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A adoração a Baal: antiga e moderna Stephen C.

Perks
Copyright @ 2011, de Stephen C. Perks
Publicado originalmente em inglês sob o título
Baal Worship: ancient and modern
pela The Kuyper Foundation,
P. O. Box 2, Taunton, Somerset, TA1 4ZD, Inglaterra.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


E M
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Brasília, DF, Brasil - CEP 70.842-970
Telefone: (61) 8116-7481
www.editoramonergismo.com.br
1a edição, 2016
1000 exemplares Tradução: Fabrício Tavares de Moraes
Revisão: Felipe Sabino e Rogério Portella
Capa: Filipe Schulz


P ,
, .

Todas as citações bíblicas foram extraídas da


Versão Almeida Revista e Atualizada (ARA),
salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Perks, Stephen C.
A adoração a Baal: antiga e moderna / Stephen C. Perks, tradução Fabrício
Tavares de Moraes — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2016.
Título original: Baal Worship: ancient and modern 978-85-69980-13-1
1. Política 2. Teologia reformada I. Título CDD 201
S Prefácio à edição brasileira
Introdução
1. A cosmovisão sincretista
2. Alguns exemplos de sincretismo
a. Evolução e ciência
b. Educação
c. Totalitarismo ou estadismo
3. A idolatria moderna: o Estado como Deus
Conclusão
P

A famosa frase de Calvino — “o coração do homem é uma eterna


fábrica de ídolos” — não somente retrata o impulso humano
inextirpável que se dirige à divindade, seja ao Deus verdadeiro ou a
um falso deus, mas também demonstra que a idolatria
necessariamente resulta de um conhecimento falso ou deficiente de
Deus. Paulo, em Romanos 1, tratando sobre as consequências
oriundas de uma sociedade que rejeita e sufoca deliberadamente a
verdade de Deus, demonstra que o homem, criado com “domínio
sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam
pela terra” (Gênesis 1:26), por meio da idolatria e da obnubilação
mental que a acompanha, passa a se sujeitar à imagens de “homem
corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis” (Romanos
1.23).
Desse modo, a idolatria, mais do que simples submissão a objetos
inanimados ou a deidades impotentes, é, acima de tudo, uma
inversão da ordem do real — uma sublevação da hierarquia da
criação tal como estabelecida pelo Senhor. Em resumo, na idolatria,
o homem passa a adorar aquilo sobre o qual, segundo as diretrizes
bíblicas, deveria dominar. Portanto, mais do que um assunto já
encerrado na história das controvérsias cristãs, o fermento da
idolatria, talvez mais do que nunca, tem levedado a massa da igreja.
O sincretismo moderno, isto é, a tentativa de conciliação dos
pressupostos cristãos e dos pressupostos humanistas, tem se
infiltrado sub-repticiamente mesmo nas comunidades cujos líderes e
membros anseiam por uma existência pautada na Palavra de Deus.
Neste livro, portanto, Stephen Perks, herdeiro da tradição
neocalvinista, em especial do pensamento de Abraham Kuyper,
expõe, de maneira incisiva e pungente, os altos e altares pagãos
perante os quais as igrejas oriundas da Reforma protestante, em
destaque as reformadas, têm inconscientemente se curvado. O
autor lista três elementos idólatras que têm se unido de maneira
parasitológica e, por conseguinte, enfraquecido a igreja
contemporânea: o cientificismo, a concepção de que a ciência, mais
do que um método em busca da verdade, é ela mesma a verdade
derradeira, uma estrutura capaz de fornecer sentido ao todo da
realidade; a pedagogia humanista, que além de partir da concepção
lockeana da criança como “folha em branco” ou “tábula rasa”, não
levando em conta assim a doutrina do pecado original, concebe o
aluno a partir somente de um aspecto — isto é, o cidadão a serviço
do Estado —, transformando a escola em centro de doutrinação da
religião humanista; e, por fim, o Estado como o novo deus, aquele
do qual dependem nossas vidas e bem-estar. Em última análise, o
ídolo do Estado é talvez o mais ofensivo à glória de Deus.
Primeiramente, porque é ele quem institui o cientificismo e o
humanismo como seus sacerdotes, os arautos que anunciam o
monstro sagrado, o Estado—Behemot. Em segundo lugar, devido às
suas tentativas, cada vez mais ousadas, de dominar sobre a igreja
de Cristo por meio de estratagemas e ações políticas cujo intuito é o
enfraquecimento eclesiástico (sendo a taxação sobre as igrejas o
artifício mais evidente).
Todavia, o alerta de Perks, longe de ser hiperbólico ou
caricatural, é simplesmente uma constatação de um longo processo
conduzido no Ocidente há tempo considerável. Antero de Quental,
por exemplo, em sua conferência “Causas da decadência dos povos
peninsulares”, proferida no Cassino Lisbonense, em Lisboa, no ano
de 1871, termina sua análise das forças políticas e espirituais que
culminaram no exaurimento dos povos ibéricos com uma espécie de
epifania, ou epitáfio, que, no século seguinte, estaria no núcleo de
todos os movimentos e ideologias de massa: “O cristianismo foi a
revolução do mundo antigo: a revolução não é mais do que o
cristianismo do mundo moderno”.
Ora, o filósofo político Eric Voegelin, em seus estudos sobre a
ordem, percebera que os movimentos ideológicos são uma espécie
de apostasia, ou antes, heresias oriundas do próprio seio do
cristianismo. Por trás de todas as ações revolucionárias, jazia uma
raiz e uma escatologia cristãs — todas, sem exceção, marcadas
pela imanentização do eschaton, a tentativa de criação do paraíso
ou do milênio nesta terra, por meio do esforço e engenho humanos.
Para alcançar tal fim, é necessária uma força centralizada e
concreta agindo sobre a sociedade numa hierarquia vertical, de
cima para baixo, estendendo-se gradualmente sobre as esferas da
sociedade — dito de outro modo, a revolução.
A civilização ocidental, como já observara Rousas John
Rushdoony, até hoje se encontra dilacerada entre duas perspectivas
antagônicas. Por um lado, partindo de uma antropologia pelagiana,
isto é, crendo que a bondade e inocência são atributos inerentes à
natureza humana, e concebendo a sociedade em termos de um
“contrato social”, um conjunto de convenções artificialmente criadas
e sustentadas, o homem de Rousseau acredita que a origem do mal
se encontra nas instituições em si mesmas, sendo a hipocrisia e a
ganância suas próprias engrenagens. Ao passo que a salvação, por
assim dizer, está na vontade geral, a súmula do beneplácito de
todos os homens. Parte considerável do atual consenso acerca do
conceito de democracia reside, pois, nessa perspectiva. Por outro
lado, partindo da concepção de Hegel do Estado como a
manifestação perfeita do Geist, o Espírito que se desvela
imanentemente na história, alguns homens entendem que o Estado
— Erden-Götter, deus na terra, segundo Kant — é a única agência
capaz de levar a cabo o processo dialético que abarca o próprio
homem; dito de outro modo, o Estado é não apenas o novo Moisés
que conduz o povo pelo deserto da anarquia rumo à nova Canaã
que mana lei e ordem, mas o próprio Messias que veio para salvar o
homem, o qual, deixado a si mesmo, se perde ou se destrói no ermo
de sua liberdade. Esta é a perspectiva daqueles que entendem que
a centralização estatal e a nivelação (para não dizer uniformização)
de todos os seus cidadãos promovida por meio da ação política é o
único modo de se promover o progresso, vale dizer: o Estado sem
as contradições próprias do movimento dialético da história.
Países socialistas como a Coreia do Norte, que entende que
todos os cidadãos devem usar o mesmo modelo de sapato como
promoção da igualdade, ou Cuba, onde o Estado detém cerca de
40% dos imóveis, possuem, em seu âmago, a ideia religiosa do
Estado como um deus preexistente — e por isso lógica e
cronologicamente anterior ao homem —, ao qual os cidadãos (visto
como súditos) devem dedicar suas existências.
Todavia, a visão apresentada pelas Escrituras difere nos
seguintes aspectos: em primeiro lugar, conforme o relato de
Gênesis nos mostra, a família é a instituição primordial estabelecida
por Deus e é com ela que Deus institui seu pacto (Adão e sua
família; Sete e seus descendentes; Noé, sua esposa, filhos e noras;
Davi e sua casa real, etc.), de maneira que é um equívoco lógico,
cronológico e teológico afirmar que o Estado antecede e, destarte,
precede a família; em segundo lugar, diferentemente da família, que
é pré-lapsariana (isto é, instituída antes da Queda), o Estado é uma
instituição pós-lapsariana, um modo, providenciado pelo próprio
Deus, de refrear a maldade mediante a punição do criminoso. De
maneira que é correto afirmar que, não fosse a Queda, o Estado tal
como conhecemos não existiria. Kuyper, por exemplo, se aventura a
dizer que caso Adão permanecesse em obediência, teríamos, hoje,
uma espécie de Império, o qual se estenderia por toda a terra,
sendo regido por um patriarca.
Ao Estado, portanto, Deus atribuiu a função punitiva, para a qual se
vale do poder coercitivo (a espada) e a função de reconhecimento
do mérito (cf. Romanos 13). Nas ações louváveis exaltadas pelo
Estado, este simplesmente empresta força legal àquilo que já é
jurídica e moralmente reconhecido, exempli gratia, cidadãos que se
sacrificaram pelo bem-comum ou por outrem: soldados, bombeiros
ou civis que realizaram atos heroicos. Desse modo, segundo as
Escrituras, o papel do Estado se limita a essas duas funções.
Entretanto, conforme Perks demonstra, atualmente, com a
ênfase cada vez menor na doutrina da soberania de Deus (a qual é,
lamentavelmente, evitada mesmo nos púlpitos de grande parte de
igrejas ditas reformadas), o coração humano, idólatra e corrompido,
transfere a soberania e a predestinação divinas para o Estado.
Desse modo, o Estado torna-se o predestinador da sociedade — a
engenharia social substituindo a eleição divina. Todavia,
diferentemente da soberania de Deus, que manifesta ora sua
misericórdia (para com os eleitos), ora sua justiça (para com os não
eleitos), o Estado onipotente manifesta somente sua tirania ou sua
leniência. De fato, os Estados modernos, incapazes de conciliar
simultaneamente os atributos divinos da justiça e da misericórdia,
dividem-se, numa espécie de marcionismo político, em Estados
sangrentos e autoritários (sendo a ideia do Califado universal
islâmico o exemplo mais paradigmático desse Estado-Moloque) ou
em Estados lenientes e laxistas (e, por isso, injustos), os quais, no
afã masoquista de exercer punição a si mesmo, simplesmente se
entrega de maneira sacrificial ao esfacelamento do multiculturalismo
e à tortura do terrorismo.
Não apenas isto, mas pensadores modernos elaboram
mesmo uma soteriologia estatal — não raro ouvimos que o cárcere
visa a regeneração do prisioneiro; que o assistencialismo estatal
tem como objetivo salvar os pobres da miséria; ou ainda que as
ações afirmativas buscam expiar a dívida histórica, livrando assim a
sociedade de suas culpas passadas. Muitas comunidades, ao
instituírem os altos do humanismo, do cientificismo ou do estatismo
em vez do altar de pedras rudes mas sólidas das Escrituras, estão
se curvando, ainda que inconscientemente, perante Baal. Nossas
orações são para que este livreto, escrito por um profeta que se
recusa a dobrar seus joelhos perante os Baals modernos, reanime-
nos com o grito e a certeza de que “só o S é Deus”.

