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Amicus Curiae V.7, N.

7 (2010), 2011

Dos Delitos e Das Penas


BECCARIA, Cesare.
São Paulo: Editora Martin Claret, 2006. 128p.

Larissa Xavier Teixeira1

De forma crítica e inteligente, o livro “Dos Delitos e das Penas”, de Cesare Beccaria,
constitui uma das bases de estudo e análise do sistema criminal, seja da Europa de 1764,
como também da criminologia atual.
Nascido em Milão, Cesare Bonesana – o marquês de Beccaria (1738-1794) – dedicou
parte de sua vida ao estudo da filosofia, sobretudo, do pensamento filosófico francês. Ao
deparar-se com as injustiças dos processos criminais vigentes na Europa clássica, Beccaria
iniciou o seu trabalho de análise dos problemas no sistema penal, com base na filosofia
francesa, surgindo, em 1764, a obra de sua autoria: “Dei Delitti e Delle Pene”.
Objetivando apontar as falhas da estrutura judicial no âmbito do direito penal, Beccaria
foi vítima de diversas perseguições, principalmente originadas dos grandes monarcas e
representantes políticos da época. Não obstante, seus pensamentos revolucionários driblaram
a censura governamental e perpetuaram-se por meio dos escritos de muitos outros pensadores
influentes na Europa do século XVIII, tais como Voltaire e Morellet.
Ao longo de quarenta e dois capítulos, Cesare Beccaria disserta objetivamente acerca
das disparidades existentes no processo de execução da legislação penal. Defende, ainda, a
ineficiência no modo de aplicação de tais leis em proporcionalidade aos delitos cometidos. O
filósofo posiciona-se, também, perante questões que se levantam em meio ao sistema judicial
– tais como a validade da pena de morte, o direito de vingança, as torturas etc. Para tanto,
Beccaria faz uso da razão e do sentimento humanista a fim diferenciar a influência das
justiças divina e política nos julgamentos dos crimes, sem, contudo, criticar as religiões,
crenças ou divindades envolvidas.
A moral e a política são os elementos que fundamentam a relação social de justiça. Tais
princípios, consoante Beccaria, firmam-se em três pilares, sejam elas a revelação, a lei natural
e as convenções sociais. Sendo que as fontes citadas atendem a uma função específica, isto é,
“tenderem igualmente a tornar os homens felizes na terra” (BECCARIA, 2006, p. 12).

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Acadêmica do curso de graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Bolsista
do Programa de Iniciação Científica PIBIC/UNESC. Endereço eletrônico: larissaxt@hotmail.com.
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Segundo o autor, a justiça política diferencia-se da justiça divina, bem como da justiça
natural, visto que suas naturezas também se diferem. As justiças divina e natural são
constantes e imutáveis, posto que se originam de uma Divindade. Em contrapartida, Beccaria
define a justiça humana – ou política – como sendo a “relação que se estabelece entre uma
ação e o estado mutável da sociedade, e que pode igualmente variar, à proporção que essa
ação se torne vantajosa ou imprescindível ao estado social” (BECCARIA, 2006, p. 13-14).
Assim, a mutação da justiça política só poderá ser compreendida quando analisada juntamente
ao processo de governo dos homens.
O contrato social – fenômeno pelo qual os cidadãos abdicaram um pouco de sua
liberdade individual para que, em conjunto, pudessem viver em harmonia, ou seja, originou a
justiça humana – possibilitou a elaboração de uma ordem positivada cuja função principal,
segundo Hans Kelsen, “é motivar certa conduta recíproca dos seres humanos” (KELSEN,
1998, p. 22). Para Beccaria, as parcelas de liberdade sacrificadas em prol do bem geral –
considerada a soberania do povo – proporcionam o direito de punir. A organização da ordem
social, logo, se dá por meio de comportamentos tipificados como desejáveis para a boa
convivência humana que, quando violados, implicam penalidades, ou também as chamadas
sanções penais.
Teoricamente, todas as penalidades são previstas em lei e esta é decidida pelo povo por
meio de um representante eleito, o soberano. Sobre a guarda das leis, Beccaria aduz que é de
competência do legislador – o soberano do povo – criar leis gerais e acessíveis ao
conhecimento da sociedade e que, portanto, não deverá legislar conforme suas paixões e
vontades próprias. Da mesma forma, a interpretação das leis deve ser realizada de acordo com
o que as normas consentem estritamente, visto que o magistrado, segundo o autor, não pode
aplicar o que não está prefixado.
A respeito da interpretação legal por parte do magistrado – o juiz de direito –, ressalta-
se que não cabe à pessoa investida de promover os julgamentos contrariar ou ignorar as
prescrições legais. Sobre o tema, Rui Portanova disserta de forma condizente com as reflexões
de Beccaria ao expor que não aplicar a lei “é comprometer todo o ordenamento jurídico, é
retirar toda a segurança do cidadão, [...]” (PORTANOVA, 2000, p. 39).
Em vista disso, aduz-se que é de competência do soberano criar leis que atendam às
necessidades do povo; e do magistrado, atuar de modo a tornar plenamente efetivo o império
das leis fixadas.
A problemática acerca da justiça política e, sobretudo, do sistema criminal – conforme
Beccaria –, remonta a antiguidade, uma vez que foram incorporados aos documentos penais
os abusos de vontade de governantes autoritários que, combinados à cultura diversificada de

