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As Fontes de Direito
Neste primeiro ciclo da vida do nosso direito, ele foi eminentemente local,
consuetudinário e foraleiro e quase omisso de legislação dos nossos reis. Veremos, em
seguida, uma por uma, quais foram as principais fontes desse direito
a) Costume;
b) Direito anterior à fundação de Portugal: Leis das Cúrias de Leão, Coiança
e Oviedo e o Código Visigótico;
c) Leis Régias e Testamentos Reais;
d) Cartas de Foral;
e) Façanhas;
f) Concórdias e concordatas;
Costume
Como é conhecido, enquanto fonte de direito, o costume é considerado como
uma prática reiterada à qual corresponde a convicção de obrigatoriedade por parte dos
seus destinatários. Ou seja, para que um uso social se converta em costume é
necessário que ele cumpra dois requisitos: um material e outro psicológico.
Estes costumes eram, assim, usos sociais que as comunidades locais iam
gerando de modo espontâneo, para conseguirem responder às exigências de
segurança e de justiça das suas pessoas e sociedades. Repetiam-se no tempo, eram
casuisticamente utilizadas pelos tribunais locais, até se gerar, no espírito de todos, a
convicção de que se tratava de autênticas normas jurídicas de vigência obrigatória. É a
partir desse momento que deixavam de ser meros usos sociais e se transformam em
efetivas normas de direito local.
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2. Código Visigótico
O Código Visigótico foi, como é sabido, o último código de direito mandado fazer
pelos reis da Monarquia Visigótica, sendo que este teve, com toda a certeza (ao
contrário dos demais códigos visigóticos) vigência territorial em toda a Península
Ibérica. Por conseguinte, vigorou também no território que seria o futuro território
português, mesmo durante o período da ocupação muçulmana, graças ao sistema da
personalidade já atrás aflorado.
Façanhas
Parecem ter sido fontes de direito jurisprudencial, isto é, de sentenças judiciais
que eram aplicadas em casos futuros iguais ou semelhantes. Seriam sentenças
proferidas, ou confirmadas, pelo rei, no uso da sua faculdade de conhecer e dar
resposta às apelações e agravos que lhe chegavam.
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Concórdias e concordatas
Os conflitos entre os monarcas e o clero nacional, ou mesmo entre aqueles e a
cúria romana, eram frequentes. De tal modo que se foram desenvolvendo expedientes
para a pacificação dessas relações, através de documentos assinados pelas partes, que
tinham a designação desta epígrafe. A diferença residiria no facto das concórdias serem
acordos escritos entre o rei e o clero nacional, enquanto as concordatas eram acordos
firmados entre o soberano e o papa. Tratavam-se, neste último caso, de quase tratados
internacionais.
Por um lado, Afonso III termina o ciclo de expansão, para Sul, do território do
reino. É ele quem conquista Faro aos mouros em 1249, incorporando o Algarve no
território nacional. Passa, por isso, a designar-se como «Rei de Portugal e dos
Algarves», sendo que a integração do
Durante os 500 anos que percorrerá este novo período, a marca mais forte do
nosso Direito será a da influência que sobre ele exerceu o Direito Romano Justinianeu,
isto é, o Direito Romano que figurava no Corpus Iuris Civilis. Seja na formação das
normas jurídicas legisladas pelos nossos reis, seja na aplicação direta do código
justinianeu nos nossos tribunais, seja, ainda, pela aplicação de importante doutrina que
sobre ele se pronunciara, a verdade é que será o Direito Romano o grande arquiteto
que traçará as linhas do nosso edifício jurídico.
Todavia, um período tão extenso de tempo, por mais identidade que possua,
não pode deixar de ter significativas diferenças ao longo dos anos. No Direito
Português distinguiremos duas fases distintas, ao longo desse ciclo de quinhentos
anos: a que vai de 1248 até 1446/7, que é a data da publicação das nossas primeiras
Ordenações do Reino, as Ordenações Afonsinas, e a que se segue daí em diante até ao
final.
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Em Portugal, foi com Afonso III que o reino se começará a firmar em moldes
modernos. E será durante este longo período de tempo, que ocupa o IIº Período da
História do Direito Português, que o Reino de Portugal se configurará como Estado
Moderno e soberano. As repercussões que esta evolução teve no campo do Direito
Nacional foram grandes, mas, sobretudo, no campo das suas fontes criadoras de
normas jurídicas e da justiça. No primeiro caso, modificou-se a posição relativa do
costume e da lei, começando esta a sobrepor-se à primeira, enquanto, no segundo, os
reis portugueses conseguirão impor uma justiça régia uniforme em todo o território
nacional, diminuindo progressivamente a importância das justiças senhorial e
municipal.
