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INTRODUÇÃO

O presente trabalho não é pretensioso a ponto de querer esmiuçar toda a trajetória do Direito
Civil brasileiro na profundidade que ele verdadeiramente apresenta. Ater-nos-emos a traçar
um panorama histórico e ideológico de nossa juscivilística, de modo a viabilizar o
entendimento crítico da atual realidade de nosso Direito Civil.

Isto porque para compreendermos as tendências apontadas na contemporaneidade,


precisamos pesquisar as razões históricas, ideológicas, políticas, econômicas e sociais que as
impulsionaram ao longo dos tempos. Somente assim, será possível questionar o caminho
traçado pelo legislador do Código Civil em vigor, que não se coaduna com as necessidades
sociais e jurisdicionais de nosso país.

Por estas razões, iniciaremos nosso trajeto pesquisando as influências do ordenamento


jurídico que se instalou em nossas terras com o descobrimento de nosso país. Estudaremos
como ocorreu a transição das Ordenações Filipinas para o Código Civil de 1916, o movimento
de codificação e seu contexto histórico.

Logo após, deteremo-nos em pesquisar as características do Código de Bevilácqua, suas


influências ideológicas e literárias. Veremos qual a estrutura adotada na sua elaboração e a
forma como ela reflete exatamente o pensamento da sociedade contemporânea à sua
formulação. Louvaremos seus méritos.

Passaremos a entender a evolução paradigmática que o Direito Civil brasileiro sofreu no


último século e como a complexidade da sociedade superou de forma incontrolável os
dogmas do positivismo e da codificação.

Adentraremos em todos os aspectos da denominada "crise" do Direito Civil. Traçaremos seu


conceito, seus contornos e suas razões. Neste capítulo, dedicado à "crise", nos muniremos,
então, dos argumentos para questionarmos a elaboração e a promulgação de um código civil
na atualidade.

Após, delinearemos os contornos juscivilísticos da contemporaneidade e concluiremos pela


total inadequação do novo diploma legal à sua realidade.

O tema é longo, intrincado e polêmico. Confesso, que, por vezes, o desânimo e a vontade de
desistir me tentaram. Mas a angústia que me causa um novo código civil em nossos tempos
que, não bastasse sua total inadequação histórica e ideológica, não contou sequer com a
participação discursiva de seus destinatários, me desafiou pela sua conclusão.

Perdoem-me pela brevidade por vezes adotada em alguns tópicos, mas ela foi necessária
para se manter o correto alinhamento metodológico e fidelidade ao tema central.
1) RAÍZES DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

Remontar as origens históricas de nosso Direito Privado é imprescindível para a exata


compreensão dos contornos juscivilísticos da contemporaneidade. Na fala de Luiz Edson
Fachin "... busquemos, nas origens, aspectos do legado histórico para o Brasil
contemporâneo, principiando pela formulação colonial cuja análise não pode descurar da
herança colonial do Estado brasileiro".(FACHIN, 2003, p.439)

Giordano Bruno Soares Roberto emenda:

Não é possível compreender o momento atual do Direito Privado brasileiro sem olhar
para sua história. Para tanto, não será suficiente começar com o desembarque das
caravelas portuguesas em 1500. A história é mais antiga.

O Direito brasileiro é filho do Direito Português que, a seu turno, participa de um


contexto mais amplo. (ROBERTO, 2003, p. 5)

Portanto, para esboçarmos um breve histórico da civilística brasileira, nos parece impossível
dissociá-lo da história do Direito Português, em um primeiro momento, e do Direito Europeu,
como um todo, em um segundo momento.

Durante toda o período de colonização, o "direito brasileiro" se resumia ao que era posto pelas
Ordenações do Reino de Portugal. Em outras palavras, nossos direitos civis não passavam de
simples extensão dos direitos de nossos colonizadores, cuja influência em nosso
ordenamento jurídico não pode ser relegada ao desentendimento.

1.1) Evolução histórica: Das Ordenações Filipinas ao Código Civil de 1916

Antes de iniciarmos este tópico, é necessário consignar que a fase do Brasil colônia é
marcada por um certo obscurantismo, sendo difícil pesquisar o delineamento do ordenamento
jurídico que aqui se instalou naqueles tempos, sendo pouquíssimos os autores que cuidam do
tema.

As Ordenações Filipinas eram uma compilação jurídica marcada pelas influências do Direito
Romano, Canônico e Germânico, que juntos constituíam os elementos fundantes do Direito
Português. E como não poderia deixar de ser, foram forjadas em tom patriarcalista e
patrimonialista.

A fase do Brasil-Colônia caracteriza-se pela aplicação das Ordenações Filipinas,


legislação Portuguesa que já era, no dizer de Coelho da Rocha, "atrasada,
retrógrada", mantendo em vigor, na época moderna, regras do século XV. Trazidas
para o Brasil, consolidou-se aqui esse atraso.(AMARAL, 2003, p. 126)

Foram compiladas durante os reinados de Filipe I e Filipe II e publicadas no ano de 1603.


Vigeram desde o início do século XVII até a proclamação da independência brasileira em
1822. Regeram o ordenamento jurídico privado no Brasil por mais de 300 anos, portanto. Foi
quando, finalmente, o Direito privado brasileiro teve que se emancipar e trilhar rumo próprio.

Portugal foi um dos países europeus que mais demorou a ceder às influências do Iluminismo,
movimento iniciado por volta do século XVIII e que significou verdadeira renovação do direito,
pois pregava a luta da razão contra o autoritarismo e visava abolir velhas tradições jurídicas e
o império do Direito Natural.

O primeiro Código Civil português foi promulgado em 1867. Foi o fim das Ordenações Filipinas
como regramento da civilística no "além mar". No Brasil, a codificação levou mais tempo para
se implementar e corporificar. As Ordenações vigeram, ainda, por algum tempo.

Havia muitas barreiras que deveriam ser ainda ultrapassadas. O atraso originado do fato de
nosso país continuar ser regido pelas Ordenações, o inchaço legislativo causado pela
infinidade de leis e outras formas normativas que foram editadas para complementá-las e a
busca por identidade jurídica que atendesse às necessidades dos jurisdicionados brasileiros
eram algumas delas.

Neste contexto, o primeiro Código Civil brasileiro só vigorou a partir do ano de 1917. Foram
noventa e dois anos de processo de elaboração. De autoria do jovem Clóvis Bevilácqua,
renovou o direito brasileiro, dentro de uma filosofia marcada pelo liberalismo político e
econômico.

Dentre outras características marcantes, foi saudado pela crítica nacional e internacional por
sua clareza e boa técnica. Vinha estruturado da seguinte maneira:

O projeto de Clóvis Bevilácqua compunha-se de uma lei de introdução, uma parte


geral dividida em três livros, pessoas, bens, nascimento e extinção de direitos, e uma
parte especial, desdobrada em quatro livros, direito de família, direito das coisas,
direito das obrigações e direito das sucessões. Caracterizava-se pela "harmonia entre
a ordem e a liberdade, entre a tradição e o progresso". Adotava a concepção de
Ihering em matéria de posse, embora não exclusivamente, e disciplinava o direito de
propriedade sem o absolutismo do direito romano. Apresentava algumas idéias novas,
como o reconhecimento de filhos ilegítimos de qualquer espécie, a investigação de
paternidade, a insolvência civil, a igualdade jurídica dos cônjuges, idéias essas não-
aceitas pela primeira comissão revisora, que modificou um pouco o sistema originário
do autor. (AMARAL, 2003, p. 129)

Vigorou durante quase um século em nosso país. Apesar de todos os seus méritos,
não havia nenhuma chance de continuar regendo a complexa vida social da pós-
modernidade. O código começou a ruir desde sua entrada em vigor. A multiplicidade
da sociedade hodierna fez com que o valioso diploma de Bevilácqua caísse no
inevitável obsoletismo.
O ordenamento juscivilístico reclamava reforma, urgentemente. Surge diante de nós - quase
que caído dos céus - um novo código. A esperada renovação. Será?

1.2) Movimento de Codificação

O movimento de codificação é fruto do jusracionalismo. Conforme lição de Francisco Amaral,


a codicização pode ser resumida nas seguintes palavras:

Em senso estrito, significa o processo de elaboração legislativa que marcou os séculos


XVIII e XIX, de acordo com critérios científicos decorrentes dos jusnaturalismo e o
iluminismo, e que produziu os códigos, leis gerais e sistemáticas.

Sua causa imediata é a necessidade de unificar e uniformizar a legislação vigente em


determinada matéria, simplificando o direito e facilitando o seu conhecimento, dando-
lhe ainda mais certeza e estabilidade. Eventualmente, constitui-se em instrumento de
reforma de sociedade como reflexo da evolução social. Seu fundamento filosófico ou
ideológico é o jusracionalismo, que vê nos códigos o instrumento de planejamento
global da sociedade pela reordenação sistemática e inovadora da matéria jurídica,
pelo que se afirma que os "os códigos jusnaturalistas foram atos de transformações
revolucionárias". (AMARAL, 2003, p. 122 e 123)

1.2.1) Breve histórico

A tendência à codificação encontra seu primeiro indício no Direito Romano, sobretudo no


Corpus Iuris Civile, que apesar de não se tratar de um típico texto codificado, constitui-se em
importante síntese jurídica compilada pelo Imperador Justiniano e um dos mais importantes
legados do Direito Romano.

O movimento de codificação propriamente dito tem seu lugar a partir da Idade média, através
da gradativa substituição da autoridade papal e do imperador pela soberania dos Estados
Nacionais. Foi sustentado por correntes sociais e impulsionado por alguns fatores
estratégicos, de cunho político, econômico e intelectual.

Entendamos por fator político o fato de os soberanos enxergarem na promulgação de seus


códigos nacionais um componente essencial para a implementação de políticas de unificação
de seus Estados, que passavam a assumir a missão de garantir o bem estar de seus
cidadãos.

