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O DIREITO PENAL BRASILEIRO NA HISTÓRIA

Por Patrick Assunção Santiago

O conhecimento sobre a história do Direito Penal, mais que importante, hoje nos é essencial
para compreendermos a ciência do Direito Moderno. O conhecimento da evolução histórica
do Direito Penal faz com que tenhamos a compreensão mínima de sua utilização ao longo dos
tempos. César Bittencourt, falando sobre o assunto, diz que ‘’a história do Direito Penal
consiste na análise do direito repressivo de outros períodos da civilização’’.

Sobre a necessidade de se conhecer a história do objeto a que se pretende estudar, disse-nos


Von Liszt, que não se pode entender a história do Direito Penal, nem valorar o Direito
positivo, nem determinar a direção do seu desenvolvimento futuro, se se mantêm ocultos os
movimentos de toda a evolução do Direito Penal. Nisso consiste a importância de se ater a
história: evitar que ela se repita.

O presente texto propõe apresentar um panorama geral da história do Direito Penal brasileiro.
Fato é que ao abordarmos este tema, é costumeiro usar como ponto de partida o Direito Penal
português, remontando aos antigos tempos da colônia. Contudo, há conteúdo
histórico-criminológico que nos fazem crer num Direito Penal aborígine, dos tempos
anteriores ao pré-descobrimento.

Embora haja controvérsia em atribuir as regras sociais aborígines status de lei, não há o que
se falar que não eram normas. E, no sentido ainda mais objetivo, normas penais. Rocha
Pombo, comentando sobre a história do Brasil, explica-nos que entre os povos que aqui
habitavam, vigorava o direito consuetudinário, onde era comum a prática de entregar o
criminoso à própria vítima - ou aos parentes dela. E, caso o delinquente fosse membro de
uma outra tribo, o delito deixava de ser um crime de natureza pessoal e transformava-se em
um crime de Estado.

As leis penais brasileiras pré-portugal eram marcadas pelos critérios de punição, sendo a
gravidade do delito, a justa medida de adequação à pena, de modo que os castigos ali
aplicados poderiam variar de castigos corporais, provocações e até a morte.
O Brasil Colonial, embora fosse sistematizado por uma lógica de Estado, conseguiu ser ainda
mais bárbaro que o aborígine. Assim que o Brasil foi descoberto por Portugal, lá vigorava a
Ordenação Afonsina, que logo foi substituída pelas Ordenações Manuelinas (1512) e que
também logo foi revogada pelo Código de D. Sebastião (1569). Contudo, em termos de
relevância jurídica para o Brasil, o Livro V das Ordenações Filipinas, foi o mais importante
conjunto de leis criminais, pois mais tarde veio a se tornar o nosso primeiro Código Penal.

Marcada pela característica inquisitorial tardia da idade média, as Ordenações Filipinas


visavam coibir a conduta criminosa através da imposição do método do medo pelo castigo.
Inclusive, no bojo do próprio código, a pena de morte poderia ser aplicada de muitos modos:
a morte de forca, a precedida de torturas, a morte por fogo, etc.

A crueldade nem sempre se limitava às muitas formas de aplicabilidade da pena de morte,


mas também às penas de castigo, como as de açoite, as penas de degredo para a África,
multilação das mãos, da lingua, queimaduras com ferro quente, confisco, pena de infâmia,
pena de multa, entre outros. A crueldade típica dos tempos da idade média se refletiu em
absoluto sadismo por parte do legislador portugês e, por tabela, nas leis brasileiras

Um dos mais famosos e memoráveis casos da aplicação de crueldade excessiva por este
código, foi o caso do Tiradentes, que acusado de crime de lesa-majestade, foi enforcado e
esquartejado, tendo seus membros fincados em postes e colocados à beira das estradas, com
placas de advertência que servem de aviso para que o povo fosse intimidado e não aderisse às
condutas do apenado.

Importante destacar que o nosso primeiro código penal criminalizava, também, a figura do
herege e do feiticeiro, sendo a ofensa moral e o pecado confundido com crime, cujo bem
jurídico à época (com o perdão do anacronismo enfático) era o da lesa-majestade, que a julgar
pela reação social ante a pena, era comumente atribuído ao apenado rejeição semelhante
àquela dada ao leproso, cuja infâmia se estendia por todos os parentes e descendentes.

Um dado interessante na dinâmica da pena do primeiro código penal brasileiro é a


desigualdade do tratamento dado às diferentes classes sociais. O código trazia expressamente
que o juiz deveria aplicar a pena conforme a gravidade do caso e a qualidade da pessoa, de
modo que os nobres eram, em regra, punidos com pena de multa; enquanto aos peões e
escravos ficavam reservados os castigos mais cruéis e humilhantes.
Fato é que este terrível código foi o que mais tempo durou em vigência no Brasil, tendo
produzido os primeiros efeitos em 1603 até quando foi substituído pelo, agora dignamente
chamado, código penal brasileiro, de 1830. Foram mais de duzentos anos sob a égide de um
código de leis bárbaras. Essa foi boa parte da nossa história.