Post Tenebras Lux — Fabrício Tavares de Moraes Londres,


julho de 2016
I
Quando lemos a história dos reis de Judá, narrada em 1 e 2
Reis, muitas vezes nos deparamos com uma afirmação singular,
uma expressão repetida, que caracteriza determinado aspecto da
atuação de certos reis descritos como bons governantes. Todavia,
essa fórmula singular descreve um aspecto de seus reinados que
fica sempre aquém do elogio atribuído antes a esses reis, que
“fizeram o que era reto perante o Senhor”. O refrão se dá segundo a
ordem: após apresentar o nome do rei, o nome de sua mãe e relatar
seus atos justos perante o Senhor, nos é dito: “Todavia, os altos não
se tiraram”.
Essa sequência é visível quando lemos a respeito de Asa, por
exemplo: “No vigésimo ano de Jeroboão, rei de Israel, começou Asa
a reinar sobre Judá. Quarenta e um anos reinou em Jerusalém. Era
o nome de sua mãe Maaca, filha de Absalão. Asa fez o que era reto
perante o S , como Davi, seu pai. Porque tirou da terra os
prostitutos cultuais e removeu todos os ídolos que seus pais
fizeram; e até a Maaca, sua mãe, depôs da dignidade de rainha-
mãe, porquanto ela havia feito ao poste-ídolo uma abominável
imagem; pois Asa destruiu essa imagem e a queimou no vale de
Cedrom; os altos, porém, não foram tirados; todavia, o coração de
Asa foi, todos os seus dias, totalmente do S ” (1Rs 15.9-14).
De semelhante modo, lemos acerca de Josafá: “E Josafá, filho de
Asa, começou a reinar sobre Judá no quarto ano de Acabe, rei de
Israel. Era Josafá da idade de trinta e cinco anos quando começou a
reinar; e vinte e cinco anos reinou em Jerusalém. Sua mãe se
chamava Azuba, filha de Sili. Ele andou em todos os caminhos de
Asa, seu pai; não se desviou deles e fez o que era reto perante o
S . Todavia, os altos não se tiraram; neles, o povo ainda
sacrificava e queimava incenso (1Rs 22.41-43).
Deparamo-nos com essa mesma sentença na descrição do reino de
Joás, que fez o que era reto perante o Senhor enquanto esteve sob
a instrução de Joiada, o sacerdote: “No ano sétimo de Jeú, começou
Joás a reinar e quarenta anos reinou em Jerusalém. Era o nome de
sua mãe Zíbia, de Berseba. Fez Joás o que era reto perante o
S , todos os dias em que o sacerdote Joiada o dirigia. Tão
somente os altos não se tiraram; e o povo ainda sacrificava e
queimava incenso nos altos” (2Rs 12.1-3); também nas descrições
do reinado de Amazias (2Rs 14.1-4), que fez o que era reto perante
o Senhor, não, porém, com inteireza de coração (2Cr 25.2), Azarias
(Uzias) (2Rs 15.1-4), e Jotão (2Rs 15.32-35). E, então, temos Acaz,
que não fez o que era reto perante o Senhor, seguindo os reis de
Israel, e “até queimou a seu filho como sacrifício, segundo as
abominações dos gentios, que o S lançara de diante dos
filhos de Israel” (2Rs 16.3). Após o reinado de Acaz, seguiu-se a
reforma do rei Ezequias, que, conforme nos é dito, não apenas fez
“o que era reto perante o S , segundo tudo o que fizera Davi,
seu pai”, mas também “removeu os altos, quebrou as colunas e
deitou abaixo o poste-ídolo; e fez em pedaços a serpente de bronze
que Moisés fizera, porque até àquele dia os filhos de Israel lhe
queimavam incenso” (2Rs 18.1-5). Em seguida, apresenta-se um
relato fervoroso sobre seu zelo pelo Senhor.
Ora, o que temos perante nós? Seis reis de Judá serviram ao
Senhor, mas não removeram os altos, sendo sucedidos por um rei
(Acaz) que se desviou por completo do Senhor! Como é possível
que os reis descritos como governantes que fizeram o que era reto
perante o Senhor, tenham deixado de condenar os falsos cultos e
não removeram os altos em que eles eram praticados? Como é
possível que esses reis tenham sido indulgentes, ou pelo menos
tenham fingido não perceber os rituais e sacrifícios contrários à
verdadeira religião revelada ao povo de Israel?
A resposta para essa indagação é que, naquele tempo, praticava-se
uma forma de religião sincrética em Judá e Israel, um culto híbrido a
Iavé-Baal. O povo cria que, ao adorar nos altos e realizar os
sacrifícios e as atividades cultuais acima descritas, adoravam da
forma correta o verdadeiro Deus de Israel. Em suma, as pessoas
não tinham consciência de que sua adoração se encontrava de todo
corrompida. Praticavam uma forma cultual abominável ao Senhor,
mas criam que lhe era aceitável. O povo de Israel estava envolvido
em uma forma gravíssima de sincretismo religioso em que os
antigos cultos de fertilidade de Canaã se fundiram ao culto a Iavé.
Embora os filhos de Israel tenham se voltado para o culto dos
deuses canaanitas não muito tempo depois da conquista da terra no
tempo dos Juízes, o problema com o qual nos deparamos nos livros
de 1 e 2 Reis aparentemente teve origem na apostasia de Salomão
(1Rs 11.1ss.), que “seguiu a Astarote, a deusa dos sidônios, e a
Milcom, abominação dos amonitas” (v. 5), e que, de semelhante
modo, edificou “um santuário a Quemos, abominação de Moabe,
[…] e a Moloque, abominação dos filhos de Amom” (v. 7), destruído
apenas no reinado de Josias (2Rs 22.13ss.). Astarote,[1] a principal
divindade feminina dos canaanitas, era a deusa da fertilidade e
morte/guerra, associada a Baal (Jz 2.13; 3.7; 6.28), a principal
divindade masculina de Canaã,[2] embora o plural do termo, baalim,
fosse geralmente usado para se referir a falsos deuses.[3] Por sua
vez, Quemos era o deus dos moabitas (Nm 21.29; Jz 11.24), cujo
rito provavelmente incluía sacrifícios humanos (2Rs 2.27).[4] Ora, os
altos eram locais de ritos religiosos pagãos dos canaanitas,
normalmente construídos em colinas perto de árvores frondosas,
consistindo em altares em plataformas elevadas para o
oferecimento de sacrifícios, incenso etc., ao ar livre ou no interior de
edifícios.[5]
Após a morte de Salomão, seu filho Roboão reinou em Judá, ao
passo que Jeroboão reinou em Israel. Os dois reis foram ímpios.
Jeroboão erigiu ídolos, bezerros de ouro, em Betel e Dã, na
tentativa de substituir o templo de Jerusalém por outros locais de
adoração para as dez tribos (1Rs 12.28,29). Mas sob o governo de
Roboão, o povo de Judá também se desviou do Senhor e seguiu o
caminho legado por Salomão em sua idolatria: Roboão, filho de
Salomão, reinou em Judá; de quarenta e um anos de idade era Roboão
quando começou a reinar e reinou dezessete anos em Jerusalém, na cidade
que o S escolhera de todas as tribos de Israel, para estabelecer ali o
seu nome. Naamá era o nome de sua mãe, amonita. Fez Judá o que era mau
perante o S ; e, com os pecados que cometeu, o provocou a zelo, mais
do que fizeram os seus pais. Porque também os de Judá edificaram altos,
estátuas, colunas e postes-ídolos no alto de todos os elevados outeiros e
debaixo de todas as árvores verdes. Havia também na terra prostitutos
cultuais; fizeram segundo todas as coisas abomináveis das nações que o
S expulsara de diante dos filhos de Israel. (1Rs 14.21-24) Por fim, o
exemplo de Salomão se entranhou em Judá no reinado de Roboão,
seu filho. O resultado disto foi que o culto de Iavé se confundiu, ou,
antes, se fundiu, com a religião dos canaanitas praticadas nos altos;
de maneira que essa religião sincrética se tornou a tal ponto
dominante que mesmo mais tarde, quando outros reis se voltaram
ao Senhor e buscaram servi-lo com fidelidade, eles se tornaram
incapazes de reconhecer a corrupção da adoração nos altos — ou,
pelo menos, se compreendiam isso, a corrupção havia se arraigado
de modo tão profundo nas pessoas, que os reis fiéis se viram
incapazes de extirpá-la da terra.[6]
O termo baal significa “mestre” ou “senhor”.[7] Aparentemente, na
atmosfera gerada pela apostasia de Salomão e a de seu filho,
Roboão, o povo mais uma vez se equivocou ao identificar Iavé, seu
Deus, como seu Baal, confundindo, portanto, o culto dele com o
culto dos baalins canaanitas, como fizera na época dos Juízes. Ora,
no clima de religião popular dominante em sua vida, era improvável
que o povo distinguisse com nitidez Iavé e Baal. Para eles, o culto a
Baal era o culto a Iavé, e vice-versa. A forma sincrética da religião
tornou-se, então, predominante.
Os profetas repreenderam o povo por causa da idolatria.
Oséias, por exemplo, após denunciar o povo pela idolatria aos
baalins, proclamou a salvação provida pelo Senhor e disse:
“Naquele dia, diz o S , ela me chamará: Meu marido [ishi] e já
não me chamará: Meu Baal [isto é, “meu senhor”]. Da sua boca
tirarei os nomes dos baalins, e não mais se lembrará desses nomes”
(Os 2.16,17). Não obstante, a despeito das repreensões dos
profetas, os filhos de Israel persistiam nas práticas religiosas
sincréticas e, devido a elas, Deus os entregou a seus inimigos. No
fim do século VIII a.C., as dez tribos do Reino do Norte de Israel
foram levadas cativas para a Assíria, e suas terras, ocupadas por
povos estrangeiros (2Rs 17.9-24). Mais tarde, no princípio do século
VI a.C., o povo de Judá também foi levado cativo pelos caldeus e
exilado na Babilônia, como o profeta Jeremias havia advertido (Jr
32.26-44; esp., v. 29,30,35). A cidade de Jerusalém e o templo
foram, por fim, destruídos em 586 a.C., pelo exército de
Nabucodonosor.
1. A

