Você está na página 1de 8

Acadêmico: João Eduardo Junckes Natividade

Matrícula: 17105551

ARAUJO, Danielle Regina Wobeto de; STRICKER, Gabrielle (do Valle). Processo dos
Delitos e das Heresias: Um guia de leitura das Ordenações Filipinas (1603) e do Regimento
Inquisitorial (1640). Porto Alegre: Editora Fi, 2019. Disponível em:
https://www.editorafi.org/593delitos Acesso e download em 18 de abril de 2021.

O livro de Danielle Araújo e Gabrielle Stricker tem por escopo analisar tanto as
Ordenações Filipinas, de 1603, quanto o Regimento Inquisitorial, de 1640. Contudo, de
acordo com o prefácio de Luís Fernando Lopes Pereira, “a obra vai muito além disso, pois
caracteriza-se como uma contribuição histórico jurídica para o estudo do Antigo Regime e do
direito do período”, ou seja, auxilia o pesquisador em história do direito a compreender as
principais características do Antigo Regime (p. 11).
O professor pontua, ainda no prefácio da obra, que as autoras buscaram
desmistificar sensos comuns sobre o rigorismo e crueldade punitiva que permeavam os
processos criminais durante a Monarquia Portuguesa.
Nessa perspectiva, aponta ele que uma das primeiras lendas refere-se à crueldade da
Inquisição, que, na verdade, não possui qualquer fundamento e alastraram-se a partir de
ideais renascentistas e iluministas (p. 12).
Convém destacar, na esteira do quanto pontuado pelas autoras nas considerações
iniciais, bem como pela percepção pessoal deste acadêmico durante a leitura do texto, que
essas ideias e pré concepções a respeito da suposta crueldade na justiça criminal não passam
de lendas e mitos. “Esse imaginário foi construído já àquela época, pelos opositores da
Inquisição, que a denominavam como ‘cruel’ e expunham sua contradição fundamental: a
instituição, em defesa da fé, lançava mão da violência” (p. 19). E, embora nem sempre essa
noção esteja correta, nos dias hodiernos, ela continua a ser perpetrada por diversas mídias,
tais como em filmes, séries e livros, “quase sempre à margem de seu contexto histórico” (p.
19).
Sobre o tema, as autoras explicam existirem duas correntes da história sobre o tema
(justiça inquisitorial). A primeira delas, condena a Inquisição lastreando-se na continuidade e
nas violências sofridas pelas vítimas; a segunda, visa analisar a Inquisição com base,
sobretudo, em sua historicidade (p. 20).
Aquela primeira corrente fundamenta, até os dias atuais, argumentos de diversos
juristas que tentam “justificar” a “mentalidade inquisitória” no processo criminal atual como
resquícios do processo criminal da Inquisição (p. 21). Não à toa a expressão “ranço
inquisitorial” é tão difundido entre processualistas atuais.
Contudo, é importante se ter em mente que, ao se realizar estudos históricos, deve-
se escapar de determinismos e evitar a análise do passado com olhos atuais, isto é, deve-se
“evitar narrativas teleológicas, no qual o passado é lido por instituições, categorias,
problemas, ideias e valores do presente” (p. 22).
Nesse cenário, a historiografia jurídica sugere um novo olhar ao passado, para que
seja investigado sem desprezarmos “seu tempo, linguagem e ethos institucional próprios” (p.
24). Este é o marco adotado pelas autoras da obra resenhada.
Com efeito, as autoras comentam que à época das normas por elas examinadas
(Ordenações Filipinas, de 1603, quanto o Regimento Inquisitorial, de 1640), coexistiam o
processo secular e o processo inquisitorial e explicam que pluralismo jurídico pode ser
compreendido como “coexistência social de ordens normativas distintas (com legitimidade e
conteúdos diferentes) sem que existissem regras fixas e sistematizadas que delimitassem,
previsivelmente, o âmbito de vigência de cada ordem jurídica” (p. 27).
Em geral, o que definia a competência para processamento de determinado delito
era a prevenção, ou seja, “a jurisdição que primeiro providenciasse a citação do réu seria
competente para processar o delito” (p. 27). Entretanto, a regra não era absoluta pois
tratando-se de heresia, a jurisdição competente seria da Inquisição, conforme determinava as
Ordenações Filipinas e o Regimento de 1640 da Inquisição.
