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Resumo Abstract
A História do Direito constitui terre- Legal History is still a less valued
no ainda pouco valorizado nos estu- Law field, being generally consid-
dos jurídicos, sendo geralmente con- ered an auxiliary science. How-
siderada ciência meramente auxiliar. ever, a full comprehension of the
No entanto, uma compreensão plena Law phenomenon must necessarily
do fenômeno do Direito passa neces- recognize its historical dimension.
sariamente pelo reconhecimento da Taking that into account, this ar-
sua indissociável dimensão histórica. ticle is a brief study on the meth-
Nesse sentido, este artigo é um breve odological and epistemological as-
estudo sobre aspectos metodológicos pects of History and Legal History,
e epistemológicos da História e da aiming to define the connections
História do Direito, procurando and differences between these two
delinear as conexões e as diferenças areas. Moreover, it aims to pres-
entre essas duas áreas. Ainda, obje- ent new and exciting research pos-
tiva apresentar as novas e empol- sibilities for the legal historian, in
gantes possibilidades de atuação do alignment to the historiographical
historiador do Direito, na linha da revolution, which was made possi-
revolução historiográfica promovida ble by the Annales School, through
pela Escola dos Annales, por meio do the identification of legal science
reencontro da ciência jurídica com a with the society.
sociedade a que se refere.
Palavras-chave Keywords
História do Direito – Autonomia Legal History – Scientific Autono-
Científica – Revolução Historiográ- my – Historiographical Revolution –
fica – Escola dos Annales – História Annales School – Social History
Social
Introdução
As relações epistemológicas entre a História, o Direito e a História
do Direito ainda constituem um terreno de difícil compreensão, suscitando
dúvidas tanto para o jurista, quando reconhece a historicidade inerente ao
fenômeno jurídico, quanto para o historiador, ao se deparar, no curso das
suas investigações, com questões referentes à ciência do Direito. A difi-
culdade principal reside no fato de que essas três áreas do conhecimento
coexistem de forma autônoma, ainda que se comuniquem intimamente,
compartilhando métodos e bases teóricas em uma relação complexa e,
muitas vezes, mal interpretada.
O presente estudo procurou explorar de forma geral as linhas prin-
cipais dessa relação, bem como as mudanças recentes mais significativas na
compreensão dessas áreas do conhecimento. As mudanças observadas nas
definições científicas de Direito e de História refletiram nas perspectivas em
relação à História do Direito, especialmente no que pertine ao seu status,
função e campo de atuação. Dessa forma, refletir sobre essas questões
teóricas lança luz sobre as novas e empolgantes possibilidades de atuação
do historiador do Direito na atualidade.
1 – Conforme defende Wieacker (1967, p. 4), “[a] missão cognitiva da história do di-
reito – como a de qualquer outra história – não se fundamenta no material previamente
estabelecido dos dados e factos históricos e na sua utilidade para o presente, mas na his-
toricidade da nossa própria existência. Na medida, porém, em que a história do direito
acaba por recorrer necessariamente quanto a esta questão, à própria experiência do direito,
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tornam-se seu objecto quaisquer domínios da história em que, em geral, possa ser encon-
trada a experiência humana do direito. Ela acaba por ser a História, sob o ponto de vista
da experiência humana do direito”.
2 – “Vejamos o seu integracionismo, a lucidez de perceber o parentesco indissociável do Direito
(em seu devir histórico) com a religião, a política, a linguagem” (SALDANHA, 1978, p. 35).
3 – “O historicismo é sem dúvida um relativismo, mas de alicerce crítico-cultural. Significa
a negação de todo dogmatismo intemporalizante, embora se enganem os que pensam que
com isto ele desliga o homem de valores profundos e mesmo permanentes. Negação de
imagens totalmente estáticas e rígidas da realidade humana. Na afirmação do fluir dos acon-
tecimentos e da relativização dos valores e das instituições, o historicismo faz o reencontro
do homem consigo mesmo dentro do próprio fluir, no qual se continuam e se refazem as
raízes da experiência humana. […] E sendo filosofia de mudar o historicismo não pode
ficar parado em conceitos hirtos: tem de se refazer, de se reformular, de se rever, numa
insatisfação cuja faina, sempre vã e sempre fértil, tem de acompanhar a própria história.
(SALDANHA, 1978, p. 72-73).