O fator econômico, a seu turno, revelava os códigos nacionais como resposta adequada às
reivindicações por liberdade e responsabilidade da burguesia, uma classe média que emergia
e lutava pela abolição das barreiras discriminatórias do feudalismo. Ademais, com o passar do
tempo, o direito codificado provou ser excelente instrumento para suprir as necessidades da
economia capitalista de classe média do século XIX.
Por fim, devemos analisar a influência do fator intelectual que se resumia à rejeição de velhos
dogmas e tradições religiosas, no intuito de colocar o homem e seu bem estar no centro da
filosofia iluminista. Novas concepções surgiram e a idéia de que o homem era um ser criado a
imagem de Deus e colocado acima da natureza não se coadunava com as balizas do novo
discurso científico.

Os primeiros códigos foram fruto do chamado Despotismo Esclarecido, a exemplo do Código


da Prússia, em 1794, considerado o primeiro código moderno, e o Código da Áustria, em
1786.

Contudo, o divisor de águas da era da codificação foi o Código Civil Francês, fruto do trabalho
- encomendado por Napoleão Bonaparte - de uma comissão de quatro juristas, Tronchet,
Bigot du Prémameneu, Portalis e Malevile.

O Code Civil recebeu elogios por sua linguagem clara e precisa; seu conteúdo foi aplaudido
devido à sua moderação, equilíbrio e praticidade. O tom era individualista e patrimonialista: o
principal escopo era tutelar e proteger os direitos dos proprietários.

O diploma francês rompeu fronteiras. Foi modelo para a feitura de códigos nacionais por toda
a Europa e sua influência somente foi mitigada com o surgimento do Código alemão (BGB -
Burgeliches Gesetzbuch), em fins do século XIX, apesar da enorme resistência teórica de
alguns de seus juristas, ilustrada pelo histórico embate entre Thibaut e Savigny.

Nosso país trilhou esse mesmo caminho, e sob todas essas influências, promulgou o primeiro
Código Civil no ano de 1916, tendo como principal idealizador Clóvis Bevilácqua, que ninguém
ousa negar que constitui uma grande obra, de conteúdo extraordinário, de primeira qualidade.

1.2.2) Pano de fundo da Codificação

Sempre houve dúvidas nos sistemas jurídicos modernos em relação à necessidade ou não de
codificar o Direito Privado. Como dito acima, tal questionamento remonta à polêmica suscitada
acima entre Savigny e Thibaut (1).

Não há que se olvidar que a codificação traz inúmeras vantagens, como a de facilitar a
visualização dos institutos jurídicos. Mas também traz desvantagens, já que muitas vezes,
estático que é, o código não consegue acompanhar as alterações pelas quais passa a
sociedade e nem prever a multiplicidade de relações que dela podem emergir.

Contudo, como mencionado, existem razões históricas, políticas e econômicas que apontaram
a codificação como a melhor alternativa para assegurar a soberania dos Estados Nacionais e
o bem estar de seus cidadãos, justificando o movimento e sua respectiva prevalência nos
últimos séculos.

O Iluminismo pode ser considerado um marco na história do Direito e por conseqüência, da


codificação. Colocou em xeque a estrutura e os dogmas do ancién regime.
Combateu, primordialmente, a desigualdade dos homens perante a lei e as limitações às
pessoas e à propriedade. Nas palavras de Caenegem "´liberdade´ e ´igualdade´ eram,
portanto, exigências essenciais tanto nos programas políticos dos déspotas esclarecidos
quanto na Revolução Francesa" (CAENEGEM, 1999, p. 162).

O movimento das Luzes criticou, ainda, o absolutismo, a exclusão popular, a autoridade da


Igreja e suas ligações com o Estado. Em resumo, significou:

O velho mundo passou por uma renovação radical, guiada pelos princípios da razão
humana e pelo objetivo de alcançar a felicidade do homem. A realização desse
objetivo parecia requerer agora que o fardo dos séculos precedentes fosse rejeitado.
Aplicado ao direito, esse programa significava que a proliferação de normas jurídicas
deveria ser drasticamente reduzida, que o desenvolvimento gradual do direito deveria
ser substituído por um plano de reforma e por uma abordagem sistemática, e, por fim,
que não se deveria emprestar autoridade absoluta nem aos valores tradicionais, como
direito romano, nem aos juristas e juízes eruditos, que se proclamavam "oráculos" do
direito.

Os velhos costumes e os livros autorizados deveriam ser substituídos por um novo


direito livremente concebido pelo homem moderno, cujo único princípio diretor fosse a
razão. Esse novo direito deveria ser isento de qualquer obscurantismo. Ele constituiria
um sistema claro e aberto, compreensível para o povo, pois, de agora em diante, o
direito deveria estará serviço do povo. (CAENEGEM, 1999, p.163)

Tudo isso apontava a busca por um ordenamento jurídico marcado pela sistematização, pela
unicidade e coerência, que assegurasse, acima de tudo o desenvolvimento racional da
sociedade. De acordo com Francisco Amaral:

Ao Iluminismo ligava-se diretamente o racionalismo, a doutrina segundo a qual a única


fonte do conhecimento seria a razão. No campo jurídico, o racionalismo embasava a
doutrina do direito natural, rectius, do jusracionalismo, que defendia a racionalização e
a sistematização do direito, isto é, a reunião dos princípios e regras num corpo unitário
e coerente, o sistema jurídico. A razão iluminista preconizava, assim, a idéia de
sistema no direito, do que resultaram os códigos e as constituições do séc. XVIII e
XIX. Diz-se, por isso, que a ligação do iluminismo com o jusracionalismo produziu a
primeira onda de codificação moderna os códigos são a representação da
sistematicidade do direito e levam ao desenvolvimento do pensamento sistemático na
realização do direito. (AMARAL, 2003, p. 68)

Perseguia-se, sobretudo, segurança jurídica. A criação de um novo sistema jurídico baseado


em um único corpo normativo despontava como a solução almejada, pois na "codificação,
idéias e ideais repousam, estabilizam e conservam. Um código fotografa valores e os
preserva". (FACHIN, 2000, p. 199)
Os códigos representariam uma ruptura da velha ordem, através do estabelecimento racional
de uma nova. Seriam esperança de segurança jurídica, efetivada através de uma seqüência
ordenada e sistematizada de artigos, que tratassem de forma igualitária todos os cidadãos.
Além disso, pareciam revelar um sistema jurídico auto-suficiente, onde outros corpos
normativos não seriam mais necessários.

Nas célebres palavras de Giselda Hironaka:

Desta era – da era da racionalização da vida jurídica – resultou, como conseqüência


imediata, a concepção do direito como um sistema. E, como tal, o processo de
codificação se tornou imperioso, visando unificar e uniformizar a legislação vigente,
emprestando-lhe um sistema, uma ordem, uma carga didática, uma possibilidade
melhor, ou maior, de compreensão destas próprias regras e de comparação destas
com outros povos.

Esta foi a importante fase de organização codicista, que atendeu às necessidades e


reclamos de uma época que visava superar a insegurança. E apresentou suas
vantagens, entre elas – uma que desejo citar – a de traduzir-se, o código, em
instrumental de garantia das liberdades civis. (HIRONAKA, 2003, p. 97)

Outro fator relevante que estimulou a codificação foi a garantia de separação entre a
sociedade civil e o Estado. Os cidadãos procuravam proteção para os abusos causados pelas
interferências estatais em sua esfera privada.

A dogmática iluminista estabeleceu a dicotomia entre Direito Privado e Direito Público. Ao


Direito Público caberia promover a proteção do cidadão em face do Estado, através de
mecanismos definidos na lei. Por sua vez, o âmbito do direito privado, seria aquele onde a
autonomia da vontade reinaria absoluta, sem interferências. A pretensão dos códigos civis era
atuar neste segundo segmento, ordenando as condutas jurídico-privadas dos cidadãos,
tornando-se o centro desse regramento.

Assim, dentro dessa visão segmentada do Direito, fazia todo sentido apontar o Código Civil
como centro do ordenamento do direito privado, restando à Constituição a função de carta
política regulamentadora do Estado; suas normas eram exclusivamente dirigidas ao legislador.

1.3) Características do Código Civil de 1916

Uma vez proclamada a independência do Brasil, uma lei editada em outubro de 1823
determinou a manutenção das Ordenações Filipinas em nossas terras, bem como demais
formas normativas emanadas dos imperadores portugueses que vigoravam até a data de 26
de abril de 1821.

A Constituição do Império de 1824 estabeleceu que fossem organizados um código civil e


também um criminal, em caráter de urgência. Pois bem. Nosso diploma civil passou por uma
série de fases e demorou quase um século para ser elaborado, aprovado e promulgado.
Informação de extrema relevância, pois nos força a analisar o fato de que nosso Código fora
confeccionado em um tempo – e para esse tempo - e acabou por regrar um momento
histórico, político, econômico e social completamente distinto, fundado em princípios quase
que opostos aos de sua feitura.

Ou seja, o Código Civil foi elaborado ainda, dentro da dogmática que apartava o Direito
Público do Direito Privado, envolto pelos ideais de liberalismo e individualismo.

Quando foi promulgado, essa realidade já estava em crise, tendo em vista a enorme
quantidade de demandas sociais que exigiam a intervenção estatal. O voluntarismo puro não
mais se enquadrava no cenário que ora se apresentava.

A esse respeito, o Prof. César Fiúza ilustra: "O Código Civil foi elaborado sob a inspiração do
Estado Liberal burguês, do século XIX. Não se adequava, evidentemente, às aspirações do
emergente Estado social, instalado no Brasil já no início do século XX". (FIÚZA, 2003, p. 30)

Francisco Amaral também retrata com muita clareza:

O Código Civil de 1916 era um código de sua época, elaborado a partir da realizada
típica de uma sociedade colonial, traduzindo uma visão do mundo condicionado pela
circunstância histórica, física e étnica em que se revela. Sendo a cristalização
axiológica das idéias dominantes, detentores do poder político e social da época, por
sua vez determinadas, ou condicionadas, pelos fatores econômicos, políticos e
sociais.(AMARAL, 2003, p. 131)

Pois bem. A despeito da inadequação temporal, adentremos ao conteúdo e ideologia do


diploma. O Código Bevilácqua foi fruto das influências da Escola da Exegese (2) . Era
inspirado nos ideais de completude e unicidade, com vistas a promover segurança social e
jurídica.