Serão graças a estes fatores, que de certo modo reproduzem o que se faz
noutros reinos da Europa, que o Estado Moderno Português se formará neste período
em que nos situamos, e será acompanhado pela evolução de um Direito igualmente
moderno, que reflecte na lei as novas prorrogativas da soberania régia.
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Por fim, refira-se que a Escola dos Glosadores entrou em decadência a partir de
meados do século XIII, de forma mais evidente na segunda metade dessa centúria. Na
verdade, o seu método de trabalhar os textos justinianeus começava a ser redundante,
porque já tudo estava explicado do ponto de vista da literalidade e, mesmo até, de
alguns conceitos jurídicos básicos. Desse modo, a partir de meados desse século,
começou a desenvolver-se uma metodologia de estudo nova, muito baseada na
Escolástica e no método dialético de Aristóteles, reinterpretado na Idade Média, com e
após S. Tomás de
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se deixará
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influenciar pelos ditames da moral católica, como sucedeu, por exemplo, do Direito da
Família e das Sucessões.
Quanto às fontes desse direito, elas eram, nesta altura, essencialmente de dois
tipos: os cânones (normas jurídicas emanadas dos concílios) e as decretais (normas
jurídicas emanadas pelos papas).
Ao longo dos séculos foram geradas inúmeras normas de Direito Canónico por
via estas duas fontes, sendo que, à semelhança do Direito Romano, foram também
sendo reunidas em compilações. À semelhança ainda desse direito, no ano de 1500 é
editado, em conjunto, as obras mais importantes deste direito, tendo-lhe sido dado,
por um editor francês, o nome de Corpus Iuris Canonici. São as seguintes as
compilações que o integram:
Decreto de Graciano (concluído entre 1140 e 1142): obra feita por João
Graciano, monge de Bolonha, seguramente influenciada pelo seu conhecimento
do Corpus Iuris Civilis. É uma coletânea de todas as fontes de Direito Canónico
existentes até à data, com o objetivo de eliminar as contradições entre elas
existentes e dar coerência a essa enorme massa jurídica. De certo modo,
desempenha, no Corpus Iuris Canonici, a mesma função que o Digesto tem no
Corpus Iuris Civilis: reunir e ordenar todo o direito antigo, neste caso, o Direito
Canónico antigo, eliminando as contradições e dissensões doutrinais que nele
foram, ao longo dos séculos, surgindo. Por essa razão, esta obra ficou também
conhecida por «Concordia discordantim canonum».
Decretais de Gregório IX (1234): compilação das decretais (normas jurídicas
dos Papas) publicadas depois do Decreto. Mandada fazer por Gregório IX,
tendo sido o seu autor o padre dominicano espanhol Raimundo de Penhaforte.
É constituída por cinco livros.
Livro Sexto de Bonifácio VIII ou simplesmente o Sexto (1298): reúne as
decretais posteriores à anterior compilação. É constituído por um só volume,
chamando se-lhe o «sexto», porque poderia ter sido mais um volume da
codificação anterior.
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Esse foi o caminho encetado também pelos juristas de Bolonha e iniciado por
Cino de Pistóia (1270-1336), que aproveitaram as novidades do método dialético de
Aristóteles (o antigo filósofo grego que fora recuperado para o cristianismo por S.
Tomás de Aquino (1225-1274), após muitos séculos de condenação por parte da Igreja
Católica) para procederem a uma nova abordagem do Corpus Iuris Civilis. Esse novo
método, seguido no ensino do Direito e na literatura jurídica, ultrapassava a mera
literalidade dos textos, aprofundando e desenvolvendo os seus conceitos. A dialética
era sobretudo utilizada porque os mestres apresentavam um texto justinianeu e, em
seguida, ponham em confronto diversos pontos de vista sobre a matéria jurídica de
que tratava, acabando por retirar aquela que lhe parecia ser a melhor conclusão, em
modo de síntese final de um exercício dialético. Deste modo, os juristas aprofundaram
e desenvolveram o Direito Romano e começaram a comentá-lo muito para além do
que estava escrito nos textos trabalhados. Daí esta Escola se designar como a Escola
dos Comentadores. Mais tarde, em contraposição a uma outra abordagem, ou método
de trabalho, do Corpus Iuris Civilis nascido em França, a Escola do Humanismo Jurídico,
o método dos Comentadores será comumente designado por «mos italicus», isto é, o
uso, a forma comum italiana de trabalhar o Corpus Iuris CIvilis, enquanto que a Escola
do Humanismo Jurídico ficará conhecida pelo «mos gallicus».