4 – Exemplo emblemático dessa situação foi aquela que se seguiu ao assassinato da atriz
Daniella Perez, filha da novelista Glória Perez. A Lei n. 8.930/1994, que incluiu o homicídio
qualificado na Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/1990), é usualmente atribuída à
pressão popular advinda da alta exposição midiática dada ao caso.
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A Nova História
A Escola dos Annales surgiu como uma reação à historiografia do
século XIX e anteriores, com a fundação da revista “Annales d’histoire écono-
mique et sociale”, em 1929, por Lucien Febvre e March Bloch (LE GOFF,
1990, p. 28-29). Enquanto, até então, o centro das atenções dos historiado-
res era a política, especialmente a política do Estado e do Estado Nacional
(LOPES, 2008, p. 3)8, bem como a crença positivista no fato histórico
(WOLKMER, 2002, p. 24)9, esse novo movimento intelectual buscava des-
velar “o verdadeiro jogo da história, que se desenrola nos bastidores e nas
estruturas ocultas” (WOLKMER, 2002, p. 24). O historiador Peter Burke
(1992, p. 12) sintetiza as diretrizes da revista da seguinte forma:
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13 – Segundo Peter Burke (1992, p. 11): “What these approaches have in common is
their concern with the world of ordinary experience (rather than society in abstract) as
their point of departure, together with an attempt to view daily life as problematic, in the
sense of showing that behaviour or values which are taken for granted in one society are
dismissed as self-evidently absurd in another”. [Tradução livre: “O que essas abordagens têm
em comum é a preocupação com o mundo da experiência comum (ao invés da sociedade
em abstrato) como ponto de partida, junto com a tentativa de ver a vida cotidiana como
problematizadora, no sentido de mostrar que o comportamento ou valores que são con-
siderados óbvios em uma sociedade são descartadas como obviamente absurdas em outra”.]
14 – Essa questão é apresentada da seguinte forma por António Manuel Hespanha (1986,
p. 316): “Le premier aspect de la “nouvelle histoire” [...] trouve son origine dans une
réaction au formalisme et au nominalisme de l’historiographie positiviste, pour qui la loi,
le document juridique ou le traité constituent les chaperons de l’événement. La mémoire
de la société étant constituée par les registres juridiques, le modele de la preuve scienti-
fique étant le modéle judiciaire, l’histoire se constitue alors sous l’empire du droit, soit
sur le plan de la matière prémière, soit sur celui des procédures méthodologiques. L’anti-
juridisme de l’École des Annales ne doit donc pas surprendre, d’autant plus que l’influence
marxist conduit à une conception épiphénoménale de l’économique (“le droit n’a pas de
histoire” avait lassé tomber K. Marx [...].” Curiosamente, aponta ele um paradoxo nessa
situação: “Parmi ces territoires nouveaux de l’historien on ne trouve pas, cependant, le do-
maine d’ailleurs classique de l’histoire juridique, même si des “faits juridiques” (des procès,
des actes notariaux, des institutions criminelles) constituent une source très important de
quelques uns des travaux paradigmatiques de la nouvelle histoire. Fait paradoxal. Car, si
la longue durée [...] est la vedette de la nouvelle histoire, peu de phénomenes sont aussi
permanents que les structures de base de l’ordre juridique européen. Et, si la problématique
des “mentalités” est au coeur même de l’intérêt des nouveaux historiens, personne ne peut
nier le rôle constitutif que le droit y joue”. [Tradução livre: “O primeiro aspecto da “nova
história” tem sua origem em uma reação ao formalismo e ao nominalismo da historiografia
positivista, para quem a lei, o documento jurídico ou o tratado constituem os dirigentes
do evento. Sendo a memória da sociedade constituída pelos registros jurídicos, e sendo o
modelo de prova científica o modelo judiciário, a história então se constitui sob o império
do direito, seja no plano da matéria prima, seja sob daqueles dos procedimentos metodo-
lógicos. Logo, o anti-juridicismo da Escola dos Annales não deve surpreender, especialmente
como a influência marxista conduz a uma concepção epifenomenal da economia”/ “Nesses
territórios novos do historiador não encontramos, no entanto, as áreas clássicas da história
do direito, mesmo que os “fatos jurídicos” (os processos, os atos notariais, as instituições
criminais) constituem uma fonte muito importante de alguns dos trabalhos paradigmáticos
da nova história. Fato paradoxal. Pois, se a longa duração [...] é a vedete da nova história,
poucos fenômentos são tão permanentes quanto as estruturas de base da ordem jurídica
europeia. E, se a problemática das “mentalidades” está no centro de interesse dos novos
historiadores, ninguém pode negar o papel que elas representam”.]