Além disso, foi instituído como norma exclusiva das relações privadas. Desta forma,
corroborou a tese Iluminista que estabeleceu marcada dicotomia entre as esferas do Direito
Público e do Direito Privado.

Tutelava o sujeito, enquanto proprietário, pois era fundado em teorias individualistas e


voluntaristas. Dava enorme liberdade ao princípio da autonomia da vontade, facilitando a
transferência e o acúmulo de riquezas. Prof. Gustavo Tepedino resume:

O código civil, como se sabe, quando entrou em vigor, em 1917, refletia o pensamento
dominante das elites européias do século XIX, consubstanciado no individualismo e no
liberalismo jurídicos. O indivíduo, considerado sujeito de direito por sua capacidade de
ser titular de relações patrimoniais, deveria ter plena liberdade para a apropriação, de
tal sorte que o direito civil se estruturava a partir de dois grandes alicerces, o contrato
e a propriedade, instrumentos que asseguravam o tráfego jurídico com vistas à
aquisição e à manutenção do patrimônio. (TEPEDINO, 2003, p.116)
E independentemente da inadequação do código ao seu tempo, às reivindicações de seus
destinatários ou de sua ideologia, o Código Civil brasileiro de 1916 teve seus méritos.

Importante característica foi sua originalidade ou nacionalidade. Seu mentor soube aproveitar
as contribuições das ciências jurídicas de outros povos. Adaptou o que se enquadrava em
nossa realidade; rejeitou o que não nos servia, criando algo, por muitas vezes, genuinamente
brasileiro.

Destacou-se, ainda, por sua forma literária, por sua pureza de linguagem. Brilhou por
apresentar uma correção de conceitos ímpar. Giordano Bruno S. Roberto assinala:

Sua forma literária também merece elogios. As correções feitas a partir das críticas de
Rui certamente contribuíram para a pureza da linguagem. Para Pontes de Miranda,
"poucos artistas da palavra, em Portugal e no Brasil, poderiam comparar qualquer de
suas obras ao Código".

Outra característica do Código é a sua preocupação com a correção da linguagem e


dos conceitos do que com as possibilidades de aplicação prática dos preceitos.
(ROBERTO, 2003, p. 72)

1.3.1) O trinômio fundamental: estrutura do Código

O Código de 1916 fora estruturado em um trinômio fundamental que se resume aos


elementos propriedade, autonomia da vontade e família. Revelava, como consignado, a
ideologia liberalista representativa dos interesses da classe burguesa mercantil.

De irretocável síntese do Prof. César Fiúza, extraímos preciosa lição:

As instituições de Direito Civil foram tradicionalmente aprisionadas em quatro grandes


ramos, quais sejam, o Direito das Obrigações, o Direito das Coisas, o Direito de
Família e o Direito das Sucessões. Assim está disposta a matéria das grandes
codificações dos séculos XIX e XX, assim é ensinada nos cursos de Direito. Na
verdade, procedendo a um corte epistemológico, descobre-se que o sustentáculo
desses quatro grandes ramos é, tradicionalmente, a autonomia da vontade, a
propriedade e a família. (FIÚZA, 2003, p. 24)

O diploma possuía inspiração estritamente individualista e garantia, por conseqüência, o


direito de propriedade e de liberdade contratual, como frutos do liberalismo econômico
dominante. "O Código Civil brasileiro, em suma, é o espelho fiel do patrimônio como valor
nuclear privado tradicional. O patrimônio é, nele, uma esfera composta de coisas suscetíveis
de apropriação e trânsito jurídico."(FACHIN, 2001, p. 69)

Até mesmo o mais pessoal dos direitos civis, o da família, era marcado pelo predomínio do
patrimônio.
O Código Bevilácqua apresentava um Direito de Família que se assentava em um arcabouço
patriarcalista e hierarquizado. Era fruto inevitável da sociedade onde se originou, marcada
pela monogamia, que nada mais era do que forma de preservar o patrimônio construído: "A
preocupação da sociedade do início do século passado era estritamente de caráter
patrimonial, e o casamento foi a maneira encontrada para garantir a transmissão de bens a
quem é ‘sangue do meu sangue’". (DIAS, 2004, p.16)

Tanto o afeto quanto o amor não eram elementos preponderantes para a caracterização de
uma família; aquele não era visto como valor jurídico. Nossa doutrina jurídica herdou a
estrutura familiar do Direito Romano "como unidade jurídica, econômica e religiosa, fundada
na autoridade de um chefe, tendo essa estrutura perdurado até os nossos tempos".
(PEREIRA, 2004, p. 640)

A família do Código Bevilácqua era, assim, uma comunidade instaurada pelo matrimônio –
seu componente essencial - e unida por laços de sangue. Por esta razão, a lei facilitava o
acesso ao casamento.

Bem, apesar da indiscutível importância desse trinômio na base de nossa civilística, um olhar
mais profundo na sistemática adotada pelo diploma nos revela que a propriedade sempre fora
a verdadeira pedra angular, sobre a qual o ordenamento jurídico se apoiou.

O patrimônio era a dimensão econômica da personalidade; garantia de proteção e


preservação do indivíduo frente ao Estado; o sujeito somente existia na medida que possuía e
se possuía; era protegido enquanto proprietário, contratante, marido ou herdeiro. Nesta
esteira, Taísa Maria Macena de Lima acentua:

O antigo Código Civil brasileiro – influenciado pela doutrinas voluntaristas – dava


ênfase ao indivíduo, porém nos papéis de proprietário e contratante. Noutros termos, o
legislador de 1916 ocupou-se mais das relações jurídicas patrimoniais que das
relações jurídicas existenciais, dando relevo ao direito de propriedade. (LIMA, 2003,
p.250)

Portanto, os valores existenciais foram relegados a segundo plano pelo Código Civil de 1916.
Só começaram a assumir merecida posição de destaque com o advento da Constituição
Federal de 1988 e a instauração do Estado Democrático de Direito, que erigiu a dignidade da
pessoa humana como princípio fundamental da República, momento em que os institutos
jurídicos passaram a ser funcionalizados para a promoção do desenvolvimento pleno do
homem, como estudaremos adiante.

Prof. Cézar Fiúza nos adianta o tema, em mais de uma de suas brilhantes sínteses:

Vive-se hoje no Brasil os alvores do Estado Democrático de Direito. Este é o momento


da conscientização desse novo paradigma. Só agora assumem a devida importância
os princípios e os valores constitucionais por que se deve pautar todo o sistema
jurídico. Constitucionalização ou publicização do Direito Civil entram na temática do
dia. O Código Civil não seria mais o centro do ordenamento civil. Seu lugar ocupa a
Constituição, seus princípios e valores. Diz-se que os pilares de sustentação do Direito
Civil, família, propriedade e autonomia da vontade, deixaram de sê-lo. O único pilar
que sustenta toda a estrutura é o ser humano, a dignidade da pessoa, sua promoção
espiritual, social e econômico. Este pilar sta, por sua vez, enraizado na Constituição.
Tudo isso, não há dúvidas, dá o que pensar. (FIUZA, 2003, p. 29)

1.3.2) Influência positivista: a busca por segurança jurídica

Um dos principais objetivos do Direito sempre foi promover segurança jurídica, que, de forma
genérica, significa paz e estabilidade; certeza na realização do Direito. Dentro da visão
moderna, era, acima de tudo, a busca do cidadão por proteção em relação aos abusos do
Poder Público em sua esfera privada.

Procuraremos entender, agora, qual a origem de sua relação com o positivismo jurídico e suas
influências no Código Civil de 1916. Partiremos das palavras de Francisco Amaral:

A segurança jurídica, significando a estabilidade nas relações e a garantia de sua


permanência, justifica o formalismo no direito e encontra no positivismo o seu principal
fundamento teórico. Apresenta-se tanto como uma segurança de orientação, que se
refere ao conhecimento que os destinatários têm das respectivas normas de direito,
como também uma segurança de realização, ou confiança na ordem, que é a certeza
do exercício dos direitos e do cumprimento dos deveres. Significa, portanto a
possibilidade de cada um compreender o que é e o que não é lícito, podendo,
conseqüentemente, regular seus atos e seu comportamento. Constitui-se, por isso, no
mais antigo valor, na premissa de todas as civilizações. (AMARAL, 2003, p. 118-19)

Desenvolvido nos séculos XIX e XX, o positivismo jurídico - exprimido pelo pensamento da
Escola da Exegese - procurava interpretar o direito como um sistema fechado, exaustivo e
casuístico, a ponto de ser capaz de prever e regular todas as relações sociais que, por
ventura, emergissem. A esse respeito, leciona Marcelo Galuppo:

...[ ] a Escola da Exegese pressupõe uma onisciência que lhe permite, por meio da
construção de um sistema, presente explicitamente no próprio código, regular todas as
ações humanas possíveis, também de forma racional. E, em caso de omissão de
norma explícita, por ser um sistema, o Código permitiria aplicação de uma lógica
dedutiva por intermédio da qual se extraísse, de outras normas, a norma adequada ao
caso concreto. (GALUPPO, 2003, p. 171-172)

Assim, esse pensamento sistemático, onde o Direito é concebido como conjunto de normas
jurídicas racionalmente elaborado, marcado pela unidade, plenitude, coordenação e
subordinação de seus elementos, encerraria em si todas as soluções para os problemas
surgidos na vida social. Na fala de César Fiúza:
A idéia dominante no positivismo jurídico, que imperou no Brasil até a década de
1970/1980, era a de ser possível uma legislação a tal ponto exaustiva e completa que
enclausurasse o sistema, colocando-o a salvo de qualquer arroubo criativo que não
tivesse origem no próprio Poder Legislativo. (FIUZA, 2003, p. 29-30)

A ideologia fundante do positivismo foi acirrada no Normativismo de Hans Kelsen, para quem
o Direito se resumiria àquele colocado pelo Estado. A legitimidade dessas normas seria
sempre uma outra, hierarquicamente antecedente, de maneira sucessiva, até se alcançar a
Norma Fundamental, que confere legitimidade a todo o ordenamento jurídico.

