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A PESQUISA INTEGRADA DA HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

Francisco Bissoli Filho1

RESUMO

O presente ensaio trata da pesquisa integrada da história do direito penal brasileiro. Em um


primeiro momento, ressalta os seus diversos enfoques, em especial a sua complexidade, a sua
abrangência, os seus atores e os seus objetos. Em seguida, discorre sobre as suas vertentes,
mencionando, especificamente, a documentação oficial, as ideias ou o pensamento jurídico-penal e
as práticas punitivas cotidianas. Por fim, sustenta que essa investigação deve ser integrada, para que
possa constatar as influências recíprocas entre as vertentes e as tendências das transformações
históricas, bem como as possibilidades de reprogramação do direito penal.

PALAVRAS CHAVES

Direito penal. História. Pesquisa. Enfoques. Vertentes. Integração.

ABSTRACT

This essay deals with the integrated search in the history of Brazilian criminal law. At
first, emphasizes its various approaches, in particular its complexity, its scope, its actors and their
objects. Then discusses its aspects, specifically mentioning the official documentation, ideas or
criminal legal thinking and everyday punitive practices. Finally, it maintains that this research
should be integrated, so you can find the reciprocal influences between the strands and trends of
historical change and the possibilities for reprogramming of criminal law.

KEYWORDS

Criminal law. History. Research. Approaches. Areas. Integration.

1
Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná, com Pós-Doutorado em Direitos Humanos e
Democracia pela Universidade de Coimbra, Portugal. Professor Adjunto de Direito Penal da Universidade Federal de
Santa Catarina. Procurador de Justiça do Ministério Público de Santa Catarina.
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SUMÁRIO

1 Considerações iniciais. 2 Enfoques da pesquisa histórica do direito penal. 2.1 A


complexidade da pesquisa histórica 2.2 A abrangência, os atores e os objetos da pesquisa histórica
do direito penal 3 As vertentes da pesquisa histórica do direito penal brasileiro 3.1 A documentação
oficial 3.2 As ideias ou o pensamento jurídico-penal 3.2 As práticas punitivas cotidianas 4 A
investigação integrada da história do direito penal brasileiro 4.1 As influências recíprocas entre as
vertentes 4.2 A constatação das tendências das transformações históricas 4.3 As possibilidades de
reprogramação histórica do direito penal. Conclusões

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A pesquisa acerca do fenômeno jurídico-penal não pode prescindir de dados e análises


históricas, uma vez que o direito penal é uma realidade que se constrói espacial e temporalmente,
isto é, transforma-se2 com o passar dos tempos e varia de local para local.
A história do direito penal é importante porque possibilita compreender as experiências
já realizadas pela humanidade em relação a esse ramo do direito, especialmente os seus acertos e
equívocos, para que, sobretudo, estes não sejam repetidos e para que possamos perceber a
desnecessidade de se reinventar institutos penais que já foram experimentados e abolidos.
A pesquisa, nessa área do conhecimento, por ser complexa, pode ter distintos enfoques
e vertentes, os quais devem ser abordados de forma integrada.
O propósito deste artigo é discorrer sobre eles e chamar a atenção dos pesquisadores
desse ramo do direito sobre a complexidade dessa investigação, que deve levar em consideração a
sua abrangência, todos os seus atores e todos os seus objetos. Sobre as distintas vertentes, aponta-se
para a documentação oficial, para as ideias ou pensamentos e para as práticas penais cotidianas e
sustenta-se que deve haver uma análise integrada entre elas e os diversos enfoques, com vistas à
constatação das influências exercidas por uma sobre a outra e das tendências de transformações e
de reprogramação históricas, esta possível a partir, sobretudo, da elaboração legislativa futura.
Para isso, o presente artigo foi dividido em três itens, estando o primeiro voltado à
síntese dos distintos enfoques da pesquisa histórica do direito penal; o segundo, às diversas

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Prefere-se falar em “transformações” históricas em vez de “evolução” histórica, uma vez que esta expressa um juízo
de valor, pois sugere uma transformação “para melhor”, nem sempre presente na história do Direito Penal.
2
vertentes dessa pesquisa; e, por fim, o terceiro, à integração dessas variáveis na pesquisa histórica
desse ramo do direito.
Trata-se de um estudo elaborado com base na epistemologia jurídico-penal, porquanto
visa a indicar caminhos para a investigação histórica nesse campo do saber jurídico, com o objetivo
tanto de aperfeiçoar o conhecimento dos seus fundamentos históricos quanto de indicar caminhos
para uma reprogramação da atividade punitiva estatal, sobretudo da legislação penal futura, e para a
reformulação das ideias e a transformação das práticas cotidianas.

2 ENFOQUES DA PESQUISA HISTÓRICA DO DIREITO PENAL

A pesquisa histórica do direito penal pode ser realizada sob diversos enfoques, em face
da sua complexidade, decorrente das múltiplas e possíveis interpretações acerca da experiência
humana, da sua abrangência, por envolver aspectos da história geral, da história do direito e da
história do direito penal, dos seus diversos atores, sejam eles agentes oficiais ou não, dos seus
inúmeros objetos, isto é, os fatos, os acontecimentos, as instituições, as transformações e as
tendências históricas.

2.1 A complexidade da pesquisa história

Diz-se que a pesquisa histórica do direito penal é uma atividade complexa, pois,
segundo Antônio Carlos Wolkmer, professor de direito da Universidade Federal de Santa Catarina,
“a história expressa a complexa manifestação da experiência humana interagida no bojo dos fatos,
acontecimentos e instituições”, o que implica reconhecer que “o caráter mutável, imperfeito e
relativo da experiência humana permite proceder múltiplas interpretações dessa historicidade”.
(WOLKMER, 2000, p. 11-12). Para Peter Burke, Professor de História Cultural da Universidade de
Cambridge, Reino Unido, “o relativismo cultural obviamente se aplica tanto à própria escrita da
história, quanto aos seus chamados objetos”.(BURKE, 1992, p. 15).
Por isso, nessa pesquisa, é necessário levar em consideração tanto a pesquisa da história
geral quanto a pesquisa da história do direito. Se aquela é definida por Armando Souto Maior,
professor de história da Universidade Federal do Pernambuco, como “uma ciência que interpreta e
localiza no tempo os acontecimentos importantes da vida dos povos, dos homens e das ideias”

3
(MAIOR, 1975, p. 3), esta é definida por Wolkmer (2000, p. 4) como “a parte da história geral que
examina o Direito como fenômeno sócio-cultural, inserido num contexto fático, produzido
dialeticamente pela interação humana através dos tempos, materializados evolutivamente por fontes
históricas, documentos jurídicos, agentes operantes e instituições legais reguladoras”. A sua
finalidade “é a interpretação crítico-dialética da formação e da evolução das fontes, idéias
norteadoras, formas técnicas e instituições jurídicas, primando pela transformação presente do
conteúdo legal instituído e buscando nova compreensão historicista do Direito num sentido social e
humanizador”.
Essa, portanto, não é uma atividade simples, pois, no cumprimento desses propósitos, a
pesquisa da história do direito deve atentar-se para a necessária interação que deve haver entre a
cultura jurídica e as instituições jurídicas. Estas, segundo Wolkmer (2000, p. 2), são as estruturas
normativas sistematizadas e permanentes que atuam e coordenam determinados núcleos de ação e
têm funções específicas (de controle social, de sanção, de administração política financeira, de
ordem familiar e de satisfação das necessidades comunitárias), operadores profissionais e órgãos de
decisão. Aquela, por sua vez, são “as representações padronizadas da (i)legalidade na produção de
idéias, no comportamento prático e nas instituições de decisão judicial, transmitidas e internalizadas
no âmbito de determinada formação social”. (WOLKMER, 2000, p. 4).
Como se pode perceber e enfatiza Wolkmer (2000, p. 1), “a obtenção de nova leitura
histórica do fenômeno jurídico enquanto expressão cultural de ideias, pensamentos e instituições
implica a reinterpretação das fontes do passado sob o viés da interdisciplinaridade (social,
econômico e político) e da reordenação metodológica, em que o Direito seja descrito sob uma
perspectiva desmitificadora”.
Essa complexidade se faz presente, também, na pesquisa da história do direito penal,
devendo-se atentar, ainda, para as características desse ramo do direito que podem ser encontradas
em qualquer época e local, muito embora haja distinções entre o direito de cada país
especificamente.

