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1 História do Direito II – Micaela Gonçalves

As Fontes de Direito
Neste primeiro ciclo da vida do nosso direito, ele foi eminentemente local,
consuetudinário e foraleiro e quase omisso de legislação dos nossos reis. Veremos, em
seguida, uma por uma, quais foram as principais fontes desse direito

a) Costume;
b) Direito anterior à fundação de Portugal: Leis das Cúrias de Leão, Coiança
e Oviedo e o Código Visigótico;
c) Leis Régias e Testamentos Reais;
d) Cartas de Foral;
e) Façanhas;
f) Concórdias e concordatas;

Costume
Como é conhecido, enquanto fonte de direito, o costume é considerado como
uma prática reiterada à qual corresponde a convicção de obrigatoriedade por parte dos
seus destinatários. Ou seja, para que um uso social se converta em costume é
necessário que ele cumpra dois requisitos: um material e outro psicológico.

O primeiro significa que esse uso, ou procedimento social face a uma


determinada factualidade social, tem de se repetir durante um período relativamente
dilatado de tempo para que possa revelar a sua importância e pertinência. Não se
esgota num só momento, nem pode ser apenas resultado de uma prática circunstancial
e breve. Por outro lado, o chamado elemento psicológico significa que, ao fim de um
período dilatado de repetição desse uso social, a comunidade sobre a qual se aplica
acabará por se convencer da sua juridicidade, isto é, de que esse uso tem natureza
jurídica, o mesmo é dizer, poderá ser coercivamente invocado por via judicial, se
preciso for.

Nesta época, na ausência de um poder estatal que se afirmasse em todo o


território do país, são, como vimos, os poderes e as forças sociais locais a emergirem
para criar o direito e a administrar a justiça. O costume é, assim, em primeiro lugar,
eminentemente local, porque nascia e se aplicava em localidades geograficamente
reduzidas e geograficamente limitadas, mas, por vezes, poderia ser nacional ou geral,
aplicando-se alguns costumes, de forma igual, em todo o território do reino. Esse
processo gerava-se pelo fenómeno da comunicação de costumes, através do qual uma
prática consuetudinária local ia sendo acolhida noutros pontos do país, graças à
eficácia e pertinência das suas soluções, primeiro nas terras mais próximas e acabando
por se generalizar em todo o país.

Estes costumes eram, assim, usos sociais que as comunidades locais iam
gerando de modo espontâneo, para conseguirem responder às exigências de
segurança e de justiça das suas pessoas e sociedades. Repetiam-se no tempo, eram
casuisticamente utilizadas pelos tribunais locais, até se gerar, no espírito de todos, a
convicção de que se tratava de autênticas normas jurídicas de vigência obrigatória. É a
partir desse momento que deixavam de ser meros usos sociais e se transformam em
efetivas normas de direito local.
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O costume era a principal fonte de direito português deste período, havendo


quem defenda a tese de que podemos encontrar no conteúdo das suas normas
vestígios de direito romano vulgar, o direito romano adulterado que vigorou na
geografia do velho Império Romano do Ocidente, que se adaptava às práticas e
costumes locais e que, por isso, estava longe de ser o direito romano originário e puro.
Esta teoria não é suscetível de comprovação histórica completa, porque é muito difícil
estabelecer-se uma conexão histórica sucessiva entre práticas jurídicas já tão antigas e
um direito que era disperso, não escrito e oral. Contudo, do que dele hoje conhecemos
– e que nos advém de livros escritos nesse tempo e nos tempos próximos que o
seguiram – podemos, de facto, concluir que existem vestígios, ainda que muito
diluídos, nesse direito consuetudinário português, do que fora, no passado, algum
direito romano. A sua transmissão ter-se-á feito pela prática das populações e pelo
próprio Direito Visigótico, que, como sabemos, em boa medida o incorporou nas suas
instituições jurídicas, e que depois da queda da Monarquia Visigótica se manteve no
espírito e nos usos das populações.

Por último, acrescente-se que muitas terras concelhias redigiram pequenos


códices de direito consuetudinário local, de modo a darem mais segurança jurídica ao
seu direito consuetudinário. Esses livros de direito local não retiravam ao seu conteúdo
a sua natureza costumeira: reduziam as suas normas a escrito, mas elas não deixavam
de ser, por esse facto, normas jurídicas consuetudinárias. Esses livros tomaram o nome
de foros, ou estatutos locais, e não devem ser confundidos, apesar de alguma aparente
aproximação semântica, com as cartas de foral ou forais. Estes últimos são, conforme
veremos em seguida, documentos outorgados por uma autoridade pública a
determinada população, que continham o regime jurídico fundamental do direito
público aplicado nessa localidade, enquanto os foros são códigos escritos de direito
consuetudinário aplicado na terra que os elabora.

Direito anterior à fundação de Portugal:


1. Leis das Cúrias de Leão, Coiança e Oviedo
No momento da sua independência, Portugal, ainda como Condado Portucalense,
integrava o Reino de Leão e Castela, pelo que muito do direito que então se aplicava,
antes de 1143, continuou em vigor. Entre esse direito, têm realce leis feitas em cúrias
reunidas nas cidades de Leão (1017), de Coiança (1055) e de Oviedo (1115). As cúrias
eram órgãos auxiliares do rei para o governo do país e reuniam quando eram por ele
convocadas, tomando decisões e fazendo ocasionalmente leis. Estas a que nos
referimos foram leis feitas para vigorar no Reino de Leão, de que o Condado
Portucalense fazia parte, e permaneceram em vigor em Portugal, por mais algum
tempo, depois da nossa independência.
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2. Código Visigótico
O Código Visigótico foi, como é sabido, o último código de direito mandado fazer
pelos reis da Monarquia Visigótica, sendo que este teve, com toda a certeza (ao
contrário dos demais códigos visigóticos) vigência territorial em toda a Península
Ibérica. Por conseguinte, vigorou também no território que seria o futuro território
português, mesmo durante o período da ocupação muçulmana, graças ao sistema da
personalidade já atrás aflorado.

O Código Visigótico é frequentemente encontrado em documentos portugueses


deste tempo com diversos nomes (lex gothorum, lex gothica, liber judicum, etc,),
começam essas referências a rarear a partir do início do século XIII, sendo que, em
meados desse mesmo século, a partir do início do segundo período da história do
nosso direito, será substituído pela lei régia e pelo direito romano-canónico, conforme
oportunamente veremos.

Leis Régias e Testamentos Reais


A lei, como processo autoritário e voluntário de criação de normas de direito,
não era, no século XII, comum entre os reis desse tempo. Muitos fatores contribuíram
para isso, mas, desde logo, a natureza essencialmente militar e guerreira dos reis
medievais, provocada pelas necessidades de defesa, de consolidação ou até de
expansão dos seus territórios, levava-os para outras paragens. O direito era, por esse
tempo, em toda a Europa, eminentemente consuetudinário, e só o renascimento do
Direito Romano Justinianeu, sobretudo quando os trabalhos dos glosadores
começaram a circular pela Europa (meados do século XII em diante) é que os reis se
apercebem da importância da lei para firmarem a sua autoridade.

Dos nossos quatro primeiros monarcas conhecem-se poucas leis: de D. Afonso


Henriques, somente uma; de D. Sancho I, outra; D. Afonso II constituiu uma exceção
ocasional a esta regra, porque, em 1211, reuniu a sua cúria na cidade de Coimbra e
nela aprovou vinte leis; por sua vez, D. Sancho II também não fez qualquer lei. A partir
do rei seguinte, D. Afonso III, este panorama mudará radicalmente, e os reis
portugueses passarão a ser verdadeiros “reis legisladores".

Importantes foram os testamentos dos nossos primeiros reis, sobretudo para


ajudarem a fazer da nossa monarquia uma monarquia hereditária, já que eles, nesses
documentos, determinam que os seus sucessores seriam os filhos varões primogénitos.
De facto, foi através deles que se foram compondo as regras sucessórias da monarquia,
sendo que são de invalidar, em absoluto, as “leis” das pretensas Cortes de Lamego, de
1143, onde Afonso Henriques teria reunido os representantes do reino e fixado essas
leis de sucessão ao trono, que se trata de uma invenção e falsificação histórica criada
por altura da revolução da restauração da independência de 1640. Foram os
testamentos régios a compor essas regras da sucessão e não quaisquer leis que, por
essa época e durante muito tempo, não existiram.
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Cartas de Privilégio e Cartas de Foral


Neste período são também muito importantes as Cartas de Privilégio e as
Cartas de Foral. Estas últimas devem, aliás, incluir-se nas primeiras como uma das suas
espécies, porquanto o seu conteúdo e o facto de serem emitidas era já um benefício
para as populações que as recebiam. Tratavam-se, umas e outras, de documentos de
direito público emitidos por uma autoridade pública - pelos reis ou por senhores laicos
ou eclesiásticos (proprietários das terras senhoriais) – a determinadas populações,
podendo ser, nos casos das povoações mais importantes, negociadas com os seus
representantes. A sua finalidade era a de regularem juridicamente as relações entre
essas autoridades e as populações locais que as recebiam, sendo que variavam
conforme o seu conteúdo. Assim temos:

Cartas de privilégio: que é a designação geral de todo este tipo de


documentos. Podiam ser outorgadas pelo rei ou por senhores territoriais, quando estes
o faziam unilateralmente, ou pactuadas com as populações, quando eram o resultado
de uma negociação e consequente acordo;

Cartas de foral: que são as cartas de privilégio mais importantes, em razão da


multiplicidade dos domínios que regulavam. Nelas encontramos, por exemplo, normas
sobre o pagamento de impostos, normas sobre a prestação de obrigações militares,
sobre multas, sobre crimes e penas, etc. As populações que os recebiam ficavam, assim,
a saber com o que poderiam contar da autoridade pública e esta, por sua vez, estava
limitada, na sua atuação, pelo texto desses documentos. Em Portugal encontramos
forais em Santarém, Linhares, S. João da Penela, Paredes, S. João da Pesqueira, entre
outros.

Cartas de povoação: constituíam privilégios ou propriedade para quem fosse


ocupar determinadas terras despovoadas, ou de escassa população, habitualmente
aquelas que tinham sido alvo recente de presúria. Eram menos abrangentes do que as
cartas de foral.

Cartas de franquia: regulavam aspetos tributários de uma determinada


povoação.

Cartas de feira: fixavam dias e regras para a realização de feiras e mercados.

Façanhas
Parecem ter sido fontes de direito jurisprudencial, isto é, de sentenças judiciais
que eram aplicadas em casos futuros iguais ou semelhantes. Seriam sentenças
proferidas, ou confirmadas, pelo rei, no uso da sua faculdade de conhecer e dar
resposta às apelações e agravos que lhe chegavam.
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Concórdias e concordatas
Os conflitos entre os monarcas e o clero nacional, ou mesmo entre aqueles e a
cúria romana, eram frequentes. De tal modo que se foram desenvolvendo expedientes
para a pacificação dessas relações, através de documentos assinados pelas partes, que
tinham a designação desta epígrafe. A diferença residiria no facto das concórdias serem
acordos escritos entre o rei e o clero nacional, enquanto as concordatas eram acordos
firmados entre o soberano e o papa. Tratavam-se, neste último caso, de quase tratados
internacionais.

O SEGUNDO PERÍODO DA HISTÓRIA DO DIREITO


PORTUGUÊS: O PERÍODO DE INFLUÊNCIA ROMANO-
CANÓNICA (1248-1769): ENQUADRAMENTO GERAL.
A substituição de Sancho II pelo seu irmão Afonso, em 1245, primeiro, como
regente do Reino, e em 1248, já depois da morte do rei deposto, como rei efetivo sob o
título de Afonso III, marcou um momento importante na História Política de Portugal e,
consequentemente, também no que era o seu Direito.

Por um lado, Afonso III termina o ciclo de expansão, para Sul, do território do
reino. É ele quem conquista Faro aos mouros em 1249, incorporando o Algarve no
território nacional. Passa, por isso, a designar-se como «Rei de Portugal e dos
Algarves», sendo que a integração do

Algarve na soberania portuguesa fica definitivamente decidida num Tratado de


1267 assinado com Castela, que reivindicava essa parte do território peninsular para si.