Vários foram os autores comentadores notáveis, mas, de todos, aquele que mais
prestígio granjeou foi Bártolo de Sassoferrato (1313-1357), que, apesar de uma vida
breve, produziu doutrina de tal modo importante que, durante muito tempo, se dizia
que «nemo bonus jurista nisi bartolista» («ninguém será um bom jurista se não for
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bartolista»). Outro autor da maior importância foi Baldo dos Ubaldi (1327-1400),
também um jurista italiano cujos trabalhos foram muito divulgados e influentes. No
que se refere a Bártolo, para se ter uma noção da magnitude da sua importância,
diremos, sem nos adiantarmos excessivamente sobre matéria que será adiante
desenvolvida, que os seus comentários, ou obras, eram autorizados, nas três
Ordenações do Reino de Portugal (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), como fonte de
direito subsidiário, podendo os mesmos, portanto, ser o fundamento das sentenças dos
nossos juízes, desde que verificados os requisitos que a lei nacional determinava.
Mas antes das nossas primeiras Ordenações terem sido concluídas e aprovadas
para entrarem em vigor no Reino, outros dois livros, com fins igualmente de
compilação do nosso direito, foram elaborados em Portugal. A saber:
Note-se que nenhum destes livros teve vigência oficial, devendo ser ambos
classificados como coleções particulares de leis régias.
Efetivamente, logo nas Cortes que reuniram em Coimbra em 1387, aquele rei
recebeu reclamações vindas dos procuradores do povo sobre o estado em que se
encontrava o Direito Português, tendo-lhe sido solicitado que criasse um código para
resolver essa situação caótica. A par das inquietações populares, também o Doutor
João Afonso das Regras (1357-1404), Chanceler da Corte e ilustre jurista, antigo aluno
de Bolonha e professores na nossa Universidade, na qual foi também nomeado
protetor pelo D. João I, defendeu a realização da verdadeira empreitada que permitiria
trazer maior segurança ao direito nacional. A sua morte prematura não permitiu,
contudo que tivesse sido ele a dirigir os trabalhos conducentes à concretização da obra
desejada, como teria sido natural que acontecesse, tendo lhe sucedido nessa tarefa o
Doutor João Mendes. Porém também o falecimento prematuro deste levou a que
tivesse de ser nomeado para a sua substituição, o Doutor Rui Fernandes, jurista de
nascimentos prestígio da corte de D João I e dos seus sucessores, a quem coube a
distinção de ter sido desembargador da Corte e Chanceler mor do reino. Os trabalhos
foram por ele concluídos em 1446, mas já durante a regência do Infante D Pedro, que
tinha sucedidos ao falecido irmão no ano da morte deste em 1438 ( 9 de setembro ),
nessa qualidade transitória, na pendência da menoridade do seu sobrinho Afonso
( futuro Afonso V). Apesar disso, acabou por ser o duque de Coimbra que, mais tempo
companhia a realização dos trabalhos da obra, que lhe é efetivamente muito mais
tributária do que a qualquer príncipe.
Refira-se que os livros não foram todos redigidos do mesmo modo, nem usaram a
mesma técnica de transposição das leis compiladas. E que, enquanto no primeiro se
utilizou um estilo ao tempo mais inovador - o decretório ou legislativo -, coligindo as
leis sem indicação da fonte e dando-lhe uma nova redação - os, restantes quatro
procederam a simples transcrição das fontes utilizadas, sem qualquer modificação.
Pensa-se que estes quatro volumes tenham tido uma autoria diferente do primeiro,
certamente de Rui Fernandes, enquanto este teria sido composto ainda por João
Mendes. Isto explicaria a diferença de estilos, embora não se possa dar esta hipótese
como garantida, havendo estudos recentes que asseguram que a autoria de toda a
compilação se deve a Rui Fernandes.
