulsas no âmbito do
próprio direito privado como as alterações nos regimes da menoridade

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e da emancipação, levadas a cabo pelo governo de Mouzinho da


Silveira, ou a criação do registo de hipotecas pelo governo Setembrista.
▪ Neste período (1820-1867) houve um código em matéria de direito
privado – o Código Comercial de 1833 – mas este foi um diploma pouco
inovador que, na prática, consagrou soluções presentes na legislação
de outros países europeus (legislação essa que já era aplicável, a título
subsidiário, por força da Lei da Boa Razão).
▪ Assim, as transformações operadas no direito privado português,
nessas primeiras décadas do liberalismo, não foram obra do legislador,
mas sim dos jurisconsultos da época, p.e., Manuel Almeida e Sousa
(Lobão), Correia Telles e Coelho da Rocha – estes juristas, através do
seu esforço de interpretação das normas jurídicas vigentes, levaram a
novos resultados e inovações no direito privado.
Como é que os juristas operaram essas transformações?
▪ Os juristas utilizaram os critérios de interpretação das leis e de
integração das lacunas presentes na legislação pombalina com um
sentido diferente do original.
▪ A Boa Razão passou a ser entendida segundo as conceções do
liberalismo, abandonando-se os ideais do iluminismo.
▪ O uso moderno do direito romano, que os estatutos da UC de 1772
apresentavam como critério para aplicar subsidiariamente o DR, deixa
de ser entendido como uma referência às obras dos juristas do usus
modernus pandectarum, para ser interpretado como uma remissão
para os códigos civis dos países europeus, p.e., Código Prussiano de
1794, Código Francês de 1804 ou o Código Civil da Sardenha.
▪ Correia Telles e Lobão já usavam este expediente na prática, mas foi
Coelho da Rocha que arranjou um argumento justificativo deste salto
lógico – se os estatutos permitiam averiguar o uso moderno do DR nos
livros dos juristas europeus, por maioria de razão, podiam fazer essa
averiguação na legislação dos seus países.
▪ Com isto, começou-se a aplicar subsidiariamente, em Portugal, as
soluções consagradas nos códigos civis de outros países da Europa.

▪ Houve, ainda, novas interpretações de preceitos das Ordenações


Filipinas, com base nos critérios da Lei da Boa Razão, para se
encontrarem resultados de acordo com as reflexões do jusracionalismo,
mas opostos aos resultados interpretativos que até então eram aceites.
Como sabemos, as Ordenações era um diploma velho (mais de 2
séculos) e tinha sido interpretado, ao longo de todo esse tempo de um
determinado modo. Por vezes, as soluções que estavam contidas nas
Ordenações a interpretação que se delas fazia, eram postas em causa
pelo pensamento jusracionalista. Os nossos juristas começaram a
interpretar ao contrário esses pressupostos das Ordenações, para

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

chegar aos resultados que o jusracionalismo tinha defendido. Para isso,


usaram os critérios da Lei da Boa Razão. Exemplo: segundo o DR
quando alguém fazia testamento, tinha que regular toda a sucessão por
esse testamento (tinha de regular o destino de todos os seus bens). Se
assim não fosse, o testamento era inválido e prevalecia as soluções
legais – prevalecia o que a lei, na falta de testamento, estabelecia. Havia,
contudo, uma exceção para os militares – admitia que o militar
estabelecesse o destino de apenas uma parte dos seus bens através do
testamento. As Ordenações limitavam-se a referir essa exceção dos
militares. Até ao séc. XIX, sempre se tinha entendido que, ao
consagrarem essa exceção, as Ordenações aceitavam a regra geral do
DR. No entanto, os juristas desta fase inicial do liberalismo, atendendo
ao facto de que as correntes jusracionalistas se tinham pronunciado
negativamente sobre aquela regra geral, começaram a interpretar ao
contrário a solução. Isto é, se as Ordenações consagram a exceção foi
porque quiseram afastar a regra e, portanto, no direito português
afasta-se a regra romana: qualquer pessoa pode morrer em parte com
testamento e em parte sem ele.