Por outro lado, Afonso III afirma-se como um rei indiscutivelmente


administrador e ordenador público do país. Com ele inicia-se o processo de
centralização do poder político na coroa e a formação de uma ideia de soberania régia,
que tinha sido muito ténue nos quatro reinados anteriores, devido às características
dessa época, bem como à natureza essencialmente militar dos nossos reis e das
necessidades de prover à segurança do território e das suas gentes.

Consequentemente, Afonso III será o nosso primeiro rei legislador. Conforme


veremos adiante, ele promulgará um elevado número de leis, se comparado com as
dos seus antecessores, assinalando uma modificação do paradigma de criação do
Direito Português. Também fará um esforço considerável para impor uma justiça régia
em todo o território nacional, como desenvolverá políticas e uma burocracia própria
para a cobrança de tributos.
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Por estes motivos, faz sentido terminar o Iº Período da História do Direito


Português com a sua definitiva subida ao trono (1248), dando início a um longo ciclo
de 500 anos que constituirá o IIº Período da História do Direito Português. Por sua vez,
este terminará com o início do absolutismo pombalino (Sebastião José de Carvalho e
Melo, Marquês de Pombal) em 1750, ano em que D. José I iniciou o seu reinado, ou, em
alternativa, no dia 18 de agosto de 1769, data da publicação da Lei da Boa Razão, que
deu azo à reforma do Direito Português e das suas fontes, procurando pôr cobro ao
predomínio do Direito Romano no Direito nacional. Desse modo, podemos fazer
terminar este longo período, o segundo da História do nosso Direito, quer na primeira,
quer na segunda datas. Com qualquer uma delas consideramos que esse longo ciclo de
500 anos chegou ao fim e que, em sua substituição, entraremos num período em que o
nosso Direito será eminentemente influenciado pelo Iluminismo e pelo Racionalismo
Jurídico.

Durante os 500 anos que percorrerá este novo período, a marca mais forte do
nosso Direito será a da influência que sobre ele exerceu o Direito Romano Justinianeu,
isto é, o Direito Romano que figurava no Corpus Iuris Civilis. Seja na formação das
normas jurídicas legisladas pelos nossos reis, seja na aplicação direta do código
justinianeu nos nossos tribunais, seja, ainda, pela aplicação de importante doutrina que
sobre ele se pronunciara, a verdade é que será o Direito Romano o grande arquiteto
que traçará as linhas do nosso edifício jurídico.

Paralelamente, também o Direito Canónico, isto é, a ordem jurídica própria


dessa mais do que importante instituição desse mundo onde nos movemos, que foi a
Igreja Católica, exercerá importância vital no Direito que se aplicava em Portugal.
Veremos que este Direito se aplica não apenas nos tribunais eclesiásticos (tribunais da
Igreja), mas nos próprios tribunais do Estado, em razão da matéria dos processos em
tramitação. Por outro lado, a influência da Igreja será de tal ordem que certas pessoas
poderiam, em razão da sua importância e influência (prelados, nobres, etc.) ser
julgados, pelos seus delitos e atos comuns, nos tribunais da Igreja, em vez de o serem
nos tribunais civis. A isto se chamava o privilégio do foro eclesiástico, e a ele
regressaremos adiante.

Por conseguinte, o IIº Período da História do Direito Português caracteriza-se


pela influência desses dois enormes sistemas jurídicos: o Direito Romano e o Direito
Canónico, ao qual se dava o nome de «direito comum», ou «utrunque ius» ou «ius
comune». Quer isto dizer que esses dois Direitos eram comuns a toda a cristandade,
representando duas diferentes ramificações de uma mesma árvore: o Direito Imperial
(do Império Romano e, depois, do Sacro Império Romano-Germânico) e o Direito da
Igreja (do «Sacerdotium»). Em toda a Europa esses dois direitos eram muito influentes
e, de certa forma, moldaram o que eram os direitos nacionais nascentes.

Todavia, um período tão extenso de tempo, por mais identidade que possua,
não pode deixar de ter significativas diferenças ao longo dos anos. No Direito
Português distinguiremos duas fases distintas, ao longo desse ciclo de quinhentos
anos: a que vai de 1248 até 1446/7, que é a data da publicação das nossas primeiras
Ordenações do Reino, as Ordenações Afonsinas, e a que se segue daí em diante até ao
final.
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II.AS TRANSFORMAÇÕES DA POLÍTICA EUROPEIA NO


PERÍODO DA BAIXA IDADE MÉDIA (A PARTIR DO
SÉCULO XIII): IMPERIUM,
SACERDOTIUM E REGNUM. A FORMAÇÃO DO
ESTADO PORTUGUÊS MODERNO
A primeira fase do segundo período da História do nosso Direito decorre ainda
durante a Idade Média, numa fase final de decadência daqueles que foram os seus
elementos típicos mais caracterizadores. Estamos já, é bom lembrá-lo, na Baixa Idade
Média.
Entre os aspetos mais salientes dessa transformação encontrava-se a
emergência, ainda em fase de gestação, da ideia de soberania e do Estado Moderno,
que precisamente se caracterizará pelo primado da autoridade régia exercida sobre
uma população vivente num território geográfico delimitado por fronteiras geográficas.
Em termos europeus, os Estados começavam a ter uma configuração diferente daquela
que os tinha caracterizado nos séculos precedentes, com a centralização régia a ter
lugar também muito graças às exigências da guerra, que dava relevo à figura do
príncipe.

Assim, a par do Imperium e do Sacerdotium, emerge, com força crescente, uma


nova realidade política e sociológica que é o Regnum, que começa a fazer decair essas
outras duas entidades. De facto, o Sacro Império Romano-Germânico (Imperium), que
surgira para retomar o mito do fenecido Império Romano do Ocidente, não
ultrapassava, em termos de autoridade territorial, algumas parcelas dos territórios da
Itália, da Alemanha e da Borgonha, escapando-se-lhe todo o restante continente
europeu. Os imperadores eram, por isso, príncipes de autoridade muito limitada, que
de modo algum alcançaram a dimensão do Império Romano de que se reclamavam
herdeiros. Por outro lado, o papado sofria duros golpes na sua autoridade política e até
mesmo espiritual, com os ataques que alguns imperadores lhe moviam, como o
célebre Frederico I (1122
–1190), mais conhecido por Frederico Barbarossa (Barba Ruiva), a propósito da já
anteriormente mencionada Questão das Investiduras, ou pelos vários cismas que sofreu
com a existência dos papas de Avinhão e Pisa (entre 1378 e 1417), o que enfraqueceu e
desacreditou a Igreja Católica.

Na medida em que decaiam e perdiam poder e influência o Imperium e o


Sacerdotium, os novos reinos europeus surgiam com força crescente, neles se
afirmando que «reges non recognoscentes superiorem» («os reis não reconhecem
autoridade superior à sua») e que «rex est imperator in regno suo» («o rei é imperador
no seu próprio reino»). Isto vedava qualquer pretensão de ingerência do imperador
nesses territórios, que, à exceção dos acima referidos, ele não tinha e nunca chegara a
ter.

O facto é que será o Estado Moderno, soberano e independente dos demais


poderes que lhe são exteriores, que marcará o tempo em que entraremos quando
abandonarmos, de vez, a Idade Média. Disso mesmo serão reflexas as obras dos novos
filósofos políticos, juristas e legistas, como Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) e Jean
Bodin (1530 - 1596), os dois primeiros grandes teorizadores do Estado e da Soberania.
Ao primeiro é devida a introdução do vocábulo «Status» no léxico político para
representar
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a ideia moderna de Estado, enquanto, ao segundo, se fica a dever a elaboração do


conceito de poder soberano, que ainda hoje é geralmente utilizado na Ciência Política.

Em Portugal, foi com Afonso III que o reino se começará a firmar em moldes
modernos. E será durante este longo período de tempo, que ocupa o IIº Período da
História do Direito Português, que o Reino de Portugal se configurará como Estado
Moderno e soberano. As repercussões que esta evolução teve no campo do Direito
Nacional foram grandes, mas, sobretudo, no campo das suas fontes criadoras de
normas jurídicas e da justiça. No primeiro caso, modificou-se a posição relativa do
costume e da lei, começando esta a sobrepor-se à primeira, enquanto, no segundo, os
reis portugueses conseguirão impor uma justiça régia uniforme em todo o território
nacional, diminuindo progressivamente a importância das justiças senhorial e
municipal.

O ataque dos reis portugueses aos privilégios e benefícios da nobreza


terratenente e das ordens religiosas, isto é, aos proprietários dos senhorios, também
constituiu uma política de grande significado dos nossos reis. O objetivo era limitar ao
máximo as terras com privilégio de imunidade, sobretudo no campo dos tributos e da
justiça. Para esse fim, os nossos monarcas lançaram mão de dois processos que
convergiam para o mesmo fim: as Inquirições Gerais e as Confirmações. Pelo primeiro
mandavam verificar a autenticidade das alegadas doações régias das terras senhoriais,
sendo que se lhes seguiam, ou não, as confirmações desses estatutos concedidos
anteriormente, que os reis passavam a ter o direito de aceitar ou revogar. O primeiro
rei português a fazer Inquirições Gerais foi Afonso II, em 1220, tendo-as feito também
Afonso III (1258) e D. Dinis, que fez várias ao longo do seu reinado (1284, 1288, 1301,
1303-1304 e 1307-1311).

Os conflitos com a Igreja Católica foram também frequentes, e vindos até do


período anterior. A título de exemplo bastará lembrar que Afonso II foi excomungado
pelo Papa Honório III e nessa condição viria a falecer em 1223. Sancho II teve graves
conflitos com a Igreja, com o Bispo do Porto, o de Lisboa e até com o Arcebispo de
Braga, tendo sido excomungado em 1234. O próprio Afonso III, feito rei de Portugal
por um papa, teve conflitos violentos com a Igreja, e também foi excomungado em
1268, por Clemente IV. D. Pedro I promulgou o Beneplácito Régio, que proibia a
circulação dos documentos papais sem prévio visto e autorização do rei. D. João II, o
“Príncipe Perfeito”, que não admitia nenhum poder próximo do seu, consta que
mandou envenenar na prisão o Bispo de Évora. Ou seja, as relações entre o Estado
Português e a Igreja Católica e o Papa serão no sentido dos reis portugueses não
tolerarem a ingerência destes nos assuntos internos do Estado, assim se formando a
soberania nacional.

Por último, a Monarquia Portuguesa vai desenvolvendo um aparelho


burocrático de poder e de administração, que se consubstanciava num funcionalismo
público de alto escalão, mas igualmente de escalões médios e inferiores, como numa
justiça régia progressivamente uniforme no território do reino.

Serão graças a estes fatores, que de certo modo reproduzem o que se faz
noutros reinos da Europa, que o Estado Moderno Português se formará neste período
em que nos situamos, e será acompanhado pela evolução de um Direito igualmente
moderno, que reflecte na lei as novas prorrogativas da soberania régia.
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I. O “UTRUMQUE IUS”: O DIREITO ROMANO


JUSTINIANEU E O
DIREITO CANÓNICO.
Como já anteriormente tivemos ocasião de sublinhar, o início do reinado de
Afonso III assinala uma mudança significativa na forma como se exerce o poder real,
que se refletirá na organização política, administrativa e jurídica do reino.

Essa transformação seguirá o sentido do início da criação do moderno Estado


português, assente numa administração pública progressivamente uniforme, na
imposição, lenta, mas irreversível, de uma justiça régia em todo o território nacional e
no primado da lei régia como fonte criadora do novo Direito.

Estas mudanças não aconteceram de um dia para o outro e, como todos os


processos históricos profundos, levou tempo a definir-se e a consolidar-se. No caso, foi
necessário que os nossos reis: a) tomassem consciência da necessidade da
centralização do poder político, tendo em vista a modelação de um novo tipo de
Estado; b) combatessem os poderes difusos e multipolares da nobreza terratenente e
do clero (senhorios); c) atacassem o costume local, como fonte de direito, substituindo-
o pela lei régia ou, em alternativa, quando esse costume era muito antigo e respeitado,
simulando que a sua vigência se devia ao consentimento expresso do rei.

