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COLOCANDO EM CRISE OS PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL: UM

ESTUDO SOBRE AS FUNÇÕES NÃO DECLARADAS DO SISTEMA DE


JUSTIÇA CRIMINAL

Por Patrick Assunção Santiago

Historicamente o Direito Penal nasce com o advento da modernidade, representada pela


ruptura da Idade Média, sob os auspícios do iluminismo, pela força da Revolução Francesa.
Nasce, então, naquele contexto histórico, o que hoje convencionamos chamar de Direito
Penal moderno.

Houve, antes disso, muito esforço para tentar limitar a autoridade pública quanto ao seu ius
puniendi, seja por Hamurabi, seja pelos tribunais do Santo Ofício… enfim. Sempre buscamos
ferramentas para limitar a violência imposta pela autoridade que se legitima à punição.

O marco teórico que fundamentou o Direito Penal moderno foram às exigências de


previsibilidade de uma conduta típica, bem como a culminação de uma pena determinada, em
resposta à uma conduta socialmente reprovável. Surge, assim, sob o brocardo latino
elaborado por Feuerbach, o nullum crimen, nulla poena, sine lege, que em seu horizonte
dogmático determinada previsibilidade ante a ambiguidade e subjetividade na dinâmica da
punição.

Com o surgimento do Direito Penal moderno surge, também, a necessidade de dar-lhe


metódo e um significado concreto para uma realidade concreta. Os critérios de intervenção
devem ser mínimos, incidindo somente contra aquelas condutas que violem bens jurídicos de
maior valor social. Assim, surge uma característica essencial para o Direito Penal moderno:
ele é subsidiário, mínimo, é - e deve ser -, em verdade, a ultima ratio da autoridade pública
para resolver um conflito.

O bem jurídico se constitui como o ponto fulcral do Direito Penal moderno. Conforme lição
da Alice Bianchini(1), é o bem jurídico o ônus argumentativo que fundamenta a pretensão
punitiva do Estado, que seleciona condutas reprováveis na medida da culpabilidade do
agente. Ele (o bem jurídico) serve como principal elemento para a limitação da expansão
penal, pois a sua criação não é (ao menos em tese) arbitrária. Existem (em tese, novamente)
requisitos e critérios para que um bem deixe de ser apenas moralmente relevante e passe a ser
importante para o Direito Penal, e esses pressupostos mínimos para a criação de lei penal se
verifica a partir da observação de três critérios: A ofensividade da conduta; a necessidade de
tutela penal; a adequação e eficácia do tratamento jurídico penal.

Como explica Gamil Föppel(2), não é correto deduzir que o bem jurídico representaria uma
autorização para a expansão da intervenção penal, pois o exercício legislativo que elabora a
lei penal apenas tipifica crimes declarando bens que a sociedade, em tese, precisa ver
protegidos.

Dessa forma, a boa técnica legislativa, ao criar uma nova lei penal, precisa observar as
imposições constitucionais, ao tempo em que atende os anseios populares. Do contrário, uma
lei penal que não se adeque aos mandamentos constitucionais nem à vontade popular não
serviria como uma lei³, mas sim como uma ferramenta para perseguir pessoas e não censurar
fatos e condutas.

Sobre o bem jurídico, há certo debate dogmático quanto a sua abrangência e conceituação,
estando, por exemplo, autores contrários a noção de bem jurídico, como o Gunther
Stratenwerth(4), que afirma não existir clareza conceitual sobre o que, em verdade, se trata a
categoria ‘’bem jurídico’’; como também existem autores que afirmam ser o bem jurídico a
‘’coluna vertebral’’ do Direito Penal atual, como é o caso do Bernd Schunemann(5) que
afirma ser o bem jurídico uma expressão normativa extraída da noção de contrato social, pelo
qual a sociedade fornece ao Estado uma orientação a respeito do que pode e o que não pode
proteger por meio do Direito Penal.

De qualquer modo, o fato é que o consenso dogmático caminha em direção ao entendimento


de que não se pode recorrer ao direito penal, enquanto instrumento de controle social, senão
para a necessária proteção dos interesses humanos mais elementares, sempre e quando não se
possa dispor de outros instrumentos mais inofensivos para lograr essa proteção(6)

Contudo, a realidade concreta nos constrange. Há, no Brasil, cerca de 1688(7) tipos penais
aptos a criminalizar a conduta de alguém. Tal dado coloca em check o próprio fundamento da
lei penal e a própria característica sistêmica firmada na subsidiariedade. Como, afinal,
podemos conceber um direito penal subsidiário quando existem quase 1700 formas de
incriminar alguém?
A compreensão deste fato, que estruturalmente contradiz a própria natureza ontológica do
Direito Penal, se dá não por meio do Direito Penal em si, mas pela criminologia. É necessária
uma análise acurada e interdisciplinar das demais ciências criminais para compreendermos,
de fato, que a subsidiariedade penal não passa de mera retórica. É, assim, a criminologia
crítica a ferramenta de análise apta a compreender não só o fenômeno da criminalidade, como
também os processos de criminalização.