2.2 A abrangência, os atores e os objetos da pesquisa histórica em direito penal

A pesquisa histórica do direito penal deve levar em consideração a sua abrangência, os


seus atores e os seus objetos. Em face da sua abrangência, pode-se seguir, nessa pesquisa, entre

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outros, o método dedutivo, se partirmos de abordagens mais gerais para as especiais, ou o indutivo,
se caminharmos em sentido inverso, extraindo conclusões mais gerais a partir de dados específicos.
Assim, além dos importantes resultados gerais obtidos pelos historiadores da análise de
elementos particulares, os quais lhes permitiram concluir, indutivamente, acerca das práticas
comuns das pessoas e dos povos, o que pode ser constatado, por exemplo, em obras como a
"História das Civilizações", de Will Durant, é possível, também, caminhar em direção às
especificidades, de modo a se poder deduzir dessas conclusões gerais, por exemplos, aspectos
específicos da história do direito, a qual está retratada, entre outras obras, na "Introdução Histórica
ao Direito", de John Gilissen, as quais, também, indicam caminhos a serem seguidos na pesquisa da
história do direito penal, como é o caso da "História Crítica do Direito Penal", escrita por José
Rafael Carpentieri.
Diversos, também, podem ser os atores históricos da atividade punitiva estatal, não
podendo a história dessa atividade restringir-se àquela oficial, isto é, à história contada pelos
vencedores ou pelos agentes que exerceram o controle penal, conforme tem ocorrido
tradicionalmente, mas deverá abranger, também, as versões dos vencidos, ou seja, daquelas pessoas
que foram submetidas a esse controle e que permaneceram, em regra, esquecidas.
É por isso que cabe, aqui, a menção à interpretação que Walter Benjamin, filósofo
judeu-alemão, vê no quadro "Ângelus Novus",3 de Paul Klee, o qual representa o “anjo da história”,
isto é, “um anjo que parece afastar-se daquilo que está olhando", pois "seus olhos estão arregalados,
a boca e as asas abertas”, de modo que, “onde vemos um encadeamento de acontecimentos, ele
enxerga uma única catástrofe contínua, que amontoa ruínas sobre ruínas, jogando-as a seus pés",
diante dos quais "ele gostaria de se deter um pouco, ressuscitar os mortos, reorganizar os vencidos”.
(KONDER, 1989, p. 91).
Como se pode perceber, essa interpretação impõe uma nova preocupação, no sentido de
que a reconstrução histórica seja realizada sob a perspectiva, também, dos vencidos, o que, no
campo do direito penal brasileiro, significa voltar as atenções para os súditos do governo imperial,
para os índios - como, por exemplo, o estudo realizado por João Bernardino Gonzaga acerca do
"Direito Penal Indígena: À Época do Descobrimento do Brasil" -, para os escravos, para as

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O quadro Angelus Novus foi pintado, em 1920, por Paul Klee, poeta e pintor suíço, naturalizado alemão, nascido em
1849 e falecido em 1940. Basicamente, trata-se de uma pintura realizada com aquarela ácida e ponta seca de pincel.
Após passar pelas mãos do famoso filósofo judeu-alemão Walter Benjamin, encontra-se, atualmente, no Museu de
Israel em Jerusalém.
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mulheres e para tantos outros que ficaram de fora da escrita da história oficial, embora submetidos
ao controle social.
No que diz respeito aos objetos da investigação histórica do direito penal, não pode ele
se restringir à investigação de determinados fatos ou acontecimentos, mas se deve descobrir as
tendências das contínuas transformações sofridas pela humanidade. Conforme ressalta Burke (1992,
p. 18), “remontam a um longo percurso as tentativas de escrever uma história mais abrangente que
aquela dos acontecimentos políticos”.
Referindo-se especificamente à história do direito, Wolkmer (2000, p. 3) afirma que se
deve ter “a preocupação de contemplar uma historicidade marcada por crises, rupturas, avanços e
recuos, bem como pela convivência de contradições, desigualdades e conflitos dentro de um espaço
capitalista neocolonial, dependente e periférico”.
Para que se possa realizar essa abordagem estrutural da história, não se pode recorrer,
apenas, a fontes oficiais, mas, também, a imagens, a depoimentos judiciais, a estatísticas e a
entrevistas, pois, segundo Wolkmer (2000, p. 2), “as instituições jurídicas têm reproduzido,
ideologicamente, em cada época e em cada lugar, fragmentos parcelados, montagens e
representações míticas que revelam a retórica normativa, o senso comum legislativo e o ritualismo
dos procedimentos judiciais”. Portanto, quanto aos seus objetos, a pesquisa histórica do direito
penal não pode se ocupar, apenas, dos fatos ou acontecimentos históricos, mas, sobretudo, das
tendências de transformações históricas contínuas e não episódicas.

3 AS VERTENTES DA PESQUISA HISTÓRICA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

A pesquisa histórica do direito penal somente pode ser realizada a partir das suas fontes,
que são obtidas de distintas vertentes. Devem-se distinguir as “vertentes” e as “fontes”, pois aquelas
designam, genericamente, o conjunto específico destas, de modo que, enquanto a documentação
pode ser considerada uma vertente, um determinado código ou uma lei específica deve ser
considerada uma fonte de pesquisa.

3.1 A documentação oficial

A documentação oficial, com certeza, constitui uma importante vertente de fontes da