Nesse processo histórico podem detetar-se duas influências consideráveis ao


nível do Direito: o Direito Romano Justinianeu, cujo estudo sistematizado surge em
Itália, mais precisamente em Bolonha, depois de estar séculos reduzido à antiga parte
oriental do Império Romano, e o Direito Canónico, que é o direito próprio da Igreja
Romana, que fora, verdadeiramente, a única instituição universal (no contexto europeu
da época, faça- se notar) que sobrevivera ao Império Romano do Ocidente. Na lógica
da dualidade de poderes, que vinha já do Papa Gelásio I e da sua bula Duo Sunt, de
494, lógica essa que o Sacro Império reproduzira (“Sacro”, pela dependência ao poder
espiritual do Papa, e “Império”, relativo ao poder do Imperador), estes dois grandes
sistemas jurídicos, que não eram substancialmente tão separados quanto se possa
pensar, até porque o Direito Romano exercera irrefutáveis influências no Canónico,
serão o “utrumque ius” (“ambos direitos”), o direito comum da cristandade e de todos
os poderes e reinos que nela existissem. Por conseguinte, é necessário estudar os
fundamentos essenciais do Direito Canónico deste tempo e perceber em que consistiu
o Renascimento do Direito Romano do Corpus Iuris Civilis, para depois
compreendermos como e em que medida eles influenciaram a formação do nosso
Direito e do nosso Estado.
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II.O RENASCIMENTO DO DIREITO ROMANO


JUSTINIANEU: A ESCOLA DOS
GLOSADORES.
No processo de centralização política e legislativa do reino, foi de particular
importância a influência exercida pelo Direito Romano Justinianeu, sobretudo através
dos legistas que apoiavam o rei e ocupavam cargos importantes na cúria régia, como o
de Chanceler. Esse direito era, como sabemos, o que constava do Corpus Iuris Civilis,
que se tratava de um conjunto de compilações de Direito Romano elaborado por
Triboniano, jurista do Imperador Oriental Justiniano, sob as ordens e orientações deste
último, entre os anos 530 e 565. Esse conjunto de três compilações oficiais e uma
particular (Codex, Digesto, Institutas e Novelas) era um extraordinário repositório do
que tinham sido os Direitos Romano Clássico e Imperial, sendo atualizado, no século VI,
no momento da sua elaboração, de modo a poder ser um código de direito vivo e
aplicável à sociedade do Império Romano Oriental. E foram, por isso, muito
importantes para os reinos europeus, que se encontravam em processo de
constituição, a partir dos séculos XI e XII, porque lhes serviram de código de direito
estruturado e completo para, a partir dele, começarem a modelar os sistemas jurídicos
nacionais.

Acresce que o Direito Romano, mesmo antes da “descoberta” do CIC em


Bolonha, era, no Ocidente, o direito do Império Romano, durante a existência deste e,
depois do seu fim (476), o do Sacro Império Romano-Germânico, ainda que não
existisse uma codificação que permitisse conhecê-lo na sua total amplitude histórica e
dogmática, já que se desconhecia a existência do CIC. Na verdade, o Direito Romano
sobrevivera através de algumas obras esparsas de alguns jurisprudentes clássicos, mas
principalmente através da sua inclusão em códigos do direito dos povos germânicos
invasores do Império, como sucedeu com os visigodos, conforme a seu tempo
referimos. Mas, no Ocidente, será só a partir do final do século XI, início do seguinte,
que teremos contacto com o Direito Romano do CIC, que nos dará uma visão completa
e estruturada do que fora esse direito, o que foi extraordinariamente útil ao processo
de criação das novas soberanias.

Esse movimento cultural e jurídico ocidental de descoberta do Corpus Iuris


Civilis ficou conhecido por «Renascimento do Direito Romano Justinianeu»:
«Renascimento, porque se tratava de um direito antigo; «Direito Romano», porque o
CIC continha quase todo o Direito Romano Clássico e Imperial que tinha sido
elaborado pela civilização romana clássica; e «Justinianeu», porque o Direito Romano
que renasce é, precisamente, o do CIC, obra mandada fazer por esse imperador. Como
aconteceu essa “descoberta”?

A Escola dos Glosadores colherá a sua designação ao nome do seu


instrumento principal de trabalho, que era a glosa. Esta consistia em pequenas notas
tiradas sobre o texto do CIC, ou entre as linhas (glosas interlineares) ou à margem
(glosas marginais), cujo objetivo era meramente explicativo de uma palavra, de uma
frase ou de um conceito muito simples de Direito Romano. Há que ter em consideração
que o CIC tinha sido escrito no século VI, quase seiscentos anos antes do surgimento
da Escola dos Glosadores, e fora redigido em latim ou grego antigo, pelo que o
primeiro trabalho destes juristas, que agora o estudavam tanto tempo depois de ter
sido feito, era mesmo perceber o que lá estava literalmente escrito. Por isso se diz que
o método dos
11 História do Direito II – Micaela Gonçalves

glosadores era o método exegético ou literal, significando isto que os glosadores se


dedicaram, pelo menos no começo dos seus trabalhos, à explicação e compreensão
dos textos dessa obra, quase letra a letra, palavra a palavra. Era necessário
compreender o que estava escrito nesses textos, num primeiro momento e, num
segundo, procurar assimilar alguns conceitos básicos de Direito Romano, que era um
sistema jurídico de grande desenvolvimento e complexidade ao tempo de Justiniano.

Por isso, os glosadores não aprofundaram o Direito Romano do CIC:


essencialmente, desbravaram-no, compreenderam-no e explicaram-no. Para além dos
dois tipos de glosas já mencionados (interlineares e marginais), os glosadores, à
medida que iam entendendo a enorme obra que estavam a devastar, foram
desenvolvendo outro tipo de trabalhos um pouco mais desenvolvidos, mas, ainda
assim, juridicamente muito elementares. Foram eles os seguintes:

 Apparatus: quando, para além de explicarem o sentido literal dos textos,


desenvolviam teoricamente alguma parte;
 Regulae, brocarda e generalia: quando enunciavam definições jurídicas, ou
conceitos, breves e sucintas;
 Summae: exposições sistemáticas, um pouco mais extensas que o habitual, de
um texto completo do CIC;
 Quaestiones e casus: hipóteses práticas, extraídas da vida real, às quais
aplicavam os conceitos do Direito Romano do CIC;

 Dissensiones dominorum: consistiam num tipo de trabalho tardio desta Escola,


que corresponde à exposição de controvérsias sobre um determinado assunto
de Direito Romano do CIC, que surgiam entre vários mestres com opiniões
divergentes. Era, no fim de contas, a exposição dessas divergências e os
argumentos aduzidos por cada professor.

É também de salientar que, por razões que permanecem ainda desconhecidas, os


Glosadores dividiram o Corpus Iuris Civilis de uma forma diferente da original. Assim, a
divisão medieval do CIC, feita pelos Glosadores, foia seguinte:

 Digesto Vetus (Digesto Velho ou antigo): dos volumes 1º ao 23º;


 Digesto Infortiatum (Digesto Reforçado): dos volumes 24º a 38º;
 Digesto Novum (Digesto Novo): dos volumes 39º a 50º;
 Codex: com os primeiros 9 livros do Codex justinianeu;
 Volume Parvum (Volume Pequeno): que incluía os 3 livros restantes dos 12 que
compunham o Codex jutinianeu, os 4 livros das Institutas e uma coleção de
Novellae, em regra, das várias existentes, era mais utilizado o Authenticum.

Por fim, refira-se que a Escola dos Glosadores entrou em decadência a partir de
meados do século XIII, de forma mais evidente na segunda metade dessa centúria. Na
verdade, o seu método de trabalhar os textos justinianeus começava a ser redundante,
porque já tudo estava explicado do ponto de vista da literalidade e, mesmo até, de
alguns conceitos jurídicos básicos. Desse modo, a partir de meados desse século,
começou a desenvolver-se uma metodologia de estudo nova, muito baseada na
Escolástica e no método dialético de Aristóteles, reinterpretado na Idade Média, com e
após S. Tomás de
12 História do Direito II – Micaela Gonçalves

Aquino, que foi a Escola dos Comentadores. A encerrar simbolicamente os trabalhos


dos Glosadores foi escrita, entre os anos de 1220 e 1234, uma imensa compilação das
glosas mais significativas, elaboradas desde a fundação da Escola dos Glosadores. Essa
obra foi realizada por um glosador italiano tardio chamado Acúrsio (Francisco Acúrsio,
1182/5 – 1260/3), sendo o livro a Magna Glosa de Acúrsio, ou Glosa Ordinária
(Comum), ou simplesmente pela Glosa. Reuniu cerca de 96.000 glosas, sendo do
próprio autor perto de 1/3, estando estas assinaladas por um (Ac.) no final.
Distribuíam-se deste modo:
62.577 para o Digesto, 21.933 para o Codex, 4.737 para as Institutas, 7.013 para o
Authenticum e algumas centenas para livros feudais que continham direito e que
também glosou.

Em 1270 nasceria Cino de Pistoia (1270-1336), que será considerado o fundador do


novo método dialético-aristotélico do comentário, que abriria espaço à criação da nova
Escola dos Glosadores.

III. O DIREITO CANÓNICO:


INFLUÊNCIA E O CORPUS
IURIS CANONICI.
Vimos a importância que a Igreja Católica exerceu no mundo antigo. Ela
principia com a conversão do Imperador Constantino ao cristianismo – religião que o
Império Romano perseguir durante séculos – , que, segundo reza a lenda histórica, terá
ocorrido depois da sua vitória militar sobre o seu rival Magêncio, que pretendia usurpar
lhe o lugar de imperador, na Batalha da Ponte Mílvia, em 28 de outubro de 312.
Constantino atribui a vitória ao Deus dos cristãos, dizendo que sonhara, na noite
anterior à batalha, com um crucifixo acompanhado de uma legenda a dizer “in hoc
signo vinces” (“com este símbolo vencerás”). No dia seguinte, momentos antes da
batalha, mandou todos os soldados pintarem o símbolo da cruz nos seus escudos,
tendo obtido uma vitória considerável sobre o seu inimigo, que atribuiu a esse facto.
Depois da sua conversão, de cuja autenticidade muitos historiadores duvidam, o facto é
que Constantino fez publicar o Edicto de Milão, em 313, pelo qual determinou a
neutralidade religiosa do Império Romano e o fim de todas as perseguições por
motivos religiosos. Esse facto, numa sociedade ainda muito dominada pelo paganismo
e pela idolatria, não obstante a penetração que nela já exercia o novo credo cristão, foi
de extrema importância. A religião cristã começou a ser o credo pessoal dos
imperadores e, em 380, Teodósio I proclamou, o cristianismo como religião oficial do
Império, proibindo o paganismo e o politeísmo, e fechando, ou convertendo em
templos cristãos, os templos desses cultos.

Desde então, a influência da Igreja Católica no espaço geográfico do Império


nunca mais deixou de crescer. Quando este desaparece, em 476, é ela que manterá
alguma unidade na Europa Ocidental, no mundo caótico que imediatamente se lhe
seguiu. À medida que o tempo avança, o catolicismo converterá os bárbaros e os seus
representantes integrarão os órgãos de poder das monarquias de origem germânica,
como sucedeu na Monarquia Visigótica, onde os concílios religiosos tinham a maior
importância política. Por tudo isto, não poderá espantar que a Igreja Católica tenha
sido influenciada pela e influenciadora da cultura romana e do seu direito. O Direito
Canónico terá vestígios, na forma e no conteúdo, de Direito Romano, como este
13 História do Direito II – Micaela Gonçalves

se deixará
14 História do Direito II – Micaela Gonçalves

influenciar pelos ditames da moral católica, como sucedeu, por exemplo, do Direito da
Família e das Sucessões.

O Direito Canónico é, em primeira instância, um direito próprio da Igreja


Católica, que se aplica aos seus membros e é aplicado pelos seus órgãos jurisdicionais.
Contudo, seja pelas influências que referimos, seja pela importância da instituição, seja
pelo abandono de muitas populações, que tinham somente na Igreja e nas suas
estruturas o seu porto de apoio, neste tempo, a sua aplicação extravasou, em muito, o
domínio próprio da instituição.