A criminologia crítica, aqui trabalhada à luz do materialismo histórico e dialético marxista,


bem como a partir da teoria do etiquetamento social e da sociologia de Durkheim e da teoria
do labelling approach do Howard Becker compreende que a lei penal surge como um
instrumento da classe dominante, que visa estabelecer controle sobre uma outra classe,
socialmente mais vulnerável.

Dessa forma, a criminologia crítica se propõe a explicar o funcionamento do sistema penal


tomando como objeto de estudo a própria sociedade capitalista, adotando, para tanto, o
paradigma da reação social. Assim, assume as premissas de que o direito penal vincula-se de
modo inseparável à superestrutura econômica do capitalismo e de que a sua finalidade é a
manutenção das desigualdades sociais, que são o fundamento de separação entre o burguês
(que detém os meios de produção) do proletariado (que vende a sua força de trabalho em
troca de salário). Desta forma, todo o aparato criminalizante atende a essa finalidade última
de manutenção do status quo do sistema capitalista

Alessandro Baratta(9) afirma que o Direito Penal produzido nessas condições tende a dirigir o
processo de criminalização principalmente para as formas de desvio típicas das classes
subalternas. Tal tese se comprova pela recente pesquisa realizada pelo INFOPEN, onde se
verifica que, dentre os quase 1700 crimes existentes no nosso sistema penal, somente 5 deles
correspondem a quase 85% dos quase 800 mil presos inseridos no sistema prisional
brasileiro.

O Direito Penal de uma sociedade capitalista é sempre fragmentário, nunca igualitário, pois
tende a privilegiar os interesses da classe dominante excluindo-a dos processos de
criminalização, direcionando a sua seletividade para a parcela da sociedade que é mais
materialmente vulnerável, visando a estabelecer, assim, controle.

Um exemplo ilustrativo deste tipo de seletividade que contrasta com a subsidiariedade e com
o bem jurídico como fundamento da lei penal é a lei 9.605/98, a lei de crimes ambientais.
Curioso destacar que a lei, mesmo quando ignorada a absoluta ausência de bem jurídico, se
demonstra contraproducente até mesmo sob o ponto de vista preventivo. Todos os maiores
desastres ambientais se deram após o advento da referida lei, demonstrando a sua inutilidade
quanto a prevenção geral.

De outro modo, quando se observa o movimento jurisprudencial da lei de crimes ambientais,


percebe-se que a sua eficácia não caminha para a criminalização de grandes conglomerados
econômicos do agronegócio, nem para as indústrias que de forma predatória corroi o meio
ambiente. Em verdade, a eficácia da lei 9.906/98, quase que unanimemente se volta contra
gente comum, vulnerável, em sua maioria pescadores que usaram de meios tidos ilegais para
a atividade pesqueira.

Outro exemplo caricatamente ilustrativo é a lei 9.605/98, a lei de proteção aos animais, que
dentre a vastidão dos seus quase 80 artigos, em seu artigo 32 determina que a agressão a um
cachorro possui pena superior a lesão corporal contra um ser-humano, como se de alguma
forma o fato de tratar um animal de maneira desumana justificasse tratar um humano como
um animal, prendendo-o numa jaula e submetendo-o a uma infinidade de castigos e
violências.

Ou até a própria lei de drogas, que representa mais de 30% da população carcerária brasileira,
cujo bem jurídico é a ‘’saúde pública’’ e que desde 2006 emplaca uma guerra contra as
drogas que mata (muito) mais que o número de overdoses de qualquer país que tenha adotado
a modalidade legalizante-regulatória.

Ronald Dworkin diz que toda lei tem um ‘’pano de fundo normativo’’, e continua
esclarecendo o raciocínio que se conduz à compreensão de que o pano de fundo normativo do
direito é sempre político. Muñoz Conde, por sua vez, afirma que o Direito Penal é a parte
mais política do Direito - e o faz com razão.

O direito do Estado burguês assume papel decisivo na dinâmica da exploração, pois é o


responsável por atribuir legitimidade, ainda que meramente jurídica, às relações de classe,
imanentizando essas relações na medida em que reproduz os valores e interesses da classe
dominante.

Ainda no século XIX, Lacassagne afirmou que "cada sociedade tem o criminoso que
merece". Hoje, Howard Becker afirma, ao colocar em crise o paradigma etiológico do crime,
que "cada sociedade tem o criminoso que quer". A evolução histórica da criminologia
comprova que o critério determinante à lógica de atribuição do status de criminoso é fruto do
interesse de classe.

Ryanna Veras, ao explicar a dimensão material dos processos de criminalização, afirma que a
criminologia crítica surge justamente com o objetivo de desconstruir os pilares sob os quais a
lógica da criminalização dominante se assenta. Fornecendo critérios materiais para a análise
macrossociológica da realidade, a criminologia crítica se propõe a demonstrar como o
programa oficial do Direito Penal é falso e encobre a sua função real e oculta, que é a de
reproduzir as desigualdades sociais e manter de forma eficiente o status quo social.