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15 – [Tradução livre: Um Direito concebido como uma série de comandos autoritários, ou,
como frequentemente se defende, uma técnica para garantir o pleno controle social, sempre
corre o risco de separar-se daquela História viva que é a sociedade, a qual, precisamente
por ser História viva, foge, ou ao menos tende a fugir, da rigidez dos comandos ou das
imobilizações derivadas dos controles eficazes. [...] A sociedade, ao abominar as correntes
que sufocam sua adaptação espontânea, adota medidas com o fim de que sua historicidade
seja respeitada”.]
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16 – Essa é a tese defendida por Lopes (2008, p. 2), ao escrever que: “A razão de ser deste
interesse renovado [pela História do Direito] creio que vem da situação de mudanças sociais
pelas quais passa a nossa sociedade neste início de século. E 'em tempos de crise, uma
sociedade volta seu olhar para o seu próprio passado e ali procura por algum sinal'. Este
pensamento de Octavio Paz é significativo de várias possibilidades com as quais lançamos
nosso olhar para o passado: para buscar restauração, ou para buscar o futuro mesmo”.
17 – Importante frisar essa distinção entre essas duas áreas, contrariamente ao que pretendia
Savigny: “[...] a inadmissibilidade de se pretender identificar ciência do direito e história
do direito, porém, com essa percepção de que é a história do direito [...] que fornece
os modelos hermenêuticos necessários à compreensão da teoria do direito” (BRANDÃO;
SALDANHA; FREITAS, 2012, p. 35).
18 – Perspectiva brilhantemente sintetizada por Franz Wieacker (1967, p. 4) nos seguintes
termos: “[a] missão cognitiva da história do direito – como a de qualquer outra história –
não se fundamenta no material previamente estabelecido dos dados e factos históricos e na
sua utilidade para o presente, mas na historicidade da nossa própria existência. Na medida,
porém, em que a história do direito acaba por recorrer necessariamente quanto a esta questão,
à própria experiência do direito, tornam-se seu objecto quaisquer domínios da história em
que, em geral, possa ser encontrada a experiência humana do direito. Ela acaba por ser a
História, sob o ponto de vista da experiência humana do direito”.
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todo indivisível que é a história geral do homem, de que não pode ser
destacada, mas que ajuda a explicar.
Dessa forma, no momento em que se refuta o modelo positivista
e normativo que tendia a identificar a História do Direito apenas com
a história das fontes do Direito enquanto produção formal do Estado e
às entidades sociais e políticas organizadas (BRANDÃO; SALDANHA;
FREITAS, 2012, p. 30) abre-se um rico leque de investigações possíveis
que a ressignificam19. Assim, a função do historiador do Direito, para
Paolo Grossi, passa a ser de servir como consciência crítica junto ao ope-
rador positivo, relativizando certezas consideradas absolutas20. Trata-se da
19 – Conforme Paolo Grossi (2006b, p. 25): “El Derecho no está necesariamente vinculado
a una entidad social e politicamente autorizada, y tampoco tiene su referente obligado en
aquel formidable aparato de poder que es el Estado moderno, aun cuando la realidad his-
tórica que hasta hoy nos ha circundado nos muestre el monopolio del Derecho creado por
los Estados”. [Tradução livre: O Direito não está necessariamente vinculado a uma entidade
social e politicamente autorizada, e tampouco obrigatoriamente tem seu referencial naquele
formidável aparato de poder que é o Estado moderno, embora a realidade histórica que até
hoje nos circundou tenha nos mostrado o monopolio do Direito criado pelos Estados.] Ainda,
sobre a ampliação de perspectivas da investigação histórica, discorre Hespanha: “A partir
dos anos sessenta, o pensamento social sofre, na Europa ocidental, uma sensível mutação.