Assim, o direito canónico aplicava-se nos tribunais eclesiásticos e nos tribunais


civis. Nos primeiros, em razão da matéria dos processos (questões sacramentais, como
as dos casamentos religiosos, crimes religiosos, como a blasfémia, a heresia e a
feitiçaria), mas também em razão da qualidade de certas pessoas, como os prelados e
certos nobres, que dispunham do chamado privilégio do foro eclesiástico (serem
julgados nos tribunais da Igreja, em vez de o serem nos tribunais comuns). Nos
tribunais civis era fundamentalmente utilizado como direito subsidiário, isto é, o que se
aplica na ausência de fonte principal de direito nacional.

Quanto às fontes desse direito, elas eram, nesta altura, essencialmente de dois
tipos: os cânones (normas jurídicas emanadas dos concílios) e as decretais (normas
jurídicas emanadas pelos papas).

Ao longo dos séculos foram geradas inúmeras normas de Direito Canónico por
via estas duas fontes, sendo que, à semelhança do Direito Romano, foram também
sendo reunidas em compilações. À semelhança ainda desse direito, no ano de 1500 é
editado, em conjunto, as obras mais importantes deste direito, tendo-lhe sido dado,
por um editor francês, o nome de Corpus Iuris Canonici. São as seguintes as
compilações que o integram:

Decreto de Graciano (concluído entre 1140 e 1142): obra feita por João
Graciano, monge de Bolonha, seguramente influenciada pelo seu conhecimento
do Corpus Iuris Civilis. É uma coletânea de todas as fontes de Direito Canónico
existentes até à data, com o objetivo de eliminar as contradições entre elas
existentes e dar coerência a essa enorme massa jurídica. De certo modo,
desempenha, no Corpus Iuris Canonici, a mesma função que o Digesto tem no
Corpus Iuris Civilis: reunir e ordenar todo o direito antigo, neste caso, o Direito
Canónico antigo, eliminando as contradições e dissensões doutrinais que nele
foram, ao longo dos séculos, surgindo. Por essa razão, esta obra ficou também
conhecida por «Concordia discordantim canonum».
Decretais de Gregório IX (1234): compilação das decretais (normas jurídicas
dos Papas) publicadas depois do Decreto. Mandada fazer por Gregório IX,
tendo sido o seu autor o padre dominicano espanhol Raimundo de Penhaforte.
É constituída por cinco livros.
Livro Sexto de Bonifácio VIII ou simplesmente o Sexto (1298): reúne as
decretais posteriores à anterior compilação. É constituído por um só volume,
chamando se-lhe o «sexto», porque poderia ter sido mais um volume da
codificação anterior.
15 História do Direito II – Micaela Gonçalves

Clementinas, ou Constituições do Papa Clemente V (iniciadas em 1314, no


papado de Clemente V, que lhes deu o nome, mas só concluídas no papado
seguinte de João XXII): mais uma compilação de decretais posteriores às
incluídas na compilação oficial anterior).
Duas compilações de decretais sem carácter oficial: que não foram
ordenadas fazer por nenhum Papa): as Extravagantes de João XXII e as
Extravagantes Comuns: numa e noutra estão decretais de vários papas, não
compiladas anteriormente. Daí o nome «extravagantes»: vigoravam fora das
compilações oficiais.

IV. O FIM DO MÉTODO EXEGÉTICO E A SUA


SUBSTITUIÇÃO PELO MÉTODO DIALÉTICO: A
ESCOLA DOS COMENTADORES.
Como já assinalámos, o sistema que os glosadores tinham de abordagem dos
textos justinianeus correspondia a uma análise literal ou exegética dos mesmos, de
resto, imposta pela natureza das coisas, pela complexidade e extensão de uma obra
que estava escrita numa língua antiga e desatualizada. Esse método acabou por
esgotar-se em si mesmo e por se tornar inútil, ao fim de algum tempo, já que tudo o
que não passava da mera literalidade e dos conceitos elementares de Direito Romano
Justinianeu estava já suficientemente esclarecido. Referimos, a propósito, que a obra de
Acúrsio, a Magna Glosa, escrita na segunda ou na terceira década do século XIII,
assinala o fim dessa Escola e a necessidade de avançar num sentido diferente.

Esse foi o caminho encetado também pelos juristas de Bolonha e iniciado por
Cino de Pistóia (1270-1336), que aproveitaram as novidades do método dialético de
Aristóteles (o antigo filósofo grego que fora recuperado para o cristianismo por S.
Tomás de Aquino (1225-1274), após muitos séculos de condenação por parte da Igreja
Católica) para procederem a uma nova abordagem do Corpus Iuris Civilis. Esse novo
método, seguido no ensino do Direito e na literatura jurídica, ultrapassava a mera
literalidade dos textos, aprofundando e desenvolvendo os seus conceitos. A dialética
era sobretudo utilizada porque os mestres apresentavam um texto justinianeu e, em
seguida, ponham em confronto diversos pontos de vista sobre a matéria jurídica de
que tratava, acabando por retirar aquela que lhe parecia ser a melhor conclusão, em
modo de síntese final de um exercício dialético. Deste modo, os juristas aprofundaram
e desenvolveram o Direito Romano e começaram a comentá-lo muito para além do
que estava escrito nos textos trabalhados. Daí esta Escola se designar como a Escola
dos Comentadores. Mais tarde, em contraposição a uma outra abordagem, ou método
de trabalho, do Corpus Iuris Civilis nascido em França, a Escola do Humanismo Jurídico,
o método dos Comentadores será comumente designado por «mos italicus», isto é, o
uso, a forma comum italiana de trabalhar o Corpus Iuris CIvilis, enquanto que a Escola
do Humanismo Jurídico ficará conhecida pelo «mos gallicus».

Vários foram os autores comentadores notáveis, mas, de todos, aquele que mais
prestígio granjeou foi Bártolo de Sassoferrato (1313-1357), que, apesar de uma vida
breve, produziu doutrina de tal modo importante que, durante muito tempo, se dizia
que «nemo bonus jurista nisi bartolista» («ninguém será um bom jurista se não for
16 História do Direito II – Micaela Gonçalves

bartolista»). Outro autor da maior importância foi Baldo dos Ubaldi (1327-1400),
também um jurista italiano cujos trabalhos foram muito divulgados e influentes. No
que se refere a Bártolo, para se ter uma noção da magnitude da sua importância,
diremos, sem nos adiantarmos excessivamente sobre matéria que será adiante
desenvolvida, que os seus comentários, ou obras, eram autorizados, nas três
Ordenações do Reino de Portugal (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), como fonte de
direito subsidiário, podendo os mesmos, portanto, ser o fundamento das sentenças dos
nossos juízes, desde que verificados os requisitos que a lei nacional determinava.

O método dos Comentadores será contestado, a partir do século XVI, pelos


autores do Humanismo Jurídico, sobretudo pelos franceses, mas nunca perderá a sua
influência, enquanto o CIC foi a principal fonte de direito do Ocidente. Em Portugal, por
exemplo, o «mos gallicus» nunca penetrou, ao passo que o «mos italicus» foi quase
sempre preferido pela doutrina dos nossos juristas.

I. A ÉPOCA DAS ORDENAÇÕES: ENQUADRAMENTO


HISTÓRICO; RELAÇÃO DOS MONARCAS
DESTE PERÍODO.
Entramos, agora, na segunda fase do segundo período da História do Direito
Português, à qual demos o nome de «Época das Ordenações», porque foi a elaboração
das primeiras Ordenações do Reino, as Ordenações Afonsinas, que marcaram uma
significativa alteração na ordem jurídica portuguesa.

Este período corresponde, em termos políticos, à consolidação do Estado


Moderno Português, que já se começara a formar nos dois séculos anteriores, como
tivemos ocasião de analisar. Nesta fase, contudo, os elementos caracterizadores do
Estado Moderno já estão quase todos presentes, sendo que irá ocupar, sensivelmente,
três séculos, de meados do século XV a meados do século XVIII.

De facto, estamos num momento em que o processo de centralização política


do reino atingira um nível muito elevado, estando a nobreza e o clero já plenamente
sujeitas à autoridade secular do príncipe, tendo esse processo tido um ponto final
conclusivo no reinado de D. João II (1477-1495). No campo do direito, que foi um dos
domínios mais caracterizadores do processo de centralização do poder, também o
primado da autoridade real é manifesto, afirmando-se pela lei e pela difusão das novas
Ordenações, em contraponto ao predomínio do costume local, que marcara ainda a
primeira fase deste segundo período. A justiça é, agora, plenamente de administração
régia ou controlada pelo novo Estado, e os tributos são também em boa parte
disciplinados pelo rei e pela sua burocracia. Este longo ciclo histórico, iniciado após o
fim do turbulento reinado de Sancho II e da subida ao poder de Afonso III, irá terminar
com a eclosão do nosso Absolutismo, na sua forma de Despotismo Esclarecido do
Marquês de Pombal, que provocará transformações, também elas muito profundas, no
Direito Português.
17 História do Direito II – Micaela Gonçalves

II.A NECESSIDADE DE COMPILAR O DIREITO


LEGISLADO PORTUGUÊS:
TENTATIVAS ANTERIORES ÀS ORDENAÇÕES: LIVRO DE LEIS E POSTURAS E
ORDENAÇÕES DE D. DUARTE

A progressiva atividade legislativa dos nossos monarcas, principiada a partir de


Afonso III, trouxe a necessidade, muito sentida ainda no final do século XIV, de se
ordenar o direito legislado existente e em vigor, de modo a que se resolvessem
problemas crescentes de contradição e dispersão legislativa. Diz-se, no Proémio
(Introdução) do Livro I das Ordenações Afonsinas, que D. João I recebera queixas dos
procuradores dos concelhos em Cortes, que lhe pediram que tornasse claro o direito
legislado em vigor no reino. Dizia-se aí que «pela multiplicação delas [as leis] se
recresciam continuamente muitas dúvidas e contendas em tal guisa, que os Julgadores
dos feitos eram postos em tão grande trabalho, que gravemente e com grande
dificuldade os podiam direitamente desembargar». Por essa razão, nomeará, o Rei, o
corregedor da Corte João Mendes para realizar essa tarefa, à qual o rei não pôde
assistir, visto ter falecido muito antes da sua conclusão, que, de resto, terminará treze
anos depois da sua morte.

Mas antes das nossas primeiras Ordenações terem sido concluídas e aprovadas
para entrarem em vigor no Reino, outros dois livros, com fins igualmente de
compilação do nosso direito, foram elaborados em Portugal. A saber:

O Livro de Leis e Posturas, de fins do século XIV, de autor desconhecido, que


reúne leis dos reis Afonso II, Afonso III, D. Dinis e de Afonso IV. É um livro desordenado,
com leis repetidas, sem qualquer preocupação de sistematização sequer pelos reinados
a que as leis pertenciam.

As Ordenações de D. Duarte, compostas durante as primeiras décadas do século


XV, que terão tido alguma participação do filho de D. João e rei de Portugal, que
acrescentou ao livro um índice e um texto seus sobre «as virtudes do bom julgador».
Trata-se já de uma obra ordenada, nomeadamente pelos reinados a que as leis
pertencem, dividindo-as em razão das matérias de que tratam.

Note-se que nenhum destes livros teve vigência oficial, devendo ser ambos
classificados como coleções particulares de leis régias.

É, também, de referir que a criação da Universidade Portuguesa, em Lisboa, nos


finais do ano de 1288 (durante o reinado de D. Dinis), ainda como Studium Generale
(Estudo Geral), e cuja fundação será confirmada pela bula De statu regni portugallie, de
9 de Agosto de 1290, do Papa Nicolau IV, foi um motivo importante para se
conseguirem alcançar estas realizações no campo do direito, visto o seu estudo passar
a fazer-se em Portugal, atingindo um número progressivamente maior de estudantes e
de mestres.
18 História do Direito II – Micaela Gonçalves

III. AS TRÊS ORDENAÇÕES DE


REINO: AFONSINAS,
MANUELINAS E FILIPINAS.
ORDENAÇOES AFONSINAS

A necessidade de estabelecer uma ordem, que inexistia no Direito Português,


sobretudo no muito que já fora legislado pelos nossos monarcas nos mais de cento e
cinquenta anos precedentes, bem como de esclarecer as reservas existentes sobre a
aplicação judicial do Direito Romano e do Direito Canónico era já muito sentida no final
do século XIV, tendo-se feito notar, ainda com maior persistência, no começo do seculo
seguinte durante o reinado de D. João I.