ORDENAÇÕES MANUELINAS
A intensa atividade legislativa dos monarcas que se seguiram à conclusão das
Ordenações AFONSINAS, assim como alguns factos políticos e jurídicos, entretanto
ocorridos levaram à necessidade premente de reformar as nossas primeiras
Ordenações. De entre os acontecimentos mais significativos, que justificaram a decisão
de fazer um novo código, em vez de simplesmente reformar o anterior, esteve a
introdução da tipografia em Portugal por judeus vindos de fora do nosso país,
nomeadamente de Itália e da Alemanha.
e definitiva versão atualizada e revista das Ordenações foi, por sua vez, concluída em
1521, ano da morte de D. Manuel I, tendo o rei mandado recolher à Corte ou ordenado
a destruição de todos os anteriores exemplares, ameaçando punir severamente quem
não o fizesse e mantivesse cópias da primeira edição. O código foi impresso por um
francês chamado Germão Galhardo, com tipografia estabelecida em Lisboa.
ORDENAÇÕES FILIPINAS
Foram estas as últimas Ordenações do Reino de Portugal A decisão de as levar a
cabo deveu-se ao primeiro rei da dinastia filipina - Filipe 1 (II de Espanha), que as
confiou a uma comissão composta por Jorge de Cabedo (1525-1604), Chanceler-mor
do Reino, Afonso Vaz Tenreiro e Duarte Nunes do Leão (1530-1608), os três juristas
renomados e desembargadores da Casa da Suplicação. Os trabalhos terminaram em
1595, durante o reinado de Filipe I. Porém as ordenações do entrariam em vigor no
reinado do de Filipe II (o seu pai morrera em 1598), por carta régia de e janeiro de
1603, e foram objeto de edição impressa da tipografia lisboeta de Pedro Craesbeeck,
um belga que se transladara para Lisboa, onde mantinha a mais importante tipografia
portuguesa dessa época.
Estas eram as três formas de criar Direito Português, sendo que as Ordenações
asseguram a sua superioridade em relação a qualquer outro tipo de fonte, fosse do
Direito Romano, do Canónico,
ou doutra natureza. Afirmando esse princípio, nas Ordenações Manuelinas podia ler-se
o seguinte: “onde a Ley, estilo, ou costume do reino dispõem, cessem todas as outras
Leys ou direito “. Analisemos, então esses três tipos de fontes do direito português.
Lei Regia
A lei régia era, já nesse período, a forma principal de criação do nosso direito.
Consistia na criação da norma jurídica pela expressão declarada e intencional da
vontade soberana do rei, conforme os princípios do direito legislado imperial
constantes do Corpus Iuris Civilis, já anteriormente referidos a pretexto de uma citação
de Ulpiano.
seguiram nessa orientação que não deixou de ser crítica da que pretendia o pode régio
exercido sem controlo. Jerónimo Osório, por exemplo, considerava que «quanto mais
poderoso for quem mandar, mais tunestos os seus malefícios, e os outros dois autores
mencionados nunca hesitaram em defender que os reis tinham de submeter-se à torça
diretiva da lei, isto é, ao que a lei determina para a comunidade e para os seus
cidadãos, tendo em vista o bem comum.
Sendo direito criado por uma decisão intencional de um órgão legítimo para o
efeito - o rei ou um ministro seu, em seu nome -a forma que a lei régia tomou não
será, porém, sempre a mesma. Por conseguinte, poderemos considerar que exauram
vários tipos de leis, em razão da sua importância, do seu conteúdo e da entidade
soberana declarante. De todo o modo, insista-se, seja qual for a sua origem material, a
lei do Estado Moderno português encontrará sempre a sua legitimidade na vontade
regia. Vejamos, então, quais foram os seus modelos de expressão mais relevantes.
Cartas de Lei e os Alvarás: são os dois principais upos de lei desta época.
Distinguem-se por aspetos formais, de conteúdo e temporalidade. Quanto aos
primeiros, as Cartas principiam pelo nome próprio do monarca, enquanto os Alvarás
pela expressão "Eu ElRei". Sobre o seu conteúdo e duração, as Cartas dispunham a
propósito de matérias consideradas mais importantes e duradouras que não tinham
prazo de vigência determinado, enquanto os Alvarás vigoravam, no máximo, por um
ano. A medida que avançamos no tempo estas diferenças serão esbatidas começando a
contundir-se os dois tipos de documentos, que serão indistintamente utilizados.