Na verdade, o antigo código penal brasileiro, importado das ordenações filipinas, foi
revogado por questões político-ideológicas, oriundas da precipitação política da burguesia na
França, com os rumos que a revolução francesa havia tomado. Não havia, em verdade, mais
espaço para um código daquela natureza, de modo que toda a Europa caminhava rumo à
modernidade.

Ainda sob vigência das ordenações filipinas, grandes juristas já militavam pela necessidade
de uma revolução legislativa. Um dos mais brilhantes exemplos de humanidade foi dado pelo
eminente jurista Pascoal José de Melo Freire, também conhecido como ‘’Beccaria
português’’, que foi professor da Universidade de Coimbra.

Melo Freire executou um projeto inovador de código penal, conhecido como código de
Direito Criminal Português, onde expressou as reivindicações progressistas, que talvez tenha
sido o motivo pelo qual o código não foi recepcionado e não se converteu em lei em Portugal.

Tratando-se de Brasil, toda a ebulição da revolução francesa e da era napoleônica, somados


ao surgimento de um novo sistema de produção, nascido do fenômeno da revolução
industrial, foi em 1822 que o Brasil oficialmente declarou a independência ante Portugal.

Com a proclamação de independência surge a necessidade de se estabelecer novas leis, para


substituir as antigas leis da metrópole. Assim, foi convocada a Assembléia Constituinte, em
1823, que decidiu, a contragosto de muitos, a continuar a vigorar no Brasil as leis
portuguesas. Isso não agradou o povo, haja vista que regridiríamos enquanto nação
independente às ordenações filipinas portuguesas, que não mais se aplicavam naquele
contexto social.

Ocorre que após este fato, o império prometeu a promulgação de um novo código criminal.
Para tal ofício, foram convocados dois dos maiores nomes do Direito da época: José
Clemente Pereira e Bernardos de Vasconcelos, que tomaram a responsabilidade de entregar,
cada um, um projeto de código criminal brasileiro. Tal proposta que, em tese, deveria ser para
já, a fim de que o Brasil se tornasse completamente livre de Portugal. Contudo, o imediatismo
durou sete anos, tendo sido a lei efetivamente entregue e promulgada somente em 1830.
Durante este longo período de sete anos até a efetiva promulgação do Código Criminal
Brasileiro, o Brasil passou a ter a sua primeira Carta Política, em 1824, que funcionava como
uma espécie de primeira Constituição brasileira, de modo que o Código Criminal Brasileiro
bebeu de fonte direta da sua primeira Constituição, cumprindo uma das mais fundamentais
exigências modernas, que é a harmonia sistemática das normas inseridas num sistema de
validade racionalmente posto.

Importante destacar, também, que esta mesma Carta Política havia sido diretamente
influenciada pela França e pelos Estados Unidos, que estavam em absoluta efervescência,
tendo o legislador pátrio dedicado significativo espaço para a promulgação e enumeração dos
direitos e garantias individuais, que fundamentou o código criminal que estava por vir.

Quando a Comissão Legislativa, em 1830, analisou os projetos de códigos criminais dos


juristas Clemente Pereira e Bernardo de Vasconcelos, preferiram as construções elaboradas
pelo último, tendo sido o Bernardo de Vasconcelos, discípulo direto do Melo Freire, em
Coimbra, o idealizador do primeiro Código Penal de cunho constitucional e 100% nacional
do Brasil.

O código do Bernardo de Vasconcelos, foi quase que integralmente convertido em lei.


Podemos dizer, inclusive, que somente uma matéria deu margem para discussões no
Parlamento: a aplicabilidade da pena de morte.

Como acima dito, Bernardo de Vasconcelos havia diplomado-se em direito pela Universidade
de Coimbra e teria sido aluno de Melo Freire. Incutiram sobre ele as principais ideias liberais
do seu mestre, que recebera influxo da obra de Beccaria. O dissídio sobre a aplicação ou não
da pena de morte dividiu calorosos e apaixonados debates no parlamento, sendo o grupo
conservador, que era a extrema maioria, favorável à aplicação do extremo suplício e o grupo
liberal, contrário, embora representasse minoria.

Em verdade, venceram os conservadores. O argumento da vitória foi o da criminalidade do


elemento servil, de natureza escravocrata. Entendiam os conservadores que sem a pena de
morte, não se manteria a ordem entre os escravos, os quais, pelo seu teor de existência,
seriam indiferentes a outros castigos senão a morte, pela própria condição existencial de
escravo.

Não demorou muito e a pena de morte foi abolida do Direito Penal do império pelo próprio
Imperador Dom Pedro II, quando cometera terrível erro aplicando injustamente a pena de
morte em Manoel da Mota Coqueiro, como descrito por José do Patrocínio em uma coletânea
escrita para a Gazeta de Notícias.