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pesquisa histórica do direito penal, uma vez que a atividade punitiva se realiza integralmente em
ambiente estatal. Essa documentação oficial abrange o conjunto das disposições normativas que
tratam da programação da atuação das diversas agências do sistema penal, isto é, a legislação penal
e processual penal, bem como a jurisprudência e os atos administrativos dessas agências, e retrata,
sobretudo, a história oficial do direito penal acerca das transformações ocorridas nos respectivos
países e seus diversos períodos históricos, porquanto elas contêm, mesmo que, algumas vezes, de
forma não sistematizada, as normas que influenciaram e continuam influenciando o direito penal
desses países e de outros.
Trata-se, portanto, de uma vertente que está relacionada, sobretudo, com o campo do
dever-ser, ressaltando-se que essas disposições normativas, essa jurisprudência e esses atos
administrativos, nem sempre, foram observadas nas práticas cotidianas, razão pela qual essa
vertente possibilita uma reconstrução apenas parcial da história do direito penal, isto é, da sua
história oficial e de como deveria ser a atividade punitiva estatal naquele período e naquele local e
não, propriamente, de como ela ocorreu no cotidiano.
No que diz respeito à jurisprudência, embora ela retrate as decisões dos tribunais e seja
um aporte importante de dados da história oficial, não se pode esquecer que ela espelha a
interpretação que as cortes de justiça realizaram acerca da legislação em determinada época e local.
A pesquisa jurisprudencial pode retratar, também, a atuação das diversas agências do sistema de
justiça criminal, sobretudo dos órgãos encarregados da persecução criminal, da defesa criminal e da
execução das sanções penais.
Os atos administrativos dos diversos órgãos públicos e das instituições públicas que, de
alguma forma, integram o sistema penal são, também, importantes fontes de informações históricas
sobre as funções, as obrigações e a atuação das diversas agências do sistema penal, porquanto,
embora, também, sejam o retrato da história oficial, eles contêm informações valiosíssimas tanto de
como devem ser as práticas punitivas, especialmente nos casos concretos, e informações sobre
como essas práticas, de fato, estão ocorrendo. Incluem-se nesses atos os relatórios, os pareceres, as
portarias, os processos administrativos e os registros de dados estatísticos que possibilitam tanto a
pesquisa histórica quantitativa quanto a qualitativa.
Entre os documentos a serem pesquisados, podem ser citados, no âmbito da Idade
Antiga, as "Reformas de Urukagina", cidade-estado do sudeste da Suméria, produzidas por volta do
Século XXIV a C.; o "Papiro de Berlim", da VI Dinastia egípcia, dos anos de 2420 a 2294 a C.; o

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"Código de Hamurabi", editado por Hamurabi, Rei da Babilônia, no século XXIII a. C., também
considerado um dos documentos literários e jurídicos mais antigos do mundo; a "Lei das Cinco
Penas", editado pelo imperador Sainu, da China, por volta dos anos de 2150 a 2145 a C.; o "Código
de Ur-Nammu", que surgiu na Suméria, cerca de 2040 a.C.; as "Leis de Eschnunna", que teriam
sido gravadas por determinação do Rei de Eschnunna, antiga região árabe, em 1930 a. C.; os "Dez
Mandamentos da Lei de Deus", recebidos por Moisés, líder do povo judeu, no século XVI a.C; o
"Pentateuco", isto é, os cinco primeiros livros bíblicos (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio), que, em hebraico, levam o nome de "Torah", escrito nos anos de 1500 a 500 a. C.,
o qual foi ampliado pelos líderes religiosos do judaísmo, criando-se o "Misnah", que, com a sua
interpretação, passou ser denominado de "Talmud"; o "Código de Manu" ou El Manava-Dharma-
Sastra, que significa o "Livro da Lei", da Índia, datado de 1200 a C.; e a "Lei das XII Tábuas",
vigentes, em Roma, no ano de 450 a.C. (Período da República).
No período medieval, surgiram fontes legislativas como o "Corpus Juris Civilis",
também denominado "Código Justiniano", outorgado pelo imperador Justiniano no ano de 528 d.
C.; as primeiras legislações dos Estados germânicos, nos séculos V a IX, entre as quais estão as
"Leges Barbarorum", as "Leges Romanae Barbarororum" e as "Capitulares"; no Reino visigótico,
merecem destaque, nos séculos V a VII, o "Código de Eurico", o "Breviário de Alarico", o "Código
Revisto de Leovigildo" e o "Código Visigótico"; os "Códigos Canônicos", editados, pela Igreja
Católica Apostólica Romana, desde o Séc. IV, iniciando-se com o "Codex Canonum
Ecclesiasticorum", de Dionísio, "Concordia Discordantium Canonum", elaborado pelo Frei João
Graciano, em 1140; o "Código Canônico de 1917", editado pelos Papas Pio e Bento XV,
considerado o primeiro código unificado, e o atual, que está em vigor desde 27 de novembro de
1983, no papado do Papa João Paulo II; as leis fundadas por Maomé (Muhammad ibn Abdallah), no
ano de 610 d. C., denominadas "Alcorão" (O Corão) e o Sunna, as quais até hoje servem de dogmas
para o povo muçulmano; as "Leis Feudorum", que datam do século XII e regeram vários feudos; a
"Carta Magna inglesa", de 15 de junho de 1215, editada, em Runnymede; no âmbito do direito
português, o "Código Visigótico", até o século XII; as "Leis Dimanadas de Cúrias ou Concílios
Reunidos em Leão, Coiança e Oviedo", nos séculos XI e XII; os "Forais de Terras Portuguesas
Anteriores à Independência", do século XI; as "Leis Gerais dos Primeiros Monarcas", dos séculos
XII e XIII; os "Forais e Cartas de Povoação", do século XIII; as "Concórdias e Concordatas", dos

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séculos XII e XIII;4 as "Ordenações Afonsinas", editadas, no ano de 1446 ou 1447, pelo Rei
Afonso, que vigoraram, inclusive, no território do Brasil-Colonial, no Reinado de D. Manoel.
Na modernidade, não se pode deixar de mencionar, no ano de 1521, as "Ordenações
Manoelinas", e, depois, em 1603, a "Ordenações Filipinas", do Rei Felipe I de Portugal (Felipe II da
Espanha), cujo Livro V, que trata da matéria penal, vigorou, em território brasileiro, até o ano de
1830, quando foi sancionado o "Código Criminal do Império"; a "Lei do Habeas Corpus", em 1679,
e a "Declaração de Direitos" (Bill of Rights), de 1689, ambas da Inglaterra; a "Declaração do
Estado de Virgínia", de 1776, nos Estados Unidos da América; e, depois, a "Declaração Francesa
dos Direitos do Homem e do Cidadão", de 1789, na França.
São importantes para a compreensão da legislação penal brasileira, sobretudo a
influência sofrida pelos elaboradores do Código Criminal do Império, de 1830, as legislações
compendiadas da Áustria (1803), da França (1810), da Baviera (1813), de Nápolis (1819), de Parma
(1820) e da Espanha (1822). (DOTTI, 1998, p. 52).
Na idade contemporânea, não se pode perder de vista a "Carta das Nações Unidas", de
1945, e a "Declaração Universal dos Direitos do Homem", de 1948, após o que surgiram vários
tratados e convenções internacionais, formando os sistemas universal-geral, universal-especial,
regional-geral e regional-especial, todos de proteção dos direitos humanos, podendo-se destacar,
entre estes, os sistemas europeu, americano e africano.5
Entre os diplomas de direito internacional que formam o sistema universal-geral, além
da "Carta das Nações Unidas", de 1945, e da "Declaração Universal dos Direitos do Homem", de
1948, antes mencionados, estão o "Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais", de 1966; o "Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos", de 1966; o "Protocolo
Facultativo Relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos", de 1966; e o "Segundo
Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos para a Abolição da Pena
de Morte", de 1989.
Já, dos diplomas de direito internacional do sistema global-especial, que tratam, entre
outras, de normas relativas ao direito penal, cabe citar a "Convenção sobre a Prevenção e a Sanção
4
Cfe. COSTA, Mario Júlio de Almeida. História do direito português. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2012. p. 203 a 215.
5
Piovesan afirma que “cada qual dos sistemas regionais de proteção apresenta um aparato jurídico próprio”¸ de modo
que “o sistema interamericano tem como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969,
que estabelece a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. Já o sistema europeu conta
com a Convenção Européia de Direitos Humanos de 1950, que estabelece a Comissão e a Corte Européia de Direitos
Humanos. Por fim, o sistema africano apresenta como principal instrumento a Carta Africana de Direitos Humanos”
(PIOVESAN, 2003. p. 226).
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do Crime de Genocídio", de 1948; a "Convenção n. 105 da Organização Internacional do Trabalho
Relativa à Abolição do Trabalho Forçado", de 1957; a "Convenção contra a Tortura e outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes", de 1984; as "Regras Mínimas das
Nações Unidas Para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Pequim)", de
1985; a "Convenção sobre os Direitos da Criança", de 1989; os "Princípios Básicos Para o
Tratamento de Reclusos", de 1990; a "Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e
Substâncias Psicotrópicas", de 1991; o "Estatuto de Roma Sobre o Tribunal Penal Internacional", de
1998; a "Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de
Palermo)", de 2000; o "Protocolo Relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre,
Marítima e Aérea", de 2000; o "Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças", de 2000; e o "Protocolo Contra a Fabricação e o
Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Peças e Componentes e Munições", de 2001.
Por sua vez, entre os diplomas normativos do sistema regional-geral, encontram-se a
"Declaração Americana dos Direitos do Homem", de 1948; a "Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)", de 1969; e o "Protocolo Adicional à Convenção
Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(Protocolo de San Salvador)", de 1988.
Por fim, entre os diplomas do sistema regional-especial, por conterem, também, normas
penais e processuais penais, cabe citar o "Tratado para a Proscrição das Armas Nucleares na
América Latina e no Caribe (Tratado de Tlatelolco)", de 1967; a "Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura", de 1985; o "Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre
Direitos Humanos à Abolição da Pena de Morte", de 1990; a "Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará)", de 1994; e
a "Convenção Interamericana Contra a Corrupção", de 1996.
No âmbito do direito penal brasileiro, são importantes vertentes de fontes legislativas a
Constituição de 1824; o Código Criminal do Império de 1830; o Decreto n. 774, de 20 de novembro
de 1890; o Código Penal de 1890; a Constituição de 1891; a Consolidação das Leis Penais de 1932;
a Constituição de 1934; a Constituição de 1937; o Código Penal de 1940; a Constituição de 1946; a
Lei do Abuso de Autoridade (Lei n. 4.898, de 9 de dezembro de 1965); a Constituição Federal de
1967; o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968; o Decreto-Lei n. 898, de 29 de
setembro de 1969 (Lei de Segurança Nacional); a Emenda Constitucional de 17 de outubro de 1969;