▪ Defenderam, ainda, que certos preceitos das Ordenações tinham caído


em desuso, ou seja, certos preceitos já não eram aplicáveis, p.e., o da
regra que exigia a boa-fé do devedor para a prescrição extintiva – ocorre
quando se passa um determinado período de tempo e o titular do
direito já não o pode exercer esse direito. As ordenações diziam que
para o credor, devido à passagem de tempo, deixar de poder exigir o
cumprimento da obrigação ao devedor, era necessário que o devedor
estivesse de boa-fé (que não soubesse que estava a prejudicar o outro).
Esta solução de boa-fé era inspirada no direito canónico e os juristas da
época apontaram o facto de a Lei da Boa Razão ter afastado o direito
canónico das fontes aplicáveis nos tribunais portugueses – se afastou
seria porque já não há interesse a recorrer a soluções dessa fonte.
Portanto, este preceito que exigia a boa-fé do devedor para a divida se
prescrever já não é aplicável.

▪ Noutras situações, os nossos juristas desta fase não ousaram considerar


que os preceitos das ordenações tinham caído em desuso, uma vez que
entendiam que eram preceitos que não havia fundamento para os pôr
em causa. Embora não defendessem de iure constituto, i.e., na
perspetiva do direito efetivamente existente, que esses preceitos
estavam em desuso, defendiam numa perspetiva de iure constituendo,
i.e., do direito a fazer no futuro, que as soluções deviam ser modificadas
no sentido estabelecido no código civil francês de 1804. Exemplos:
▪ Regra da eficácia meramente obrigacional da compra e venda –
seguindo o DR, as Ordenações estabeleciam que o contrato de

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compra e venda tinha uma eficácia meramente obrigacional, não


permitia a transferência do direito de propriedade (para isso era
necessário a traditio). Um alvará de D. João VI, promulgado em
1810, tinha reforçado a mesma solução. Contudo, os nossos
juristas dessa época defenderam que essa solução devia,
futuramente, ser substituída pela solução da eficácia real do
contrato de compra e venda. Ou seja, o direito de propriedade
transmitia-se apenas com a celebração do contrato de compra e
venda, tal como era a regra do código civil francês de 1804. O
nosso primeiro código civil veio consagrar essa solução também.
▪ Regra emptio tollit locatum – quando o prédio arrendado fosse
vendido a um terceiro enquanto esse está ocupado pelo
arrendatário, o comprador podia despejar o arrendatário sem
respeitar o contrato de locação. Os juristas desta época vieram
criticar a solução, defendendo que devia ser substituída pela
solução contrária, i.e., o comprador não podia despejar o
arrendatário e deveria respeitar o contrato. Esta era a solução
consagrada no código civil francês de 1804. Essa proposta dos
juristas acabou por ser acolhida pelo Código Civil de 1867.

Publicação e início de vigência da lei


▪ Estamos numa época muito marcada pelos ideais da Revolução
Francesa. Esses ideais assentavam no seguinte pressuposto: as normas
jurídicas só se podiam tornar obrigatórias quando os destinatários as
conhecessem – isto é uma herança do racionalismo iluminista, que
considerava que o caráter imperativo das normas jurídicas dependia da
sua comunicação prévia aos interessados.
▪ Por isso, neste novo contexto pós revolução francesa, surge a ideia de
que os diplomas legislativos deviam ser formalmente publicados para
que fossem efetivamente conhecidos ou passíveis de conhecimento
pelos interessados – isto dentro da ideia de certeza do direito.
▪ Todo este pensamento acabou por ter os seus reflexos em Portugal.
▪ O momento decisivo deu-se com o decreto de 19 de agosto de 1833
que extinguiu a chancelaria more do rei. (Essa chancelaria era o lugar
onde se registava os diplomas, mas essa não era uma forma efetiva de
conhecimento, uma vez que o diploma poderia estar lá registado sem
que a sociedade conhecesse sobre tal diploma. Com as ordenações, o
registo dos diplomas na Chancelaria era o momento de publicação dos
diplomas).
▪ Este decreto determina ainda que a publicação das leis se faz através
de um periódico oficial do reino, i.e., através de um jornal oficial – este
teve várias designações, p.e., Diário do Governo e atualmente designa-

