Você está na página 1de 4

2. Quem sabe disso?

Voltando, porém, ao programa das três palavras (da academia, dos meios de
comunicação e dos mortos), se queremos começar pelas da academia, a primeira coisa
que devemos saber é a quem perguntar. Quem se ocupa academicamente da questão
criminal? O primeiro movimento será olhar para a Faculdade de Direito. Ali estão e dali
são os penalistas. Sabem direito penal. Sem dúvida que é algo que tem a ver com a
questão criminal. Mas até que ponto?

A ideia de que o penalista é o mais autorizado para proporcionar os conhecimentos


científicos acerca da questão criminal é uma opinião popular, mas não científica. Nem
de longe basta saber direito penal para poder opinar com fundamento científico acerca
da questão criminal, ainda que, se o conhece bem, pode fazer muito para resolver
numerosos aspectos fundamentais na prática, mas isso é outra coisa.

É necessário distinguir dois âmbitos do conhecimento que são muito diferentes, embora
costumem ser confundidos: o do penalista e o do criminólogo, ou seja, o direito penal,
por um lado, e a criminologia, por outro.

Esclareço desde já que não se dão nada bem, mas não se podem separar, e ainda que
declarem estar divorciados, são como esses casais que se excitam discutindo e terminam
como todos nós sabemos. Nos casais é patológico, claro, mas no que concerne ao direito
penal e à criminologia talvez seja um pouco menos.

O que fazem os penalistas? Antes de tudo são juristas, advogados. O direito se divide
em ramos: civil, comercial, trabalhista, administrativo, constitucional etc., e cada dia se
especializa mais e mais. Hoje não há quem lide com todo o direito em profundidade,
como não há médico algum que domine todas as especialidades. O direito penal é um
desses ramos, que se ocupa de trabalhar a legislação penal, para projetar o que
chamamos de doutrina jurídico-penal, isto é, para projetar a forma em que os tribunais
devem resolver os casos de maneira ordenada, não contraditória.

De maneira mais sintética, eu diria que a ciência do direito penal que se ensina nas
cátedras universitárias de todo o mundo se ocupa de interpretar as leis penais de modo
harmônico para facilitar a tarefa dos juízes, promotores e defensores. Seu trabalho
consiste basicamente na interpretação de textos com um método bastante complexo, que
se chama dogmática jurídica, porque cada elemento em que a lei é decomposta deve ser
respeitado como um dogma, visto que, do contrário, não interpretariam a lei, mas sim a
criariam ou a modificariam.

A tarefa do penalista é fundamental para que os tribunais não resolvam arbitrariamente


o que lhes for conveniente, e sim conforme uma ordem mais ou menos racional, ou seja,
republicana e algo previsível. Não vou discutir agora se a dogmática jurídica do
penalista consegue ou não esses objetivos. Tampouco vem ao caso nem interessam
muito a vocês os detalhes dessas construções.

A fonte principal da ciência jurídico-penal de hoje, isto é, da dogmática jurídica


aplicada à lei penal, é a doutrina dos penalistas alemães. Os ingleses têm sua própria
construção, que pouco influi na nossa. Os franceses fizeram muito pouca dogmática
jurídica, estão muito próximos da velha interpretação literal da lei (o que se chamava
exegese). Os italianos estão bastante próximos aos alemães, ainda que com uma tradição
penal muito sólida e antiga. Os suíços e austríacos seguem diretamente as escolas
alemãs. Os espanhóis também o seguem, sem dúvida alguma, quase mais do que nós.
Há muitos anos que as escolas alemãs são acompanhadas de perto em toda a América
Latina. O penalismo estadunidense é mais ou menos compreensível, na medida em que
segue o modelo inglês, mas quando se afasta deste é bastante limitado.

Conforme os princípios da ciência jurídica alemã, os penalistas constroem um conceito


jurídico do delito que se chama teoria geral do delito. As discussões sobre essa teoria
são praticamente intermináveis, mas se trata, em geral, de uma ordem prioritária
conceitual para estabelecer frente a uma conduta se ela é ou não delitiva com vistas a
uma sentença.

Para isso, diz-se que o delito é uma conduta típica, antijurídica e culpável. Ou seja,
antes de tudo deve ser uma ação humana, isto é, dotada de vontade. Em segundo lugar,
deve estar proibida pela lei, ou seja, cada tipo é a descrição que a lei faz de um delito:
matar, apoderar-se de uma coisa móvel alheia etc. Em terceiro lugar, não deve ser
permitida, como acontece no caso de legítima defesa ou de estado de necessidade. Por
último, deve ser culpável, ou seja, reprovável ao autor: não o é quando este não sabia o
que fazia, estava louco (inimputável) etc.