A partir das categorias criminológicas, aplicadas à realidade concreta do Direito Penal, nos
deparamos com o fato de que a prisão nunca conseguiu cumprir as finalidades de reeducação
do apenado. O fracasso do Direito Penal histórico, tanto no plano normativo quanto no plano
dogmático, nos leva a questionar qual seria, de fato, o seu objetivo.

Visando a apresentar uma resposta satisfatória para a pergunta, Rusche e Kirchheimer


elaboraram um estudo sob a perspectiva marxista sobre o vínculo existente entre o mercado
de trabalho, o sistema produtivo e a prisão tal como conhecemos atualmente. A conclusão do
estudo demonstra que a prisão como pena surgiu no sistema capitalista para suprir as
necessidades de mercado.

Ryanna Pala Veras continua explicando que a compreensão do fenômeno prisional só é


possível se considerarmos o binômio capital/trabalho assalariado. O gigantesco número de
camponeses que migraram para as cidades durante a revolução industrial, junto à não
absorção de toda essa mão de obra, fizeram surgir uma massa de mendigos e "vadios", que
ficaram à mercê das próprias necessidades e vulnerabilidades artificialmente criadas.

Toda essa massa de pessoas que não foram absorvidas pelas fábricas, ficaram à mercê. Sem
casa e sem trabalho, foram definidos como ''delinquentes voluntários’’ e isso motivou o
parlamento inglês a criarem as ‘’casas de trabalho’’, que logo virou tendência em toda a
Europa, e que visava reformar essas pessoas que não foram aproveitadas pelo mercado de
trabalho, reeducando e disciplinando-as para o trabalho assalariado.

A prisão se torna uma instituição auxiliar à fábrica, assim como a família, a escola, a igreja e
os quartéis. O papel da prisão, assim como das instituições em geral, era o preparo e o
adestramento humano para o trabalho, que em regra era fornecido em condições
sub-humanas.

A prisão tornou-se um instrumento de vigilância e controle, socialmente útil e servil para a


dinâmica do capital, de modo que a fábrica era a estrutura de produção; o cárcere a estrutura
de controle: enquanto o indivíduo está na fábrica, é vigiado pelo empregador; fora da fábrica,
é vigiado pelas instituições de controle: família, igreja, escola e, principalmente, prisão.

A pena – e em especial a pena privativa de liberdade –, por sua vez, como explica Maurício
Dieter(11) serve perfeitamente à manutenção da sujeição inerente ao sistema de produção
pós-industrial, o qual é historicamente fundado no binômio prisão–fábrica: fábrica para
aqueles que são adequados às condições impostas – como grau de instrução, submissão, etc.
E a prisão para aqueles que não são úteis ao capital.

Assim, afirma Foucault que se tal é a situação da prisão, ao aparentemente "fracassar", não
erra o seu objetivo; ao contrário, ela atinge na medida em que exclui do plano social a classe
indesejada para o capital, direcionando-a para as prisões, que passam a exercer a função de
depósito de corpos humanos indesejados para o sistema de produção.

O sistema de vigilância e controle exercido pelo Estado burguês, pela fábrica e pela prisão
visa exercer controle especificamente sobre as classes inferiores, marginalizadas socialmente.
O cárcere assume, assim, a função de tornar dócil e obediente aquela parcela marginalizada,
atribuindo-lhe utilidade de mercado, para poder transformá-lo em mercadoria socialmente
apta a atender os interesses de classe

Lola Aniyar afirma que a grande miséria da criminologia é ter sido sempre a criminologia
da miséria. O fracasso do Direito Penal é o máximo sucesso da dinâmica do capital — e isso
é mais do que suficiente para compreendermos a frase do Radbruch: "Não queremos um
Direito Penal melhor, queremos algo melhor que o Direito Penal. Pois, como bem nos ensina
George Ripert, quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito.
Referências:

(1) BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal.


(2) FOPPEL, El Hireche, Gamil. Da (I)legitimidade da Tutela Penal da Ordem Econômica:
Simbolismo, Ineficiência e Desnecessidade do direito Penal Econômico
(3) AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, q. 57, vol. II.
(4) STRATENWERTH, Gunter. Direito Penal Suiço, Parte Geral, Tom. I.
(5) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a Ultima Ratio da Proteção de Bens Jurídicos.
(6) GARCÍA, Olga Lucia Gaitán. Direito penal contemporâneo: da tutela penal a uma lesão à
proteção de riscos
(7) Dados do INFOPEN: https://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil
(8) BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: Introdução à Sociologia
do Direito Penal;
(9) VERAS, Ryanna Pala. Nova Criminologia e os Crimes do Colarinho Branco;
(10) RUSCHE, Georg. KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social.
(11) DIETER, Maurício, Stegemann. O Programa de Política Criminal Brasileiro: Funções
Declaradas e Reais.

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