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se diário da República. O período de vacatio legis passou a contar-se a


partir dessa publicação.
▪ Essa lei de 1833 não estabeleceu prazos novos de vacatio legis:
mantiveram-se aqueles contidos nas ordenações Filipinas. Só através da
lei de 9 de outubro de 1841 é que foram estabelecidos novos prazos de
vacatio legis.
▪ Os prazos estabelecidos pela lei de 1841 eram supletivos: sempre que
o diploma em questão apresentasse outros prazos, eram esses prazos
que valeriam.
▪ Atualmente, a publicação faz-se online e, assim, os prazos de vacatio
legis passam a contar a partir da data da disponibilização dos diplomas
no site da Imprensa Nacional Casa da Moeda, que contém o Diário da
República eletrónico.

As codificações
▪ O fenómeno da codificação marcou fortemente essa época.
▪ Até aos séculos XVIII e XIX, as grandes coletâneas de direito, como o
Corpus Iuris Civilis, a Glosa de Acúrsio e as Ordenações, eram obras
que pretendiam apenas compilar o direito vigente, do qual eram meras
consolidações.
▪ A partir do século XVIII, por influência jusracionalista e iluminista,
elaborou-se corpos legislativos unitários, que pretendiam organizar
científica, sistemática e autónomamente os ramos básicos do direito
(como o direito civil, penal, comercial...).
▪ Essas codificações modernas passaram a não ter um objetivo de pura
compilação, como era anteriormente: os códigos modernos têm um
propósito de transformação social futura.
▪ Assim, sistematicamente organizado, o direito começou a identificar-se
com a lei e qualquer problema jurídico era resolvido dentro do sistema
legal através de uma dedução lógica do sistema ao caso concreto. Isso,
então, logicamente contribuiu para a consolidação do positivismo
jurídico, com a identificação entre direito e lei.
Movimento codificador português
▪ O movimento codificador português iniciou-se em 1833, com o
Código Comercial. Este código foi o primeiro código em sentido
moderno em Portugal. Ficou também conhecido como “Código
Ferreira Borges”, uma vez que assentou no trabalho do Visconde de
Ferreira Borges.
▪ Este Código Comercial era dividido em duas partes: comércio terrestre
e comércio marítimo. Incluiu não só normas de direito comercial
substantivo, mas também normas processuais, normas de organização

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Ano Letivo 2020/2021 Mariana Ferreira e Rute Silva

judiciária (ou seja, da organização dos tribunais) e até normas de direito


civil.
▪ Ferreira Borges utilizou na elaboração do código elementos de direito
comparado, especialmente o Código Comercial Francês (este código
foi a grande inspiração de Ferreira Borges). Além do código francês,
utilizou o Código Comercial Espanhol e o Código Comercial Italiano.
▪ Por isso, pode-se dizer que o Código Comercial de 1833 tem um
caráter pouco inovador.
▪ Quanto ao direito comercial substantivo, o código em grande medida
codificou leis estrangeiras, leis essas que já eram utilizadas
subsidiariamente em Portugal por força da Lei da Boa Razão, que
mandava aplicar, na falta de direito que regulasse matéria mercantil, as
leis das nações iluminadas e polidas.
▪ Quanto às normas processuais e de organização judiciárias contidas no
Código, recorreu-se ao que já vigorava anteriormente em Portugal.
Assim, também se aplicava as instituições já existentes em Portugal, o
que, obviamente, não era inovador.
▪ O Código Comercial de 1833 foi uma obra marcada por fortes defeitos,
por exemplo, o facto de não ter consagrado diversas soluções que já
eram aplicadas no exterior em matérias de sociedades comerciais. Por
isso, o código foi muito deficiente, uma vez que o tempo mostrou que
sociedades comerciais eram uma matéria decisiva.
▪ Por outro lado, esta obra exagerou em qualificações e definições, que
não é uma competência do legislador; misturou normas de direito
comercial substantivo com regras processuais e de organização dos
tribunais, e até com regras do direito civil.
▪ O Código de 1833 ficou rapidamente rodeado por diversos diplomas
avulsos, nomeadamente em matéria de sociedades comerciais,
especialmente as sociedades anónimas ou por ações.
▪ Assim, este foi um código que acabou por rapidamente levar a que se
pensasse na sua reforma, o que veio a se concretizar em 1888, com o
novo Código Comercial: o chamado Código Veiga Beirão, que tem
essa designação pois na sua base se destacou o esforço de Francisco
Veiga Beirão, que era o ministro da justiça.
▪ Esse Código de 1888 ainda está em vigor, apesar de já ter sido
profundamente alterado, revogado. Atualmente, porém, poucos
preceitos são utilizados desse código.
▪ De qualquer forma, o Código de 1833 teve o mérito de ter um papel na
autonomização do direito comercial como ramo do direito privado.