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o Código Penal de 1969 (Decreto-lei n. 1004, de 21 de outubro de 1969); a Reforma Penal de 1977
(Lei no 6.416, de 24 de maio de 1977); a Lei de Segurança Nacional (Lei n. 6.620, de 17 de
dezembro de 1978); a Nova Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170, de 14 de dezembro de 1983);
a Reforma Penal de 1984 (Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984); a Lei n. 7.210, de 11 de julho de
1984 (Lei de Execuções Penais); a Constituição de 1988; a Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072,
de 25 de julho de 1990); a Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099, de 26 de setembro de
1995); o Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997); a Lei da Tortura
(Lei n. 9.455, de 7 de outubro de 1997); a Lei dos crimes ambientais (Lei n. 9.605, de 12 de
fevereiro de 1998); a Reforma Penal de 1998 (Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1998); o Estatuto
do Desarmamento (Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003); a Lei da Violência Doméstica ou
Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006); e a Lei de Drogas (Lei 11.343, de 23
de agosto de 2006); a Lei dos Crimes Contra a Dignidade Sexual (Lei n. 12.015, de 7 de agosto de
2009).6
A partir dessa legislação é possível perceber que, se, no período imperial, havia a
previsão legal de aplicação da pena de morte e das demais penas corporais em larga escala, no
período republicano, as sanções penais privativas de liberdade assumiram a sua hegemonia no
sistema punitivo brasileiro. No entanto, o próprio Código Penal de 1890 já instituiu o livramento
condicional, considerado um importante instituto desprisionalizador que iniciou uma série de outros
criados pela legislação republicana.
Durante o período imperial, também, eram considerados inimputáveis os menores de 14
(catorze) anos, os quais recebiam tratamento diferenciado até completarem 17 (dezessete) anos. Na
República, esse tratamento diferenciado passou a abranger os que estivessem entre 9 (nove) e 17
(dezessete) anos. Todavia, houve modificações sensíveis nessa área, criando-se, em 1927, o
Primeiro Código de Menores, retornando a imputabilidade penal para os maiores de 14 (catorze)
anos.
Com o Código Penal de 1940, foram instituídas as medidas de segurança. Em 1977, foi
recepcionado, pelo direito penal brasileiro, o sistema progressivo no cumprimento das penas
privativas de liberdade e, em 1984, passaram a ser adotados os substitutivos às penas privativas de
liberdade e a remição da pena. Em 1998, ampliaram-se as possibilidades da substituição penal.

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Há inúmeras outras fontes legislativas que, por serem específicas, não serão mencionadas no presente ensaio, para não
estendê-lo indevidamente.
11
Assim, o estudo histórico da legislação possibilita constatar que, apesar da sua
hegemonia, as penas privativas de liberdade vêm sofrendo inúmeras ações que visam ao seu
enfraquecimento, com o surgimento dos institutos desprisionalizadores, como é o caso do
livramento condicional, instituído pelo Código Penal de 1890, a suspensão condicional da pena, os
substitutivos penais e a remição pelo estudo e pelo trabalho prisional, instituídos por leis penais
extravagantes.
Contudo, essa história da legislação penal pode ser contrariada pela história das práticas
punitivas cotidianas, que revela um uso cada vez mais frequente das penas privativas de liberdade,
conforme se pode demonstrar pelo excesso da população carcerária e pela necessidade de
construção de novos estabelecimentos prisionais, permitindo-se que, também, faça-se uma análise
da amplitude, dos problemas, das falácias e das crenças sobre a efetividade de cada uma das
modalidades punitivas previstas e usadas.

3.2 As ideias ou o pensamento jurídico-penal

As ideias ou pensamentos jurídico-penais que permeiam a história da humanidade desde


os tempos mais antigos até os dias atuais são construções mentais realizadas tanto no campo
religioso quanto nos campos filosófico e científico, as quais estão registradas nas obras de filosofia,
de sociologia, de antropologia, de psicologia, de criminologia e, sobretudo, nas obras jurídicas, de
todos os tempos.
Apesar das diversas menções isoladas acerca das questões penais contidas,
especialmente, em textos filosóficos e religiosos, não se pode deixar de ressaltar que uma
organização científica das ideias penais começou a ocorrer, somente, após o século XII, por obra
dos glosadores7 e pós-glosadores ou comentadores,8 os quais, no dizer do historiador do direito

