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7 (2010), 2011
De forma crítica e inteligente, o livro “Dos Delitos e das Penas”, de Cesare Beccaria,
constitui uma das bases de estudo e análise do sistema criminal, seja da Europa de 1764,
como também da criminologia atual.
Nascido em Milão, Cesare Bonesana – o marquês de Beccaria (1738-1794) – dedicou
parte de sua vida ao estudo da filosofia, sobretudo, do pensamento filosófico francês. Ao
deparar-se com as injustiças dos processos criminais vigentes na Europa clássica, Beccaria
iniciou o seu trabalho de análise dos problemas no sistema penal, com base na filosofia
francesa, surgindo, em 1764, a obra de sua autoria: “Dei Delitti e Delle Pene”.
Objetivando apontar as falhas da estrutura judicial no âmbito do direito penal, Beccaria
foi vítima de diversas perseguições, principalmente originadas dos grandes monarcas e
representantes políticos da época. Não obstante, seus pensamentos revolucionários driblaram
a censura governamental e perpetuaram-se por meio dos escritos de muitos outros pensadores
influentes na Europa do século XVIII, tais como Voltaire e Morellet.
Ao longo de quarenta e dois capítulos, Cesare Beccaria disserta objetivamente acerca
das disparidades existentes no processo de execução da legislação penal. Defende, ainda, a
ineficiência no modo de aplicação de tais leis em proporcionalidade aos delitos cometidos. O
filósofo posiciona-se, também, perante questões que se levantam em meio ao sistema judicial
– tais como a validade da pena de morte, o direito de vingança, as torturas etc. Para tanto,
Beccaria faz uso da razão e do sentimento humanista a fim diferenciar a influência das
justiças divina e política nos julgamentos dos crimes, sem, contudo, criticar as religiões,
crenças ou divindades envolvidas.
A moral e a política são os elementos que fundamentam a relação social de justiça. Tais
princípios, consoante Beccaria, firmam-se em três pilares, sejam elas a revelação, a lei natural
e as convenções sociais. Sendo que as fontes citadas atendem a uma função específica, isto é,
“tenderem igualmente a tornar os homens felizes na terra” (BECCARIA, 2006, p. 12).
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Acadêmica do curso de graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Bolsista
do Programa de Iniciação Científica PIBIC/UNESC. Endereço eletrônico: larissaxt@hotmail.com.
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Segundo o autor, a justiça política diferencia-se da justiça divina, bem como da justiça
natural, visto que suas naturezas também se diferem. As justiças divina e natural são
constantes e imutáveis, posto que se originam de uma Divindade. Em contrapartida, Beccaria
define a justiça humana – ou política – como sendo a “relação que se estabelece entre uma
ação e o estado mutável da sociedade, e que pode igualmente variar, à proporção que essa
ação se torne vantajosa ou imprescindível ao estado social” (BECCARIA, 2006, p. 13-14).
Assim, a mutação da justiça política só poderá ser compreendida quando analisada juntamente
ao processo de governo dos homens.
O contrato social – fenômeno pelo qual os cidadãos abdicaram um pouco de sua
liberdade individual para que, em conjunto, pudessem viver em harmonia, ou seja, originou a
justiça humana – possibilitou a elaboração de uma ordem positivada cuja função principal,
segundo Hans Kelsen, “é motivar certa conduta recíproca dos seres humanos” (KELSEN,
1998, p. 22). Para Beccaria, as parcelas de liberdade sacrificadas em prol do bem geral –
considerada a soberania do povo – proporcionam o direito de punir. A organização da ordem
social, logo, se dá por meio de comportamentos tipificados como desejáveis para a boa
convivência humana que, quando violados, implicam penalidades, ou também as chamadas
sanções penais.
Teoricamente, todas as penalidades são previstas em lei e esta é decidida pelo povo por
meio de um representante eleito, o soberano. Sobre a guarda das leis, Beccaria aduz que é de
competência do legislador – o soberano do povo – criar leis gerais e acessíveis ao
conhecimento da sociedade e que, portanto, não deverá legislar conforme suas paixões e
vontades próprias. Da mesma forma, a interpretação das leis deve ser realizada de acordo com
o que as normas consentem estritamente, visto que o magistrado, segundo o autor, não pode
aplicar o que não está prefixado.
A respeito da interpretação legal por parte do magistrado – o juiz de direito –, ressalta-
se que não cabe à pessoa investida de promover os julgamentos contrariar ou ignorar as
prescrições legais. Sobre o tema, Rui Portanova disserta de forma condizente com as reflexões
de Beccaria ao expor que não aplicar a lei “é comprometer todo o ordenamento jurídico, é
retirar toda a segurança do cidadão, [...]” (PORTANOVA, 2000, p. 39).
Em vista disso, aduz-se que é de competência do soberano criar leis que atendam às
necessidades do povo; e do magistrado, atuar de modo a tornar plenamente efetivo o império
das leis fixadas.
A problemática acerca da justiça política e, sobretudo, do sistema criminal – conforme
Beccaria –, remonta a antiguidade, uma vez que foram incorporados aos documentos penais
os abusos de vontade de governantes autoritários que, combinados à cultura diversificada de
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cada grupo social, culminaram na perda do sentido real da legislação em questão, isto é, a
segurança e o bem estar do povo. A culpa, contudo, não se refere somente aos operadores do
direito, mas também aos cidadãos que se omitem com descaso perante o sistema jurídico. Na
grande parte das vezes, a sociedade só luta pelos seus direitos quando eles são violados.
O autor, no decorrer da obra, não buscou especificar os diversos tipos de delitos e as
formas de punições existentes, todavia, comentou-os e indicou os princípios mais gerais a que
se assegura o direito do ser humano, bem como as contradições dos processos criminais.
Beccaria, em uma de suas considerações, protesta contra o sistema prisional com
relação à sua funcionalidade. Para ele, a prisão no modo em que se encontra contradiz a
finalidade da sociedade: a segurança das pessoas. Nesse caso, a força e o poder vigoram mais
que a justiça, haja vista que criminosos e inocentes compartilham o mesmo espaço, sendo a
prisão “antes de tudo um suplício e não um meio de deter um acusado” (BECCARIA, 2006,
p. 27).
O filósofo e estudioso combate, ainda, os julgamentos e as acusações secretas, pois
diminuem a possibilidade do direito de defesa do suspeito. O autor aponta a contradição
imposta no juramento dos acusados, em vista do paradoxo de jurar pela verdade quando,
muitas vezes, pretende-se ocultá-la.
A respeito das modalidades de punições, Hans Kelsen compartilha da mesma linha de
pensamento de Cesare Beccaria:
[...] o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças
como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo,
evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinatos e aos
tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos
uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso,
risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso
posto. (VERÍSSIMO,1973, p. 45).
Referências:
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.
128p.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998.
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 4. ed. rev. ampl. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000.
VERÍSSIMO, Érico. Memórias. In: Solo de Clarineta. v. 1. Porto Alegre: Editora Globo,
1973.