A renovação dos estudos marxistas, possibilitada politicamente pelo termo da guerra fria,
consistiu na revaloração dos próprios textos clássicos e na descoberta das potencialidades
teóricas da interpretação gramsciana do marxismo, mérito de G. della Volpe e de Althusser e
suas escolas. […] Este movimento de renovação da teoria (e história) social desenha-se numa
dupla linha: por um lado, numa perspectiva teórica, põe a descoberto o carácter mítico da
objectividade positivista, ao mesmo tempo que infirma a validade teórica do subjectivismo
e do idealismo 'humanistas'; por outro lado, e agora numa perspectiva prática, traz para
a experiência da investigação histórica novos domínios da realidade humana e social, com
o que se abrem novos problemas e se exigem novas explicativas. Tudo isto se reflecte, evi-
dentemente na historiografia ocidental de resto já de longe preparada para a mudança pela
atividade crítica da escola francesas dos Annales” (HESPANHA, op. cit., p. 15)
20 – Conforme Paolo Grossi (2004, p. 11-12) “um dos papeis, e certamente não o último,
do historiador do direito junto ao operador do direito positivo [é] o de servir com sua
consciência crítica, revelando como complexo o que na sua visão unilinear poderia parecer
simples, rompendo as suas convicções acríticas, relativizando certezas consideradas absolu-
tas, insinuando dúvidas sobre lugares comuns recebidos sem uma adequada confirmação
cultural. [...] O historiador, que por profissão é um relativizador e, conseqüentemente, um
desmitificador, sente-se no dever de advertir o jurista que um nó como esse pode e deve
ser desfeito, e que seu olhar deve ser liberado da lente vinculante colocada diante de seus
olhos por duzentos anos de habilíssima propaganda”.
Considerações Finais
A revolução na historiografia jurídica, em associação com as re-
voluções epistemológicas observadas nas áreas de conhecimento correlatas,
não apenas modificou a definição da História do Direito, como também,
em uma perspectiva mais prática, ampliou as possibilidades de atuação do
pesquisador que se dedica a essa área. Por conta do reconhecimento da his-
toricidade inerente ao fenômento jurídico, não se admite mais que produzir
História do Direito envolve meramente levantar de forma sistemática as
leis vigentes em determinada época. Hoje, o historiador do Direito lança
mão de diversos instrumentos que aumentam o escopo da sua atuação,
sem, com isso, fugir do objeto central dessa área do conhecimento. Se a
História é definida como o estudo do homem no tempo, a História do
Direito pode ser encarada nesses mesmos termos, ainda que com o enfoque
jurídico estabelecendo um recorte distinto.
Por exemplo, particularmente interessantes e influentes hoje são
as pesquisas nessa área que utilizam como fontes documentos policiais e
judiciais armazenados em arquivos e que possibilitam a investigação da
experiência histórica das bases, das pessoas comuns e das mentalidades
coletivas que aspiram por rupturas sociais (WOLKMER, 2002, p. 15),
pretensão bastante distante dos tradicionais historiadores do Direito que
se dedicavam apenas ao exame das fontes estritamente formais de Direito,
esquecendo a sociedade a que esses se referiam. Como referiu Marc Bloch
(2001, p. 66) ao citar Henri Pirenne (“Se eu fosse a um antiquário, só
21 – Posição externada no tradicional brocardo latino “Ubi societas, ibi jus”, repetido à
exaustão nos cursos jurídicos.
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teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador, é por isso que
amo a vida!”22), a preocupação do historiador é, em um primeiro momento,
resolver a sua curiosidade sobre os fatos da vida. As complexidades teóricas
são meras decorrências desse instinto intelectual primeiro.
No mesmo sentido, ao investigarmos a vida das pessoas que
tiveram seus destinos influenciados pela aplicação da lei, estaremos
diante de fatos sociais complexos que podem fornecer respostas para
problemas jurídicos que nos acompanham desde o passado, e perduram
na aplicação diária das normas. Mais do que isso, trata-se da ciência
do Direito admitir sua vinculação estrita à sociedade a que se refere,
como sintetizado por Paolo Grossi (2006b) ao afirmar que “el referente
necesario del Derecho es unicamente la sociedad, la sociedad como realidad
compleja, articuladísima [...]”. Nesse sentido, cabe ao historiador do
Direito desvendar não apenas a forma como a juridicidade formal se
estruturava por meio dos tempos, mas também elucidar a humanidade
subjacente a essas práticas.
Referências Bibliográficas
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