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Conforme Luisi (2001, p. 11), os glosadores, “tendo por base o Direito romano, por eles aceito e indiscutido no seu
conteúdo, fazem uma análise de suas normas com uma técnica de abordagem caracterizada pela glosa gramatical e
filológica pela explicação do sentido, pela concordância, pela distinção”. Havia duas escolas dos glosadores, isto é, as
escolas de Bolonha e de Orleães, e a escola dos comentadores ou pós-glosadores. Os glosadores de Bolonha, afirma
Gilissen (2001. p. 342-345)., debruçaram-se sobre as Instituições, o Codex, as Novelas e o Digesto, isto é, “analisando o
conjunto das codificações de Justiniano, estudaram o direito como um sistema jurídico coerente e completo,
independentemente do direito do seu tempo”, de modo a contribuir “para o desenvolvimento de uma ciência do direito,
cujo ensino é assegurado em escolas (mais tardes chamadas faculdades) exclusivamente reservadas aos estudos
jurídicos”. Mais especificamente, as glosas (do grego, “palavra”, “voz”) consistiam em “uma breve explicação de uma
palavra difícil”, que ampliava os textos jurídicos ou as frases, tornando-as “cada vez mais longas e complexas”, embora
permanecessem, “essencialmente interpretações textuais”, porquanto “eram limitadas à exegese dos textos”. A escola de
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belga John Gilissen, Professor da Universidade de Bruxelas (Bélgica), “foram os primeiros, na
Idade Média, a estudar o direito como uma ciência” (GILISSEN, 2001. p. 343) e, por isso, a
organizar, de forma sistematizada, o pensamento jurídico, devendo-se ressaltar, conforme expõe o
filósofo e jurista brasileiro Luiz Luisi, Professor da Universidade de Cruz Alta, que, antes deles, não
havia distinção no estudo dos diversos ramos do direito, pois “um tratamento diferenciado da
matéria penal só teria começado a partir do século XIII, ou seja, à época dos pós-glosadores”, com a
obra "De Ordine Maleficiorum", produzida por Rolandino de Romanciis, Professor de Bolonha,
embora esta não tenha se conservado até os dias atuais. No século XIV, surgiu a primeira obra
genuinamente penal, produzida por Alberto Galdino, Juiz de Florença e Bolonha, denominada
"Tratactus de Maleficiis", cujo grande mérito "foi dar um tratamento distinto às normas penais
como um conjunto, ou seja, um ramo específico do Direito”. A esta seguiram-se a "Aurea Prática
Criminalis", de Jacob de Belvisio; o "Tractatus De Maleficiis", de Bonifácio de Valinis; e,
especialmente, o "Tratactus de Maleficiis", de Angelo dei Gambiglioni, de Arezzo, razão pela qual
também é conhecido como Angelo Aretino.(LUISI, 2001, P. 13-15).
No século XV, ressalta Luisi (2001, p. 13-17), surgiram as obras "Tratactus Varii Que
Omnen Fere Materiam Criminalen", de Egidio Bossi, e, no final desse século e início do século
XVI, as obras "Pratica Causarum Criminalen", de Ippolito dei Marsiliis; "Tratactus Varii que
Omnen Fere Materiam Criminalen", de Egidio Bossi; "Práxis et Theorica Criminalis", de Próspero
Farinácio; e "Receptiae Sententiae", mais especificamente o seu livro V, intitulado "Pratica
Criminalis", de Julius Clarus. Especial destaque merece a obra "Tratactus Criminalis", publicada,

Bolonha surgiu nos séculos XII e XIII, na Universidade de Bolonha (1088), por obra, possivelmente de Irnerius, e teve
como seguidores Bulgarus, Martinus Gosia, Hugo, Jacobus, Azo e Acúrsio. Os glosadores de Orleães, por sua vez,
segundo Gilissen, procuraram “aplicar muito mais do que os italianos o método dialético”, o que se significa dizer que
“libertaram-se mais facilmente da análise puramente textual” e que “a sua argumentação é mais fina”. A escola de
Orleães surgiu na segunda metade do século XIII, na Universidade de Orleães, com uma proposta de renovação dos
métodos romanistas, a partir de uma crítica às glosas de Acúrsio, sendo seus principais representantes Jacques de
Revigny e Pierre de Belleperche.
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Os comentadores ou pós-glosadores, por sua vez, explica Gilissen (2001. p. 345-347), inspiraram-se na “dialética
escolástica, método então utilizado pela Teologia e em Filosofia por influência de São Tomás de Aquino”, e se
propunham a “examinar os textos de direito romano no seu conjunto e de retirar deles princípios, a fim de os aplicar aos
problemas concretos da vida corrente”. Assim, “o novo método reside, sobretudo, na discussão e no raciocínio lógico,
construído sobre as regras jurídicas romanas consideradas como princípios não discutíveis”. Os comentadores,
primeiramente, procediam à “divisão e subdivisão da matéria”; depois, estabeleciam “premissas” de onde deduziam
“inferências”; em seguida, as conclusões eram, então, “submetidas a uma crítica severa pelo exame de casos
particulares (casus) muitas vezes insolúveis”; por fim, eram levantadas “objeções”, as quais eram combatidas “com
novos argumentos”. A escola de comentadores ou de pós-glosadores surgiu no fim do século XIII e perdurou durante os
séculos XIV e XV, nas Universidades de Bolonha, Pavia e Pisa, como uma sucessão dos juristas da escola de Orleães,
uma vez que foi introduzida, na Itália, por Cino de Pistoia, aluno de Jacques Revigny. Essa escola teve, como principal
representante, Bártolo, aluno de Cino, tanto que os seus integrantes também foram denominados bartolistas.
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em 1590, por Tibério Deciani, que, conforme Luisi (2001, p. 17-18), constitui-se na primeira
sistematização metodológica e científica do direito penal.
Todavia, foi no século XVIII que começaram a se estruturar as escolas penais, a iniciar-
se pela escola clássica, por influência do iluminismo, seguindo-se a escola positiva, por influência
do evolucionismo e do determinismo, e as escolas ecléticas, que procuraram conciliar o pensamento
convergente dos diversos pensadores daquelas escolas. Todas essas escolas se debruçaram sobre as
categorias mais recorrentes no âmbito penal, tais como as de poder e direito punitivo, as de lei e
norma penal, as noções de crime ou delito e contravenção, as de sanção penal e as de processo
penal.
Esse pensamento está exposto nos compêndios de criminologia, os quais sistematizam
as ideias jurídico-penais, conforme se pode constatar, por exemplo, nas obras "Criminologia: Una
Introducción a sus Fundamentos Científicos", escrita por Günther Kaiser; "Criminologia: o Homem
Delinqüente e a Sociedade Criminógena", escrita por Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa
Andrade; "Tratado de Criminología", escrita por Antonio García-Pablos de Molina; e
"Criminologia Comparada", escrita por Hermann Manheim, obras estas que retratam como se
construiu, sobretudo a partir das escolas penais clássica, positiva e neoclássica, o pensamento
preponderante no campo penal até os dias atuais.
Sem prejuízo de outras obras não menos importantes, não podem ser excluídos da
pesquisa histórica das ideias penais, as seguintes obras: "Dos Delitos e Das Penas", escrita, por
Cesare Beccaria, em 1764; "Teoria das Penas Legais e Tratado dos Sofismas Políticos", escrita, por
Jeremmy Bentham, em 1789; "Plan de Legislación Criminal", escrita, por Jean Paul Marat, em
1790; "Génesis del Derecho Penal", escrita, por Giandomenico Rogmanosi, em 1791; "Tratado de
Derecho Penal", escrita, por Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach, em 1801; "Programa do
Curso de Direito Criminal", escrita, por Francesco Carrara, em 1859; "O Homem Criminoso",
escrita, por Cesare Lombroso, em 1876; "Criminologia: Estudo do Delito e da Repressão Penal",
escrita, por Raffaele Garofalo, em 1885; "Sociología Criminal" e "Princípios de Direito Criminal",
escritas, por Enrico Ferri, respectivamente, em 1892 e 1928; "El Problema y o Método de la
Ciência del Derecho Penal", escrita, por Arturo Rocco, em 1910; "La Teoria dello Scopo nel
Diritto Penale", escrita, por Franz von Lizst, em 1905; "O Novo Sistema de Direito Penal: Uma
Introdução à Doutrina da Ação Finalista", escrita, por Hans Welzel, em 1951; "A Nova Defesa
Social: Um Movimento de Política Criminal Humanista", escrita, por Marc Ancel, em 1954;