O conceito de heresia sofreu diversas alterações ao longo do tempo, sendo de difícil
conceituação. Para a historiografia italiana, heresia não se resumia a negação da verdade da
Revelação, mas abarcava uma efetiva oposição à disciplina religiosa. Já para a doutrina do
ius comune, a heresia era melhor compreendida como um ato de vontade e que só devia
sofrer punição nos casos em que coexistirem o erro e a “firmeza do ânimo”, de modo que
“não era herege o que reconhecia o seu erro e estava disposto a emendar-se”. (p. 28). Nestes
casos, busca-se, a cima da punição estrita, a reconciliação com a Igreja.
Como a heresia devia ser julgada, primordialmente, pela Inquisição, havendo
dúvidas quanto a tipificação da conduta, e considerando o pluralismo jurídico da época, quem
detinha competência para dizer se determinado ato era ou não uma heresia era a própria
Inquisição. Essa competência encontrava-se estampada no Regimento Inquisitorial de 1640.
Aliás, “nada impedia que a justiça secular investigasse heresias, incluindo feitiçaria, desde
que a decisão final fosse tomada pela Inquisição, após o envio dos autos de devassa” (p. 32).
Embora ambas as jurisdições fossem, a priori, competentes, as autoras comentam
que houve entre elas muito mais colaboração do que conflitos de competência, “prevalecendo
a noção do processamento do delito para a justiça secular, dos pecados para a justiça
eclesiástica/episcopal e das heresias para Inquisição” (p. 33).
ARAÚJO e STRICKER elencam algumas premissas das quais utilizaram para
abordar as justiças secular e inquisitorial. São elas: (a) impossibilidade de “ignorar a
centralidade do direito nas sociedades do período moderno”; (b) “o processo criminal é um
objeto que interessa ao historiador do direito tanto como fonte histórica, quanto como
categoria jurídica”; (c) “exigência de suspendermos a noção atual da igualdade e secularidade
jurídica, pois a sociedade moderna se via organizada de modo hierarquizado e desigual
aprioristicamente”; e (d) suspensão de “alguns alicerces da noção contemporânea de Estado
de Direito – como lei, constituição, tripartição de poderes e direitos humanos” (p. 34).
Além dessas premissas, algumas proposições foram observadas pelas autoras, das
quais aponto as que julguei mais relevantes: (i) inexistência de monismo jurídico; (ii)
inexistência da tripartição das funções, “todas as instituições e seus agentes exerciam
concomitantemente as funções legislativa, administrativa e jurisdicional, poder denominado
iurisdictio”; (iii) inexistência do princípio da legalidade administrativa; (iv) “direito, religião
e moral se confundiam”; (v) processo de consolidação de uma justiça pública que
abandonava as antigas justiças/vinganças privadas (p. 34-38).
Com tudo isso em linha de consideração, as autoras passaram a descrever
pormenorizadamente cada uma das justiças (secular e Inquisição) vigentes na época.
Por primeiro, elas pontuam que a historiografia jurídica não compactua com escritos
que perpetuam uma “lenda negra” a respeito da justiça criminal secular, eis que havia uma
baixa efetividade na sua aplicação tendo em vista tanto o pluralismo jurídico, como a
precariedade das estruturas institucionais, entre outros fatores.
De acordo com ARAÚJO e STRICKER, n’àquela altura, a justiça criminal não via
necessidade em realizar punições frequentemente, contentando-se com intervenções
esporádicas apenas com a finalidade de demonstrar sua existência, isto é, configurava-se em
uma intervenção simbólica (p. 43).
Uma das informações que mais surpreendeu o presente acadêmico foi a de que
“além de atuar esporadicamente, a justiça criminal secular pendia mais à libertação do que à
condenação e sua eficácia residia em se fazer temer ao ameaçar e de se fazer amar ao não
cumprir” (p. 43).
Já naquela época, “crime” era uma espécie do gênero “delito”, que podia tanto
abarcar aquele (criminal), quanto os delitos privados/civis.
Quando os crimes eram considerados contrários à bens públicos, a autoridade
judicial poderia atuar de ofício; contudo, versando sobre bens privados, dependia de acusação
e da parte lesada que podia manifestar-se por denúncia ou mediante queixa. A gravidade dos
delitos (leves, graves e gravíssimos) determinava a celeridade na tramitação (p. 46).