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cada grupo social, culminaram na perda do sentido real da legislação em questão, isto é, a
segurança e o bem estar do povo. A culpa, contudo, não se refere somente aos operadores do
direito, mas também aos cidadãos que se omitem com descaso perante o sistema jurídico. Na
grande parte das vezes, a sociedade só luta pelos seus direitos quando eles são violados.
O autor, no decorrer da obra, não buscou especificar os diversos tipos de delitos e as
formas de punições existentes, todavia, comentou-os e indicou os princípios mais gerais a que
se assegura o direito do ser humano, bem como as contradições dos processos criminais.
Beccaria, em uma de suas considerações, protesta contra o sistema prisional com
relação à sua funcionalidade. Para ele, a prisão no modo em que se encontra contradiz a
finalidade da sociedade: a segurança das pessoas. Nesse caso, a força e o poder vigoram mais
que a justiça, haja vista que criminosos e inocentes compartilham o mesmo espaço, sendo a
prisão “antes de tudo um suplício e não um meio de deter um acusado” (BECCARIA, 2006,
p. 27).
O filósofo e estudioso combate, ainda, os julgamentos e as acusações secretas, pois
diminuem a possibilidade do direito de defesa do suspeito. O autor aponta a contradição
imposta no juramento dos acusados, em vista do paradoxo de jurar pela verdade quando,
muitas vezes, pretende-se ocultá-la.
A respeito das modalidades de punições, Hans Kelsen compartilha da mesma linha de
pensamento de Cesare Beccaria:

Entre os paradoxos da técnica social aqui caracterizada como ordem coercitiva


encontra-se o fato de o seu instrumento específico, o ato coercitivo da sanção, ser
exatamente do mesmo tipo que o ato que ele busca prevenir nas relações dos
indivíduos, o delito; o fato de que a sanção contra uma conduta socialmente danosa
é, ela própria, uma conduta similar. (KELSEN, 1998, p. 27).

Em vista disso, Beccaria se mostra contrário, também, à prática de tortura, pois


representa um meio de garantir que um inocente, ou o mais fraco, se confesse culpado em
função de um criminoso mais forte.
Para Cesare Beccaria, um governo sábio é aquele que utiliza o sistema criminal para
harmonizar devidamente a convivência dos seres humanos, sem, entretanto, ferir os seus
direitos imanentes. A pena de morte, por sua vez, é apontada pelo autor como forma contrária
da ação de um governo que age sabiamente, posto que para conceder validade ao contrato
social, os cidadãos dispõem de parte de suas liberdades em razão do bem comum – e essa
relação não abrange a abdicação do direito à vida.
As sanções penais, ensina Beccaria, devem seguir o princípio da proporcionalidade e da
utilidade, isto é, não podem ser declaradas segundo a pessoa, mas sim, ao crime praticado e
têm o dever de servir à harmonia da convivência social – e não simplesmente à retaliação.
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Tendo em vista o exposto, considera-se a obra de Beccaria necessária para o estudo


criminológico, de modo que a estrutura penal brasileira, por exemplo, herda em muitos
aspectos os princípios compreendidos em vários países da Europa. Indica-se “Dos Delitos e
Das Penas”, principalmente, à análise acadêmica, sem esquecer, todavia, que a obra
apresentada constitui uma ótima leitura a todos os cidadãos que, com interesse na justiça
social, desejem encontrar um ponto de vista crítico a respeito de temas polêmicos que
remontam o sistema jurídico a que se submetem.
Para exemplificar o sentimento inquieto de revolução encontrado no livro de Cesare
Beccaria – autor este que, com o dom da escrita, visou abrir os olhos da sociedade contra a
violação dos direitos dos homens, mesmo no tocante ao processo criminal – faz-se uso, pois,
das palavras do renomado escritor gaúcho Érico Veríssimo:

[...] o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças
como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo,
evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinatos e aos
tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos
uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso,
risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso
posto. (VERÍSSIMO,1973, p. 45).

Por fim, há de se considerar Cesare Beccaria um revolucionário do sistema judiciário. A


partir da publicação da obra “Dos Delitos e das Penas”, seus pensamentos reformistas e
humanitários ganharam espaço na sociedade clássica, perpassando gerações e servindo,
inclusive, de fundamento para muitas teorias criminais modernas.

Referências:
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.
128p.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998.

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 4. ed. rev. ampl. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000.

VERÍSSIMO, Érico. Memórias. In: Solo de Clarineta. v. 1. Porto Alegre: Editora Globo,
1973.

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