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"Política Criminal e Sistema Jurídico-penal", escrita, por Claus Roxin, em 1970; e "Direito Penal do
Inimigo", escrita, por Gunther Jakobs, em 1985.
Há, ainda, inúmeras outras obras, cujo objeto predominante é a descrição das ideias
penais que visam a questionar o pensamento tradicional e a propor outras formas de pensar as
questões penais, como é o caso de "Princípios de Criminologia", escrita, por Edwin Hardin
Sutherland, em 1924; "Outsider. Studies in the Sociology of Deviance", escrita, por Howard
Becker, em 1963, "Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal", escrita por Luigi Ferrajoli, em
1989; "Penas Perdidas: O Sistema Penal em Questão" e "Pensar em Clave Abolicionista", escrita,
por Louk Hulsman, em 1982; "Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal", escrita, por
Alessandro Baratta, em 1982; “La Herencia de la Criminologia Crítica”, escrita por Elena Larrauri,
em 1991; “As Prisões da Miséria”, escrita por Loïc Wacquant, em 1999; “La Cultura del Control:
Crimen y Orden Social em la Sociedad Contemporánea”, escrita por David Garland, em 2001;
“Punir os Pobres: a Nova Gestão da Miséria nos Estados Unidos”, publicada no Brasil em 2001;
"Principios de Criminología", publicada por Vicente Garrido, Per Stangeland e Santiago Redondo,
no ano de 2001; “A Sociedade Excludente: Exclusão Social, Criminalidade e Diferença na
Modernidade Recente", escrita por Jock Young, publicada, no Brasil, em 2002; "Criminologia:
Uma Fundamentação Para o Direito Penal", escrita, por Peter-Alexis Albrecht, em 2005; e "Los
Paradigmas del Derecho Penal", escrita por Carlos Christian Sueiro, em 2011.
Não se pode deixar de mencionar, também, as obras que se ocupam de ideias penais
voltadas para os países latino-americanos, como é o caso de "América Latina y su Criminologia",
escrita, por Rosa del Olmo, em 1981; "Crítica a la Criminologia: Hacia Una Teoría Crítica del
Control Social en América Latina", escrita, por Roberto Bergalli, em 1982; "Em Busca das Penas
Perdidas: a Perda de Legitimidade do Sistema Penal", escrita, por Eugênio Raul Zaffaroni, em
1989; e "Teoria Constitucional del Delito", escrita por Mariano H. Silvestroni, em 2004.

3.3 As práticas punitivas cotidianas

Por fim, há as vertentes históricas relativas às práticas punitivas dos diversos povos e
países, isto é, das sanções penais efetivamente praticadas pelas diversas culturas e grupos humanos.
Trata-se, na verdade, dos acontecimentos do mundo da vida (lebenswelt), isto é, das práticas que
estão ou não em consonância com a programação normativa e com as decisões judiciais e

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administrativas. Essas práticas estão registradas em diversas fontes, tais como as documentais e
bibliográficas, as entrevistas, as notícias e os documentários jornalísticos, os relatórios de
instituições públicas e privadas, os depoimentos de testemunhas e interrogatórios de acusados nos
diversos inquéritos e processos, os filmes, as músicas, as representações teatrais etc., muitas delas,
inclusive, objetos de estudos sociológicos e criminológicos, como é o caso da obra "Linchamentos:
a Justiça Popular no Brasil", escrita pelo sociólogo brasileiro José de Souza Martins, no ano de
2015, que descreve como as sanções sociais informais são aplicadas, ainda, em grande escala no
Brasil.
Existem, no entanto, diversas historiografias das práticas punitivas no mundo, as quais
estão retratadas em obras como "Punição e Estrutura Social", "Vigiar e Punir" e "Cárcere e
Fábrica".
A obra "Punição e Estrutura Social", publicada por Georg Rusche e Otto Kirchheimer,
da Escola de Frankfurt, no ano de 1939, é uma das mais antigas historiografias existentes sobre as
penas, tanto que referida pelas demais. Os Capítulos II a VIII foram escritos, por Rusche, em 1931.
Os Capítulos I e IX a XIII foram escritos, por Kirchheimer, posteriormente. Esses autores ressaltam
a vinculação existente entre as penas, o mercado de trabalho e a cultura social, fazendo um estudo
crítico da execução das penas privativas de liberdade.
A obra "Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões", por sua vez, foi escrita, por
Michel Foucault, no ano de 1975, com base em estudos realizados sobre os estabelecimentos
penitenciários de Paris, nos séculos XIX e XX. Esse autor faz uma historiografia das penas desde os
suplícios até as prisões, relacionando o cárcere, a escola, os manicômios e os quarteis a modelos
disciplinários que servem à ordem capitalista, na obtenção de corpos dóceis para o trabalho. Ele
descreve, também, como se processa a microfísica do poder nestas instituições totais, nas quais a
alma serve à tecnologia política da pena e evidencia como surgiu o direito penal do autor.
A terceira historiografia das penas é "Cárcere e Fábrica. As Origens do Sistema
Penitenciário. Sec. XIV a XIX", escrita, no ano de 1977, por Dario Melossi e Massimo Pavarini, na
qual esses autores descrevem a gênese e o desenvolvimento da instituição carcerária (prisão) no
período de formação do modo de produção capitalista. Melossi dedicou-se à historiografia da prisão
dos países europeus, em especial às da Inglaterra, Holanda e Itália, entre os séculos XVI e a
primeira metade do Século XIX, enquanto Pavarini discorreu sobre o surgimento da prisão nos
Estados Unidos da América, na primeira metade do século XIX.

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No Brasil, há obras que retratam as práticas punitivas nos seus diversos períodos
históricos, isto é, durante os períodos colonial, imperial e republicano, como é o caso da obra
intitulada "Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica", escrita, por José Henrique Pierangelli,
em 1980. Mas há outras que se dedicam, especificamente, a determinados períodos históricos, como
é o caso das obras "História do Direito Penal Brasileiro: Período Colonial", escrita por Ruy Rebello
Pinho, em 1973; "Escorço Histórico do Direito Criminal Luso-Brasileiro", escrita por Augusto F. G.
Thompson, em 1976; e "Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I", escrita, por Nilo Batista,
em 2000.
O que essas obras retratam, em suma, é que, no período colonial, as práticas punitivas
ocorriam, sobretudo, por meio de penas corporais, em especial a pena de morte, e as penas
infamantes, como o degredo, inclusive para as galés, a marca a ferro e o açoite, este aplicado em
escravos. A multa também era aplicada em pessoas qualificadas, uma vez que o direito penal, nessa
época, não se orientava pelo princípio da igualdade. Dada a confusão entre o Estado e a Igreja e a
grande influência exercida pelo clero no direito penal da época, a pena capital e as penas
infamantes, como o açoite, a marca de fogo e as galés eram aplicadas a crimes comuns de forma
desproporcional e com a mesma severidade com que se puniam a heresia, a blasfêmia, a apostasia e
a feitiçaria, ou seja, condutas morais e religiosas. A prisão era excepcional ou custodial. As penas
eram imprescritíveis nesse período histórico e atendiam aos interesses do Estado português, que era
um Estado absolutista, no qual preponderavam os interesses do soberano. (PIERANGELI, 1980, p.
5-14).
O período imperial foi caracterizado por pretensões liberais, mas as sanções penais
estavam, ainda, centradas na pena de morte,9 a qual era executada por formas menos cruéis, e nas
penas de degredo, de galés, de prisão perpétua e de açoites - estes empregados, sobretudo, em
escravos. As penas de morte e de galés eram as hegemônicas, enquanto que a prisão, como pena,
era aplicada excepcionalmente, sendo usada, no entanto, como prisão cautelar, enquanto se
aguardava o julgamento e a execução da pena capital. Foi nesse período histórico que, em face de
um erro judiciário, ocorrido no julgamento do fazendeiro Manoel da Motta Coqueiro, na cidade de
Macaé, no Estado do Rio de Janeiro, a pena de morte passou, em regra, a ser comutada, pelo