Notou-se diversas semelhanças na justiça secular com a justiça criminal atual, das
quais o presente acadêmico, contaminado com aquelas “lendas negras” que as autoras
criticaram no início do trabalho, desconhecia completamente. Por exemplo, que o delito era
formado por ilicitude e tipicidade, bem assim que a penalização de determinado indivíduo
dependia de sua capacidade de entender seus atos, tal qual preconiza o artigo 26, caput, do
atual Código Penal. Chamou a atenção, ainda, a descrição que as autoras fizeram acerca da
necessidade de apuração do nexo causal entre o sujeito e o delito (artigo 13, caput, do nosso
atual Código Penal), bem como “uma ligação psicológica (que legitimasse o castigo), motivo
pelo qual cometia-se o delito com dolo (proposito), por arrebatamento (impetu) ou por
casualidade (casu)” (p. 48). Ainda em sentido similar, pontuaram as autoras que os delitos
eram punidos de acordo com a quantidade de vezes em que se repetissem, o que muito
lembrou das disposições sobre concursos de crimes e continuidade delitiva (p. 49).
Claro que tais categorias não eram como o são hoje e, com essa “comparação” não
se quer dizer que houve alguma espécie de “evolução” de tais conceitos. Na verdade, o que se
pretendeu registrar foi que esse acadêmico possuía uma imagem diferente da justiça secular,
calcada nos mitos populares e que, a partir do estudo tanto do presente texto quanto de todos
os demais que foram lidos ao longo do semestre, percebeu-se o completo equívoco destas
lendas.
Nesse mesmo sentido, impressionou-se com algumas aproximações entre o processo
secular e o atual. ARAÚJO e STRICKER destacam existirem duas fases procedimentais, a
inquisitio e a acusatio, sendo que “a primeira era destinada à investigação e pretendia
averiguar a materialidade e a autoria dos delitos, indiciando suspeitos e prendendo-os, se
necessário. A segunda, objetivava promover a acusação e conferir ao réu a oportunidade de se
defender, antes da sentença” (p. 53). Para compreensão do tema, imaginou-se as modernas
investigações criminais/inquéritos policiais e a fase judicial, após deduzida a denúncia em
juízo.
Após essa primeira fase de investigações, explicam as autoras, era proferida uma
sentença de pronúncia formal, na qual imputava-se determinado crime ao réu e “autorizava a
sua prisão, caso ainda não estivesse preso” (p. 60), e, na sequência, os autos eram remetidos
para apresentação do libelo, para contradita do acusado e para produção de provas,
respectivamente.
De acordo com as autoras, “o sistema probatório estipulava um grau hierárquico
típico do método escolástico: as provas plenas, as provas semiplenas e os indícios” (p. 64).
“A prova plena conferia ao juiz a possibilidade de fundamentar sua decisão livre do ônus da
prova” (p. 64). De outro lado, “duas provas semiplenas perfaziam uma prova plena. Os
indícios, por sua vez, eram largamente admitidos, especialmente aqueles concernentes aos
fatos, como ser inimigo da vítima, ameaças, rumores etc.” e estes operavam de forma
tabelada, “em um quarto ou um oitavo de prova, podendo ser somados para formar uma
prova plena” (p. 65).
Encerrada a instrução probatória, “dava-se vistas as partes (...) para as alegações de
fato e de direito” (p. 73). Por fim, “cabia ao juiz proferir a sentença” (p. 75). Entretanto,
quando se tratavam de penas de morte, as sentenças deveriam ser proferidas por um
colegiado de seis juízes, “incluindo o relator, carecendo de quatro votos a favor” (p. 76).
Por derradeiro, o sentenciado podia recorrer da sentença e, como regra geral, “a
apelação tinha efeito suspensivo e nela se podia apresentar novas razões como também voltar
a ouvir testemunhas” (p. 77). “Com o trânsito em julgado da sentença, procedia-se a
execução pública da pena” (p. 78).
De outra banda, a Inquisição, cuja origem remonta ao século XIII, reestruturou-se
ao longo dos anos para “assumir novas missões de diminuição dos ‘infortúnios’ na terra” (p.