Efetivamente, logo nas Cortes que reuniram em Coimbra em 1387, aquele rei
recebeu reclamações vindas dos procuradores do povo sobre o estado em que se
encontrava o Direito Português, tendo-lhe sido solicitado que criasse um código para
resolver essa situação caótica. A par das inquietações populares, também o Doutor
João Afonso das Regras (1357-1404), Chanceler da Corte e ilustre jurista, antigo aluno
de Bolonha e professores na nossa Universidade, na qual foi também nomeado
protetor pelo D. João I, defendeu a realização da verdadeira empreitada que permitiria
trazer maior segurança ao direito nacional. A sua morte prematura não permitiu,
contudo que tivesse sido ele a dirigir os trabalhos conducentes à concretização da obra
desejada, como teria sido natural que acontecesse, tendo lhe sucedido nessa tarefa o
Doutor João Mendes. Porém também o falecimento prematuro deste levou a que
tivesse de ser nomeado para a sua substituição, o Doutor Rui Fernandes, jurista de
nascimentos prestígio da corte de D João I e dos seus sucessores, a quem coube a
distinção de ter sido desembargador da Corte e Chanceler mor do reino. Os trabalhos
foram por ele concluídos em 1446, mas já durante a regência do Infante D Pedro, que
tinha sucedidos ao falecido irmão no ano da morte deste em 1438 ( 9 de setembro ),
nessa qualidade transitória, na pendência da menoridade do seu sobrinho Afonso
( futuro Afonso V). Apesar disso, acabou por ser o duque de Coimbra que, mais tempo
companhia a realização dos trabalhos da obra, que lhe é efetivamente muito mais
tributária do que a qualquer príncipe.

Quanto ao momento da sua conclusão, há notícia de que estas Ordenações


eram já oficialmente utilizadas em agosto de 1447, pelo que se considera que terá sido
esse o ano do início da sua vigência efetiva. Torna-se, porem, necessário realçar que o
impacto desta coletânea oficial de direito no país foi consideravelmente limitado, em
razão de não ter sido feita uma edição impressa tipo graficamente, sendo, por esse
motivo, muito reduzido o número de cópias manuscritas que foram postas em
circulação. Esse problema só seria ultrapassado com as Ordenações seguintes, as
Manuelinas que já foram impressas em tipografia, entretanto introduzida em Portugal.

A compilação é basicamente composta por leis régias, mas também inclui


costumes, extratos do Corpus luris Civilis e de obras de Direito Canónico, assim como
algumas passagens de textos da Magna Glosa e dos Comentários de Bártolo. Está
organizada em 5 livros, que, por sua vez se encontram divididos em títulos e
parágrafos, conforme as matérias de que tratam, do modo seguinte:
19 História do Direito II – Micaela Gonçalves

 O Livro I (72 títulos): cargos da administração do Reino e da justiça.


 O Livro II (123 títulos): relações entre Estado e Igreja, regime jurídico dos bens e
privilégios da Igreja, direitos régios e sua cobrança, jurisdição dos donatários,
prerrogativas da nobreza e legislação "especial" para judeus e mouros.
 O Livro III (128 títulos): organização do processo civil.
 O Livro IV (112 títulos): direito civil: contratos, arrendamento, testamentos,
tutelas, formas de distribuição e aforamento de terras.
 O Livro V (121 títulos): direito penal: os crimes e as suas respetivas penas.

Refira-se que os livros não foram todos redigidos do mesmo modo, nem usaram a
mesma técnica de transposição das leis compiladas. E que, enquanto no primeiro se
utilizou um estilo ao tempo mais inovador - o decretório ou legislativo -, coligindo as
leis sem indicação da fonte e dando-lhe uma nova redação - os, restantes quatro
procederam a simples transcrição das fontes utilizadas, sem qualquer modificação.
Pensa-se que estes quatro volumes tenham tido uma autoria diferente do primeiro,
certamente de Rui Fernandes, enquanto este teria sido composto ainda por João
Mendes. Isto explicaria a diferença de estilos, embora não se possa dar esta hipótese
como garantida, havendo estudos recentes que asseguram que a autoria de toda a
compilação se deve a Rui Fernandes.

Sobre as fontes de direito previstas nestas Ordenações e cuja aplicação era


admitida nos tribunais do Reino, bem como os critérios que o juiz deveria seguir no
exercício das suas funções, apreciaremos essa matéria em conjunto com as outras duas
Ordenações, de modo a melhor entendermos a evolução do Direito Português e das
suas fontes neste extenso período.

ORDENAÇÕES MANUELINAS
A intensa atividade legislativa dos monarcas que se seguiram à conclusão das
Ordenações AFONSINAS, assim como alguns factos políticos e jurídicos, entretanto
ocorridos levaram à necessidade premente de reformar as nossas primeiras
Ordenações. De entre os acontecimentos mais significativos, que justificaram a decisão
de fazer um novo código, em vez de simplesmente reformar o anterior, esteve a
introdução da tipografia em Portugal por judeus vindos de fora do nosso país,
nomeadamente de Itália e da Alemanha.

Foi a D. Manuel I que coube a iniciativa de mandar proceder a esta reforma,


tendo o rei dado ordens ao Chanceler-Mor Rui Boto para prover à sua realização. Este
terá contado com a colaboração de outros dois juristas -Rui da Grã e João Cotrim,
ficando a obra concluída em data imprecisa, mas que permitiu que a publicação do seu
Livro l ocorresse ainda em 1512. O trabalho de impressão foi efetuado por Valentim
Fernandes, um alemão da Morávia que estava há muito estabelecido em Portugal,
tendo tido, os cinco volumes que compunham estas Ordenações, edição completa em
1514, mas não sequencial (6 Livro V, que reunia o Direito Penal, foi o primeiro a ser
impresso, devido à importância da matéria de que tratava). A tiragem inicial foi de
5.000 exemplares, no total dos cinco volumes, com mil exemplares por cada um. Este
número de cópias já permitiu ao contrário do que sucedera com as Ordenações
Afonsinas, uma difusão mais alargada no país, pelos tribunais e entre os profissionais
do direito, o que contribuiu para a consolidação da nossa ordem jurídica e para a
afirmação da autoridade do rei. Uma nova
20 História do Direito II – Micaela Gonçalves

e definitiva versão atualizada e revista das Ordenações foi, por sua vez, concluída em
1521, ano da morte de D. Manuel I, tendo o rei mandado recolher à Corte ou ordenado
a destruição de todos os anteriores exemplares, ameaçando punir severamente quem
não o fizesse e mantivesse cópias da primeira edição. O código foi impresso por um
francês chamado Germão Galhardo, com tipografia estabelecida em Lisboa.

Quanto à divisão e sistematização destas Ordenações, ela é idêntica às


anteriores, tendo embora sido atualizado o texto com leis novas e outras que foram
retiradas. Foi o que aconteceu com as que passaram a figurar nas Ordenações da
Fazenda publicadas em 1516, que consistiam num código que reuniu exclusivamente as
leis que diziam respeito aos tributos régios e demais assuntos financeiros da coroa.
Também a expulsão dos judeus, determinada por decreto régio de 31 de março de
1492, levou a que fossem expurgadas da compilação as normas que dispunham sobre
estas pessoas e que figuravam, anteriormente, no Livro II das Ordenações Afonsinas.

Por último, acrescente-se que, quanto ao estilo de redação, as Ordenações


Manuelinas seguiram na íntegra o modelo do Livro I do código anterior, isto é, não
eram apenas uma simples transcrição de leis anteriores, tendo sido reescritas como se
de leis novas se tratassem. O estilo decretório foi, portanto, o utilizado.

ORDENAÇÕES FILIPINAS
Foram estas as últimas Ordenações do Reino de Portugal A decisão de as levar a
cabo deveu-se ao primeiro rei da dinastia filipina - Filipe 1 (II de Espanha), que as
confiou a uma comissão composta por Jorge de Cabedo (1525-1604), Chanceler-mor
do Reino, Afonso Vaz Tenreiro e Duarte Nunes do Leão (1530-1608), os três juristas
renomados e desembargadores da Casa da Suplicação. Os trabalhos terminaram em
1595, durante o reinado de Filipe I. Porém as ordenações do entrariam em vigor no
reinado do de Filipe II (o seu pai morrera em 1598), por carta régia de e janeiro de
1603, e foram objeto de edição impressa da tipografia lisboeta de Pedro Craesbeeck,
um belga que se transladara para Lisboa, onde mantinha a mais importante tipografia
portuguesa dessa época.

Quanto ao conteúdo, divisão e sistematização do novo código, ele manterá a


lógica das Ordenações Manuelinas. Foi uma complicação atualizada das leis régias e de
outras fontes de direito, uma vez mais de Direito Romano e Canónico. O seu estilo de
redação é o decretório e são consideradas de todas as três ordenações portuguesas as
mais imperfeitas visto conterem frequentes repetições de normas e manterem algum
direito já cauda em desuso. Essas falhas, frequentes ao longo do texto, foram
popularmente batizadas de "filipismos", em homenagem aos patronos da obra. Por
outro lado, cada um dos cinco livros que as constituíam era composto por fascículos
que não estavam intencionalmente anexados em conjunto, o que facilitava acrescentar
ou retirar leis, mas que, com o tempo e os acrescentos feitos, isso afetou a coerência
global do código.

Apesar dessas imperfeições, as Ordenações Filipinas mantiveram-se em vigor


em Portugal, ainda que já muito consideravelmente amputadas, com vários
aditamentos feitos a cada um dos seus livros", até à entrada em vigor do nosso
primeiro Código Civil de 1867, quando, aí sim, foram integralmente revogadas.
Estávamos em pleno século XIX, já depois da nossa Revolução Liberal e do triunfo do
liberalismo na guerra civil que
21 História do Direito II – Micaela Gonçalves

termina em 1834, ou seja, nos primórdios da criação do nosso Estado de Direito


Contemporâneo. Conforme é próprio desses novos tempos, a codificação oficial do
direito era vista de um modo distinto do que se fizera até ai, considerando que este
deveria ser organizado e repartido por tantos códigos/leis quantos os seus ramos mais
significativos, e que deveria dispor para futuro, não se cingindo a uma mera
compilação de leis pretéritas. Este novo ciclo do direito europeu e nacional ficou, deste
modo, marca do pela codificação do direito feita em conformidade com os seus
diferentes ramos e arcas de individualidade dogmática, assim permanecendo, ainda
hoje, na maior parte dos países do mundo. Curiosamente, no Brasil, que fora território
português até à independência de 7 de setembro de 1822, as Ordenações Filipinas
sobreviveram não apenas a separação política dos dois países, mas à própria cessação
de vigência no da sua origem, tendo sido o principal código de direito brasileiro até
1916, quando entrou em vigor o primeiro Código Civil desse país.

COLECTÂNEA DE LEIS EXTRAVAGANTES DE DUARTE NUNES DE


LEÃO

Considerando a quantidade substancial de legislação extravagante surgida


depois das Ordenações Manuelinas e antes de concluídas as Ordenações Filipinas,
Duarte Nunes de Leão, promoveu a realização de uma compilação dessa legislação que
vigorava dispersa e fora do código oficial do Reino. Esta obra, apesar de feita por um
particular, entraria em vigor por via de um Alvará publicado a 14 de fevereiro de 1569,
do Cardeal D. Henrique, então regente do reino, dada a sua compreensível utilidade.
Foi denominada de Leis Extravagantes Coligidas e Relatadas pelo Licenciado Duarte
Nunez do Lião. A obra está dividida em seis partes, de acordo com as matérias de que
cada uma delas trata. Antes dela, e para auxiliar os juristas a utilizarem o Direito
Português em vigor, o mesmo autor compusera um “Repertorio dos cinco livros das
Ordenações com adições das leis extravagantes”, que viu a luz no ano de 1560.

FONTES DE DIREITO NAS ORDENAÇÕES


Quanto as fontes de direito que vigoravam em Portugal na época de as
Ordenações - meados do século XV à Lei da Boa Razão -, registaram se modificações
significativas em relação aos duzentos anteriores, todas no sentido do robustecimento
do poder real e da legislação régia.