9
Apesar de ter sido extinta, para crimes comuns, desde o início do período republicano, a pena de morte foi reinstituída,
diversas vezes, nos regimes autoritários, como ocorrido, por exemplo, no Estado Novo e durante parte dos governos dos
presidentes militares, sem haver, no entanto, registros de alguma execução em face desse tipo de sanção penal.
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Imperador D. Pedro II, na pena de galés perpétuas.10 Também, foi no final desse período, que se
aboliu a pena de açoite.
No período republicano, ocorreu a abolição das penas de morte - ressalvada a legislação
militar em tempo de guerra -, de prisão perpétua e de banimento. A prisão passa a ser a pena
hegemônica, surgem as medidas de segurança e implementam-se diversos institutos
desprisionalizadores, como o livramento condicional, a suspensão condicional da pena e os
substitutivos penais, com a instituição de formas alternativas de punir, além de serem adotados o
sistema progressivo e regressivo no cumprimento das penas privativas de liberdade e a remição pelo
trabalho, pelo estudo e pela leitura.
Já sob a égide da Constituição Federal de 1988, experimentou-se o surgimento de
diversos e antagônicos movimentos de política criminal, como o que levou ao surgimento da Lei
dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990), à recepção do consensualismo no
âmbito penal, o qual foi regulamentado, somente, em 1995, por meio da Lei n. 9.099, de 26 de
setembro, ocasião em que se instituíram a transação penal e a suspensão condicional do processo, e
à ampliação do uso de penas alternativas à prisão (Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1998).
Apesar das transformações ocorridas na legislação penal e na jurisprudência brasileiras,
que propugnam por um sistema punitivo mais humano, a pesquisa das práticas cotidianas das
sanções penais no Brasil pode revelar a existência de um abismo entre a programação normativa e
essas práticas.
A propósito, filmes como "Abril Despedaçado", dirigido por Walter Salles, em 2001;
"400 Contra 1: uma História do Crime Organizado", inspirado na obra de mesmo nome, escrita por
Willian da Silva Lima, e produzido, por Nelson Duarte, e dirigido, por Caco Souza, em 2010; e
"Carandiru", inspirado na obra Estação Carandiru, do médico Drauzio Varella, e que foi produzido
e dirigido por Hector Babenco, em 2003, são exemplos de produções culturais diversas que muito
bem retratam o abismo existente entre a programação normativa e as práticas cotidianas, fora e
dentro dos estabelecimentos prisionais, sobretudo em face da ausência, omissão ou desvio dos
agentes estatais nesse campo.
Não é por acaso que, conforme consignado no relatório realizado pela Anistia
Internacional acerca do sistema prisional e o uso da tortura e maus-tratos, "no início do século 21, a

10
O caso foi retratado no livro intitulado A Fera de Macabu: a história e o romance de um condenado à morte, escrito
por Carlos Marchi, e publicado pela Editora, em 1998.
18
prática da tortura e de formas cruéis, desumanas e degradantes de tratamento no Brasil permanece
difundida e sistemática". Segundo esse relatório, há provas do "uso repetido e calculado de tortura
ou maus-tratos em muitas das delegacias policiais e centros de detenção de todos os 26 estados do
país, bem como no Distrito Federal, não como política oficial, mas como método consagrado de
policiamento ou controle das instituições correicionais".(ANISTIA INTERNACIONAL, 2001, p. 5)
Assim, enquanto as vertentes da documentação oficial e das ideias jurídico-penais
fornecem elementos para um estudo sobre a história da programação da atividade punitiva, a
história das práticas punitivas cotidianas possibilita um conhecimento acerca do que efetivamente
ocorreu nesse campo, de modo a ser possível, com o cruzamento dessas pesquisas históricas, a
compreensão acerca do abismo existente entre o ideal e o real.

4 A INVESTIGAÇÃO INTEGRADA DA HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

Se a pesquisa histórica do direito penal, em face dos seus distintos enfoques, é uma
atividade complexa, sobretudo devido a sua abrangência e aos seus diversos atores e objetos, e se
diversas, também, são as vertentes das fontes dessa pesquisa, para que a reconstrução do passado
seja a mais fiel possível e possibilite um resultado que não seja meramente contemplativo das
transformações penais, mas traga elementos para a transformação da realidade futura, é necessário
que ela integre todos esses elementos, de modo a trazer à tona as influências de cada uma de suas
vertentes sobre as demais. Mais que isso, a partir desse enfoque e dessa análise integrada das
vertentes da pesquisa histórica do direito penal, poder-se-á apurar as tendências desse ramo do
direito e, ainda, realizar indicações para uma reprogramação histórica, sobretudo a partir da
modificação da legislação penal, de novas interpretações sobre o material normativo e da revisão
dos atos administrativos.

4.1 As influências recíprocas entre as vertentes

As vertentes históricas do direito penal exercem influências recíprocas umas sobre as


outras, uma vez que as ideias provocam ações e estas implicam a reformulação daquelas. No âmbito
do direito penal, essas ações se expressam em programações e reprogramações normativas, isto é,
em produção da legislação penal, em novas interpretações jurisprudenciais e em novas práticas

19
punitivas cotidianas. Em sentido contrário, também, as práticas cotidianas requerem modificações
legislativas e estas, por sua vez, sobretudo no campo da dogmática penal, implicam o surgimento de
novas ideias.
Essa influência se processa de forma tanto intertemporal quanto interespacial.
No jogo das influências intertemporais, é necessário olhar para as distintas formas de
pensar o fenômeno jurídico-penal no curso da história, sobretudo para as suas rupturas e para as
influências de um período sobre o outro, isso porque é comum, após as rupturas, buscar-se
fundamento em ideias passadas, reformando-as, remodelando-as e reconstruindo-as, como ocorreu,
por exemplo, no neoclassicismo penal, que, contrapondo-se, em parte, aos estudos da escola
positiva, tentou reconstruir as ideias desenvolvidas no classicismo, mas de forma remodelada.
Essa influência, também, ocorre interespacialmente, ou seja, entre as legislações penais
dos diversos países, uma vez que é comum as comissões encarregadas de reformas das leis penais
buscarem subsídios na legislação de outros países, sobretudo daqueles que se organizam, política e
economicamente, de forma semelhante e sofrem influências culturais também parecidas.
Outrossim, as ideias produzidas em determinados locais podem se propagar para outros,
por força do processo de comunicação global, sobretudo, em face do intercâmbio do conhecimento
proporcionado pelas universidades no mundo todo, de modo que é comum e salutar que as
experiências da pesquisa acadêmica de um país sejam aproveitados e estudados por outros.
Por fim, tanto espacial quanto temporalmente, é comum ocorrer a influência das
práticas punitivas de um país sobre outro, com vistas a instituí-las ou aboli-las, como ocorreu, por
exemplo, em relação às penas corporais e, mais recentemente, com a pena de morte, em processo de
extinção no mundo ocidental. Isso ocorre, também, devido à interferência de uma cultura sobre a
outra, levada a efeito, atualmente, com mais intensidade, por meio do fenômeno da comunicação de
massa e da interação entre as pessoas.