84). Entre estas novas missões, as autoras citam à de identificar e julgar inimigos da fé
católica, que “agiam patrocinados pelo Diabo, como eram os casos de feiticeiras, cristãos-
novos (judeus e mouros de linhagem ou recém convertidos), protestantes, sodomitas e povos
nativos das Américas, entre outros” (p. 84).
Para exercer o cargo de inquisidor, exigia-se “sangue limpo”, isto é, o agente
precisava ser nobre, além de ser “formado em teologia, cânones ou leis”, bem como “já ter
exercido a função de deputado” (p. 86).
Embora a “lenda negra” seja bastante comum aqui, a Inquisição não se fez presente
na América Portuguesa (p. 87). Conforme pontuado por ARAÚJO e STRICKER, “no Brasil
colonial, apenas ocorreram Visitações Inquisitoriais, no século XVI (1591-1595), na Bahia, e
no século XVII (1618-1620), em Pernambuco, além de uma visitação extemporânea no Grão-
Pará, no século XVIII (1763-1769)”. Em outras épocas, a responsabilidade para averiguação
e punição de heresias competia aos familiares e comissários do Santo Ofício” (p. 87).
As características mais marcantes do Regimento Inquisitorial de 1640 são: “ter
sistematizado, sem muito inovar, as regras dos regulamentos anteriores; ter instituído a
tortura e a pena de morte e; ter mantido as regras de sigilo no seu procedimento” (p. 89).
O julgamento era caracterizado por um mistério que não se limitava ao processo em
si, mas compreendia também os “aspectos funcionais e institucionais”. Nessa perspectiva,
“seus oficiais juravam exercer suas funções com discrição e o procurador nunca ficava
sozinho com seu ‘cliente’” (p. 89).
Sobre o tema, as autoras pontuam ainda que “nunca se sabia com clareza o delito do
qual se era acusado e muito menos se conheciam os delatores, dado o procedimento e as
fórmulas da Inquisição – precariedade inserida na obrigação cristã de exame de consciência”
(p. 106).
Neste ponto, as descrições feitas pelas pesquisadoras lembram a este acadêmico a
obra de Frankz Kafka, “O processo”, no qual acompanhamos a vida de Josef K., indivíduo
acusado de um crime que, sem saber quem lhe denunciou, porque o denunciou, e com base
em que dispositivos legais, busca inteirar-se de seu processo. Assim como na Inquisição, o
protagonista viu-se envolvido em procedimento sigiloso e, inclusive, misterioso quanto aos
seus aspectos funcionais e institucionais. Embora a história de K. se distancie territorialmente
e temporalmente do Brasil colonial, não se pode deixar de notar a similitude dos
procedimentos.
Retornando à obra resenhada, durante as visitações do Santo Ofício, destacam
ARAÚJO e STRICKER que “abria-se prazo de trinta dias para confissões e denunciações
(delações) dos delitos e heresias, que ficariam registradas em livro próprio (RI2, 4, §12º) –
período conhecido como ‘tempo da graça’”. (p. 90).
Feita determinada denúncia, ouvia-se testemunhas e remetia-se a documentação ao
Promotor do Santo Ofício para que este a apresentasse à Mesa (p. 94). Aceita a acusação, por
meio de ato intitulado pronúncia, “o réu deveria ser encaminhado à Mesa Inquisitorial para
responder algumas perguntas para: confirmar a prisão da pessoa correta (RI2, 3, §9º); ser
informado de seus deveres e direitos e; ser aconselhado a pedir iluminação divina durante o
período de encarceramento” (p. 94).
Ao depois, iniciavam-se “as sessões de admoestações perante à Mesa”, que tinham
como escopo “a busca da verdade, a qual tomava forma, especialmente, na confissão”. Se não
houvesse confissão, apresentava-se o libelo (p. 97).
Contudo, mesmo com a apresentação do libelo, podia o acusado confessar-se, em
sessões de admoestação particular (p. 99). A confissão era tida em alta conta nos processos da
Inquisição pois permitiam a misericórdia (p. 100).
ARAÚJO e STRICKER falam que “estando pronto o libelo, o promotor deveria
apresentá-lo aos Inquisidores, os quais chamariam o réu para a confissão” (p. 103). Caso o
réu mantivesse sua negativa ou permanecesse diminuto (confessando menos do que o
esperado), o libelo devia ser entregue ao inquisidor e, por conseguinte, o acusado apresentaria
contestação (p. 103-104).