Assim, deveremos distinguir em principal instância, as fontes de criação


nacional, o Direito Pátrio ou ius proprium, das do Direito Subsidiário, que são aquelas
as quais o juiz estava autorizado a recorrer em caso se verificar uma lacuna do
ordenamento jurídico nacional, isto é, quando o Direito Português não tinha norma
aplicável ao caso sub judie. Devemos considerar que, apesar da profusão de leis régias
existentes e do facto de a estas deverem ser acrescentadas as outras duas fontes de
direito nacional - o costume e o estilo da corte-, subsistiam, ainda assim, numeras
situações da factualidade social que não tinham previsão normativa nacional que se
lhes destinasse. Por essa razão, o próprio legislador determinará, em cada uma das três
Ordenações, como deveria o juiz proceder para colmatar essas lacunas da nossa ordem
jurídica.
22 História do Direito II – Micaela Gonçalves

Vejamos, primeiro, quais eram as fontes do lus Proprium e, em seguida, as que


o complementavam subsidiariamente. Assinale-se que as regras de aplicação do direito
subsidiário mudam das Ordenações Afonsinas para as Manuelinas, mantendo-se
inalteradas destas para as Filipinas.

DIREITO PÁTRIO (JUS PROPRIUM)


O Direito Pátrio é aquele que resulta das fontes nacionais. E, por isso, o lus
Proprium, no sentido de que se trata do direito próprio do nosso país. Apesar de, nesta
altura, o Direito Português já ser predominantemente dominado pela lei régia, ainda
não se esgotava nela, uma vez que o monopólio legislativo do monarca e do Estado
será somente assegurado a partir de 1769, com as reformas introduzidas pela
anteriormente mencionada. Lei da Boa Razão. Até lá, a lei dos nossos Reis aplica se
inequivocamente em primeiro lugar, mas, se não existisse lei régia para o caso
concreto, ou até, em certas circunstâncias especiais que diante especificaremos era
permitido ao juiz socorrer se do costume e do estilo da Corte, que são também fontes
do IUS Proprium. Em certos casos, poderia mesmo o costume prevalecer sobre a
própria lei do rei, ainda que mesmo o costume prevalecer sobre a própria lei do rei,
ainda que dispusesse em sentido diferente dela, conforme veremos diante pela aos tu
ilitre mencionada Lei da Boa Razão.

Estas eram as três formas de criar Direito Português, sendo que as Ordenações
asseguram a sua superioridade em relação a qualquer outro tipo de fonte, fosse do
Direito Romano, do Canónico,
ou doutra natureza. Afirmando esse princípio, nas Ordenações Manuelinas podia ler-se
o seguinte: “onde a Ley, estilo, ou costume do reino dispõem, cessem todas as outras
Leys ou direito “. Analisemos, então esses três tipos de fontes do direito português.

Lei Regia
A lei régia era, já nesse período, a forma principal de criação do nosso direito.
Consistia na criação da norma jurídica pela expressão declarada e intencional da
vontade soberana do rei, conforme os princípios do direito legislado imperial
constantes do Corpus Iuris Civilis, já anteriormente referidos a pretexto de uma citação
de Ulpiano.

A lei era, por conseguinte, a expressão da vontade de um monarca que se sentia


- e era - cada vez mais soberano e senhor do seu reino, e que já não admitia poder
interno maior ou próximo do seu. Porém, esse facto não deveria desobrigá-lo do
cumprimento das suas disposições legais que ele próprio criava. A doutrina nacional
debateu-se, neste tempo de consolidação do Estado Moderno e da soberania, sobre o
que deveriam ser a função régia, o âmbito e alcance dos seus poderes, a eventual
existência de contrapesos e limitações ao seu exercício. A esse propósito, colocavam-se
dois princípios antagónicos sobre a atuação do príncipe, mormente em relação ao
direito é à lei: o de que o “princeps legibus solutus “(o príncipe é livre da sua
legislação), e em contrapartida, o de que o “ princeps teneatur servare suas leges “ ( o
príncipe está obrigado a observar as suas leis ). A nossa doutrina inclinou se, no século
XVI e em parte do seguinte, para a segunda asserção, preterindo-a em relação à
primeira, que conduziria, mais tarde ao absolutismo. Juristas e homens de culturas
política como Diogo De Sá (século XVI, sendo as datas de nascimento e morte
desconhecida), Jerónimo Osório (1506-1580), Gonçalo Mendes de Vasconcelos
(1558-1604), entre outros,
23 História do Direito II – Micaela Gonçalves

seguiram nessa orientação que não deixou de ser crítica da que pretendia o pode régio
exercido sem controlo. Jerónimo Osório, por exemplo, considerava que «quanto mais
poderoso for quem mandar, mais tunestos os seus malefícios, e os outros dois autores
mencionados nunca hesitaram em defender que os reis tinham de submeter-se à torça
diretiva da lei, isto é, ao que a lei determina para a comunidade e para os seus
cidadãos, tendo em vista o bem comum.

Sendo direito criado por uma decisão intencional de um órgão legítimo para o
efeito - o rei ou um ministro seu, em seu nome -a forma que a lei régia tomou não
será, porém, sempre a mesma. Por conseguinte, poderemos considerar que exauram
vários tipos de leis, em razão da sua importância, do seu conteúdo e da entidade
soberana declarante. De todo o modo, insista-se, seja qual for a sua origem material, a
lei do Estado Moderno português encontrará sempre a sua legitimidade na vontade
regia. Vejamos, então, quais foram os seus modelos de expressão mais relevantes.

Cartas de Lei e os Alvarás: são os dois principais upos de lei desta época.
Distinguem-se por aspetos formais, de conteúdo e temporalidade. Quanto aos
primeiros, as Cartas principiam pelo nome próprio do monarca, enquanto os Alvarás
pela expressão "Eu ElRei". Sobre o seu conteúdo e duração, as Cartas dispunham a
propósito de matérias consideradas mais importantes e duradouras que não tinham
prazo de vigência determinado, enquanto os Alvarás vigoravam, no máximo, por um
ano. A medida que avançamos no tempo estas diferenças serão esbatidas começando a
contundir-se os dois tipos de documentos, que serão indistintamente utilizados.

Provisões: num conceito lato poderiam ser quaisquer ordens pelas quais o rei
providenciava sobre qualquer assunto; já numa asserção mais estrita tratava-se de
decisões judiciais que principiavam pelo nome da lei e respondiam às questões aí
suscitadas pelos particulares.

Cartas Régias: documentos epistolares dirigidos pelo rei a pessoas concretas,


que começavam pelo nome próprio do destinatário. Em certos casos podiam originar
obrigações com relevância jurídica futura (não esquecer o princípio romano, constante
do CIC, segundo o qual "Quod principi placuit legis habet vigorem"...).

Resoluções: nalguns casos em que o juiz tinha dúvidas sobre o direito a aplicar,
determinavam as Ordenações que pedisse ao rei para decidir. Resoluções régias era o
nome que tinham esses documentos dirigidos pelo monarca ao juiz peticionário, sendo
que a solução dada pelo rei passaria a ter força de lei para futuros casos iguais.

Decretos: consistiam em ordens régias dirigidas a um ministro ou a um tribunal,


sem o nome do rei no início do documento, onde, para além de se dispor de assuntos
concretos e singulares, por vezes se criava verdadeiro ius novum.

Avisos e Portarias: eram ordens expedidas pelos Secretários de Estado


(Ministros do Rei) nas quais se comunicavam decisões do soberano («Manda El Rei
Nosso Senhor...»). Os avisos destinavam-se aos tribunais, enquanto as portarias tinham
natureza genérica.
24 História do Direito II – Micaela Gonçalves

Sobre a publicação e entrada em vigor das leis, as Ordenações Manuelinas


pronunciavam-se no Livro 1, enquanto as Ordenações Filipinas o faziam no Livro I.
Ambas mantinham o mesmo sistema, que consistia em obrigar restritos dos dispô-lo,
os legislativos mais importantes nos livros da chancelaria régia (lei de D. João III de
1534), dos quais depois se extraiam cópias para remeter aos corregedores das
comarcas é demais funcionários locais da coroa, para informação próprio e divulgação.
Dos vários tipos de leis que cima referimos deveriam ser objeto de registo na
Chancelaria Regia pelo menos as Cartas de Lei e os Alvarás.

COSTUME
Por sua vez, o costume, que fora a fonte predominante do nosso Direito no seu
primeiro século de existência, continua a desempenhar uma função determinante na
ordenação jurídica da sociedade, principalmente ao nível local, desenvolvendo-se,
também, um costume da corte, que era praticado pelos mais próximos do rei. Mas é
principalmente no costume local que esta fonte de direito permanece forte e muito
importante, não obstante os esforços dos nossos monarcas para lhe reduzirem o
âmbito em favor do direito legislado por eles. Todavia, e apesar do notável esforço
legislativo produzido pelos monarcas desta primeira época deste segundo período, a
lei não só não era suficiente para acorrer a todas as situações da vida social em que era
necessária, como não chegava uniformemente a todo o país. Relembremos, também,
que muitos dos costumes do direito local eram, por vezes, ancestrais, correspondendo
a práticas fortemente arreigadas nas populações, o que dificultava a legislação régia
que os contrariasse.
Assim, os nossos reis adotam uma tática mais subtil, em vez de atacarem
globalmente o direito consuetudinário. Eles criam a imagem e a convicção pública, eles
e os legistas que com eles trabalhavam, de que o costume vigorava por seu tácito
consentimento, que era verdadeira «sciencia principis», isto é, algo que vigorava
porque o rei se não opunha. Não obstante, os monarcas portugueses tentaram proibir,
por via legislativa, certos costumes jurídicos, tendo começado por aqueles que punham
diretamente em causa a sua tentativa de impor uma justiça régia comum a todo o país.
Foi o caso das leis de Afonso IV contra os costumes de aplicação criminal, que este rei
procurou disciplinar e substituir pela sua autoridade. Adiante veremos como o tentou
fazer e os resultados que alcançou.
Mas antes de Afonso IV outros se preocuparam com aquilo a que designavam
como «maus costumes». Já Afonso II, numa das leis resultantes da Cúria de Coimbra de
1211, os referia como sendo indesejáveis e objeto da sua condenação. O mesmo fez
Afonso III, ainda antes de ser rei, no seu «juramento de Paris» (feito em 6 de setembro
de 1245, pelo ainda Conde de Bolonha D. Afonso, pouco tempo após o afastamento de
Sancho II pelo Papa, perante um conjunto de personalidades que apoiavam a sua ida
para Portugal para ser futuro rei), prometeu solenemente o seguinte: «farei que se tire
todos os maus costumes, e abusos introduzidos por qualquer ocasião, ou por qualquer
pessoa». Por vezes eram as populações que denunciavam os costumes locais
indesejáveis, porque se tratava de práticas que beneficiavam a nobreza e o clero,
prejudicando-os em vários aspetos. Outras era o rei que tinha de se impor contra esses
costumes, até mesmo contra as populações que os defendiam. Conta o Professor
Marcello Caetano que, em 1331, sob o reinado de D. Dinis, são os representantes dos
concelhos quem pede ao rei a substituição de «um costume mau e danoso». Por vezes
o monarca atendia os pedidos que lhe eram feitos e legislava contra o disposto no
25 História do Direito II – Micaela Gonçalves

costume local, outras vezes, quando percebia que, por qualquer razão, seria um esforço
inglório fazê-lo, abstinha-se de intervir. Este mesmo rei D. Dinis deu ordens aos seus
corregedores (seus representantes locais) para irem pelo território nacional para
fazerem inquéritos e inspeções, a fim de avaliarem os costumes locais e os revogarem,
quando necessário.
No que se refere às concórdias e concordatas, continuaram a ser utilizadas,
neste período, como formas de resolução dos conflitos do poder político português
com o clero nacional e com o Papa e a sua Cúria.
Também as cartas de foral permanecem como importantes instrumentos de direito
público local, ajudando a compor as relações entre a monarquia e os concelhos. Pelo
menos durante os reinados de Afonso III e D. Dinis foram promulgados vários
documentos desta natureza, tendo os mesmos entrado em decadência a partir da
morte deste último rei, para, mais tarde, no reinado de D. Manuel I, serem reformados
num sentido muito distinto das cartas de privilégio que, na sua origem, tinham sido.
Em forma de síntese, poderemos dizer que a grande diferença, ao nível do direito
português existente e aplicado nos primeiros duzentos anos deste novo período, em
relação ao anterior, está na afirmação da lei régia como principal fonte de direito novo
e na penetração e influência do Direito Romano Justinianeu.