Passando-se dois anos da promulgação do Código Criminal Brasileiro, surge em 1832 o


Código de Processo, também influenciado pelo liberalismo da época. Fato é que as
tendências liberais incomodavam a elite brasileira, que por inspiração anti-liberal
manifestou-se de modo a retirar dos juízes a faculdade do juízo de culpabilidade da conduta
do agente, dando essa autoridade às forças policiais, que passavam a partir de então, julgar se
o réu era ou não culpado.

Esse entendimento permaneceu durante trinta anos e somente em 1871 a determinação dos
critérios de culpabilidade retornaram aos juízes em detrimento das forças de polícia. Foi
também em 1871 que o código passou a introduzir na legislação punição aos crimes culposos
de homicídio e lesão corporal.

Já em 1889 o Brasil decide proclamar-se uma República. Este fato também repercutiu no
cenário jurídico-penal da época, de modo que embora houvesse sido um código progressista,
o então código penal houvera tornado-se ultrapassado e não mais adequado àquela sociedade.
Isso provocou a necessidade de um novo projeto de código criminal, agora sob a
responsabilidade do jurista Baptista Pereira, a incumbência de organizar um código penal
para a república, que com urgência foi promulgado apenas um ano após a proclamação.

Ocorre que, devido a urgência, o novo código de 1890 havia sido compilado com inúmeros
erros. Tais vícios foram detectados por um dos maiores nomes do direito da época, o jurista
Carvalho Durão, que através de uma série de duros artigos publicados em forma de crítica ao
novo código, afirmava ter sido o pior da história.

Já no início do século XX o desembargador Virgílio de Sá Pereira, renomado penalista,


recebeu do governo brasileiro a missão de elaborar um novo projeto de código penal, tendo
sido em 1927 a promulgação da parte geral do código, junto à exposição de motivos. O jurista
deu início a elaboração da parte especial do então novo código, mas veio a falecer durante o
processo. Tal projeto foi inteiramente revisado por uma comissão de juristas composta por
nomes como Evaristo de Moraes e Mário Bulhões Pedreira.

A comissão encontrou inúmeros erros teóricos do projeto de código promovido pelo Virgílio
de Sá, tendo sido atribuído a outro jurista a missão de fornecer bases teóricas para um novo
projeto. O jurista designado foi o professor Alcântara Machado que, nas palavras de Nelson
Hungria:

‘’É de todo verdade que a comparação no sentido de que o projeto de


Alcântara Machado está para o Código Penal como o projeto de
Clóvis Beviláqua está para o Código Civil.’’ (conferência sob a
autoria intelectual do código penal de 1940)

Alcântara Machado, na exposição dos motivos do projeto de código, expôs que o antigo
projeto de Virgílio de Sá havia sido robustamente reformado. Precisou reformular-lo por
completo. Não rendendo a fadiga, Alcântara Machado dedicou os seus últimos dias de vida a
oferecer um trabalho belíssimo, quase artístico, que foi submetido a estudos e infinitos
comentários. Este é o atual código vigente no Brasil, o código de 1940.

A comissão de revisão, composta pelos principais nomes do direito brasileiro do século XX,
tais como Narcélio de Queiroz, Nelson Hungria, Vieira Braga, Roberto Lyra e Costa e Silva
fizeram as últimas modificações, adequando à lógica-dogmática alemã que surgia, já sob os
auspícios do finalismo de Hans Welzel, em detrimento da antiga teoria clássica, também
conhecida como teoria causal-natural, ainda sob influência da noção psicológica da
culpabilidade, que entendia o elemento subjetivo do conceito material de crime como
elemento da culpabilidade, tendo sido, a partir da reforma, modificado e adaptado à
tipicidade, já sob influência da teoria finalista da ação.

O código Penal de 1940 somente entrou verdadeiramente em vigor em 1942, após o devido
tempo demandado para o estudo dos juristas que a partir dali passaram a aplicar o novo
código já sob as novas tendências da teoria do delito da época.

O código de 1940 foi terreno fértil para que os principais juristas se dedicassem a teorizá-lo.
Nomes como Heleno Fragoso, Nelson Hungria, José Salgado Martins, Euclides Custódio
Silveira, Cunha Luna, Roque Brito Alves, Vicente Sabino Júnior, Basileu Garcia, José
Frederico Marques, Sady Cardoso Gusmão, Roberto Lyra, etc, todos reunidos para elaborar o
melhor código penal que o país já viu.

Eis a história da nossa lei penal brasileira. Uma história tortuosa, marcada por violência,
barbárie, preconceito e pelos esforços de grandes pensadores que dedicaram as suas vidas na
missão de fazer, com teoria, frente a violência do Estado. O poder de punir sempre vem, num
primeiro momento, pelo discurso. O discurso transforma-se em ideologia e a ideologia em
barbárie.

É papel do estudioso do direito do tempo presente compreender a dimensão política do


próprio ofício, sabendo que herda os méritos das grandes mentes, e que tem o dever de seguir,
assim como Heitor, a travar com bravura uma guerra que sabe que está perdida.

REFERÊNCIAS

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal - tomo I, Parte Geral

GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal

RUDÁ, Sólon, Antônio. Breve História do Direito Penal e da Criminologia

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