▪ O primeiro Código Civil português, designado Código de Seabra (uma


vez que se assentou em um projeto de António Luís de Seabra), foi
aprovado no dia 1 de julho de 1867.

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▪ No projeto do código civil, foram utilizados como inspiração o


jusracionalismo e o individualismo liberal. Em certos setores o código
tratou das matérias em causa com um menor pendor liberal quando não
estivessem em causa direitos que não eram puramente económicos,
como era o caso do direito da família.
▪ No Código Civil de 1867, consagrou-se pela primeira vez no ornamento
jurídico português o casamento civil, ou seja, ao lado do casamento
católico (que era celebrado perante a igreja católica), admitiu-se o
casamento civil (o casamento celebrado perante o Estado). Este foi um
grande corte com a tradição portuguesa, segundo a qual as matérias
matrimoniais eram deixadas para o direito canónico.
▪ O Código teve ampla aceitação e foi acolhido na altura, uma vez que
ele estava amplamente de acordo com a ideologia da época, da
ideologia liberal e individualista. Assim, pode-se dizer que as exigências
de justiça, de praticabilidade e de certeza que eram pedidas ao código
foram cumpridas.
▪ Aponta-se, porém, vários defeitos originários nesse código. Por um
lado, esse código foi um trabalho de um homem só, numa época que o
direito civil era amplo demais para isso. Por causa disso, em certas
matérias houve disciplinas que não foram felizes. A responsabilidade
civil, por exemplo, foi uma das disciplinas que foi considerada
deficiente no Código de Seabra.
▪ Houve outros defeitos do código que foram surgindo ao longo do
tempo. Observa-se isso com o surgimento de figuras jurídicas que
foram sendo desenvolvidas pelo direito e que não estavam
reconhecidas no código, como o abuso de direito.
▪ Depois, em várias áreas, como o direito da família, o direito do trabalho,
o arrendamento urbano e as restrições ao direito de propriedade, foi-
se verificando um corte entre o código e a legislação posterior.
▪ Isto acontece, pois, o Código de Seabra surge no auge do liberalismo
e, depois disso (especialmente a partir da 1 GM), entrou-se em um
período de direito social, com uma intervenção do Estado na vida
económico-social: começou a haver leis de proteção dos trabalhadores,
leis que restringiam cada vez mais os direitos de propriedades privada,
leis que alteraram o direito da família como o divórcio, etc.
▪ O novo contexto e um direito de inspiração social já não encontrava
acolhimento na codificação civil de 1867, tipicamente individualista e
liberal. Isso levou que o código sofresse reformas avulsas e que se
fizesse uma completa revisão, que levou a sua substituição pelo
presente código civil: o código civil de 1966.