Portanto, fica fácil vislumbrar como o Direito, concebido sob a visão do positivismo jurídico,
seria capaz de promover a tão perseguida segurança jurídica: através da exaustão e da
previsibilidade. Os parâmetros para toda a esfera privada já estariam previamente traçados.

Tendo em vista a completude da norma, ao intérprete era atribuída tão somente a função de
revelar seu conteúdo. Sua atividade hermenêutica era esvaziada, evitando soluções no caso
concreto que não estivessem cabalmente enquadradas na letra da lei. Jurisprudência e
doutrina não eram fontes válidas de Direito. Francisco Amaral resume:

Em primeiro lugar a segurança, valor fundamental dos códigos civis do século


passado, que consagrando a separação entre a sociedade civil e o Estado, visavam
proteger a liberdade do indivíduo na sua vida particular contra a ingerência do poder
público. Desse valor nasceu a pretensão de estabilidade dos Códigos, considerados
como capazes de abarcar em todo seu sistema a multiplicidade das relações jurídicas
privadas. (AMARAL, 2003, p. 151)

A justiça era consectário lógico da aplicação da lei, feita através de procedimento quase que
mecânico, de subsunção da norma ao caso concreto.

Contudo, existe uma realidade histórica por trás de toda essa ideologia, que sempre
procurava se atracar em portos seguros, erigindo a segurança jurídica como prioridade
absoluta. Giselda Hironaka a explicita muito bem:

Os paradigmas fundamentais que erigiram a modernidade foram paradigmas que


precisaram se impor, primeiro, à face do absolutismo que marcou a finalização do
período medievo e, depois, paradigmas que precisaram superar os horrores de uma
Primeira Grande Guerra. Tempos de alterações profundas e de busca de uma
superação de injustiças e desigualdades enormes, esses tempos foram aqueles em
que a prioridade era a conquista da segurança jurídica, da preservação dos direitos,
do estabelecimento das igualdades e da consideração máxima ao indivíduo.

Por tudo isso e por isso mesmo, os paradigmas deste tempo pretérito oram os
paradigmas da lei e da jurisdição, a significar que a segurança pretendida e ansiada
devesse resultar de uma construção normativa que fosse suficientemente abstrata
para ser universal, e que fosse suficientemente clara para ser abrangente de todas as
hipóteses realizáveis. (HIRONAKA, 2004)

O Código Civil de 1916 foi elaborado no século XIX e promulgado no século XX. É
indiscutivelmente filho do positivismo jurídico, tendo se assentado, portanto, na busca por
segurança jurídica, que fora priorizada em relação à realização da justiça.

Neste aspecto, ouso fazer humilde consideração para afirmar que, talvez, a justiça não tenha
sido simplesmente relegada a segundo plano. A concepção de justiça é que era diferenciada.
Isto porque, dentro da ótica positivista, a aplicação da lei gerava , infalivelmente, decisões
justas. Assim, garantir a segurança jurídica seria, indiretamente, de alguma forma, promover
justiça.

Acontece, que, apesar da incessante busca por um sistema fechado, capaz de promover
segurança jurídica, através do estabelecimento de ideais liberalistas e positivistas, a verdade
é que esta estrutura não conseguiria se manter e não se sustentaria com o passar do tempo e
diante da complexidade social. O sistema começou a ruir assim que foi instaurado. César
Fiúza consigna brilhantemente:

Se observamos o comportamento dos tribunais, através dos tempos, chegaremos à


conclusão de que o sistema sempre foi aberto. O tratamento sempre foi casuístico. A
interpretação sempre foi argumentativa. O medo da arbitrariedade de um judiciário
sem freios e sem preparo técnico é que levou os juristas, em vão à tarefa de tentar
fechar o sistema. Mesmo na época da Escola da Exegese, os Tribunais franceses não
se fecharam às inovações hermenêuticas, baseadas em pura argumentação jurídica.
(FIUZA, 2003, p. 35)

Assim, a "crise" do Direito Civil, que estudaremos no capítulo a seguir, vem ocorrendo há
séculos. Na atualidade, perante os novos paradigmas que surgiram, sobretudo, com o
advento do Estado Democrático de Direito, ela atinge seu ápice e nos força a questionar a
dogmática que colecionamos com o tempo. Prof. César Fiúza acrescenta, concluindo nosso
pensamento:

O temor da arbitrariedade judicial é absolutamente absurdo, em nossos dias, dados os


mecanismos de segurança do próprio sistema jurídico. São limites impostos pela
dogmática, pela Constituição, pelos valores e princípios vigentes, como o duplo grau
de jurisdição. Ademais, a argumentação deve ser racional e jurídica. Isso significa que
o intérprete partirá do sistema, adequando a norma ao caso concreto, co base em
valores e princípios constitucionalmente aceitos, para que a justiça prevaleça no caso
concreto. (FIUZA, 2003, p. 35)

2) "CRISE" DO DIREITO CIVIL


O Direito é fenômeno histórico e social. É mutante por natureza, pois reflete o ideário e as
aspirações de um povo em um determinado espaço de tempo. A inércia, portanto, não deve
integrar seu conceito.

A constatação da existência de crise no Direito Civil moderno é inequívoca. Sua dogmática


envelheceu; foi sucateada por nossa sociedade mutante. Mas, em primeiro lugar,
imprescindível que pontuemos o conceito desde fenômeno.

Claro que, de forma alguma, significa seu fim, pois não há como negar que a juscivilística
constitui o substrato do ordenamento jurídico de toda e qualquer sociedade. "É
verdadeiramente a espinha dorsal de toda a ciência jurídica, como se tem dito e registrado ao
longo dos tempos, desde a origem romana do Direito Civil". (HIRONAKA, 2003, p.94)

O termo deve ser compreendido simplesmente como superação de paradigmas (3), que se
revela na inadequação dos institutos jurídicos do Direito moderno aos nossos tempos, assim
como nos ensina Fachin:

Embora não seja unívoco, o termo paradigma vem aqui colacionado para simbolizar
ruptura e transformação. É possível que não se tenha uma percepção exata do
desenho desse novo fenômeno, mas, por certo, tais reflexões revelaram que aquela
arquitetura anterior está corroída em pontos fundamentais. Esses pontos escolhidos
não arbitrariamente, embora intencionalmente, foram o contrato, o patrimônio e a
família. Centrada nesses vértices, a moldura do Direito Civil Clássico se revelou
superada, embora seus novos contornos ainda não estejam definidos. (FACHIN, 2000,
p. 222)

Dentro desta concepção, portanto, devemos analisar separadamente quais os paradigmas


que estão sendo superados e quais estão sendo instaurados, em substituição. Para tanto,
tomaremos emprestada a metodologia do Prof. César Fiúza que divide o fenômeno em "crise"
das instituições do Direito Civil, "crise" da sistematização e "crise" da interpretação:

A crise do Direito Civil pode ser analisada sob diversos aspectos. Em primeiro lugar, a
crise das instituições do Direito Civil, basicamente de seus três pilares tradicionais: a
autonomia da vontade, a propriedade e a família. Em segundo lugar, a crise da
sistematização. Em terceiro lugar, a crise da interpretação.(FIUZA, 2003, p. 24)

2.1) Crise das Instituições do Direito Civil. O paradigma do Estado Democrático de


Direito

A ideologia fundante do liberalismo - assim como o estado de coisas por ele definido no
campo jurídico - se mantém intacta até fins do século XIX e início do século XX, quando
surge, então, o denominado Estado Social em substituição ao Estado Liberal.
Através de um gradativo intervencionismo estatal na esfera privada – processo que se iniciou
com o advento da 1ª Grande Guerra - o contrato e a propriedade sofreram impactos em sua
estrutura e, assim, o sustentáculo fundamental do liberalismo sofre seu primeiro abalo.

A Revolução Industrial, oriunda da ideologia liberal, iniciada no século XVIII, gerou como
subprodutos a massificação das relações e a concentração urbana. Tais fenômenos têm
reflexos diretos na principiologia contratual e colocam em xeque a autonomia da vontade.
César Fiúza explica:

Como se pode concluir a mesma Revolução Industrial que gerou a principiologia


clássica, que aprisionou o fenômeno contratual nas fronteiras da vontade, esta mesma
Revolução trouxe a massificação, a concentração e, como conseqüência, as novas
formas de contratar, o que gerou, junto com o surgimento do estado social, também
subproduto da Revolução Industrial, uma checagem integral na principiologia do
Direito dos Contratos. Estes passam a ser encarados não mais sob o prisma do
liberalismo, como fenômenos da vontade, mas antes como fenômenos econômico-
sociais, oriundos das mais diversas necessidades humanas. A vontade que era fonte,
passou a ser veio condutor. (FIUZA, 2003, p. 27)

A Revolução também afeta o Direito de Família; ela conduziu "a mulher para o mercado de
trabalho, retira o homem do campo, proletariza as cidades, reduz o espaço de coabitação
familiar, muda o perfil da família-padrão".(FIUZA, 2003, p.28-29)

O Estado intervencionista modifica as funções do Direito Civil e a moldura individualista


começa a não se enquadrar em uma sociedade que passa a exigir a permanente integração
do homem. O Direito Privado se apropria de instrumentos tradicionalmente de Direito Público.
As normas constitucionais passam a ter aplicação direta nas relações jurídicas privadas.

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da instauração de um Estado


Democrático de Direito em nosso país, completou-se o ciclo de transformações sofridas no
ordenamento jurídico, que adquiriu novas feições durante todo o último século.