Ora, talvez nos surpreendam: a incapacidade do povo de


Israel em reconhecer sua idolatria, a queda no estado em que
genuinamente acreditavam adorar a Deus mediante práticas rituais
canaanitas nos altos, e o fato de reis piedosos buscarem fazer o que
era reto perante o Senhor serem incapazes de fazer algo em
relação a essas práticas, o que nos leva a acreditar que talvez eles
mesmos não reconhecessem a totalidade do problema. Parece-nos
tão óbvio que a idolatria contraria o verdadeiro culto de Deus,
embora a maioria do povo de Israel não pensasse assim na época.
E, na verdade, devemos parar e pensar antes de apontarmos o
dedo, e nos indagarmos se também não somos culpados de
transigências tão graves como essas do povo israelita a nosso
próprio modo e nos nossos dias. Com efeito, devemos nos
perguntar se, dada a revelação mais profunda hoje, quando
comparada a eles, nossas transigências não são, de fato, pecados
mais graves. O fato é que reconhecemos os ídolos e pecados das
eras passadas e de outras culturas com mais prontidão que os
pecados da nossa época e cultura. Eis a razão do caráter tão nocivo
do sincretismo.
Falhamos ao reconhecer em essência esse fato. Agimos assim por
estarmos tão inconscientemente comprometidos com a cosmovisão
característica da nossa sociedade, que produz a religião idólatra.
Ora, isso é tão verdadeiro para nós quanto para os antigos
israelitas. No entanto, é muito leviano nos congratularmos ao
atacarmos e abominarmos os ídolos das épocas passadas e outras
culturas, em especial quando não reconhecemos e confrontamos os
ídolos da nossa época e cultura. Na verdade, atacar ídolos antigos
não beneficiará em nada nossa vida cristã. Devemos, antes, lidar
com as transigências que afetam nossa cultura e sociedade, e,
também, nossa vida.
Este é o ponto do estudo sobre esse período da história de Israel.
As Escrituras nos foram dadas para que aprendamos com elas. Não
pense que o sincretismo, tão pernicioso demonstrado na história dos
reis de Israel, já tenha sido superado pela igreja hoje — infelizmente
não. O sincretismo com a falsa religião é atualmente um problema
para os cristãos ocidentais, como o foi para os israelitas no Antigo
Testamento (AT). O catolicismo romano, por exemplo, é uma religião
sincrética, uma fusão de crenças cristãs e pagãs. Quem adere a ela
crê genuinamente adorar e servir a Deus com fidelidade ao segui-la,
por exemplo, recorrendo a Maria e aos santos etc. Essas pessoas
compraram a cosmovisão validadora dessas práticas — em geral de
modo inconsciente, como resultado da assimilação desde a tenra
infância. Toda vez que se deparam com argumentos contra as
práticas, são capazes de explicar e justificar a si mesmas suas
crenças e atos, com base em sua cosmovisão — e o podem fazer
porque sua cosmovisão é mais importante, basilar e vital para a
própria vida, queiram ou não, que qualquer argumento contra a fé
católica romana ou alguma de suas doutrinas particulares. Essa fé
forma um complexo de afirmações e pressuposições constituintes
da base de todo o pensamento teórico e não teórico, e valida seu
completo entendimento do sentido da vida, fornecendo o
fundamento de toda a argumentação. Evidentemente, é possível
que eles estejam absolutamente inconscientes do papel basilar
exercido por sua cosmovisão na maneira como pensam sobre a fé e
a vida de modo geral; na verdade, inconscientes mesmo quanto ao
próprio conceito de cosmovisão. Isso, todavia, não importa. A falta
do entendimento implica apenas que a cosmovisão em que se
baseiam filtrará com mais eficácia qualquer desafio a seu
entendimento da fé cristã.
Ora, não sou católico, nem pretendo lidar com o catolicismo
romano aqui. Antes, quero lidar com a forma prevalente da idolatria
protestante. Assim, mencionei o catolicismo romano só pelo fato de
ser um exemplo de sincretismo que os protestantes provavelmente
são capazes de compreender. A maior parte dos protestantes, pelo
menos nos círculos reformados e evangélicos, concordará que a
religião católica combina elementos do cristianismo e do paganismo.
Todavia, é preciso admitir a existência do mesmo tipo de problema
entre os cristãos protestantes, reformados e evangélicos, hoje no
Ocidente, uma vez que, de modo semelhante aos antigos israelitas
e católicos, assimilamos, desde a tenra infância, uma cosmovisão,
fundamentalmente e em princípio, contrária à fé cristã. Por
conseguinte, interpretamos a fé de maneira a moldá-la a essa
cosmovisão, distorcendo-a no processo. Ocorre o mesmo processo
de racionalização, e assim se dá, pois normalmente nos olvidamos
da influência da cosmovisão sobre o entendimento da fé. Quanto
menos conscientes estamos da importância exercida pela
cosmovisão no entendimento da fé e da vida em geral, mais efetivas
serão a legitimação e racionalização da idolatria — o sincretismo da
fé cristã com crenças e práticas contrárias ao evangelho. Como
consequência, fracassaremos em confrontar nossos ídolos. Esses,
de fato, existem no mundo evangélico e reformado, e o mesmo
processo de racionalização que se dá quando os católicos (ou os
antigos israelitas) são confrontados com seus ídolos também opera
no meio dos protestantes. Não há diferença nos processos de
acomodação e sincretismo; apenas os ídolos diferem.
De semelhante modo, não parece óbvio aos católicos que os
dogmas de sua tradição são sincréticos ou se encontram ligados à
corrupção da verdadeira fé e do culto genuíno a Deus. Da mesma
forma, isso também não parecia óbvio aos antigos israelitas, isto é,
os que se encontravam envolvidos na corrupção do verdadeiro culto
a Iavé. Assim, da mesma forma, não são evidentes aos evangélicos
os momentos em que se encontram envolvidos em idolatria. Hoje,
os evangélicos ocidentais modernos não raro se encontram tão
relutantes em confrontar a própria idolatria quanto os antigos
israelitas e os católicos — e creio que, hoje em dia, o
evangelicalismo moderno está haurindo as profundas águas do
poço da idolatria sincretista.
É possível que os cristãos evangélicos modernos se escandalizem
com a sugestão de que o evangelicalismo seja uma corrupção da fé,
uma religião sincrética na qual eles creem servir ao verdadeiro Deus
ao mesmo tempo em que se encontram profundamente envolvidos
com a idolatria. Contudo, é essa minha argumentação exata; de
modo semelhante, o humanismo secular é a religião pagã à qual me
refiro. Suspeito que, ao ouvir isso, a maioria dos evangélicos, na
verdade a maioria dos cristãos, pense que meu ponto se trata de
uma hipérbole, ou mesmo um exagero grosseiro. Todavia, não creio
que o seja. Os cristãos, com efeito, se tornaram muito indiferentes
em relação ao humanismo secular, e não o levam mais a sério que a
ideia do diabo com chifres e tridente — na realidade, levam menos a
sério que essa ideia. Entretanto, este é justamente meu ponto: não
se concebe o humanismo secular como religião pagã. No entanto,
trata-se, sim, de uma religião, e a religião que governa a maior parte
de nossas vidas, de maneira que os evangélicos se encontram tão
comprometidos com a maioria de suas premissas quanto os
descrentes, pois compreendem a religião cristã com base na
definição provida pelo humanismo secular, isto é, um sistema de
crenças relevante apenas para uma área bastante limitada da vida.
Com efeito, o comprometimento evangélico com o humanismo
secular é, por sua vez, tão maléfico quanto o comprometimento
romanista com o paganismo e comprometimento israelita com os
cultos de fertilidade canaanitas — e essa forma de sincretismo é tão
sutil, talvez mais sutil e subliminar que as outras; assim se torna
ainda mais pérfida. Os evangélicos, e aqui incluo os reformados, se
encontram convencidos de que só eles possuem a verdade, toda a
verdade e nada mais que a verdade: apenas eles conhecem e
compreendem o evangelho. Foram convertidos de modo total a seus
grupos, mas as pessoas mais arredias à conversão são as
absolutamente convencidas de já serem convertidas.
Reconheço que, em algumas áreas, o evangelicalismo moderno
possui a compreensão suficiente de alguns elementos do evangelho
— e, de modo algum, afirmo aqui que os evangélicos não são
cristãos, pelo fato de o evangelicalismo ser uma forma corrompida
da fé, do mesmo modo que não afirmaria que os católicos romanos
não são cristãos apenas porque o romanismo é uma forma
corrompida da fé.
No entanto, o entendimento evangélico da fé se encontra limitado a
uma estreita área da vida no que toca a certos aspectos —
principalmente da soteriologia — e esse é o problema. O
evangelicalismo moderno, com efeito, tem um entendimento
considerável de alguns dos elementos da fé cristã.
Porém, há uma falha em reconhecer a necessidade de uma vida
transformada, exceto em algumas circunstâncias. Quase a
totalidade do evangelicalismo gira em torno da vida devocional do
indivíduo (isto é, “o momento com Deus”) e da vida eclesiástica.
Assim, quando determinado sujeito se converte, são essas áreas
nas quais a transformação se dá, ao passo que ele pode prosseguir
com o resto de sua vida de modo bastante semelhante a como vivia
antes da conversão, a não ser talvez que, antes, vivesse do
comércio de pornografia ou do tráfico de drogas. O evangelicalismo
é muito dualista no entendimento da fé, de modo que o indivíduo
pode ser um bom evangélico e, ao mesmo tempo, um adepto
convicto dos ideais do humanismo secular na maior parte das outras
áreas — defendendo até mesmo das manifestações mais
depravadas do humanismo (por exemplo, socialismo, evolucionismo
e, surpreendentemente, mesmo o aborto!) —, sem se dar conta da
contradição fundamental entre a fé cristã e o humanismo secular. É
possível que alguém seja um evangélico comprometido com sua
igreja e, ao mesmo tempo, um humanista secular ativo.
Lastimavelmente, esse problema raras vezes é compreendido, e
muito menos abordado, nas igrejas e na literatura evangélicas.
2. A