ESTILO DA CORTE
Consistia na criação de direito pelos tribunais superiores do Reino, os da Corte,
sendo que isto só sucedia se o mesmo procedimento fosse adotado em, pelo menos,
duas sentenças judiciais, ao longo de um período mínimo de 10 anos. Estamos, como
se conclui facilmente, perante uma fonte jurisprudencial de direito. Aqui não se
colocaria a hipótese contra legem, visto que os tribunais da Cúria Régia tinham o dever
de aplicar o direito criado pelo soberano.

Direito Subsidiário
O Direito Subsidiário é o que se aplica na ausência de norma de Direito
Português. Compreensivelmente, o direito nacional não abrangia a totalidade da
realidade social e esta, sendo dinâmica, criava amiúde situações para as quais o
legislador não tivera ainda oportunidade de legislar, e o costume e os estilos da corte
não tinham resolvido. Desse modo, quando um juiz tivesse, perante si, um caso omisso
no Direito Português, nem por isso poderia deixar de proferir sentença. Esta, contudo,
teria de seguir o que era determinado pelas Ordenações, que dispunham, cada uma
delas em partes distintas, a esse propósito.
Começando pelas Ordenações Afonsinas, esta matéria encontrava-se regulada
no Livro II, Título IX («Quando a Ley contradiz a Degratal, qual dellas se deve
guardar»). Aí se determinava que as duas fontes de direito subsidiário de que o juiz
poderia socorrer- se seriam o Direito Romano e o Direito Canónico, bem como a Glosa
de Acúrsio e os Comentários de Bártolo. A aplicação seguiria os critérios seguintes:

Quando o objeto do caso em litígio fosse de matéria temporal, aplicar-se-ia o


Direito Romano (Corpus Iuris Civilis – as «Leys Imperiaes», como é referido no texto); se
fosse de matéria espiritual, seria aplicado o Direito Canónico (os «Santos Canones»).
Esta é, portanto, a primeira grande regra, embora comportasse exceções;
26 História do Direito II – Micaela Gonçalves

De facto, se o caso fosse de matéria temporal, mas o juiz antevisse que da


aplicação do Direito Romano na sentença resultaria uma situação de pecado (isto é,
condenada pela moral católica da época), afastar-se-ia a norma de Direito Romano
para se aplicar a canónica. Este é o chamado critério do pecado;
Também se o caso tratasse de matéria temporal, mas o juiz não encontrasse
norma aplicável no Direito Romano, aplicar-se-ia o Direito Canónico;
Em quarto lugar, não existindo norma expressa nem de Direito Romano nem de
Direito Canónico, o juiz recorreria à Magna Glosa de Acúrsio;
Em quinto lugar, não se encontrando norma em nenhuma das fontes anteriores,
o juiz estava autorizado a recorrer à Opinião de Bártolo, «não embargante que os
outros Doutores digam o contrário», isto é, ainda que outros mestres tivessem opinião
diferente da do Doutor de Sassoferrato.
Em sexto lugar, não havendo qualquer norma em nenhuma destas fontes
anteriores, o juiz deveria remeter o caso ao Rei, que o decidiria por uma Resolução;
Por último, as Ordenações consideram ainda a situação particular, mas
frequente nos tribunais, de um caso a que se tivesse de aplicar o direito subsidiário,
que fosse de matéria temporal, mas para o qual o juiz não conseguira encontrar norma
expressa no CIC. Se, contudo, esse tribunal dispusesse da Magna Glosa de Acúrsio ou
das obras de Bártolo, e nelas se encontrasse solução, como deveria decidir? A questão
levanta-se porque, apesar do juiz não encontrar norma no CIC (poderia mesmo não
dispor desse código na totalidade), é sabido que os trabalhos de Acúrsio e de Bártolo
versam sobre ele, pelo que a norma existiria no CIC, ainda que o juiz a não conseguisse
encontrar. Nesse caso, deveria aplicar-se o Direito Canónico, quando se sabe existir
norma de Direito Romano, ainda que se não tenha a fonte direta? Não parecia
inteiramente adequado, pelo que as Ordenações mandam que o caso seja enviado ao
Rei para ser ele a decidir.
Em resumo: em primeiro lugar, aplica-se o Direito nacional nas suas três fontes
sucessivas (lei régia, costume e estilo da corte); não havendo direito nacional, o juiz
aplicaria o direito subsidiário; neste, primeiro distinguiria a natureza temporal ou
espiritual da causa, e aplicaria o Direito Romano na primeira e o Canónico na segunda,
exceto se se verificasse o critério do pecado, onde afastaria a Lei Imperial e aplicaria a
da Igreja, o mesmo sucedendo se, num caso de matéria temporal, não houvesse norma
romana; depois, as glosas de Acúrsio e os comentários de Bártolo e, por fim, a sua
decisão se não houvesse nenhuma norma destas fontes, ou se, em casos de matéria
temporal, não encontrasse Direito Romano, mas encontrasse uma glosa de Acúrsio ou
um comentário de Bártolo.
Deste modo, o legislador procurou criar um sistema que impedisse qualquer caso
sub iudice não fosse decidido por falta de norma de direito.
O sistema foi praticamente mantido nas Ordenações Manuelinas, embora com
algumas diferenças, que já assinalaremos, e integralmente conservado destas para as
Filipinas. Vejamos, então, o que mudou nas Ordenações Manuelinas, sabendo que o
que estas determinarem será o mesmo das nossas últimas Ordenações Régias.
Em primeiro lugar, mudou a localização desta matéria, que agora se encontra ainda no
Livro II, se bem que no Título V.
Em segundo lugar, desaparece a destrinça entre matéria de pecado e matéria
espiritual, aplicando-se sempre, primeiro, o Direito Romano e só depois o Direito
Canónico, se não houvesse norma de Direito Romano ou, havendo, segundo o anterior
critério do pecado. Isto é consequência direta de uma certa perda de importância da
27 História do Direito II – Micaela Gonçalves

Igreja e do seu direito no plano temporal, o que de algum modo é explicado pela
centralização do poder na coroa e pela consolidação do Estado Moderno.
Em terceiro lugar, amplia-se a importância da doutrina dos juristas mais
notáveis do tempo, para além de Acúrsio e de Bártolo, que eram ainda autoridades
muito respeitadas, mas consideradas já antigas. Essa doutrina era designada, nas
Ordenações Manuelinas, por «comum opinião dos Doutores», e podemos considerá-la
como uma nova fonte de direito subsidiário a partir de então.
Em resumo: primeiro era, em todos os casos, a norma de Direito Romano que
fundamentaria a sentença, aplicando-se o Direito Canónico quando aquele não se
pronunciasse ou, pronunciando-se, de acordo com o critério do pecado; em segundo
lugar, na falta de um e de outro, recorria-se à Glosa de Acúrsio e à Opinião de Bártolo,
desde que não fossem contraditadas pela Comum Opinião dos Doutores, isto é, pela
doutrina da época que fosse dominante e especializada no assunto em causa, sendo
que, nesse caso, o juiz sentenciaria seguindo esta última; por fim, na ausência de
qualquer norma proveniente das fontes anteriores, seria o caso decidido por uma
Resolução Régia.
No que se refere às Ordenações Filipinas, foi já dito que este esquema anterior
se mantém integralmente. A única diferença, em relação às Ordenações Manuelinas, é
formal, porque a matéria abandona o Livro II e passa a figurar no Livro III, Título LXIV.
Realce-se, porém, que este regime será profundamente modificado pela Lei de 18 de
agosto de 1769, conhecida pela Lei da Boa Razão, tendo essas modificações sido
introduzidas nas Ordenações Filipinas, que assim viram revogadas essas normas.
Veremos, no próximo capítulo do nosso Programa, quais foram essas transformações.

RACIONALISMO, ILUMINISMO E DESPOTISMO


ESCLARECIDO
Aproximamo-nos de um ciclo histórico que trouxe profundas modificações na
mentalidade do homem ocidental, donde resultaram transformações políticas, sociais e
também jurídicas que podemos considerar radicais.
Este período, sendo classificado do ponto de vista da História do Direito, deverá
ser balizado pelos factos que marcam o seu verdadeiro começo e aqueles que
determinaram o seu termo. E eles foram, sobretudo, as reformas pombalinas efetuadas
no campo do Direito, a saber, a reforma das fontes de direito aplicáveis em Portugal
(Lei da Boa Razão) e a reforma do seu ensino na Universidade Portuguesa de Coimbra
(Estatutos Pombalinos de 1772). Quanto ao seu termo, deverá considerar-se o ano de
1820, a partir da nossa Revolução Liberal (24 de Agosto), momento com o qual o país
entrará no que podemos designar pela sua contemporaneidade jurídica e política.
As transformações no campo do Direito foram, porém, consequência de uma
enorme revolução cultural e de mentalidades, que teve a sua origem remota no
Humanismo quinhentista e no Racionalismo, que contribuiriam para a eclosão desse
enorme momento de síntese criadora que foi o Iluminismo.
No campo do Direito, o Humanismo e o Racionalismo tiveram implicações
várias, mas talvez a mais importante tenha sido a descoberta de um conceito que,
embora não fosse completamente novo nesse tempo (já vinha, de facto, de alguns
antigos pensadores gregos e romanos), ganhou uma importância especial a partir
desta época, em razão das consequências que veio a ter. Foi a ideia do Direito Natural,
isto é, de um conjunto de princípios e de normas que, por serem universais e
intemporais, são imanentes à natureza humana e que, por isso, têm de ser acatadas
e respeitadas por
28 História do Direito II – Micaela Gonçalves

todos os sistemas de direito positivo. O jusnaturalismo, ou seja, a doutrina do Direito


Natural, recebeu cultores vários e teve duas grandes tendências: a teocrática, ou
teológica, que defendia a sua origem e natureza religiosa, anterior, portanto, ao
racionalismo, que defendia que os preceitos do Direito Natural eram a Lei Divina
essencialmente vertida nos preceitos do Decálogo (vd. S. Tomás de Aquino); e a
racionalista, que afirmava que o Direito Natural era um atributo inteiramente humano
que a razão podia alcançar (Hugo Grócio, Pufendorf).
O Iluminismo, ou antes, os Iluminismos, já que, dentro desse grande movimento
civilizacional existem, pelo menos, também duas grandes correntes, a inglesa e a
francesa, acaba por ser um resultado do desenvolvimento dessas outras duas grandes
tradições culturais e políticas europeias, o Humanismo e o Racionalismo, às quais se
juntaram as novas doutrinas do contrato social (John Locke, Thomas Hobbes e Jean-
Jacques Rousseau), dos direitos do Homem face ao Estado, da limitação e da
humanização do poder, entre outras.
Porém, o desenvolvimento do pensamento iluminista não conduziria sempre
aos mesmos resultados. Se alguma dessa doutrina se encaminhou para o Liberalismo e
para a criação de um Estado de Direito baseado na Constituição, outros enveredaram
por uma via espinhosa que ficou conhecida como “Despotismo Iluminado ou
Esclarecido”. Na prática, este último era um Absolutismo travestido com as novas ideias
da razão e do humanismo, que defendia ser o rei a pessoa por excelência dotada das
faculdades racionais para alcançar a felicidade pública. Por isso, deveria ser-lhe dada
total liberdade no exercício do poder, apenas o condicionado pelos critérios da
racionalidade, dos quais ele era simultaneamente intérprete e protagonista. O
Despotismo Esclarecido originou uma plêiade de reis europeus que foram tão ou mais
absolutistas do que os seus antecessores, como Frederico II da Prússia, Catarina II da
Rússia ou Gustavo III da Suécia. Em Portugal não foi um rei, mas aquele que hoje
diríamos o chefe do governo e efetivo detentor do poder, que foi o símbolo maior
desse regime: Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, ministro do
Reino de D. José I de 1750 a 1777.