Essa é a estrutura básica sobre a qual se discute, respeitando certos princípios


constitucionais como, por exemplo, a legalidade, que impede que a pena seja imposta
por algo que não está estritamente descrito em uma lei anterior ao fato, ou a lesividade,
que requer que em todo delito haja um bem jurídico lesionado ou colocado em perigo.

Como se pode ver, o delito dos penalistas é uma abstração que se constrói com um
objetivo bem determinado, que é chegar a uma sentença racional ou pelo menos
razoável. Na realidade social, porém, esse delito não existe, porque no plano do real
existem violações, homicídios, fraudes, roubos etc., mas nunca o delito. Em outros
tempos, os penalistas também projetavam os códigos e as leis penais, porque lhes era
dada muitíssima importância e se considerava, com razão, que eram um apêndice da
Constituição, porque impunham limites à liberdade.

Em nosso país, para não irmos mais longe, os códigos penais foram projetados em 1866,
por Carlos Tejedor, que foi governador da província de Buenos Aires e não chegou a ser
presidente da República em lugar de Roca porque protagonizou a última guerra civil em
1880, e por Rodolfo Moreno (filho) em 1917, que também foi governador da província
e pré-candidato a presidente nas eleições de 1944, tendo sido derrotado no interior do
Partido Conservador por Patrón Costas, o que precipitou o golpe de 1943.

Nesse meio tempo houve vários projetos, e o mais importante foi o de 1891, obra dos
fundadores de nossa Faculdade de Filosofia e Letras, que eram os jovens brilhantes da
época: Rivarola, Piñero e Matienzo. Os três foram importantes personalidades públicas
e um deles, Matienzo, foi candidato à vice-presidência da República.

A trajetória jurídica, intelectual e política desses projetistas prova que levavam muito a
sério as leis penais, o que hoje mudou completamente, pois agora quem as elabora são
os assessores dos políticos, conforme a agenda que lhes marcam os meios de
comunicação de massa.

Por isso, hoje, tampouco os penalistas fazem as leis penais, ocupando-se quase
exclusivamente do que lhes conto, quer dizer, da sua interpretação, na forma em que
assinalei.

Logicamente, vocês se perguntarão o que é que esses senhores sabem acerca da


realidade do delito, do que se passa no mundo em que todos nós vivemos, do que fazem
os delinquentes, os policiais, os juízes, as vítimas, os empresários midiáticos, os
jornalistas etc. Simplesmente, o mesmo que qualquer vizinho que lê os jornais e assiste
televisão, porque o penalista se ocupa da lei, não da realidade.

Isso, que pode chamar a atenção de quem não se tenha inteirado antes deste mundo, é
sabido e inclusive teorizado. Desde jovem, quando se entra na Faculdade de Direito,
explicam que ali se estudam relações de normas, de dever ser e não de ser.

Há mesmo toda uma corrente que pretende um corte radical entre os estudos do dever
ser e do ser. São os neokantianos, que dividem os conhecimentos entre ciências da
natureza e da cultura. O direito seria uma ciência da cultura e o que acontece no mundo
em que vivemos todos os dias seria matéria das ciências da natureza. Isso lhes parece
um pouco esquizofrênico? É um pouco, com certeza.

A divisão foi tão taxativa que permitiu que a grande maioria dos penalistas dos tempos
do nazismo viesse tranquilamente desde o Império Alemão até o pós-guerra, passando
por cima da República de Weimar, dos crimes da ascensão do nazismo, dos massacres,
do genocídio, da guerra, sem inteirar-se dos milhões de cadáveres. Tudo isso pertencia
às ciências da natureza, que não lhes dizia respeito.

Para que vocês se tranquilizem, direi que hoje nem todo o direito penal segue este
caminho, embora não faltem nostálgicos que tentam se entrincheirar nas normas. De
qualquer maneira, isso é questão do direito penal, ou seja, do que não nos ocuparemos
aqui enquanto tal, mas sim precisamente do que pertence ao mundo do ser, no qual
vivemos todos os dias.

Disso se ocupa precisamente a criminologia, para onde convergem muitos dados que
provêm de diferentes fontes – da sociologia, da economia, da antropologia, das
disciplinas psi, da história etc. –, que tentam nos responder o que é e o que acontece
com o poder punitivo, com a violência produtora de cadáveres etc.

É bem verdade que esta palavra da academia também esteve carregada de palavras
obscenas (ou pelo menos são elas que temos vontade de dizer às vezes), e aconteceu em
diferentes etapas. Primeiro perguntou-se pelas causas do delito, o que se chamou de
criminologia etiológica, e os demonólogos, os juristas e filósofos, os médicos, os
psicólogos e os sociólogos trataram de responder. Muito mais recentemente deu-se
conta de que o poder punitivo também era causa do delito, e passou a ser analisado e
questionado com diferente intensidade crítica. São estas etapas que passaremos a
percorrer depois de uma visão geral sobre o poder punitivo e sua função real no marco
do poder planetário.

Você também pode gostar