A fim de ilustrar meu ponto, mencionarei três áreas da vida


em que o humanismo secular exerce impacto significativo no
entendimento da fé cristã. Com efeito, é possível afirmar que,
provavelmente, a maior parte dos evangélicos na Grã-Bretanha siga
hoje a religião do humanismo secular na quase totalidade da vida.
Para eles, o cristianismo é apenas um ritual, seu hobby litúrgico
pessoal. Com base em seu entendimento da vida além das paredes
da igreja e dos assuntos relacionados de forma particular ao
ministério eclesiástico — isto é, as questões “espirituais” —, o
humanismo secular é a religião predominante em sua existência.
Ora, eles vivem, se movem e existem nos termos do humanismo
secular.
a. Evolução e ciência
A primeira área que pretendo discutir é a ciência e, de modo
especial, a evolução. Tenho conhecimento de que o mundo
evangélico se encontra dividido no tocante ao assunto da evolução.
Embora um grupo considerável de evangélicos seja evolucionista,
outra parte também considerável não o é; de modo semelhante, sei
do esforço conjunto da parte de muitos evangélicos para combater
os efeitos da teoria evolucionária. Não obstante, há dois pontos que
precisamos assinalar sobre isso — e o que direi ultrapassa em
especial a teoria da evolução.
Em primeiro lugar, não é verdade que todos os evangélicos
— mesmo os conservadores — rejeitam a teoria da evolução. Vários
evangélicos julgam inaceitável a falta de respeitabilidade intelectual
entres os humanistas seculares resultante da rejeição da teoria da
evolução. Creem que podem ser fiéis às Escrituras e, ao mesmo
tempo, aceitar as descobertas da “ciência” — ou, antes, o que os
humanistas seculares afirmam ser descobertas da ciência (a
evolução, é claro, não é teoria científica; é uma religião definida e
defendida pela fé, não pelos fatos, embora seja aceita de modo
geral por descrentes e vários evangélicos como teoria científica).
Por conseguinte, o “teísmo evolucionista” — uma religião híbrida,
como nenhuma outra — é hoje bastante comum entre os
evangélicos.
Em segundo lugar, há, todavia, mais do que a observação
superficial pode inicialmente julgar, pois os pressupostos que
sustentam o comprometimento com o humanismo secular são,
muitas vezes, aceitos até pelos cristãos que rejeitam de forma
específica a teoria da evolução [a biogênese]. Os criacionistas não
raro aceitam premissas e pressupostos epistemológicos sobre os
quais a teoria da evolução se assenta, e isso significa,
lastimavelmente, o combate dos evolucionistas de acordo com os
termos deles. A concepção humanista secular sobre a “ciência”
estabelece os termos da condescendência e as regras do debate,
ambos seguidos de maneira inconsciente pelos criacionistas
inconscientes. Entretanto, trata-se de uma batalha que os
criacionistas jamais vencerão nessas circunstâncias. Mas o que
quero dizer com isso?
A premissa subjacente à grande parte da literatura e debate
criacionistas é a neutralidade do método científico, concebida e
articulada pelo establishment científico humanista. Em outras
palavras, a premissa do argumento criacionista é a mesma que
subjaz ao argumento evolucionista, a saber, a neutralidade dos
fatos, a ideia de que os fatos falam por si mesmos e que, tão logo
todos os fatos estejam disponíveis, as pessoas racionais aceitarão a
evidência apresentada por eles. Portanto, a fim de montar a
argumentação contra a evolução basta acumular evidências
suficientes a favor da posição criacionista e, assim, as pessoas a
reconhecerão como verdadeira. Por quê? Devido ao fato de a
“ciência” — isto é, o conhecimento adquirido por meio do processo
científico — explicar todas as coisas com correção. Dito de outro
modo: a razão humana autônoma (divorciada do pressuposto de a
totalidade do cosmo encontrar sentido no ato criativo do Deus das
Escrituras sagradas) é capaz de explicar a totalidade da existência.
Não me refiro aqui às crenças criacionistas sobre a criação, mas,
sim, à aceitação do conceito humanista secular da neutralidade do
método científico. Ao aceitá-lo, os criacionistas apenas tentam
derrotar os humanistas seculares em seu jogo: a ciência autônoma,
que se supõe ser neutra em sentido religioso.
Isso, todavia, é uma ingenuidade, pois a ciência não explica
todas as coisas. Com efeito, a ciência não explica nada à parte do
conjunto de pressupostos religiosos que fornece o contexto e o
sentido para a compreensão dos fatos por parte do cientista. O
debate entre evolução e criação não se configura como o debate
entre fato e fé; na realidade, trata-se do debate entre dois sistemas
de crença antagônicos sobre a interpretação dos fatos. Abraham
Kuyper assinalou essa importante verdade do seguinte modo:
Portanto, nem a fé nem a ciência, mas dois sistemas científicos, ou se preferir,
duas elaborações científicas se contrapõem, cada uma com a própria crença.
Tampouco se pode afirmar aqui que a ciência se opõe à teologia, pois existem
aqui duas formas absolutas de ciência, e ambas alegam deter o domínio do
conhecimento humano, e apresentam conceitos próprios sobre o Ser supremo
como ponto de partida para sua cosmovisão.[8]
Isso, todavia, não é óbvio a partir do debate evolução/criação. De
fato, há na atualidade dois tipos de “criacionistas científicos” que
não embasam suas abordagens no testemunho das Escrituras,
antes, de forma explícita, afirmam lidar com o tema pelos méritos da
própria hipótese “científica”. Essa atitude é, em si mesma, fútil, visto
que, na realidade, o que está em jogo não é o esforço para
estabelecer o debate com base no fato bruto e científico, mas, sim,
a capitulação aos pressupostos religiosos do humanismo secular.
Ora, os fatos não falam por si mesmos — eles são sempre
interpretados, expressos por seres humanos por meio de teorias
sobre a natureza e o sentido da vida — algo necessariamente do
âmbito religioso —, e isso vale para humanistas seculares e
cristãos. E na medida em que nosso testemunho se estende aos
descrentes no tocante à criação, as Escrituras não afirmam que
sabemos ter sido o mundo criado por Deus pelo fato de a evidência
assim o demonstrar. De semelhante modo, as Escrituras não nos
ensinam que o método “científico”, concebido pelo humanismo
secular, prova a criação do universo de forma ex nihilo por parte do
Deus da Bíblia. Ao contrário, a Palavra de Deus nos informa que
pela fé sabemos que os mundos foram criados (Hb 11.3). Ou seja, a
fé consiste no fundamento do verdadeiro conhecimento; portanto, de
modo independente do volume de evidências apresentáveis aos
descrentes, eles não aceitarão a posição criacionista, pois sempre
encontrarão uma razão para rejeitá-la. Sua fé (isto é, a negação da
existência do Deus da Bíblia, e seu comprometimento em interpretar
todas as coisas com base nessa negação) implica na
impossibilidade de aceitar os “fatos” dispostos pelos criacionistas —
de forma mais específica: a interpretação dos fatos pelos
criacionistas — sem se converter antes à fé cristã. Enquanto
permanecerem no pecado, os descrentes sempre interpretarão os
fatos de maneira diferente. Afinal, o pecado original afeta dessa
forma seu raciocínio acerca do mundo.
Parte considerável da abordagem criacionista presume a
legitimidade dos pressupostos humanistas seculares quanto à
constituição do método científico apropriado, de modo mais
específico do conceito da possibilidade de verificar a verdade
mediante o exame de fatos com base em princípios racionais
neutros (autônomos), sem a referência ao Deus criador do cosmo, e
cuja interpretação definitiva dos fatos é essencial para sua correta
apreensão. Todavia, o humanismo secular é uma religião. Isso
significa que há uma falha na compreensão da importância da fé
para o empreendimento científico. A concepção humanista do
método científico presume que os fatos, interpretados sem
referência a Deus — ou seja, o conhecimento concebido pelo
raciocínio humano autônomo —, devem constituir o fundamento da
fé; a fé, por exemplo, na crença na criação ex nihilo por parte do
Deus da Bíblia. Entretanto, a Escritura postula o oposto, ao ensinar
que a fé consiste no fundamento do conhecimento (Hb 11.3): “O
temor do S é o princípio da sabedoria” (Pv 1.7). A teoria
humanista secular sobre a ciência é a própria essência do pecado
original — ou seja, a ideia de que o homem determina por si mesmo
a constituição da verdade sem fazer referência a Deus e à sua
Palavra. Ora, seguir esse método é loucura para os cristãos.
Meu propósito aqui não é criticar a doutrina bíblica da
Criação. Não obstante, sou crítico do método epistemológico
utilizado com frequência pelos criacionistas, já que a princípio ele
entrega todos os pontos aos humanistas seculares antes mesmo da
discussão dos “fatos”. A questão versa sobre como sabemos o que
sabemos — a teoria do conhecimento; enquanto os cristãos forem
induzidos ao erro a respeito da teoria do conhecimento cristã e
adequada, eles permanecerão subjugados no debate
evolução/criação, e, no debate, não conseguirão — embora não de
forma intencional, é claro — render toda a glória a Deus.
Todavia, o problema não se limita ao debate
evolução/criação. Enquanto os cristãos aceitarem essa teoria do
conhecimento humanista e falsa, como sempre ocorre, as demais
áreas do conhecimento serão afetadas, áreas menos relacionadas
de modo direto às questões da crença cristã, embora não sejam
menos importantes para a prática da vida cristã. Isso nos leva ao
segundo exemplo da condescendência do meio evangélico com o
humanismo secular.
b. Educação