O Direito Civil adquiriu novos contornos e seus institutos basilares foram repaginados. E mais
importante: deixaram de ser basilares. A base passou a ser o homem e sua dignidade. Todo o
resto deve estar funcionalizado para promoção do desenvolvimento do ser humano em todos
os seus aspectos.

A propriedade, que nos últimos séculos, possuía um caráter de absoluteidade incontestável é


relativizada e recebe conteúdo de função: "... passa a ser situação jurídica consistente na
relação entre o titular e a coletividade (não-titulares) da qual nascem para aquele diretos
(usar, fruir, dispor e reivindicar) e deveres (baseados na função social da propriedade)."
(FIUZA, 2003, p. 28)
O dogma da autonomia da vontade é superado nas relações contratuais, colocando-se de
lado o princípio liberal de igualdade formal para permitir a intervenção estatal regulando
desequilíbrios e disparidades.

A família. Esta se multiplicou; pluralizou. É encarada "como direito vivido, e não mais como
direito imposto e imaginário" (FACHIN, 2000, p. 314). Não é mais apenas matrimonializada; é
também informal.

Ela é "repersonalizada". Ao Estado não mais interessa tutelar simplesmente os interesses de


um grupo organizado como esteio da sociedade; procura-se proteger a família como ambiente
ideal para o surgimento de condições que permitam o pleno desenvolvimento da pessoa
humana.

Desta forma, surge a "família-instrumento", funcionalizada ao desenvolvimento de seus


membros, onde o afeto é erigido a valor jurídico e os laços biológicos e patrimoniais assumem
aspectos secundários.

O Direito de Família é regido por novos princípios: princípio da dignidade da pessoa humana,
da solidariedade, da afetividade, do melhor interesse do menor e da paternidade – ou
parentalidade, melhor dizendo – responsável.

Além disso, é marcada pela igualdade dos gêneros e dos filhos e pela pluralidade de
entidades familiares: casamento, união estável, família monoparental, e tantas outras que
possam vir a surgir na complexidade da atualidade em que vivemos e que merecem igual
proteção.

2.2) Crise da Sistematização. Fragmentação em microssistemas.

Como já estudamos, a codificação foi um movimento que representou ideais políticos,


econômicos e históricos da sociedade moderna. Assim, dentro dessa ideologia, durante a
vigência do Estado Liberal, o Código Civil era o núcleo do Direito Privado.

Contudo, uma vez estabelecidos os Estados Nacionais, a dicotomia entre Direito Público e
Direito Privado, a prevalência dos ideais econômicos liberais e a conseqüente superação de
todos esses modelos, os códigos começaram a se tornar obsoletos.

Isto porque estático que é, o Código Civil não consegue acompanhar as alterações pelas
quais passa a sociedade. Isso faz com que, ao lado da codificação privada, ocorra uma
explosão legislativa, com o objetivo de suprir eventuais deficiências que emergem com o
próprio surgimento da codificação.

A história nos demonstra a falibilidade do sistema codificado do Positivismo Jurídico, pois a


sociedade humana é dinâmica, mutante, e força o Direito a acompanhar suas transformações.
A dinâmica é o movimento que gera sua própria vida e busca contemplar eventual
transformação. Tal circunstância se dá quando a regra não cobre mais com sua
juridicidade positivada todas as circunstâncias. Cogita-se, então, de relações
contratuais de fato, para mostrar exatamente que há determinadas relações das quais
emergem efeitos jurídicos e que não correspondem a um dado paradigma que foi
tipificado ou codificado ao final desse processo de refinamento que a codificação
opera. Esses espaços de "não-direito" geram fatos que, em certos casos, acabam se
impondo ao jurídico, o que gera um a transformação naquilo que foi refinado pela
ordem jurídica. Desta certa mudança sem ruptura vem a nova ordem, e o ciclo
produtivo das passagens se mantém. Lacunas convertem-se em regras. (FACHIN,
2000, p. 268)

O Código Civil de 1916 teve sua ideologia fundante - completude, centralidade e unicidade -
abalada com poucos anos de vigência. Já nas décadas de 20 e 30, começaram a surgir leis
extravagantes, frutos do crescente intervencionismo econômico e do dirigismo contratual do
Estado, no intuito de disciplinar matérias não dispostas no corpo codificado.

Disciplinas que, longe de estarem revestidas de qualquer caráter emergencial, tratavam


simplesmente de matérias não previstas pelo legislador codificador. Uma legislação
extravagante que regulava novos institutos – surgidos com a evolução da sociedade – e que
possuíam alto grau de especialização, formando, paralelamente ao Código, um direito
especial.

Com o tempo, essa legislação extravagante passou a ser conhecida como legislação especial
e representou profunda alteração na dogmática do Código Civil.

Este movimento forçou, então, a abertura do sistema. Surgiram outros sistemas, menores e
específicos, que, por sua vez, se tornaram o centro para cada um daqueles setores que
passaram a regulamentar de forma interdisciplinar, pois traziam não só normas de direito civil,
mas de direito penal, administrativo, etc. Paulo Lôbo nos ensina que:

Proliferaram na década de setenta deste século, e daí em diante, as legislações sobre


relações originariamente civis caracterizadas pela multidisciplinaridade, rompendo a
peculiar concentração legal de matérias comuns e de mesma natureza dos códigos.
Nelas, ocorre o oposto: a conjunção de vários ramos do direito, no mesmo diploma
legal, para disciplinar matéria específica, não se podendo integrar a determinado
código monotemático. Utilizam-se instrumentos legais mais dinâmicos, mais leves e
menos cristalizados que os códigos – embora, às vezes, sejam denominados
"códigos", em homenagem à tradição, a exemplo do código do consumidor dotados de
natureza multidisciplinar. (LÔBO, 2003, p. 204)

Assim, gradativamente, o Direito Civil deixa de ser baseado só em uma lei codificada, mas em
muitas outras leis específicas que se aplicam a diversos setores da ordem privada.
Ao redor do código surgem microssistemas, cujo surgimento "se verifica em razão de
instalação de nova ordem protetiva sobre determinado assunto, com princípios próprios,
doutrina e jurisprudências próprias, autônomos ao Direito Comum." (SÁ, 2003, p.189)

Além disso, concomitantemente à expansão da legislação especial, os textos constitucionais


passam, progressivamente, a definir princípios relacionados a temas de Direito Privado,
dantes exclusivamente reservados ao Código Civil: "função social da propriedade, os limites
da atividade econômica, a organização da família, matérias típicas do Direito Privado, passa a
integrar uma nova ordem pública constitucional" (TEPEDINO, 2004, p. 07)

E, assim, conforme Ricardo Luís Lorenzetti, "os códigos perderam a sua centralidade,
porquanto esta se desloca progressivamente. O Código é substituído pela
constitucionalização do Direito Civil, e o ordenamento codificado pelo sistema de normas
fundamentais". (LORENZETTI, 1998, p. 45).

Neste diapasão, Maria Celina Bodin de Moraes acrescenta:

Diante da nova Constituição e da proliferação dos chamados microssistemas, ... [ ] é


forçoso reconhecer que o Código Civil não mais se encontra no centro das relações de
direito privado. Tal pólo foi deslocado, a partir da consciência da unidade do sistema e
do respeito à hierarquia das fontes normativas, para a Constituição, base única dos
princípios fundamentais do ordenamento. (MORAES, 1993, p.....)

A Constituição Federal toma o lugar antes ocupado pelo Código Civil e passa a ser o estatuto
central da sociedade civil e política. Seu advento significa o fim da centralidade sistêmica do
Código Civil apesar de ainda existir relutância por parte da doutrina em admitir o necessário
fim da dicotomia público-privado.

Assim, apesar da armadura imposta pela codificação, o Direito Civil foi forçado a acompanhar
as transformações da sociedade contemporânea, superando a teoria liberal clássica. A própria
codificação, trouxe em si, a semente para sua ruína ao tentar aprisionar a multiplicidade social
dentro de um código engessado.

Hodiernamente, não podemos chegar à outra conclusão senão de que os códigos tornaram-se
obsoletos e, mais grave, constituem óbices ao desenvolvimento do direito civil e da sociedade.
A complexa vida contemporânea não se coaduna com a rigidez imposta pelas regras
codificadas.

2.3) Crise da interpretação. Mudança dos paradigmas hermenêuticos.

A "crise" do Direito na contemporaneidade operou verdadeira revolução nos paradigmas


hermenêuticos utilizados até então, sobretudo, tendo-se em vista a superação da idéia de
sistema fechado preconizada pelas escolas positivistas, com a conseqüente instauração da
mentalidade de sistema aberto lecionada pelos pós-positivistas.
A crítica ao Positivismo reside, acima de tudo, neste fato: na pretensão de um controle
cognitivo absoluto da realidade; na ousadia de tentar aprisionar o espírito humano dentro de
um sistema fechado, enclausurado.

O Pós-positivismo possui traços característicos básicos. Trata-se de um conjunto de idéias


plurais que ultrapassam os limites do legalismo estrito do positivismo e do normativismo, sem,
contudo, recorrer à razão subjetiva do Direito Natural.

Prof. César Fiúza define:

O chamado pós-positivismo consiste em um movimento de meados do século XX,


que, contrapondo-se, principalmente, ao normativismo, acredita que o direito só existe
de forma concreta na medida em que compõe interesses. Seu valor potencial,
enquanto conjunto de normas abstratas e genéricas, não tem qualquer interesse
prático, digno de ocupar o tempo do estudioso. (FIÚZA, 2003, p.44)

É marcado, ainda, pela ascensão dos valores, pelo reconhecimento da normatividade dos
princípios e a essencialidade dos direitos humanos fundamentais. A discussão ética volta ao
centro do direito.

Surge, portanto, uma nova hermenêutica, fundada em um pluralismo epistemológico, onde


está presente a reelaboração teórica, filosófica e prática do Direito.

Para dirimir as questões, os Pós-positivistas têm como ponto de partida o caso concreto. Ou
seja, a lógica positivista é invertida: não se parte mais do sistema para o caso concreto.