O costume no Código de Seabra


▪ Como se sabe, a lei da Boa Razão marcou uma grande decadência do
costume como fonte de direito. Segundo a lei da boa razão o costume

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só seria atendível como fonte de direito pátrio quando os costumes


fossem conforme a boa razão, quando não contrariassem a lei, etc.
▪ Com o novo conceito do século XIX, com o positivismo jurídico e o
primado da lei como fonte de direito, conduziu a uma maior redução da
importância do costume.
▪ O Código de Seabra tornou o costume uma fonte mediata de direito
(uma fonte mediata de direito é uma fonte que só se aplica quando a lei
o dizer). Assim, segundo este código, o costume só era aplicável
quando o legislador assim o estabelecesse.
▪ Essa conclusão resulta do art. 9.º do Código de Seabra, que afastava a
desobediência à lei como fundamento no seu desuso, ou seja, com
fundamento no costume contra a lei.
▪ Com o art. 16.º do Código, o costume praeter legem, ou seja, para além
da lei, que tratava de matérias que a lei não tratava, foi afastado. Isto
acontece, pois, tal artigo trata do preenchimento de lacunas da lei.
Nesse artigo, não surge o costume como fonte subsidiária, o que faz
com que o costume que tratava sobre matérias que a lei não tratava
fosse afastado.
▪ Assim, apenas resta o costume segundo a lei, que consagra a mesma
solução ao problema em questão que a lei traz. Esse costume, então,
não tem nenhuma autonomia e ele apenas seria aplicável de forma
autónoma quando a lei assim o dissesse.
▪ Isto aplicou-se no direito civil. Noutras matérias, como o direito
internacional, o costume continuou a ser fonte de direito e ainda hoje o
é. Na ordem jurídica interna, porém, com o código civil de Seabra, o
costume deixou de ser uma fonte autónoma de direito.

O direito subsidiário no Código de Seabra


▪ O novo contexto de liberalismo, individualismo e positivismo, traz uma
nova perspetiva do direito subsidiário.
▪ O dogma da plenitude do ornamento jurídico que estava em vigor fez
com que o problema da integração de lacunas se desloque para o
direito interno. Ou seja, parou-se de procurar em ornamentos jurídicos
exteriores a solução das lacunas do direito português. Entende-se que
o próprio sistema jurídico interno dá a solução às suas próprias
lacunas.
▪ Esta nova visão do direito subsidiário estava regulada no art. 16.º do
Código de Siabra – este determinava que, perante uma lacuna, dever-
se-ia recorrer em primeiro lugar à analogia – esta é uma operação
intelectual através da qual se vai recorrer a disciplina estabelecida para
uma situação semelhante à situação que não possui disciplina.
Compara-se as duas situações e conclui-se que a semelhança entre os
dois casos faz com que a razão substancial de decidir do caso previsto

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possa levar a aplicação da sua solução ao caso omissão, que é o caso


que não possui disciplina no ornamento jurídico.
▪ Se não se encontrasse uma norma suscetível de aplicação analógica,
dever-se-ia aplicar os princípios de direito natural conforme as
circunstâncias do caso omisso. O legislador não dizia o que “os
princípios de direito natural conforme as circunstâncias do caso omisso”
era. Assim, surgiram três interpretações sobre esse conceito:
1. Para as doutrinas positivistas, estes princípios correspondiam aos
princípios gerais de direito, ou seja, princípios consagrados na
própria ordem jurídica legislada.
2. Para uma corrente de índole jusnaturalista, os princípios em
questão eram algo para além do direito positivo, para além da
ordem jurídica vigente. Aí surge novamente, então, aquela
ordem abstrata que continha as exigências de justiça.
3. A terceira corrente considerava que os princípios em questão
significavam que se confiava ao juiz a tarefa de preenchimento
das lacunas, tendo em conta a solução que ele presumisse que
o legislador adotaria se tivesse previsto o caso omisso.
Essa solução significa, no fundo, que o juiz deveria tentar retirar
de várias normas existentes no ornamento um princípio geral que
regulasse o caso omisso. No fundo essa seria uma analogia iuris.
(A analogia estudada anteriormente foi a analogia legis).
▪ Esta terceira corrente acabou por prevalecer e passou
para o nosso atual código civil (art. 10/3.º).
▪ Assim, vemos que mudou completamente a conceção de direito
subsidiário vigente em Portugal.
▪ Apesar disso, não deixou de haver, dentro do próprio ornamento
português, determinados direitos subsidiários particulares, especiais.
Isto significa que um ramo do direito pode ser chamado a preencher as
lacunas de um outro ramo do direito. Por exemplo, o direito civil em
relação ao direito comercial ou o processo civil em relação ao processo
penal.

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