A condescendência do meio evangélico com a educação


humanista secular talvez seja o aspecto mais grave. Há três razões
para ela: primeira, a educação secular atua nos termos do mesmo
pressuposto religioso subjacente à teoria da evolução e das demais
ciências humanistas seculares, a saber: a crença na existência do
mundo e a possibilidade de compreendê-lo sem Deus e seu ato
criativo como fonte de significado. Esse pressuposto religioso
significa, em princípio, a negação do Deus da Bíblia e a afirmação
da autonomia humana. Eis o pressuposto do cerne do pecado
original e subjacente a todas as áreas do humanismo secular: a
crença que o homem pode determinar para si mesmo o que constitui
a verdade à parte da Palavra divina. Por conseguinte, o humanismo
secular é uma religião que, de forma direta e fundamental, contradiz
a fé cristã. A educação secular em todas as disciplinas procede com
base nesse pressuposto religioso.
Evidentemente, os humanistas seculares podem aceitar
perfeitamente a validade da pergunta: “Deus existe?”. De
semelhante modo, podem estar preparados para investigar a
possibilidade da existência divina e, até mesmo, afirmar que estão
preparados para aceitar sua existência, caso seja provada. Assim,
pode parecer que o humanismo secular não é, em princípio,
contrário à fé cristã, e que está preparado para dar ouvidos ao
cristianismo. No entanto, esse argumento não pode nos induzir ao
erro, pois se baseia na crença na possibilidade de o homem se
engajar no raciocínio neutro, em sentido religioso, a fim de
determinar a verdade. Trata-se de um pressuposto religioso sobre a
natureza do homem e da realidade, que fundamenta a teoria
epistemológica humanista, e que, por sua vez, se encontra no
âmago do pecado original: o desejo de determinar por si mesmo a
verdade, sem referência a Deus e à sua Palavra. Portanto, a própria
questão — “Deus existe?” —, em princípio, nega a existência do
conceito cristão de Deus. Afinal, qualquer Deus objeto dessa
inquirição não pode ser o Deus da Bíblia, apenas um deus criado
pelo próprio homem.
O Deus pressuposto nessa indagação não é o Deus da fé
cristã, por se tratar do Deus que possivelmente[9] não pode não
existir. Apesar de parecer um ponto sutil, trata-se de uma distinção
essencial. Os humanistas seculares talvez aceitem um deus
segundo sua feitura — um deus criado à imagem do homem. Essa
divindade, entretanto, nada mais é que um ídolo, e não o Deus das
Escrituras. Assim, a questão, “Deus existe?”, constitui a negação
fundamental do Deus bíblico, pois Deus é a fonte da possibilidade,
não seu produto. Deus se encontra por trás de todas as coisas
possíveis. Dessa forma, não há possibilidade, mas, sim,
necessidade de sua existência. Nada mais poderia ser possível sem
o Deus da Bíblia. Esse ponto é essencial para nossa compreensão
da realidade, de maneira a configurar um pressuposto absoluto e
necessário da teoria cristã do conhecimento, de toda a ciência
genuína, de todo o conhecimento, em suma.
Porém, essa é a antítese da teoria humanista secular do
conhecimento. As diferenças entre a teoria epistemológica cristã e a
humanista não são assunto de pouca monta, simples discordâncias
sobre o sentido de poucas coisas, interpretações diferentes de
questões sobre as quais não possuímos suficiente evidência para
realizarmos melhores julgamentos. Não se trata também de
discordância apenas em relação a assuntos “espirituais”. A
diferença entre o humanismo secular e o cristianismo é do mais
profundo nível e influencia a totalidade do conhecimento e da vida
dos seres humanos. Os dois sistemas são, como Abraham Kuyper
assinalou, diametralmente opostos: Esses dois […] sistemas […] não são
oponentes relativos, caminhando juntos metade do caminho, e, mais adiante,
suportando um ao outro em paz para escolherem caminhos diferentes, os dois
são sérios na disputa pelo domínio total da vida, e não podem desistir do
esforço constante para lançar ao chão todo o edifício das afirmações de seus
respectivos adversários, incluindo-se todo o fundamento sobre o qual suas
afirmações repousam. Se não tentassem isso, mostrariam, dos dois lados,
que não creem com honestidade em seus pontos de partida, que não são
combatentes sérios, e que não entenderam a exigência primordial da ciência,
que sem dúvida reivindica a unidade de concepção.[10]
Para os cristãos, é, pois, insensatez imaginar poder sujeitar
seus filhos à educação humanista secular sem que isto exerça
profundo impacto em seu entendimento da vida e fé cristãs.
Segunda, o sistema escolar secular (estatal) é responsável — isto é,
afirma ser responsável e exige que seus professores também o
sejam — pelo desenvolvimento intelectual, físico, moral e espiritual
da criança; e o desenvolvimento se dá com base no pressuposto
humanista secular segundo o qual o mundo existe e pode ser
compreendido sem qualquer referência a Deus e sua Palavra. Em
outras palavras, a criança recebe na escola a cosmovisão integral, a
doutrinação completa com base na religião que nega o Deus da
Bíblia. Não é o caso de a criança apenas ter lições de assuntos
específicos do ponto de vista neutro quanto à religião. Na verdade,
embora o humanismo secular afirme ser neutro, essa neutralidade
religiosa é impossível. A educação recebida pela criança na escola
se baseia na religião do humanismo secular — religião que nega o
Deus da Bíblia, em princípios e prática. A socialização das crianças
cristãs na escola da sociedade humanista dificulta, para os pais
cristãos, romper o molde intelectual e espiritual da inserção dos
filhos pelo sistema escolar secular. Afinal, a escola fornece o ethos
total para a compreensão da vida. O Estado reclama para si essas
crianças e as molda, na escola, à sua imagem, negando, por sua
vez, a criação do homem à imagem divina.
Isso não significa que os professores nas escolas estatais
neguem de forma constante e aberta a existência do conceito
cristão de Deus, ou contradigam, com frequência e de modo direto,
a verdade da nossa fé. Essa abordagem não teria sucesso. A
questão não é que os professores se posicionam de forma
deliberada para negar a fé cristã (embora, claro, muitos deles
efetivamente a neguem). Na verdade, o problema se encontra no
nível mais básico: as suposições e os pressupostos da natureza e
do sentido da realidade. Pelo caráter subliminar dessas suposições,
não há necessidade de articulá-las de modo explícito a fim efetivá-
las na moldagem do entendimento alheio. Com efeito, a cosmovisão
opera com mais eficácia no nível dos pressupostos, de maneira
subliminar. Talvez a maioria dos professores jamais pensasse em
articular suas suposições religiosas de modo direto no curso de
matemática, música, línguas ou ciência, por exemplo. Porém,
quando da ministração das disciplinas, o entendimento de cada
professor no tocante a elas será guiado pelas suposições religiosas
(p. ex., as do humanismo secular), operantes abaixo do nível do
pensamento crítico, na maior parte do tempo. Assim, sua efetividade
se deve justamente pelo fato de a negação de Deus se encontrar
nesse nível pré-crítico, subliminar, pelo menos na maioria dos
momentos.
Caso neguemos a fé abertamente aos crentes, eles
desconsiderarão os argumentos contra a existência de Deus que
lhes apresentarmos, ou encontrarão alguma falha neles. Não
obstante, caso consigamos fazer os crentes aceitarem de modo
inadvertido um conjunto de suposições e pressupostos que negam a
fé de forma implícita, e em seguida ensinemos a eles a pensar a
maior parte das áreas da vida com base nessas suposições, então
veremos, como resultado, os crentes negarem, na vida intelectual e
nas ações, o Deus da fé cristã — em todas as áreas que o conflito
passa despercebido. E dada a compreensão muito limitada do
evangelho nos círculos evangélicos, as áreas de atuação dessas
suposições serão extensas. Os crentes se tornarão humanistas
seculares praticantes a despeito da profissão de fé em Cristo como
Salvador de sua alma. De fato, é possível que eles sejam
humanistas seculares consistentes e convictos na quase totalidade
da vida, com exceção das áreas consideradas “espirituais”. Isso só
confirma sua compreensão de fé confinada à esfera limitada e
definida não pela Palavra de Deus, mas pela filosofia e cosmovisão
do humanismo secular, a religião com que esses crentes viverão a
vida na maior parte do tempo.
Aconteceu exatamente isso. Eis a razão pela qual os
evangélicos são geralmente dualistas: eles dividem a realidade em
dois âmbitos: o “espiritual” e o “secular”. Deus é relevante para o
primeiro, mas não para o último. As Escrituras são lidas nos termos
dessa suposição, dessa falsa dicotomia. Portanto, mesmo os
professores de escolas cristãs não estão imunes aos pressupostos
humanistas da vida, de modo que mesmo seus ensinos abraçam,
sem perceber, a cosmovisão humanista secular.
Essa situação é muito danosa, dada a impossibilidade de
submeter uma criança a esse tipo de educação e, ao mesmo tempo,
protegê-la da influência dos pressupostos humanistas. A
cosmovisão dessas crianças será influenciada pela religião do
humanismo secular assimilada na escola. Mais tarde, caso se
tornem cristãs, ainda manterão consigo a forma híbrida de religião,
um cristianismo bastante comprometido com o humanismo secular.
Ora, podemos até matricular as crianças em uma escola da Igreja
da Inglaterra, ou mesmo uma escola particular com o
comprometimento nominal com a fé cristã; é provável que mesmo
essas instituições atuem com base na compreensão dualista da fé,
e, assim, a educação fornecida será humanista secular — baseada
no tipo de cosmovisão adotada e em seu entendimento da vida.
O sistema educacional da Grã-Bretanha, no setor privado e
estatal, está, de forma majoritária e íntima, atrelado à religião do
humanismo secular. Nosso sistema educacional é humanista
secular.
Terceira, o comprometimento cristão com o humanismo
secular no tocante à educação de suas crianças tem um efeito a
longo prazo que enfraquece muito a influência da fé cristã na
sociedade. Enquanto os cristãos permanecerem manietados ao
sistema educacional secular, deixarão um legado sincrético para as
gerações futuras.
Pelo fato de as crianças cristãs assimilarem de maneira
subliminar a cosmovisão do humanismo secular nas escolas, ainda
reforçada pela mídia (televisão etc.) e pela socialização entre seus
pares humanistas, seu sistema imunológico espiritual, por assim
dizer, encontra-se debilitado. Com exceção das questões
especificamente “espirituais”, discutidas em casa ou na igreja, elas
não são capazes de distinguir o cristianismo do humanismo. Na
maioria das circunstâncias, são incapazes de discernir o significado
de ser cristão e distinguir esta posição e a do humanista (como o
antigo israelita não distinguia entre o culto a Iavé e a Baal), uma vez
assimilada a cosmovisão (o humanismo secular) que, por sua vez,