4.2 A constatação das tendências das transformações históricas

A partir das três vertentes antes referidas, é possível constatar as tendências de


transformações das ideias, da legislação e das práticas punitivas, tanto no mundo quanto no Brasil.
No mundo, pode-se visualizar, por exemplo, as rupturas ocorridas nas práticas punitivas
antigas, nas medievais, nas modernas e nas contemporâneas. Na antiguidade e no medievo, por

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exemplo, as práticas punitivas eram autoritárias e estavam impregnadas pelo componente religioso,
o que veio a perder força na modernidade e na contemporaneidade, com o surgimento do Estado de
direito, em face das suas características laicas. Na contemporaneidade, também, passou-se a ter uma
preocupação mais acentuada com a humanização das sanções penais, o que ocorreu a partir da
abolição, em muitos países, da pena de morte, das penas de caráter cruel e da prisão perpétua. Há,
também, na atualidade, uma tendência de passagem da nacionalização à internacionalização das
normas penais, uma vez que, tanto no sistema global quanto nos regionais, há a proliferação de
acordos, tratados e convenções internacionais que dispõem sobre a repressão criminal e as garantias
penais e processuais das pessoas criminalizadas.
No Brasil, também, é possível notar alterações nas ideias, na legislação penal e nas
práticas punitivas dos períodos colonial, imperial e republicano, bem como durante os governos
autoritários do Estado novo e dos presidentes militares.
Por exemplo, é possível constatar que, no Brasil, nos períodos colonial e imperial, a
exemplo dos demais países ocidentais, as penas eram, hegemonicamente, corporais e passaram a
ser, no período republicano, prioritariamente, de privação da liberdade. Em suma, por meio da
análise histórica das sanções penais, é possível afirmar que estas se transformaram com o passar dos
tempos, migrando do corpo (penas de morte e demais penas corporais) para a alma (penas
privativas de liberdade e restritivas de direito), e que a multa foi uma modalidade de sanção penal
praticada desde o período colonial, embora com incidência sobre pessoas diferentes, pois, nesse
período e durante o Império, eram aplicadas em relação, sobretudo, a fidalgos, sendo uma pena que
ainda continua sendo usada, mas de forma distinta. Algumas sanções penais restritivas de direitos
também eram praticadas no Brasil imperial e ainda permanecem, como, por exemplo, a perda ou
suspensão do emprego, tendo sido ampliado o rol dessa espécie de sanção, com a instituição das
penas de perda do mandato eletivo, do cargo ou da função pública, de prestação de serviços à
comunidade, de prestação pecuniária, de perda de bens e valores, de limitação de final de semana,
de recolhimento domiciliar, aplicável às infrações penais ambientais, de proibição de frequentar
estádios esportivos, aplicável a torcedores, e tantas outras.
É possível constatar, ainda, que, durante a República, está ocorrendo uma tentativa de
desprisionalização, com o surgimento de diversos institutos como o livramento condicional, o
sursis, os regimes semiaberto e aberto, a substituição da pena privativa de liberdade por outras
modalidades punitivas e as medidas penais consensuais, embora, na prática a prisão continue sendo

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usada em larga escala.
Esses institutos desprisionalizadores reduzem as hipóteses de aplicação da pena
privativa de liberdade em relação a determinadas pessoas, como é o caso dos condutores de veículo
e dos autores de condutas praticadas sem violência ou grave ameaça à pessoa, que, em regra, são
beneficiados pela substituição da pena privativa de liberdade por outras modalidades punitivas, de
modo a que as vagas nos estabelecimentos prisionais sejam direcionadas para outros condenados,
sobretudo aos reincidentes em crimes dolosos, em relação aos quais prepondera o uso da pena de
prisão.

4.3 As possibilidades de reprogramação histórica do direito penal

Esse olhar para o passado e a reconstrução das condições que propiciaram as


transformações históricas já ocorridas nas sanções penais possibilitam não somente a visualização
das tendências dessas transformações e das condições que as favoreceram mas, também, das
transformações que são possíveis e viáveis no campo das ideias, da legislação penal e das práticas
punitivas, e daquelas que, se propostas, estarão na contramão dessas tendências.
Dito de outra forma, se é possível constatar, por um lado, uma tendência à abolição ou à
minimização do uso da pena de morte, das penas corporais e da prisão perpétua em diversos países
ocidentais, por força das condições políticas, filosóficas, sociológicas e econômicas desses países, a
propositura do retorno dessas espécies de sanções não poderá deixar de levar em consideração essas
condições. Por outro lado, se a história da programação normativa internacional retrata um estímulo
à abolição dessas práticas punitivas, qualquer alteração legislativa interna contrária seria uma
afronta a essa tendência normativa. Não é por acaso que, Eugenio Raúl Zaffaroni, Professor de
Direito Penal da Universidade de Buenos Aires e Juiz da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, no prólogo da obra "Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro - I", escrita por Nilo
Batista, afirmou que "o único modo de poder arriscar algum prognóstico sobre o destino do poder
punitivo é a reflexão sobre as condições em que se originou e se desenvolveu, junto a um
diagnóstico muito claro das circunstâncias presentes e de sua projeção imediata". (ZAFFARONI,
2000, p. 14).
Assim, além de um olhar para o passado, sobre como ocorreu a construção do direito
penal dos diversos países, a pesquisa histórica do direito penal, por meio dos seus diversos enfoques

22
e das suas três vertentes, permite que se faça uma reprogramação histórica, isto é, um
redirecionamento das ideias, da legislação penal e das práticas punitivas, o que, talvez, seja a
principal tarefa de qualquer estudo histórico. Isso é possível pela constatação dos pontos de
convergência e de divergência entre as diversas ideias, as diversas legislações penais e das
principais práticas adotadas no mundo.

5 CONCLUSÕES

De tudo o que foi dito, é possível concluir que: 1) a pesquisa histórica do direito penal,
além de necessária, é uma atividade complexa, uma vez que se realiza com vários enfoques,
porquanto tem distintas abrangências e diversos atores e objetos; 2) as vertentes dessa pesquisa,
também, são diversas, merecendo destaque a documentação oficial, as ideias ou o pensamento
jurídico-penal e as práticas punitivas cotidianas; e 3) a investigação da história do direito penal
brasileiro deve ser integrada, ou seja, deve levar em consideração as influências recíprocas entre
essas vertentes, o que possibilitará a constatação das tendências das transformações históricas e das
possibilidades de reprogramação da legislação penal, das ideias e das práticas punitivas cotidianas.

REFERÊNCIAS

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