Isso significa que a aplicação da lei não se trata mais de enquadrar em sua moldura estreita,
as particularidades de cada caso, restando ignoradas e decotadas todas aquelas que não
caibam dentro de seu esquadro. A realidade é o parâmetro para se conjugar ideais de justiça
e segurança jurídica.

Partindo-se do caso concreto, preocupando-se com suas particularidades, o intérprete


adequará a norma ao caso – e não o contrário. Prof. César Fiúza escreve:

Ao entrar em contato com as peculiaridades do problema prático, o intérprete buscará


adequar a norma, amoldando-se às necessidades do caso. Para tanto, conjugará o
texto legal com os princípios e valores vigentes no ordenamento. A solução
encontrada passará a integrar o sistema, que, assim, estará retroalimentando-se.
(FIÚZA, 2003, p. 35)

Um dos primeiros mentores do pós-positivismo foi Recaséns Siches, que preconizou que o
intérprete da pós-modernidade enfrenta três problemas ao se deparar com o caso concreto
(FIUZA, 2003, p. 45): o primeiro é eleger a norma adequada para o caso concreto; o segundo
é converter os termos gerais da norma aos termos particulares do caso; o terceiro é escolher
o método correto para trata-lo.
É uma metodologia ainda muito enraizada na segurança jurídica, mas a justiça já é colocada
como objetivo maior do Direito. Recaséns Siches deu grande contribuição no que tange à
importância do papel da Filosofia do Direito e à idéia de se buscar, a partir do problema, a
axiologia do Direito.

Na esteira de Recaséns, várias obras são publicadas em contraposição à lógica formal do


positivismo jurídico. São as chamadas Teorias da Argumentação (FIÚZA, 2003 p. 46), que
apesar de suas diferenças, possuem todas o mesmo fundamento: o preceito de que a
interpretação jurídica deve ser baseada na argumentação, evitando a aplicação dura e fria da
lei.

As Teorias da Argumentação preconizam um sistema aberto, sobretudo, onde seja possível


aprimorar mecanismos de interpretação capazes de promover justiça, de dar a resposta
correta para o caso concreto.

No que diz respeito à normatividade dos princípios do Direito preconizada pelo Pós-
positivismo, também existem teorias que procuram explicar o que são estes princípios e qual a
forma de sua aplicação.

Bobbio e Del Vecchio preconizam que princípios são normas generalíssimas do sistema,
alcançadas por meio de crescente generalização de outras normas do ordenamento. Dentro
dessa teoria, por conseqüência, não há que se falar em conflito de princípios, tendo-se em
vista que, por serem normas generalíssimas, eles possuem aplicação universal.

Esser criticou essa teoria afirmando que não é a generalidade que distingue o princípio da
regra, pois princípios não se formam através de processo de generalização. Para ele, a
generalidade não é causa do conceito do princípio, mas conseqüência.

Marcelo Galuppo sintetiza as críticas a essa primeira teoria:

Desde Kelsen sabemos, no entanto, que essa tese dificilmente é sustentável, pois,
aprendemos com ele, como o sistema jurídico é um sistema dinâmico, não é possível
deduzir de conteúdos (mais gerais) outros conteúdos normativos (mais particulares).
Como Esser, já observara, não é a maior ou menor generalidade que distingue o
princípio da regra. A generalidade não é um critério adequado para a distinção,
porque, apesar de muitas vezes os princípios serem normas com elevado grau de
abstração, eles não se foram por um processo de generalização (ou de abstração)
crescente. (GALUPPO, 1999, p. 192)

A segunda teoria pertence a Robert Alexy (4). Para ele, a aplicação universal de princípios é
irrealizável no caso concreto. Alexy entende que princípios são mandados de otimização, ou
sejam, são normas que dizem algo que deve ser realizado na maior medida possível, dentro
das possibilidades jurídicas e fáticas existentes.
Sendo assim, podem ser aplicados em diferentes graus, pois contém mandados prima facie,
que comandam a análise do caso concreto e de todas as suas circunstâncias para sua
aplicação. As regras, ao contrário, contêm mandados definitivos, sendo aplicáveis ou não no
caso concreto. "Portanto, o que diferencia basicamente princípio de regras seria o fato de os
primeiros serem razões prima facie, enquanto as segundas seriam razões definitivas"
(GALUPPO, 1999, p. 193)

No caso de colisão entre princípios, Alexy preconiza que ambos os princípios conflitantes não
deixam de ser válidos e que tal conflito se dá na dimensão do peso, o que nos conduz,
invariavelmente, a uma idéia de hierarquização entre eles, ponto mais criticável da sua teoria.

Alexy preconiza que não se trata de hierarquização absoluta. Ocorre tão somente no caso
concreto e é estabelecida através de um procedimento de ponderação, o qual possibilita a
descoberta de qual dos interesses, abstratamente do mesmo nível, possui maior peso no
caso, tendo-se em vista a existência de condições que implicam a precedência de um
princípio sobre o outro.

A teoria de Alexy é muito criticada. Autores como Habermas (5) e Günther (6) afirmam que ele
esvazia o caráter normativo dos princípios, pois entra em contradição com a compreensão
deontológica do Direito que pretende defender.

Habermas afirma que a concepção da lei de ponderação e da lei de colisão de Alexy conduz a
uma axiologização do Direito, pois tal ponderação só é possível à medida que preferimos um
princípio em relação a outro e quando fazemos isso – ou seja, quando preferimos – os
aproximamos de valores e não de normas. Na fala de Marcelo Galuppo:

Habermas entende que a maneira pela qual Alexy concebe as leis de colisão e de
ponderação implica uma concepção axiologizante do direito, pois a ponderação, nos
moldes pensados por Alexy, só é possível porque podemos preferir um princípio a
outro, o que só faz sentido se os concebermos como valores. Pois é apenas porque
são concebidos como valores que os seres podem ser objetos de mensuração por
meio de preferibilidade, constitutiva do próprio conceito de valor, uma vez que o valor,
conforme aponta Lalande, pode ser entendido como o "caráter das coisas consistindo
em que elas são mais ou menos estimadas ou desejadas por um sujeito ou, mais
ordinariamente, por um grupo de sujeitos determinados" (Lalande, 1960:1183. Grifos
meus). Ao assumir tal posição, Alexy confunde normas jurídicas (em especial os
princípios) com valores, o que torna a sua teoria inconsistente. (GALUPPO, 1999,
p.196)

Alexy se preocupa em encontrar mecanismos racionais de ponderação e afirma que a


fundamentação racional é aquela capaz de apontar suas razões, ou seja, as razões de
preferibilidade.
Habermas, por sua vez, afirma que é necessária uma fundamentação deontológica, que leve
em consideração a correção normativa, que pressupõe a possibilidade de fundamentar em
termos racionais e definitivos uma determinada ação.

Para este autor, uma fundamentação baseada em valores nos dita aquilo que é bom para nós,
enquanto uma fundamentação em normas dita aquilo que é universalmente correto.

Ronald Dworkin (7) afirma, a seu turno, que princípios são modelos que devem ser
observados, independentemente do fim que sua aplicação poderá atingir, mas porque é
simplesmente uma exigência da justiça ou de imparcialidade ou de qualquer dimensão de
moralidade.

O conceito de Integridade do Direito (8) elaborado por Dworkin é aproveitado nas teorias de
Klaus Günther e de Habermas para formulação do conceito de princípios e do procedimento
de solução de conflitos entre eles, no caso concreto.

Estes dois autores consignam que a diferença entre princípios e regras reside no fato de
serem normas que possuem razões distintas de fundamentação das ações. Os primeiros,
possuem razões comparativas (consideradas todas as circunstâncias, a ação deve ou não
deve ser executada) e as segundas possuem razões prima facie (a ação deve ou não deve
ser executada).

Para eles, princípios são fluidos e abstratos e necessitam ser densificados no caso concreto,
não se aplicando a toda e qualquer situação que reproduza suas circunstâncias de aplicação.

Günther leciona que os princípios são aplicados através de procedimento argumentativo, que
obriga a considerar todas as características da situação em exame. Leva-se em conta um
juízo de adequabilidade; um princípio pode excepcionar outro e a exceção se faz pelo próprio
caso, onde o juiz deve realizar a exigência da Integridade.

Para ele, ao contrário de Alexy, princípios não estão em relação de subordinação, mas sim de
coordenação.

Independentemente das divergências entre os autores citados acima, o que devemos ter em
mente é que dentro desta concepção de sistema aberto, os princípios assumem papel
importantísismo no sentido fornecer decisões coerentes e justas, integrando o sistema
jurídico. Além disso, por serem normas, princípios não podem ser hierarquizados, tampouco
podem ser objeto de preferências.

3) REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL E CLÁUSULAS


GERAIS. CÓDIGO CIVIL DE 2002.
Antes de enfrentarmos os temas propostos neste capítulo, é necessário fazermos algumas
considerações de cunho metodológico, imprescindíveis para a compreensão da
constitucionalização do Direito Civil, fenômeno que parece carregar em si verdadeiro
paradoxo.

Para tanto, devemos compreender, em primeiro lugar, que a dicotomia da dogmática do


século XIX, restaurada pelo Iluminismo, que estabeleceu uma profunda separação entre
Direito Público e Privado não mais parece fazer sentido hodiernamente.

Todas as normas infraconstitucionais – que caracterizam uma pluralidade de fontes


normativas – devem se submeter aos princípios e valores que a sociedade brasileira identifica
como prevalentes, quais sejam, os princípios e valores constitucionais.

Com a queda da dicotomia que segmentava o Direito Privado do Público, é um contra-senso


afirmar que as normas constitucionais se destinam somente ao legislador. Todas elas têm
aplicação direta. Seus princípios atuam tanto no plano da justificação quanto no plano da
aplicação, e são, inclusive, auto-executáveis.

Diante disso, a Constituição da República se situa no ápice do sistema normativo. Possui, um


papel unificante tendo em vista o amplo compromisso social que suas normas representam.