molda seu entendimento da fé cristã em termos de pressupostos
básicos acerca da natureza e do sentido da vida. Dessa forma, são
incapazes de realizar as distinções necessárias. Encontram-se
aprisionados por uma forma de religião híbrida. Caso se
conscientizem da existência desse problema, ainda assim terão de
trabalhar duro para resolvê-lo, isto é, para se libertarem da
cosmovisão humanista secular. Todavia, é provável que jamais
tomem consciência do problema. Por isso o culto a Baal durou tanto
tempo no antigo Israel — ele se arraigou na mentalidade da nação.
As reformas realizadas em Jerusalém pelos sacerdotes e reis
sequer alcançaram o modo como o povo vivia no âmbito local.
Assim é com relação aos evangélicos hoje. As crianças
também permanecem estacadas nesse ponto, como seus pais.
Todavia, a cultura humanista secular não permanece quieta — ela
se move, pressiona, revira de modo incansável o restante das
virtudes cristãs na sociedade, estreitando ainda mais o
entendimento cristão sobre o escopo da fé. Ademais, pelo fato de os
cristãos aceitarem os pressupostos básicos do humanismo secular,
eles se tornam inaptos a resistir às incursões realizadas pelo
humanismo secular no seu modo de pensar, e na sua vida. Como
resultado, a influência da religião cristã declina de forma vertiginosa,
e a paganização da sociedade avança sem restrição. Na sociedade,
a relação entre o crescimento do humanismo secular e o declínio do
cristianismo é inversamente proporcional; e isso pode ser percebido
no “mundo” e também na igreja.
Por conta de sua ascendência, a cosmovisão humanista
domina com mais poder que o establishment e o sistema
educacional. E isso me leva ao último exemplo de sincretismo.
c. Totalitarismo ou estadismo
A confiança atual na educação estatal é apenas um exemplo
do problema que se difunde sempre mais, a saber: a dependência
crescente do Estado por parte da sociedade. Esse problema se
manifesta de várias formas, mas talvez os bezerros de ouro mais
notórios dessa religião sejam o sistema educacional e o National
Health Service [Serviço Nacional de Saúde].
Vive-se hoje em uma sociedade em que o Estado cresce de
forma exponencial, e domina a sociedade e a maior parte das áreas
da vida dos cidadãos. Por exemplo, o Estado moderno faz uso cerca
de 50% do Produto Interno Bruto (PIB),[11] exercendo sua influência
predominante por meio do controle e da regulamentação diretos não
só na política, mas também na educação, saúde, economia, família
(o bem-estar estatal), entretenimento e mídia (licenças, contratos
etc.), e mesmo no lazer e no mundo dos esportes (p. ex., a proibição
de caça às raposas), e, de semelhante modo, o exercício também
da influência indireta sobre a sociedade, como no caso da
imposição de seu poder e sua habilidade no cerceamento de
atividades consideradas indesejáveis mediante taxação e
licenciamento. Nos dias atuais, o Estado controla quase todas as
coisas. Com efeito, a princípio, ele reivindica o controle absoluto,
exercendo-o ou não. Não há área da vida na qual não se conceba o
Estado como agente competente para agir ou regulamentar “a favor”
da vida do indivíduo e da sociedade. O Estado presunçoso e
inchado não é de modo algum uma influência benigna na sociedade,
pois alcançou a posição de dominância pela restrição da liberdade e
responsabilidade individuais, bem como pela subversão de grande
parte do entendimento tradicional da Common Law [Direito Comum]
no que diz respeito ao governo da sociedade — isto é, pelo Império
da Lei.[12]
A abolição da liberdade e responsabilidade é moralmente
deletéria. Ao retirar a liberdade e responsabilidades individuais,
familiares e sociais das pessoas, o Estado obsolesce a virtude. Ele
se torna tão imenso e sua influência sobremodo difusa que, na
prática, não há nenhuma área da vida em que a interferência estatal
não seja, em certa medida, determinante no modo de viver. Todavia,
ao nos retirar a liberdade, o Estado também nos desobriga de
nossos deveres, o que acaba legando uma ética social desprovida
de virtudes reais. Afinal, se não sou mais responsável pelo auxílio
do próximo pelo fato de o Estado fazê-lo por mim, não conto mais
com a oportunidade de praticar as virtudes cristãs — estou privado
do ensejo de praticar de forma plena a fé cristã. Por exemplo,
havendo a taxação estatal tão pesada para sustentar seus
programas humanistas de bem-estar social, de maneira que
dificilmente me restam recursos financeiros para cuidar da família
sem me tornar dependente do Estado, faltam-me os meios
necessários para auxiliar os menos afortunados que eu, ainda que
eu tenha esse desejo. Com a criação do sistema de bem-estar
social moderno e humanista, o Estado privou as pessoas não só da
liberdade e prosperidade, mas também da virtude.
Isso exerce influência prática sobre a vida cristã e sobre a vida da
sociedade. O tipo de sociedade gerado pela ética da liberdade
individual ligada ao profundo senso de responsabilidade individual,
familiar e social, como é o caso da ética social da fé cristã, é muito
diferente da produzida pela ética socialista com a insistência no
direito de todos à igualdade, baseada nos programas anônimos de
bem-estar social realizados pelo Estado. Isto só se deu por meio da
transgressão do oitavo mandamento: “Não furtarás”, pelo Estado,
que se arroga o direito de realizar o papel de Robin Hood, jamais
atribuído pela Bíblia ao Estado. É possível notar a influência
deletéria do Estado mesmo nos ministérios eclesiásticos.
Por exemplo, em determinada cidade onde existe um
pequeno e crescente problema de indigentes e desabrigados, os
líderes de uma igreja evangélica localizada no centro urbano foram
consultados sobre a possibilidade de ministrar de alguma forma a
essas pessoas, com base na ética cristã do trabalho (2Ts 3.10). A
resposta desses líderes afirmava já existir em ação um programa
realizado por outra igreja que providenciava refeições de menor
custo para as pessoas (não era essa a proposta). Quando
indagados se o programa era cristão (isto é, conduzido segundo os
princípios da fé), a resposta ressaltou a impossibilidade de ser
declaradamente evangelístico (mais uma vez, não era a questão em
pauta, embora esses ministérios devessem ser abertamente cristãos
em caráter e princípios de atuação), pois o concílio local fornece a
maior parte do financiamento. Em outras palavras, o ministério
precisou se conformar às restrições impostas pelo concílio local que
proibiu a proclamação do evangelho.
Ora, isso é absurdo! Até mesmo os ministérios cristãos são agora
financiados pelo Estado. Assim, a instituição financiadora, o Estado,
exige que os ministérios se abstenham da aparência abertamente
cristã ou da evangelização. Ao que parece, os cristãos consideram
cumprir suas responsabilidades individuais e eclesiásticas ao apoiar
esse tipo de programa com financiamento estatal. O que isso nos
revela sobre o estado da igreja hoje? Mostra-nos o sincretismo com
a religião predominante da época — o humanismo secular —, e a
admiração cega a seu ídolo principal — o Estado moderno.
Na atualidade, a maioria das pessoas, incluindo-se os cristãos,
espera do Estado a maioria das coisas que, na sociedade cristã, é
preciso esperar de Deus: segurança, saúde, prosperidade, paz etc.
Na Grã-Bretanha, os políticos agora nos dizem que é dever do
Estado tornar as pessoas felizes. Todavia, as Escrituras nos
ensinam que essas coisas são bênçãos divinas para o povo
obediente. Contudo, como nação, não esperamos mais em Deus
por essas bênçãos; ao contrário, voltamo-nos para o Estado todo-
poderoso, como se ele nos abençoasse com a profusão dessas
coisas. Em nossa nação, considera-se o Estado o elemento
existente para distribuir à sociedade todas essas dádivas que
deveríamos esperar da parte de Deus. Ora, se isso não é idolatria,
torna-se muito difícil dizer o que é. Na verdade, transformamos o
Estado em religião, em ídolo, e isso é particularmente um problema
para os cristãos, entre os quais o socialismo, como ideologia e
forma de vida, é bastante influente.
Sem dúvida é verdade que o Estado (isto é, o governo civil) possui
uma esfera legítima de ação. Estou longe de defender qualquer
forma de anarquia social, pois o Estado é uma instituição ordenada
por Deus. Não obstante, Deus não ordenou ao Estado a obliteração
e usurpação das funções das demais instituições também
ordenadas por ele, nem nos privar de liberdade; ao contrário, o
Estado existe para preservar nossa liberdade e para proteger as
demais instituições estabelecidas por Deus — por exemplo, a
família e a igreja —, para que possam lhe servir com obediência, de
acordo com sua vontade. Porém, não é assim que o Estado
moderno age. Em vez de agir assim, o Estado quase obliterou e
usurpou as funções legítimas das outras instituições estabelecidas
por Deus por meio do controle presunçoso da sociedade e do
indivíduo. Por conseguinte, sua função peculiar, a manutenção da lei
e ordem, de acordo com o entendimento cristão da justiça, foi muito
comprometida.
Pouco a pouco, o Estado moderno deixou de exercer a justiça, não
é mais o terror dos praticantes do mal (Rm 13.4), e não raro tolera e
apoia ações malignas (o aborto é o exemplo mais obsceno e
perverso, mas há vários outros, incluindo-se o tratamento indulgente
de criminosos e a perseguição de pessoas inocentes, contrapostas
à corrupção governamental e ideologia encarnadas nas excessivas
regulações modernas, e o problema existe em quase todos os níveis
da sociedade: da negação da liberdade de expressão à abolição do
direito se proteger contra o ataque de criminosos). Em vez de fazer
justiça, o Estado moderno entende que seu papel é fornecer
educação, assistência médica e sistema de bem-estar neutros em
sentido religioso. Todavia, a neutralidade religiosa é impossível. Na
verdade, temos educação, assistência médica e sistema de bem-
estar humanistas seculares; e, cada vez mais, os valores religiosos
do Estado humanista se mostram antitéticos aos valores da fé cristã.
Em vez de liberdade para vivermos nossas vidas de acordo com a
vontade de Deus, a seu serviço, praticando as virtudes cristãs,
temos agora o Estado humanista exercendo controle sobre todas as
coisas e governando nossa vida de acordo com sua ideologia
religiosa. Entretanto, o Estado é incapaz de exercer a justiça
compreendida pela cosmovisão cristã.
Em suma, o Estado moderno secular se tornou um deus, um
ídolo, ao qual as pessoas se dirigem — mesmo em busca de
fertilidade nas clínicas imorais de fertilização do National Health
Service —, à semelhança dos ídolos do mundo antigo. Nas clínicas
modernas de fertilização e de aborto não se dá o mínimo valor à
dignidade da vida humana individual, como os cultos de fertilidade
dos tempos do Antigo Testamento. O sacrifício humano é, então,
praticado em ambas as formas de idolatria, antiga e moderna.
3. A : E D