O DESPOTISMO PORTUGUÊS: A INTERRUPÇÃO DAS


CORTES
Foi, na verdade, com o Marquês de Pombal que o nosso Absolutismo atingiu o
seu cume mais elevado, sob a forma do Despotismo Esclarecido.
Este foi, contudo, apesar da sua capa iluminista, um Absolutismo mais violento
do que o anterior, até porque, em Portugal, o Absolutismo nunca tomou cores
especialmente dramáticas. Ele será um período histórico em que o rei deixa de ter
qualquer controlo no exercício do poder, nomeadamente das Cortes, onde se reuniam
os representantes das ordens sociais, o que sucede a partir de 1697/8, no reinado de
Pedro II, que as reúne em Lisboa pela última vez antes de 1821, quando elas voltam a
reunir (embora com uma natureza representativa diferente das anteriores), após a
Revolução Liberal.
Portugal estará, assim, sem reunir Cortes durante 122 anos, e será esse facto, ao
qual se tem de acrescentar o exercício discricionário (não necessariamente despótico)
do poder régio, que irá assinalar os reinados de D. João V (1689-1750), D. José I (1714-
1777), D Maria I (1734- 1816) e parte do reinado de D. João VI (1767-1826). O período
em que o Absolutismo se transformou, de facto, em Despotismo, será o do Marquês de
Pombal, que foi um Absolutismo tocado pelas «luzes» da razão e o mais violento de
todos, porque agia na presunção da sua superioridade moral e patriótica. Durante estes
mais de cem anos, o poder do rei era ilimitado, não dispondo o país de quaisquer
entidades
29 História do Direito II – Micaela Gonçalves

representativas que o pudessem influenciar ou condicionar. Mas, nos vinte e sete anos
de Pombal, esse poder foi também tirânico.

O MARQUÊS DE POMBAL E AS REFORMAS DO DIREITO:


A) A LEI DA BOA RAZÃO;
B) OS NOVOS ESTATUTOS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Independentemente do modo como exerceu o poder, é justo reconhecer a obra


reformadora do Marquês de Pombal. No campo do Direito, que é o que nos diz
respeito, ela desdobrou-se em duas grandes medidas: A) A Lei da Boa Razão; B) Os
novos Estatutos da Universidade de Coimbra. Ambos foram consequência do espírito
iluminista e racionalista que marcou a época e de que Pombal foi o ícone português e
um dos maiores da Europa do seu tempo. Vejamo-las.

A LEI DA BOA RAZÃO


A Lei da Boa Razão é o nome pela qual ficou conhecida a lei de 18 de Agosto de
1769, de clara influência do Marquês de Pombal. Ela invoca, a par e passo, a «razão» e
as
«luzes», que supostamente fundamentam as suas disposições e procura, recorrendo
lhes, justificar o absolutismo do príncipe. Por isso, ela dará um passo decisivo para
tornar a lei régia como a fonte praticamente monopolista do poder legislativo,
concentrando-o nas mãos do rei e do Estado, e esvaziando, por outro lado, as outras
fontes autónomas do direito nacional, como o costume. Mas a lei não se quedava
somente por aí. Considerando o Direito Romano uma coisa caída em desuso e, pior do
que isso, o direito de um Império que, de facto, já não existia (na verdade, o Sacro
Império Romano- Germânico só se dissolveria oficialmente em 1806, embora já não
tivesse qualquer poder na Europa, nunca o tendo tido, aliás, em Portugal, como fomos
constatando ao longo do nosso Programa), mas que não deixava de ser um direito que
não era de criação portuguesa, tornando-se, por isso, indesejável em tempos de
Absolutismo régio e de exaltação nacional.
A Lei irá, por conseguinte, reformar profundamente as fontes de direito que se
aplicavam em Portugal. Quer as do Direito Pátrio, quer as do Direito Subsidiário.
No que se refere ao Direito Pátrio, a Lei é proclamada como a fonte soberana de
criação de direito. O Costume fica, na prática, proibido, porque só se tolera o que não
for «contra legem», que seja «conforme à boa razão» e que tenha «mais de cem anos».
Perante tamanhas exigências, o costume deixa de ser fonte de direito português. Por
sua vez, no que diz respeito ao Estilo da Corte, também esta fonte perde completa
autonomia, porque só será admitido se fosse sido confirmado por um Assento da Casa
da Suplicação, que era o tribunal superior de Reino e que o rei podia mais de perto
acompanhar.

Quanto ao Direito Subsidiário, segue segundo as mesmas orientações


racionalistas e iluministas, que eram muito avessas ao Direito Romano. Primeiro, o
Direito Romano só poderá ser aplicado em tribunal se as normas destinadas ao caso
concreto fossem conformes à «boa razão». Esta, por sua vez, era definida pela Lei
fazendo apelo a um Direito Natural de origem transcendental, definido nos seguintes
termos: «nos princípios, que contém verdades essenciais, intrínsecas, inalteráveis,
que a ética dos mesmos Romanos havia estabelecido e que os Direitos Divino e
Natural formalizarão para servirem de regras Morais, e Civis entre o Cristianismo» .
Ainda assim, o Direito Romano teria outra séria restrição na sua aplicação por um juiz:
é que, dizia a Lei, nas
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matérias de natureza política, económica, mercantil e marítima, dever se-ia procurar a


solução nas «Leis das Nações Cristãs, Iluminadas e polidas» , isto é, nos códigos de direito
dos países iluministas da Europa, como a Prússia, a França, a Rússia. Por conseguinte,
nestes casos, o Direito Romano seria postergado em favor da aplicação de legislação
estrangeira.
Sendo este o panorama para o Direito Romano, como fonte subsidiária do
Direito Português, qual o destino que a Lei da Boa Razão dá às demais fontes? Pois
bem: o Direito Canónico é expurgado dos tribunais civis, ficando aí proibida a sua
aplicação, sendo apenas destinado aos tribunais eclesiásticos; Acúrsio, Bártolo e a
«Comum Opinião dos Doutores» seguem caminho semelhante, porque deixam de ser
suscetíveis de aplicação.
O Direito Subsidiário passava, assim, a aceitar o Direito Romano em
especialíssimas e muito reduzidas ocasiões, sendo preferível utilizar a legislação de
certos países iluministas em determinadas matérias. Obviamente que a última instância
seria sempre o rei, o que ia ao encontro da inclinação para o monopolismo legislativo
régio próprio do Absolutismo, que, doravante, seria frequentemente chamado para
integrar as lacunas da ordem jurídica, criando direito novo.
A Lei da Boa Razão pronunciou-se ainda sobre o problema criado pela
proliferação dos Assentos interpretativos dos vários tribunais da Relação, criados a
partir do século XVI, que tinham gerado uma situação de instabilidade jurídica muito
maior do que a que essas sentenças pretendiam resolver, para também aqui seguir o
espírito do tempo: esses Assentos deixam de criar qualquer obrigação para futuros
casos iguais, a não ser que sejam confirmados por um Assento da Casa da Suplicação.
Mas, nestes casos, a autoridade para fixar uma interpretação vinculante de uma lei
controversa era deste último tribunal e não dos anteriores.
Por fim, acrescente-se que a Lei da Boa Razão, que é fruto do absolutismo
esclarecido do pombalismo, reflete as grandes influências do pensamento europeu
dominante da época: racionalismo, jus naturalismo, apego ao direito nacional legislado,
ataque a todos os poderes que pudessem, de alguma forma, competir com os do rei.
Entre essas influências de escola mais percetíveis, estará a do usus modernus
pandectatum (uso moderno dos pandectas ou digesto) foi uma corrente jusnaturalista
e racionalista que nascera de um livro com o mesmo nome, de um jurista alemão
chamado Samuel Stryck (1640-1710). Segundo este autor, que era um humanista crítico
do método de trabalho da Escola Patrolista, o Corpus Iuris Civilis só deveria ser
revelante se, e só se, as suas normas fossem ainda suscetíveis de «uso moderno», ou
seja, se não tivessem perdido atualidade face aos problemas do seu tempo e ao
próprio pensamento jurídico de então. E dizia mais: que se essas normas tão antigas,
com mais de mil e quinhentos anos de vida, permaneciam atuais, era porque
corresponderiam a domínios intemporais da natureza humana, os tais preceitos
universais e imanentes ao Homem, que constituem o Direito Natural. Para Stryck, será
nesse estrito núcleo resistente do Direito Romano que
o Direito Natural pode ser encontrado. Ora, a Lei da Boa Razão sublinha, em relação à
aplicação do Direito Romano como direito subsidiário, que isso só poderia acontecer
quando essas normas fossem racionais e, por isso, ainda atuais.
31 História do Direito II – Micaela Gonçalves

OS NOVOS ESTATUTOS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


A segunda reforma pombalina do Direito foi a do ensino universitário, por via
da substituição dos velhos Estatutos Velhos (ou Filipinos) da Universidade, que já
datavam de 1598, ainda que com algumas reformas feitas em 1612) por uns novos que
organizassem a Universidade e o ensino por ela ministrado de modo mais actual. Por
outro lado, o Marquês de Pombal não via com bons olhos a existência de outros
poderes concorrentes com o da coroa, ou que de alguma forma a pudessem
ensombrar ou ameaçar, tendo destacado a Ordem de Jesus como inimigo privilegiado,
ela que tinha forte penetração na educação e no ensino universitário. Em 8 de Fevereiro
de 1759, o Marquês de Pombal manda encerrar a Universidade de Évora, onde os
jesuítas predominavam, cercando-a por forças militares para prender a maior parte dos
seus professores, que foram levados para Lisboa, onde ficaram encerrados no Forte da
Junqueira. Pouco tempo depois, seria a vez da Universidade de Coimbra sentir a força
de Pombal.
Assim, em 1770 é nomeada uma comissão para analisar a Universidade coimbrã,
o estado dos seus estudos, devendo propor as reformas que achasse por bem. Essa
comissão tomou o nome de Junta de Providência Literária.
Em 1771, pouco tempo após a sua nomeação, a Junta de Providência Literária concluiu
um relatório cujo nome já é, só por si, elucidativo das intenções vertidas no seu
conteúdo: Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra ao tempo da
invasão dos denominados Jesuítas. Como não podia deixar de ser, os padres desta
Ordem Religiosa eram acusados de serem os responsáveis por todos os problemas da
Universidade e pelos atrasos do seu sistema educativo, servindo este documento como
mais um laudo justificativo da sua expulsão de Portugal, ordenada pelo Marquês em
1759. Mas teve também uma intenção reformadora da Universidade, que permitiu criar
as Faculdades de Matemática e de Filosofia Natural (Ciências) e reformar os estudos da
Medicina e de Direito.
No campo do Direito, que é o que nos interessa, os estudos estavam
organizados em duas Faculdades, a de Cânones e a de Leis. Na primeira estudava-se o
Direito Canónico do Corpus Iuris Canonici, enquanto na segunda se estudava o
Corpus Iuris CIvilis. A primeira dividia os seus estudos em sete cadeiras e a segunda
em oito. O ensino do Direito Romano seguia ainda a tradição bartolista, que era
predominante. Os dois cursos tinham a duração de seis anos. Os novos Estatutos
reduziram, ainda que muito ligeiramente, o peso do Direito Romano no currículo da
Faculdade de Leis, ordenando a introdução das matérias de «Direito Natural, Público e
das Gentes» e da «História Civil de Portugal, e das Leis Portuguesas». No fim de contas,
o que se pretendia era introduzir no currículo universitário o estudo do Direito Pátrio,
que fora, até então, completamente arredado da Universidade, e do Direito Natural e
das Gentes, correspondendo às novas tendências do tempo. Paralelamente,
determinava-se que o ensino deveria ser inovado pelo método sintético
demonstrativo-compendiaria, acompanhado pela redação de manuais escolares com
os conceitos e as doutrinas fundamentais de cada uma das matérias. Neste particular
aspeto, é de realçar a importância do magistério universitário de Pascoal José de Melo
Freire dos Reis, professor da Faculdade de Leis, que elaborou três obras fundamentais
(e que se encontram digitalizadas na net), a saber, a História Iuris Civilis Lusitani
(1778), as Intitutiones Iuris Civilis Lusitani (1780-1793) e as Institutiones Iuris Criminalis
Lusitani (1794). Este tríptico constitui o primeiro conjunto de obras jurídicas com vocação
escolar-universitária, da universidade portuguesa. Outros professores, como Ricardo
Raimundo Nogueira e Francisco Coelho de Sousa e Sampaio, seguiram, também, o
mesmo exemplo, escrevendo e publicando as suas lições.

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