Conforme nos ensina o Prof. Gustavo Tepedino (TEPEDINO, 2003, p. 119-120), a sociedade
contemporânea alcançou três conquistas fundamentais no campo jurídico.

A primeira dessas conquistas seria a descoberta do significado relativo e histórico dos


conceitos jurídicos, que sempre foram encarados como neutros e absolutos. Hoje, inclusive,
nos parece óbvio que nenhum direito, dever ou construção jurídica seja revestido de
absoluteidade. Cada instituto jurídico se torna insuficiente fora de um contexto histórico ou
cultural.

A segunda conquista elencada pelo Prof. Gustavo Tepedino é a superação da dicotomia entre
Direito Público e Direito Privado. Esta classificação não serve para atender reivindicações
sociais, onde é necessário funcionalizar as relações patrimoniais a valores constitucionais,
tendo em vista o amplo compromisso social de nossa Constituição Federal de 1988.

Por fim, a terceira conquista se traduz na absorção definitiva pelo texto constitucional de
valores que presidem a iniciativa privada e seus institutos (família, propriedade e contrato).

Por tudo isso, fala-se, atualmente, em Direito Civil-Constitucional. A atividade interpretativa do


Direito passa necessariamente por esta perspectiva, onde os princípios constitucionais
deixaram de ser, há muito, meros princípios políticos.

3.1) Ser humano e sua dignidade: centro epistemológico do ordenamento jurídico.


Neste contexto, onde a dignidade da pessoa humana é colocada como fundamento da
República Brasileira, sendo valor essencial de nosso sistema jurídico, encontramos mais uma
razão para que a dicotomia público-privado seja superada, tornando-se possível alcançar a
plena tutela da pessoa humana.

No estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição Federal de 1988, que


tem como entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente
o sentido. (MORAES, 1993, p. 26)

Assim, os valores existenciais estão no vértice do ordenamento jurídico. A pessoa humana é o


valor que deve orientar todo e qualquer ramo do Direito. Todos – absolutamente todos – os
institutos jurídicos devem ser funcionalizados com o objetivo de promover o pleno e integral
desenvolvimento do homem.

Desta feita, a "patrimonialização" tradicional das relações civis, que ainda persiste em nosso
novo Código Civil, é totalmente incompatível com os valores constitucionais fundados no
princípio da dignidade da pessoa humana. A primazia da pessoa humana é condição
essencial de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais vigentes.

Diante disso, fala-se em "repersonalização" das relações civis, movimento que objetiva
recolocar o ser humano no centro do Direito Civil, lugar que sempre deveria ter ocupado, ao
invés do patrimônio, que norteou nosso ordenamento juscivilístico até então.

Nesse aspecto, cumpre fazermos algumas ponderações para indagarmos se esse fenômeno
não seria melhor denominado como "personalização" do Direito Civil.

O breve histórico que fizemos de nossa civilística e daquelas que a influenciaram nos revela
que o ser humano e os valores existenciais jamais ocuparam o centro do Direito Civil. Tal
posição sempre fora inegavelmente reservada ao patrimônio, considerado, por muito tempo, a
verdadeira medida do homem.

A proposta do atual movimento não é confundível nem mesmo com o antropocentrismo


preconizado pelo Iluminismo, razão pela a denominação "personalização" do Direito Civil
parece mais adequada aos fins que o fenômeno representa.

Neste sentido, Luiz Edson Fachin defende, ainda, a existência de um patrimônio


personalíssimo, relacionado com a "verificação concreta de uma esfera patrimonial mínima,
mensurada pela dignidade humana à luz do atendimento de necessidades básicas ou
essenciais". (FACHIN, 2001, p. 03)

A tese de Fachin é muito interessante, pois propõe a colocação da pessoa e suas


necessidades fundamentais, em primeiro plano e coaduna-se, portanto, com as tendências de
"despatrimonialização" ou "personalização" do Direito Civil.
Fachin fundamenta suas formulações na tutela constitucional ao direito à vida, prevista no
artigo 5º, bem como no artigo 170 da Carta Magna, que comanda o condicionamento da
ordem econômica à garantia de uma existência digna a todo ser humano.

Este autor preconiza que a defesa da vida, plena e digna, é a única seiva que pode animar o
Direito e busca, em sua tese, uma nova conceituação do patrimônio, capaz de colocar a
pessoa humana e seus valores personalíssimos no centro das relações jurídicas.

3.2) Nova técnica legislativa: Cláusulas Gerais

Antes de adentrarmos no conceito das cláusulas gerais, sua função e natureza jurídica, é
necessário que pontuemos alguns preceitos de interpretação da lei em nosso sistema jurídico
contemporâneo.

A esta altura, não restam dúvidas a respeito da supremacia absoluta dos princípios e regras
constitucionais sobre todo o ordenamento jurídico, nem tampouco de que a estrutura
legislativa adotada por nossa Carta Magna forma um sistema que rege tanto as relações
jurídicas públicas quanto as privadas.

Entendido este ponto, devemos considerar que a interpretação das normas constitucionais e
da legislação infra-constitucional não pode ser estática. Ao contrário, deve ser dinâmica para
se adaptar à realidade social do momento da aplicação da norma, pois o significado de um
texto legal pode variar no tempo e no espaço.

Todas estas premissas são de extrema relevância para analisarmos a harmonia do Código
Civil de 2002 – e de sua técnica legislativa - com a Constituição Federal de 1988.

Bem, a lei, em sua forma tradicional, se apresenta com conteúdo rígido e fechado;
completamente estático, a ponto de não abrir espaço algum para o juiz interpretar e aplicar a
lei em face do caso concreto. Contudo, conforme leciona Joaquim Augusto Delgado:

Essa técnica legislativa, na época contemporânea, não se coaduna com as exigências


impostas pelas relações jurídicas vividas pelos membros da sociedade humana, haja
vista a complexidade que as envolvem e as constantes mutações a que se submetem
durante o curso da produção dos seus efeitos. (DELGADO, 2003, p. 395)

Diante disso, o novo Código Civil é composto por um sistema de regras móveis que não se
deixam envelhecer com o transcorrer do tempo, tendo em vista a possibilidade de sua
adaptação, no momento da aplicação, através da interpretação.

Delgado, então, ensina que ’‘a técnica legislativa moderna se faz por meio de conceitos gerais
indeterminados e cláusulas gerais, que dão mobilidade ao sistema, flexibilizando a rigidez dos
institutos jurídicos e dos regramentos do direito positivo. (DELGADO, 2003, p. 395)
Assim, as cláusulas gerais se afiguram como fórmulas genéricas que determinam
comportamentos não pormenorizados, ao contrário das regras, destinadas a regular,
especificamente, hipóteses fáticas determinadas. Tratam-se de normas orientadoras e se
dirigem ao julgador, dando-lhe certa liberdade para decidir, preenchendo seu conteúdo diante
do caso concreto.

Possuem natureza jurídica de norma jurídica, pois é fonte criadora de direitos e obrigações.
Não podem, por conseqüência, ser consideradas como princípios ou regras de interpretação.

Constituem técnica legislativa muito útil para a atualidade, pois o legislador é ciente de sua
impotência para regular a complexidade de fatos sociais que surgem no seio da sociedade
contemporânea, extremamente pluralizada e multifacetada.

Porém, a despeito de revelarem algumas vantagens, vez que evitam o engessamento do


Direito, apresentam alguns riscos, sobretudo, na atividade interpretativa. Podem ser campo
fértil para o subjetivismo exacerbado dos órgãos jurisdicionais, a quem resta a tarefa de
preencher seu conteúdo em face do caso concreto.

A solução para evitar o subjetivismo e a discricionariedade dos julgadores é condicionar a


aplicação das cláusulas gerais à normatividade constitucional. Por esta razão, no início deste
tópico, frisamos os preceitos interpretativos da lei na contemporaneidade.

Assim, é forçoso entender que ao juiz é dada certa discricionariedade ao preencher os


conteúdo da cláusula geral, mas tal discricionariedade encontra limites impostos pela
normatividade constitucional.

Sua função é de instrumentalizar o Direito e "atuam com o objetivo fundamental de cumprir


preceitos constitucionais de valorização da dignidade da pessoa humana e da cidadania..."
(DELGADO, 2003, p. 397)

Deste modo, levando-se em consideração os limites constitucionais para a interpretação e


aplicação das cláusulas gerais e atentos ao fato de que um sistema mais aberto contribui para
a ocorrência de soluções mais justas e corretas no caso concreto, devemos concluir pela
perfeita compatibilidade dessa nova técnica legislativa com a Constituição Federal e com as
exigências sociais da contemporaneidade.

3.3) Código Civil de 2002

Dentre as diretrizes fundamentais, elencadas pelos elaboradores do novo diploma civil


brasileiro como orientadoras de sua feitura, estão a compreensão do código como lei básica e
não global do direito privado e a manutenção da estrutura do código anterior, no sentido de
preservar, sempre que possível, a redação do Código Beviláqua.

A esse respeito, J. M. Othon Sidou escreve:


É natural e óbvio que as leis de grande abrangência, tal o Código Civil, absorvam
inovações pertinentes, do mesmo modo como, ao inverso, mantenham institutos já
desfigurados e que bem mereciam o repouso no arquivo da História do direito. Num
caso, a ânsia da renovação; noutro, o apego à tradição. (SIDOU, 2003, p. 361)

A comissão de elaboradores, do alto de seu brilhantismo, que me perdoe: mas, na minha


profunda ignorância, ouso dizer que um Código Civil, no contexto político, econômico e social
de nossa contemporaneidade não carrega impertinências: revela-se como uma verdadeira
impertinência.

Seus mentores justificaram a atualização do código civil com o objetivo de superar os


pressupostos individualistas que condicionaram o diploma de 1916, bem como para dota-lo de
novos institutos jurídicos, reclamados por nossa sociedade contemporânea.