Como se originou esta situação? A resposta para essa


questão nos leva ao cerne da condição humana. Chegamos a este
ponto, porque, como sociedade, recusamo-nos a reconhecer os
atributos da divindade, bem como nos recusamos a reconhecer que
esses atributos pertencem ao Deus da Bíblia, e só a ele. Assim, nas
palavras de Paulo, passamos a adorar e a servir a criatura em lugar
do Criador (Rm 1.25) — e devemos esperar o juízo que, segundo
Paulo, é o destino da sociedade que age assim, a saber, o flagelo
da homossexualidade, que, como o apóstolo deixa claro na
passagem, não é a causa, mas, sim, uma manifestação da ira divina
sobre a sociedade. Dito de outro modo, a cultura crescentemente
homossexualizada[13] em que temos de viver é parte do juízo divino
sobre a sociedade por causa da idolatria.
A apostasia espiritual avança de forma furtiva. Não obstante, ela
teve início na igreja (e lembremos também que o problema da
homossexualidade é um problema do clero/igreja quanto de
qualquer outra área da vida — Deus respondeu à apostasia da
igreja: sua resposta foi a liderança eclesiástica efeminada e uma
espiritualidade emasculada com um clero com números cada vez
maiores de homossexuais). O atual estado da sociedade é
consequência da apostasia da igreja, e, como igreja e como nação,
enfrentamos o juízo de Deus por conta da apostasia: “Porque a
ocasião de começar o juízo pela casa de Deus é chegada; ora, se
primeiro vem por nós, qual será o fim daqueles que não obedecem
ao evangelho de Deus?” (1Pe 4.17).[14] A fim de explicarmos isso,
precisamos voltar a atenção para uma das questões doutrinais mais
importantes da fé cristã, uma doutrina que possui consequências
importantes e de longo alcance, mas que hoje raramente é
entendida como detentora de consequências sociais — a saber, a
doutrina da soberania divina, a predestinação.
O homem é uma criatura cultual: ele adorará alguém ou algo, pois
foi criado para isso. Para ele, é tão impossível negar essa realidade
quanto negar o próprio ar que respira. Ainda que a conteste por
meio de palavras para convencer a si mesmo, não pode negar a
realidade por meio de suas ações. O homem é incapaz de escolher
não adorar. Com o termo “adoração” me refiro não apenas a
palavras e símbolos, isto é, cerimônias e ritos religiosos. A adoração
é mais que isso; é, antes, a dedicação da vida a serviço do objeto
adorado, sendo esse tipo de adoração inevitável a toda a
humanidade. O homem adora com cada anélito seu. A questão é:
“Quem ou o quê, e como, ele adora?”. Pode-se perverter o sentido
da adoração oferecida, caso a apresentemos de maneira incorreta
ou a direcionemos ao objeto errado. Com efeito, essa é a condição
integral do homem fora de Cristo. O descrente, de forma semelhante
ao crente, adora seus deuses todos os dias, no entanto, os deuses
por ele adorados são evidentemente falsos — ídolos.
O descrente não oferece ao Deus das Escrituras a adoração devida
só a ele. Em vez disso, adora outro objeto ou objetos, atribuindo
todos os predicados da deidade às meras criaturas (isto é, a
aspectos da ordem criada: um pedaço de madeira ou pedra, um
demônio, ou uma ideologia de invenção própria, ou ainda à razão
autônoma).
Mas o que acontece em uma época como a nossa, quando Deus é
tido como morto, quando as pessoas afirmam não crerem mais
nele? O que se faz, em uma época secular, dos atributos da
divindade? Na verdade, é algo bastante simples: eles são
secularizados. Isso tem acontecido em nossa sociedade hoje. Tendo
sido secularizados, despidos da associação com o divino, os
atributos de Deus são conferidos a algo ou alguém que não o Deus
da Bíblia. O atributo particularmente em questão aqui é o da
soberania divina, por ser a qualidade que define com mais clareza o
entendimento e a atitude da sociedade com relação ao Estado
secular. E esse falso culto do Estado, essa atribuição ilegítima do
atributo divino ao Estado moderno, é uma forma de idolatria com a
qual a igreja moderna se encontra envolvida de modo íntimo.
A soberania é um atributo de Deus. A predestinação é um conceito
incontornável. Se negarmos que Deus predestina, isso não significa
a anulação do conceito da predestinação. É evidente que não; trata-
se, na verdade, de um fato inevitável da vida humana. A realidade
seria completamente desprovida de sentido sem ela. Na verdade,
quando se nega a predestinação como um atributo divino, ela
apenas é transferida para outro alguém ou algo. Nesta era secular, a
predestinação é secularizada, e a versão secularizada da soberania
de Deus, da predestinação divina, torna-se atributo do Estado;
assim, as pessoas creem que o Estado possui o direito e o dever de
controlar e regular nossa vida e sociedade. Evidentemente, em
nossa sociedade, o Estado apresenta esse atributo na forma
secularizada: ele não reivindica sua divindade como o faziam os
imperadores romanos, nem se intitula o elo entre Deus e o homem,
de forma semelhante aos antigos faraós. Mas as diferenças só vão
até esse ponto, pois só existem na forma secularizada da adoração
desse ídolo na atualidade. A ambição em controlar e dominar, de
bancar Deus, é a mesma.
O tremendo crescimento do Estado e do “totalitarismo
brando” na Grã-Bretanha no século XX e o controle crescente do
Estado sobre a totalidade da vida e da sociedade resultam da
negação, por parte do país, do conceito cristão de Deus, bem como
da atribuição do conceito secularizado da soberania divina ao
Estado. Desse modo, o Estado é hoje nosso soberano — e não
mais reconhece uma lei acima da lei do homem, o antigo conceito
cristão do Império da Lei. O crescimento da influência
excessivamente controladora do Estado e a perda da liberdade e da
virtude, sua companhia impreterível, são consequências da
apostasia espiritual da sociedade, do abandono, de nossa parte, da
visão bíblica de Deus como o soberano que predestina, revelado
nas Escrituras, em troca de um ídolo secularizado. Portanto,
mediante a doutrina secularizada da predestinação, já assinalada,
percebe-se o que acontece quando Deus é negado. Se ele não é o
Senhor, então alguém ou algo o será. Se Deus não governa nossa
vida e a ordem social mediante sua lei, alguém mais o fará por meio
de outra lei. Desse modo, a soberania divina será atribuída a um
ídolo. E diferentemente do Deus da Bíblia, cujo jugo é suave e cujo
fardo é leve (Mt 11.20), os ídolos são sempre tiranos com fardos que
esmagam e escravizam os homens. Por exemplo, paga-se ao
Estado moderno e idólatra mais que o quádruplo do que o Deus de
toda a criação requer em dízimos; e perdemos a liberdade nesse
processo, ao passo que Cristo nos diz: “Se, pois, o Filho vos libertar,
verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36). E os cristãos aprenderam a
lição? Evidentemente não. Ao contrário, argumentam que não
necessitamos oferecer o dízimo a Deus porque o Estado moderno
realiza várias funções atribuídas antes aos dízimos. E isso é
verdade — para nossa vergonha! —, visto não se tratar do Estado
cristão, mas, sim, de um ídolo e tirano. Somos escravos de um
tirano e incapazes de reconhecer isso.
A política na atual Grã-Bretanha tem sido conduzida
mediante a idolatria ao Estado secular, o usurpador do lugar de
Deus na vida da nação. Não se trata, portanto, de um novo
desenvolvimento; antes, é uma consequência inevitável da
cosmovisão humanista secular, mas agora começamos a perceber
as conclusões tirânicas e totalitárias às quais essas políticas nos
conduzem, isto é, à subordinação, ou mesmo escravização, do
indivíduo ao Estado como instituição definidora da humanidade e a
sociedade, recriando-as à sua imagem. Em 1953, John Macmurray,
nas Gifford Lectures [Palestras Gifford], já havia alertado sobre essa
tendência deletéria: A crise cultural do nosso tempo é de pessoalidade. É
necessária apenas a referência a dois aspectos da situação […] a fim de
tornar claro o que quero dizer com crise de pessoalidade. Um aspecto é a
tendência em direção à apoteose do Estado; o outro, o declínio da religião.
Ambos estão intimamente conectados, por serem expressões da crescente
inclinação da busca da salvação preferencialmente no âmbito político à
autoridade religiosa. Até o crescente apelo à autoridade reflete, em si mesmo,
a inabilidade ou indisposição progressiva de assumir responsabilidades
pessoais. A apoteose da autoridade política envolve a subordinação do
aspecto pessoal da vida humana ao aspecto funcional. As maiores revoluções
sociais de nossa época — todas elas — se revestem dessa roupagem, sejam
elas fascistas ou comunistas.[15]
A isso se deve acrescentar também o fato de os modernos estados
democráticos ocidentais estarem igualmente envolvidos nesse tipo
de idolatria. Para o ateu moderno, Deus está morto; todavia, os
homens não podem viver sem seus deuses, de maneira que alguém
ou algo deve substituir o verdadeiro Deus, sem o qual os homens
modernos julgam serem capazes de viver. Como consequência do
declínio da crença em Deus, o Estado é a instituição que, em nossa
sociedade, herdou os atributos da divindade, embora de maneira
secularizada; o Estado que agora reivindica o direito de controlar e
predestinar a sociedade de acordo com a própria ideologia apóstata,
segundo sua ideia do sentido da sociedade e da vida humana.
Vivemos em um Estado que predestina e usurpa a função de Deus
na vida do indivíduo, da família, da sociedade em geral, e da
totalidade da nação. Não nos deveria surpreender, pois, a referência
de Kant aos estados-nações como Erden-Götter, ou seja, “os
deuses da terra”, e a definição de Hegel, segundo a qual o “homem
deve, portanto, venerar o Estado como uma divindade secular”.[16]
Desse modo, a igreja tem a tarefa de proclamar ao mundo o
senhorio de Cristo — tarefa que ela, ao menos na Grã-Bretanha,
abandonou por conta do amor cego ao principal ídolo do mundo
moderno, o Estado secular. A igreja na Grã-Bretanha está
comprometida com uma forma moderna e secular do culto híbrido a
Iavé/Baal que conspurcou a vida religiosa do antigo Israel antes do
cativeiro babilônico; como o povo de Judá sofreu o exílio por causa
da infidelidade ao se prostituir com baalins, aparentemente também
a igreja britânica terá de sofrer as mesmas consequências nas mãos
de seu próprio cativeiro. O Estado britânico moderno é parte da
nova ordem mundial secular que domina a política internacional. A
menos que a igreja aqui enfrente o problema do sincretismo e da
idolatria que no momento caracterizam sua vida, ela também será
levada cativa e exilada internamente pelo Estado moderno em um
gueto cultural e espiritual que, por certo, a destituirá de sua
influência, relevância, liberdade para pregar o evangelho ou mesmo
a oportunidade de praticar em plenitude o modo de vida cristão.
Ora, o aviso claro já foi dado, mas poucos parecem compreendê-lo,
e muitos na igreja se encontram ideologicamente comprometidos
com a religião da nova Roma secular — embora inconscientes disto
—, cada vez mais dominante e controladora de todos os aspectos
da vida na Grã-Bretanha atual. Desse modo, a igreja se encontra
em uma forma extrema de sincretismo. Ora, se devemos, por meio
da fé (1Jo 5.4), vencer a idolatria que nos confronta todos os dias,
como nos é ordenado (Mt 18.18-20), e de modo semelhante à igreja
primitiva que subjugou a idolatria circundante, devemos lidar com o
sincretismo e rejeitar a idolatria encontrada em seu âmago. Jesus
Cristo — e não o Estado — é o Senhor de cada esfera da vida,
incluindo-se a política.
C