Provisões: num conceito lato poderiam ser quaisquer ordens pelas quais o rei
providenciava sobre qualquer assunto; já numa asserção mais estrita tratava-se de
decisões judiciais que principiavam pelo nome da lei e respondiam às questões aí
suscitadas pelos particulares.
Resoluções: nalguns casos em que o juiz tinha dúvidas sobre o direito a aplicar,
determinavam as Ordenações que pedisse ao rei para decidir. Resoluções régias era o
nome que tinham esses documentos dirigidos pelo monarca ao juiz peticionário, sendo
que a solução dada pelo rei passaria a ter força de lei para futuros casos iguais.
COSTUME
Por sua vez, o costume, que fora a fonte predominante do nosso Direito no seu
primeiro século de existência, continua a desempenhar uma função determinante na
ordenação jurídica da sociedade, principalmente ao nível local, desenvolvendo-se,
também, um costume da corte, que era praticado pelos mais próximos do rei. Mas é
principalmente no costume local que esta fonte de direito permanece forte e muito
importante, não obstante os esforços dos nossos monarcas para lhe reduzirem o
âmbito em favor do direito legislado por eles. Todavia, e apesar do notável esforço
legislativo produzido pelos monarcas desta primeira época deste segundo período, a
lei não só não era suficiente para acorrer a todas as situações da vida social em que era
necessária, como não chegava uniformemente a todo o país. Relembremos, também,
que muitos dos costumes do direito local eram, por vezes, ancestrais, correspondendo
a práticas fortemente arreigadas nas populações, o que dificultava a legislação régia
que os contrariasse.
Assim, os nossos reis adotam uma tática mais subtil, em vez de atacarem
globalmente o direito consuetudinário. Eles criam a imagem e a convicção pública, eles
e os legistas que com eles trabalhavam, de que o costume vigorava por seu tácito
consentimento, que era verdadeira «sciencia principis», isto é, algo que vigorava
porque o rei se não opunha. Não obstante, os monarcas portugueses tentaram proibir,
por via legislativa, certos costumes jurídicos, tendo começado por aqueles que punham
diretamente em causa a sua tentativa de impor uma justiça régia comum a todo o país.
Foi o caso das leis de Afonso IV contra os costumes de aplicação criminal, que este rei
procurou disciplinar e substituir pela sua autoridade. Adiante veremos como o tentou
fazer e os resultados que alcançou.
Mas antes de Afonso IV outros se preocuparam com aquilo a que designavam
como «maus costumes». Já Afonso II, numa das leis resultantes da Cúria de Coimbra de
1211, os referia como sendo indesejáveis e objeto da sua condenação. O mesmo fez
Afonso III, ainda antes de ser rei, no seu «juramento de Paris» (feito em 6 de setembro
de 1245, pelo ainda Conde de Bolonha D. Afonso, pouco tempo após o afastamento de
Sancho II pelo Papa, perante um conjunto de personalidades que apoiavam a sua ida
para Portugal para ser futuro rei), prometeu solenemente o seguinte: «farei que se tire
todos os maus costumes, e abusos introduzidos por qualquer ocasião, ou por qualquer
pessoa». Por vezes eram as populações que denunciavam os costumes locais
indesejáveis, porque se tratava de práticas que beneficiavam a nobreza e o clero,
prejudicando-os em vários aspetos. Outras era o rei que tinha de se impor contra esses
costumes, até mesmo contra as populações que os defendiam. Conta o Professor
Marcello Caetano que, em 1331, sob o reinado de D. Dinis, são os representantes dos
concelhos quem pede ao rei a substituição de «um costume mau e danoso». Por vezes
o monarca atendia os pedidos que lhe eram feitos e legislava contra o disposto no
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costume local, outras vezes, quando percebia que, por qualquer razão, seria um esforço
inglório fazê-lo, abstinha-se de intervir. Este mesmo rei D. Dinis deu ordens aos seus
corregedores (seus representantes locais) para irem pelo território nacional para
fazerem inquéritos e inspeções, a fim de avaliarem os costumes locais e os revogarem,
quando necessário.
No que se refere às concórdias e concordatas, continuaram a ser utilizadas,
neste período, como formas de resolução dos conflitos do poder político português
com o clero nacional e com o Papa e a sua Cúria.