Após a apresentação da defesa, ouvir-se-iam as testemunhas defensivas. Na
sequência, o acusado poderia, mais uma vez, confessar e “não o fazendo, o notário leria o
documento de publicação das provas da justiça” (p. 105). Por conseguinte, o acusado poderia,
novamente, confessar-se e “não o fazendo, seria requerido para juntar a contradita às
testemunhas da ‘prova de justiça’, q justiça’, que contra o réu depuseram” (p. 106).
Na sequência, entendendo os inquisidores que os autos estavam conclusos para
decisão, “deveriam solicitar ao Conselho-Geral a autorização para se providenciar o despacho
final do processo” (p. 109).
E, “subsequentemente, chamava-se o réu, de joelhos perante os juízes, com mais
uma oportunidade de se arrepender confessando e, não o fazendo, deveria ainda dirimir
eventuais dúvidas dos juízes” (p. 109-110). Após essa última oferta para confessar-se, os
autos eram, enfim, julgados pelos juízes.
Nos casos em que o acusado negou, até o fim, deixando de se confessar, “os
inquisidores poderiam colocar o réu sob tormentos”, que deveria ser acompanhado por um
médico (p. 110). Caso o sentenciado confessasse mediante tortura, deveria, ao depois,
confirmá-la (p. 111).
Por derradeiro, o processo encerrava-se com o “auto de fé”, que “tratava-se da
teatralização do ‘espetáculo’ da absolvição ou da condenação pela Inquisição, a publicização
da sentença para vítima e para a plateia” (p. 113).
As sentenças que condenavam os hereges a pena capital eram executadas pela
justiça secular, pois, “os inquisidores, enquanto clérigos, não podiam condenar ninguém a
morte (uma prática proibida pelo direito canônico” (p. 115).
Após nos guiar pelos trâmites de ambas as justiças (secular e inquisitorial),
ARAÚJO e STRICKER destacam alguns pontos de aproximação e afastamento entre
referidas jurisdições, das quais citarei as que ainda não foram abordadas na presente resenha,
a fim de evitar tautologias desnecessárias.
Nessa perspectiva, registre-se que ambas as jurisdições se sustentaram num modelo
inquisitório cuja origem remonta ao direito canônico, além de compartilharem “a mesma base
doutrinária (os manuais inquisitoriais) e praticamente o mesmo rito processual” (p. 117). Na
mesma direção, ambas as jurisdições possuíam os mesmos elementos necessários (juiz,
acusador e réu) e acessórios (promotor e advogado) (p. 118).
Ademais, “as investigações oficiosas em ambas jurisdições, de modo geral, se
descortinavam pelo mesmo instrumento: um édito”, cujo conteúdo “informava à população os
delitos que deveriam ser confessados ou delatados no decorrer da visitação/correição” (p.
120). Em ambas as jurisdições, a prisão era utilizada apenas para resguardar o acusado até a
decisão final, não configurando “pena final”. Contudo, alertam as autoras, que “uso da prisão
para fins processuais foi um tanto quanto deturpado em ambas as jurisdições – ou seja, a
prisão processual acabou se configurando como pena definitiva” (p. 121).
De outro norte, distanciando os processos, as sessões de admoestação, onde o
acusado poderia confessar ou confirmar uma confissão feita anteriormente, existia somente
na Inquisição (p. 121-122). Em relação à prova, mais uma grande diferença foi percebida por
ARAÚJO e STRICKER quando destacam que, na Inquisição competia ao acusado provar sua
inocência “(prova negativa ou “diabólica”), o que corresponde a adotar o princípio da
presunção de culpabilidade (e não da inocência)”, ao passo que na justiça secular, caso as
provas não bastassem, devia ser o acusado inocentado, além de que a prova de determinada
alegação competia àquele que a fizesse (p. 122).
Com isso em vista, as pesquisadoras concluem que “houve mais pontos de contatos
e de colaboração entre tais jurisdições do que de afastamento” (p. 125), bem assim, que, “os
processos criminais analisados quantitativamente indicam que havia uma cultura criminal
mais voltada a libertação do que a condenação” (p. 127).

Você também pode gostar