Nos dias de hoje, a igreja na Grã-Bretanha se encontra tão


aferrada à idolatria quanto o antigo Israel nos dias dos reis, quando
os altos eram usados para adorar de forma incorreta a Deus e, de
modo semelhante, para adorar falsos deuses pela prática de cultos
de fertilidade da antiga Canaã. Na atualidade, nossos altos são
intelectuais e ideológicos — contudo, o resultado é o mesmo: a
negação da vontade de Deus para nossa vida e o culto dedicado a
um ídolo em vez de ao Deus verdadeiro. Enviamos nossas crianças
para serem sacrificadas nos altares da educação humanista secular,
crendo que seu conceito de “ciência” é capaz de explicar todas as
coisas. Clamamos ao Estado para que nos sare de nossas
enfermidades. Exigimos que o próximo, por meio do pagamento de
impostos (roubo legalizado por parte do Estado), socorra os menos
afortunados que nós no lugar de sermos, nós mesmos, os altruístas.
Atribuímos ao Estado secular o atributo da soberania divina e o
invocamos para controlar nossa vida e a sociedade de acordo com o
humanismo secular em vez de nos dirigirmos a Deus. Embora nos
vangloriemos da tentativa da criação de uma “sociedade justa” por
meio dessa idolatria, falhamos em perceber que, em todas estas
áreas da vida — por exemplo, educação, saúde, bem-estar social
—, as virtudes cristãs tornaram-se obsoletas. A sociedade assim
não é cristã; de igual modo, a igreja que segue a idolatria não é
cristã. Todavia, Deus exige algo mais: ele demanda que façamos
alguma coisa a respeito dessa situação — ele nos conclama a
destruir nossos ídolos, os altos ideológicos que nos conduziram ao
presente estado das coisas. Até que o façamos, será possível a
salvação de algumas almas, mas, em contrapartida, teremos
desperdiçado a vida.
Há um fato muito interessante sobre o cativeiro dos israelitas
na Babilônia — ele deu cabo do problema do culto a Baal. Após a
restauração, não se ouve mais a respeito do culto sincrético Iavé-
Baal em meio aos judeus. Podemos apenas ansiar e orar para que
nosso cativeiro no Estado moderno idólatra, ainda não manifestado
em toda a sua vanglória e tirania, livrará, por fim, a igreja britânica
do amor cego ao humanismo secular e seu ídolo mais estimado, o
Estado secular.

[O texto do presente ensaio é uma versão revisada e editada de


uma palestra proferida em Chichester, em 26 de maio de 2001, e
publicada em Christianity & Society (v. XI, n. 4, Oct. 2001), o
periódico da Kuyper Foundation.]

[1] O termo asherot, traduzido por “poste-ídolo” em Jz 3.7, é provavelmente o


equivalente a ashtarot, plural de ashtoret. Veja Keil & Delitzsch, Biblical
Commentary on Joshua, Judges and Ruth (Grand Rapids, Michigan: William
B. Eerdmans Publishing Company, transl. James Martin), p. 268s., 292s.
[2] Veja os artigos “Asherah,” “Ashtaroth,” e “Ashtoreth” em The Interpreter’s
Dictionary of the Bible (Nashville: Abingdon Press, 1962), Vol. 1, p. 250ass.,
255as. e “Asherah” em James Hastings, ed., A Dictionary of the Bible
(Edinburgh: T. and T. Clark, 1899), Vol. I, p. 165a.
[3] C. F. Keil e F. Delitzsch, op. cit., p. 268.
[4] Veja “Chemosh” em James Hastings, A Dictionary of the Bible, Vol. 1, p.
376a.
[5] Veja “High Places” em The Interpreter’s Dictionary of the Bible, Vol. 2, p.
602ss.
[6] A explicação mais comum sobre as referências aos altos não removidos
pelos reis que demonstraram submissão ao Senhor é que esses altos não
foram dedicados aos ídolos pagãos da antiga religião praticada em Canaã,
mas consistiam em lugares ilegítimos de adoração a Iavé. Veja, p. ex., Keil &
Delitzsch a respeito de 1Rs 15.9-24 (Biblical Commentary on the Books of the
Kings [William B. Eerdmans Publishing Company, trans. James Martin], p.
218). Todavia, julgo essa ideia inconvincente. Não duvido de que os israelitas
imaginassem estar, de fato, adorando a Iavé — eis meu ponto. Contudo, eles
fundiram a adoração a Deus com o culto pagão praticado nos altos. Ainda que
houvesse a distinção entre o culto ilegítimo de Iavé e o culto aos baalins, o
resultado seria o mesmo. W. C. Allen, que aceita a legitimidade do culto de
Iavé nos altos antes da construção do templo, comenta: “havia, nos cultos
realizados nos altos, um perigo à espreita que, por fim, trouxe sua
degradação. […] Vários dos altos importantes haviam sido santuários
canaanitas (Dt 12.2; Nm 33.52). Os israelitas assimilaram não apenas os
lugares de adoração, mas também os símbolos de adoração, as mazzébahs
[matsevot] e as ashérahs [asherot]. Ora, o que é mais provável que o fato de
as tendências lascivas, características das antigas formas cultuais,
permanecerem ocultas sob esses símbolos externos e, desafiando sua
erradicação, florescessem de tempos em tempos com grande vigor? Ou,
também, o que era mais provável que o fato de Jeová ter aparentemente sido
rebaixado ao nível dos deuses canaanitas cujos santuários haviam sido
conquistados por ele, e cujos nomes Jeová por vezes assumia, de modo a se
confundir com eles também nos cultos e nas características morais?” (“High
Places”, in: James Hastings, A Dictionary of the Bible, v. II, p. 382a). M. H. Pop
assinala com acerto: “Os israelitas absorveram os modos canaanitas e
aprenderam a identificar seu Deus com Baal, cujas chuvas traziam fertilidade
à terra. Um traço característico do culto de fertilidade era o intercurso sexual
entre sacerdotes e sacerdotisas e outras pessoas especialmente consagradas
para a tarefa, prostitutos cultuais de ambos os sexos, que buscavam emular e
estimular as divindades da fertilidade. O culto agrícola enfatizava o sacrifício
ou a refeição comum entre deuses, sacerdotes e demais pessoas. Consumia-
se vinho em grande quantidade, como agradecimento a Baal pela fertilidade
das vinhas. Além disso, o vinho também auxiliava na indução do frenesi
extático, cujo ápice era a automutilação e, por vezes, mesmo a
autoemasculação. O sacrifício de crianças também era um traço desses
rituais” (“Fertility Cults”, in: The Interpreter’s Dictionary of the Bible, vol. 2, p.
265a). A Bíblia fornece muitas evidências de que os filhos de Israel com
frequência tropeçaram nessas práticas, trazendo, pois, sobre si mesmos a ira
de Iavé. Dessa maneira, é absurdo imaginar que havia, para o povo que
adorava nos altos, a clara distinção entre o culto ilegítimo a Iavé,
incontaminado pela corrupção, e os cultos a Baal e Astarote.
[7] Do verbo ba‘al significa “ter domínio sobre”. A palavra pode ser usada com
relação a indivíduos no sentido de propriedade, por exemplo, de uma casa,
terra ou gado. O verbo também significa “tomar uma esposa”; desse modo,
baal também significa marido. Quando usado em referência a um deus,
implica em proprietário, dono. Baal, portanto, era o proprietário, o possuidor
da terra, o deus da terra. A palavra também era aplicada aos lugares de
possessão, sendo, portanto, utilizado para topônimos, verbi gratia: “Baal-
hazor”, isto é, Baal de Hazor (Genesius’s Hebrew and Chaldee Lexicon, p.
cxxx).
[8] Lectures on Calvinism. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1931, p. 133
(grifos do autor).
[9] No sentido lógico-modal do termo, isto é, um ente cuja existência não é
impossível pela lógica (como é o caso de um círculo quadrado, por exemplo).
[N. do T.]
[10] Op. cit, p. 133 (grifos do autor).
[11] Esses números oscilam de ano a ano. Em 1982, a porcentagem chegou a
exorbitantes 46%. Por volta de 1988, decaiu para 37%. No último ano de
cálculo, 1993, os números indicavam 43%. Veja, de minha autoria, The
Political Economy of A Christian Society (Taunton: The Kuyper Foundation,
2001), p. 140.
[12] A doutrina cristã do Império da Lei atesta que todas as leis criadas pelos
homens devem se conformar à lei superior de Deus. Esse era o entendimento
do Império da Lei que permeou o desenvolvimento da Common Law inglesa,
que asseverava: “Toda lei deve se conformar com a lei divina” (citado em A. K.
R. Kiralfy, Potter’s Historical Introduction to English Law [London: Sweet and
Maxwell Ltd, 4. ed., 1958], p. 9). Essa afirmação foi extraída dos anais do
reinado de Henrique VII. O mesmo princípio se aplica à justiça, tendo sido
também consagrado no Juramento da Coroação da monarquia britânica. Veja
E. C. Ratcliff, The Coronation Service of Her Majesty Queen Elizabeth II with A
Short Historical Introduction, Explanatory Notes and An Appendix (London:
SPCK/Cambridge University Press, 1953), p. 38. Confira também, de minha
autoria, Christianity and Law: An Enquiry into the Influence of Christianity on
the Development of English Common-Law (Avant Books, 1993), e também
meu ensaio “Christianity and the Rule of Law” in Common Law Wives and
Concubines: Essays on Covenantal Christianity and Contemporary Western
Culture (Taunton: Kuyper Foundation, 2003), p. 133-49, em particular o
diagrama da p. 137.
[13] Christina Hoff Summers, na obra The War Against Boys: How Misguided
Policies Are Harming Our Young Men, descreve as estratégias políticas e
educacionais que não apenas condenam aspectos da masculinidade, mas de
fato exercem um efeito repressivo, que conduz, mais tarde, à verdadeira
fragilização e incapacitação dos homens. [N. do T.]
[14] É importante relembrar o contexto em que vive o autor. Ele fala de modo
específico do contexto da Grã-Bretanha, que tem na Igreja da Inglaterra a
agremiação religiosa oficial. [N. do R.]
[15] The Self as Agent, p. 29, citado em: E. L. Hebden Taylor, The Christian
Philosophy of Law, Politics and the State. Nutley, New Jersey: The Craig
Press, 1966, p. 414.
[16] T. M. Knox (trad.), Hegel’s Philosophy of Right. Oxford: Clarendon Press,
[1942] 1945, p. 285.

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