Aqui, somos forçados a fazer nova pausa, tendo em vista a impossibilidade de deixar de
comentar tamanha incoerência. Os códigos são fruto da ideologia liberal, profundamente
marcada pelo individualismo, e expressão do positivismo jurídico, que leciona um sistema
fechado e exausto em si. A meu ver, é impossível pretender fabricar um novo código que não
esteja inserido neste contexto e marcado por tais ideologias. Contudo, sigamos adiante.

Nortearam-se pela premissa de não tutelar institutos jurídicos que não estivessem
"sedimentados" na sociedade e justificaram tal fato alegando deixar para a "legislação aditiva"
a disciplina destas questões, em virtude das mutações sociais em curso.

Paradoxalmente, mesmo confessando não desejar erigir o Código Civil ao centro do


ordenamento privado, elegeram o objetivo de incluir em sua sistemática as matérias reguladas
pelas leis especiais promulgadas após 1916 - o que chega a nos arrepiar.

Além da tarefa hercúlea de aglutinar os institutos do código de 1916 e os das leis especiais
vigentes desde então, desejaram acolher modelos jurídicos elaborados pela jurisprudência
durante todo o último século – o que intensifica ainda mais nosso arrepio.

Depois de tudo isso, afirmam que procuraram dar ao Código Civil um sentido operacional,
estruturando instrumentos capazes de promover paz social e desenvolvimento.

Parecem ter esquecido que a lei codificada, engessada, estática no tempo, ao contrário de
promover desenvolvimento social, o paralisa e causa atraso.

Justamente no instante em que o ordenamento juscivilístico começa a se


ressistematizar, pelo empenho da doutrina e da jurisprudência, justamente no instante
em que ganha contornos de algo simétrico e inteligível, surge o fantasma de um novo
Código Civil, que ameaça ruir todos os esforços de ressistematização envidados até o
presente.
É um código que já nasce de costas para o presente, ao menoscabar o paradigma do
Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, nascerá já necessitando de
releitura urgente. Salta aos olhos que seria muito mais sábio proceder-se a uma
reforma paulatina do Código de 1916, à semelhança do que se vem fazendo com o
Código de Processo Civil. (FIUZA, 2003, p. 33)

3.3.1) O Código e seus destinatários no contexto da descodificação

Toda norma imposta pelo Poder Público deve estar adequada aos costumes e às aspirações
que formam o substrato de uma sociedade, sob pena de ser cunhada pela ilegitimidade,
sobretudo, no Estado Democrático de Direito em que vivemos.

Depois de se arrastar no Congresso nacional por décadas, o texto que agora a nós é imposto
para o devido cumprimento, é um desconhecido para a grande maioria de seus destinatários.

Nenhuma das partes do processo de elaboração, aprovação e promulgação do novo Código


Civil foi objeto de discussão com a sociedade que ele se destinaria a regular.

O que é de causar espanto é que dentre as diretrizes fundamentais da comissão elaboradora,


elencou-se a "consulta" de entidades públicas e privadas, representativas dos diversos
círculos de atividades e interesses, objeto da disciplina normativa, a fim de que a nova lei,
além de se apoiar nos entendimentos legislativos, doutrinários e jurisprudenciais, tanto
nacionais como alienígenas, "refletisse os anseios legítimos da experiência social brasileira,
em função de nossas peculiares circunstâncias".

Infelizmente tal diretriz não foi cumprida. Ausente a discursividade, que deveria envolver um
projeto desta envergadura, nos resta estudar, entender e procurar adequar a lei - que nos fora
friamente imposta - à realidade atual, na maior medida possível.

Ademais, já sabemos como a codificação limita e restringe. Os valores postos são apenas
aqueles válidos para um determinado momento histórico, que não podem se transportar
através do tempo e se adaptar às mutações sociais que se operam.

Por esta razão, severas são as críticas de nossa doutrina em relação à codificação,
sobretudo, na contemporaneidade, que nos apresenta uma sociedade complexa e plural: "...[ ]
o momento histórico e sócio-jurídico que vivenciamos, às vésperas do Terceiro Milênio, não
comporta o engessamento, a própria petrificação de instituições tão importantes, em plena
ebulição". (FRANÇA, 1999, p. 19)

Em sua esteira, o Prof. Gustavo Tepedino complementa:

... [ ] uma codificação não surge por acaso. Expressa momento de unificação política e
ideológica de um povo, fazendo prevalecer o conjunto de regras que o sintetiza. Assim
foi o século XIX, após a revolução Francesa, assim se deu na Europa do pós-guerra,
com a derrubada dos governos totalitários.
Tais circunstâncias históricas não mais existem: deram lugar a cenário inteiramente
diverso, pluralista e multifacetado, onde os grupos políticos emergentes manifestam-se
através do robusto conjunto de leis especiais, que regula de maneira setorial a
atividade privada e parece insuscetível de unificação no plano das leis ordinárias.
(TEPEDINO, 2004, p.499-500)

Cabe a nós, operadores do Direito, a assunção de um pensamento crítico perante o caminho


traçado por nosso legislador, pois somente a partir dele será possível reformular o Direito Civil
brasileiro de modo que satisfaça às reais necessidades de seus destinatários, tendo em vista
a irrelevante função do Direito Civil na vida humana, por ser aquele que rege a vida do homem
comum e suas relações jurídicas cotidianas, desde as mais simples até as mais intrincadas e
complexas.

CONCLUSÃO

Traçado este sintético panorama da juscivilística brasileira, concluímos, de maneira inegável,


que o Direito Civil contemporâneo vem atravessando uma fase de profundas transformações
em seus valores constituintes.

Essa fase turbulenta, recheada de incertezas, deu origem à chamada "crise" do Direito Civil
que, como já dito, nada mais é que a superação de antigos paradigmas e a instauração de
novos, em substituição.

A sociedade contemporânea tem novas exigências e se estrutura em novos padrões de


organização social, política e econômica. Portanto, a dogmática jurídica colecionado durante
toda a modernidade não mais nos serve.

Dentre as inúmeras alterações que se vislumbram no cenário de mutação que ora nos
apresenta, devemos destacar algumas, reportadas fundamentais para a compreensão do
Direito Civil que vem se amoldando em nossos tempos.

A primeira delas é o fim - ou ao menos a relativização - da dicotomia entre Direito Público e


Direito Privado, tendo em vista a interpenetração do Direito Civil com o Direito Constitucional,
para a perfeita tutela dos interesses existenciais, tendo em vista que essa só pode ser
garantida à luz dos princípios fundamentais constitucionais e do amplo compromisso social
assumido por nossa Carta Maior.

O fim dessa compartimentação do Direito significa, ainda, a inadequação de um sistema


jurídico que vise a promoção de segurança jurídica, que na concepção moderna representa a
garantia de proteção da liberdade individual contras ingerências do Estado.

A história nos mostrou a necessidade da intervenção estatal na economia, que não é capaz
de se autogerir e solucionar os problemas que causa. Sendo assim, a necessidade de códigos
que representassem estabilidade e completude deixou de ser imperativa. Ao contrário, se
mostrou inadequada em nossos tempos.

Hodiernamente, a busca precípua de um ordenamento jurídico deve ser a realização da


justiça, sobretudo, de justiça social, através da permanente contribuição de todos os cidadãos
para o bem comum.

É indispensável a existência de um sistema aberto, que não feche as portas para a


complexidade da sociedade contemporânea, evitando que fatos sociais se situem à margem
do regramento jurídico, exigindo uma hiperatividade legislativa, que ao contrário de revelar
uma sociedade organizada, significa desorganização e subdesenvolvimento.

Um sistema aberto exige, ainda, pluralismo de fontes, restando superada a idéia positivista de
que só a lei é fonte de direito. Aos princípios jurídicos é atribuída importância nunca dantes
conferida. Assumem em definitivo papel no plano da aplicação.

O intérprete possui função diferenciada. Não lhe cabe somente subsumir a norma ao caos
concreto, mas sim analisar todas suas circunstâncias, para aplicar aquela que melhor se
adeque à produção de uma decisão justa e correta. Neste contexto tomam corpo as
denominadas Teorias da Argumentação, que procuram encontrar mecanismos racionais desta
adequação.

O Direito Civil é fragmentado, desagregado em uma série de corpos jurídicos autônomos: os


microssistemas, dotados de princípios, que já não buscam vida no Código Civil, mas na
própria Constituição Federal. A era da descodificação se amoldura.

Os pilares tradicionais da dogmática civil, autonomia da vontade, propriedade e família,


perdem seu status. O direito civil é personalizado e seu centro epistemológico é ocupado pela
ser humano e por sua dignidade, elevados, pela Constituição Federal à categoria de princípios
fundamentais de nossa República.

Diante de tudo isso, não sabemos onde encaixar um novo código civil... Mas ele se impõe a
nós e assim temos a tarefa de tentar minimizar seus impactos desastrosos na gradativa
reestruturação que nosso Direito vinha sofrendo, por méritos da doutrina e da jurisprudência.

NOTAS

1. Tendo o Direito Alemão optado pela codificação - para tristeza de Savigny -, o que
culminou com a promulgação do BGB, código que inspirou muitos outros que surgiram
em sua esteira.
2. A escola da Exegese, inspirada no racionalismo setecentista, preconizava o Direito
como sistema de regras lógico-dedutivas. A lei seria fonte única e suficiente que
dispensava interpretações, por sua clareza e completude.
3. Thomas S. Khun, mentor da teoria dos paradigmas, preconiza que um paradigma é
aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma
comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma.
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janeiro: Tempo brasileiro, 1997. 2 v.
6. GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness.Trad.: John Farrel. Albany: State
University of New York, 1993.
7. DWORKIN, Ronald. Life´s dominion. Nova Iorque. Alfred A Knopf, 1993.
8. Conceito central da teoria de Dworkin responsável pela atribuição de legitimidade ao
sistema jurídico, relacionado, ainda, com as razões que constituem o substrato das
normas jurídicas e se conecta diretamente ao conceito de justiça, imparcialidade e
igualdade. Para Dworkin, uma decisão justa respeita a integridade do sistema e
fornece a resposta correta para o caso.

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