Também as cartas de foral permanecem como importantes instrumentos de direito
público local, ajudando a compor as relações entre a monarquia e os concelhos. Pelo
menos durante os reinados de Afonso III e D. Dinis foram promulgados vários
documentos desta natureza, tendo os mesmos entrado em decadência a partir da
morte deste último rei, para, mais tarde, no reinado de D. Manuel I, serem reformados
num sentido muito distinto das cartas de privilégio que, na sua origem, tinham sido.
Em forma de síntese, poderemos dizer que a grande diferença, ao nível do direito
português existente e aplicado nos primeiros duzentos anos deste novo período, em
relação ao anterior, está na afirmação da lei régia como principal fonte de direito novo
e na penetração e influência do Direito Romano Justinianeu.
ESTILO DA CORTE
Consistia na criação de direito pelos tribunais superiores do Reino, os da Corte,
sendo que isto só sucedia se o mesmo procedimento fosse adotado em, pelo menos,
duas sentenças judiciais, ao longo de um período mínimo de 10 anos. Estamos, como
se conclui facilmente, perante uma fonte jurisprudencial de direito. Aqui não se
colocaria a hipótese contra legem, visto que os tribunais da Cúria Régia tinham o dever
de aplicar o direito criado pelo soberano.
Direito Subsidiário
O Direito Subsidiário é o que se aplica na ausência de norma de Direito
Português. Compreensivelmente, o direito nacional não abrangia a totalidade da
realidade social e esta, sendo dinâmica, criava amiúde situações para as quais o
legislador não tivera ainda oportunidade de legislar, e o costume e os estilos da corte
não tinham resolvido. Desse modo, quando um juiz tivesse, perante si, um caso omisso
no Direito Português, nem por isso poderia deixar de proferir sentença. Esta, contudo,
teria de seguir o que era determinado pelas Ordenações, que dispunham, cada uma
delas em partes distintas, a esse propósito.
Começando pelas Ordenações Afonsinas, esta matéria encontrava-se regulada
no Livro II, Título IX («Quando a Ley contradiz a Degratal, qual dellas se deve
guardar»). Aí se determinava que as duas fontes de direito subsidiário de que o juiz
poderia socorrer- se seriam o Direito Romano e o Direito Canónico, bem como a Glosa
de Acúrsio e os Comentários de Bártolo. A aplicação seguiria os critérios seguintes:
Igreja e do seu direito no plano temporal, o que de algum modo é explicado pela
centralização do poder na coroa e pela consolidação do Estado Moderno.
Em terceiro lugar, amplia-se a importância da doutrina dos juristas mais
notáveis do tempo, para além de Acúrsio e de Bártolo, que eram ainda autoridades
muito respeitadas, mas consideradas já antigas. Essa doutrina era designada, nas
Ordenações Manuelinas, por «comum opinião dos Doutores», e podemos considerá-la
como uma nova fonte de direito subsidiário a partir de então.
Em resumo: primeiro era, em todos os casos, a norma de Direito Romano que
fundamentaria a sentença, aplicando-se o Direito Canónico quando aquele não se
pronunciasse ou, pronunciando-se, de acordo com o critério do pecado; em segundo
lugar, na falta de um e de outro, recorria-se à Glosa de Acúrsio e à Opinião de Bártolo,
desde que não fossem contraditadas pela Comum Opinião dos Doutores, isto é, pela
doutrina da época que fosse dominante e especializada no assunto em causa, sendo
que, nesse caso, o juiz sentenciaria seguindo esta última; por fim, na ausência de
qualquer norma proveniente das fontes anteriores, seria o caso decidido por uma
Resolução Régia.
No que se refere às Ordenações Filipinas, foi já dito que este esquema anterior
se mantém integralmente. A única diferença, em relação às Ordenações Manuelinas, é
formal, porque a matéria abandona o Livro II e passa a figurar no Livro III, Título LXIV.
Realce-se, porém, que este regime será profundamente modificado pela Lei de 18 de
agosto de 1769, conhecida pela Lei da Boa Razão, tendo essas modificações sido
introduzidas nas Ordenações Filipinas, que assim viram revogadas essas normas.
Veremos, no próximo capítulo do nosso Programa, quais foram essas transformações.
representativas que o pudessem influenciar ou condicionar. Mas, nos vinte e sete anos
de Pombal, esse poder foi também tirânico.