Você está na página 1de 12

REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 9

Palavras do homenageado

OBRIGADO!

MEMÓRIA E MEMORIAL DE
UM SOCIÓLOGO DO DIREITOi

Luciano Oliveirai

N
asci numa cidade chamada Itabaiana. pai fosse um dos comerciantes considerados
Não a da Paraíba, terra do sanfoneiro “ricos” na minha Itabira. Nunca teve gado nem
Sivuca. A minha é de Sergipe, o menor fazendas, mas tinha uma farmácia, herdada do
estado da federação, terra de Sylvio Romero e de seu pai. Minha mãe, essa, tinha origens na roça,
Tobias Barreto, que também passaram por aqui... e seu pai chegou a ter gado e fazenda. Mas, com
E eu, quem sou e como aqui cheguei? Como a a idade avançando, torrou tudo nos cobres para
sociologia jurídica tornou-se preponderante na vir morar na cidade. Homem de um tempo
minha identidade como pesquisador e professor? morto, era de guardar seus cobres perto de si,
Nada foi calculado; quase tudo foi fruto de uma e eles foram roídos pela inflação. Morreu quase
série de acasos felizes. É preciso, então, que pobre, com as filhas “costurando para fora” para
eu diga algo sobre mim e a minha carreira de sobreviver. Minha mãe, ao se casar com meu
sortudo! pai, tornou-se o que se chamava uma mulher do
Acrescento que não tenho um nome lar, ajudando o marido no comércio e tomando
importante, nem poderoso, embora meu conta da casa e de nós. Na época, não se falava

i
Este texto reproduz quase integralmente a minha fala de agradecimento à homenagem que, por iniciativa (e trabalheira) do professor Artur Stamford
da Faculdade de Direito do Recife, foi-me prestada na ocasião do IV Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Dire-
ito (ABrasD), realizado em Recife, nos dias 11, 12 e 13 de novembro de 2013. A Artur, pela alegria que me deu, devo mais, bem mais, do que um
Obrigado!

REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO


ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 10
Palavras do homenageado

em dupla, tripla jornada de trabalho, mas era panfletos, essas coisas. Uma vida de estudante
isso. Pai distante, mãe resignada – como era meio boêmia... aquelas cervejadas que entravam
comum naquele tempo. Como veem, nada de madrugada adentro quando os mais afoitos
excepcional. Diferentemente do herói (ou anti- começavam a cantar “Pra não dizer que não falei
herói...) de Machado de Assis, nunca meu pai, de flores” de Geraldo Vandré. Acreditem: isso já
orgulhoso, ergueu-me no ar vaticinando um foi proibido no Brasil.
futuro radioso: “Um Cubas! Um Cubas!” Sobre o curso que fiz, uma impressão geral
Talvez deva dizer, já que aquilo em que me que tenho da faculdade daquele tempo é a de
tornei foi possível pelo meu amor aos livros – que era uma espécie de clube inglês, onde os
com quem sempre vivi agarrado –, que talvez a “sócios” iam de manhã dar aulas e, entre uma
explicação para essa minha “vocação” resida no e outra, ficavam batendo papo, fazendo fofoca
fato de ter sido neto do meu avô paterno, Florival e discutindo os processos que os ocupariam
de Oliveira – aquele de quem meu pai herdou no verdadeiro trabalho, à tarde, no fórum.
a farmácia –, que foi uma porção de coisas na Eram quase todos juízes, desembargadores,
vida: farmacêutico, rábula, promotor, inspetor promotores e advogados bem sucedidos, para
escolar, e que conheci já velho, aposentado, os quais certamente os vencimentos como
eternamente de pijama e lendo sem parar. Lia de professor não importavam e tinham aquilo mais
tudo, do melhor e do pior. Na biblioteca enorme como um título de prestígio e um hobby do que
que deixou encontrei de Dante Alighieri a Karl propriamente como uma profissão.
May, um alemão autor de romances populares de Aos trancos e barrancos, formei-me em 1976.
faroeste, hoje justamente esquecido. Digo que foi Era bacharel em ciências jurídicas e sociais.
importante porque aquela figura velha e bonita A experiência como advogado, isto é, como
(fisicamente ele lembrava Mário Lago), que todos advogado liberal, foi péssima. Eu realmente não
reverenciavam e chamavam de “Doutor Florival”, tinha vocação para aquilo. Aquele ambiente de
funcionou como um modelo com quem quis me fórum, “ilustre colega” pra cá, “grande jurista” pra
identificar. lá, aquele negócio de “data venia” o tempo todo,
Minha formação educacional foi a mais não dava para mim. Mas deixando de lado esse
convencional do mundo em famílias interioranas problema de temperamento, havia também uma
como a minha. O primário e o ginásio em coisa muito desagradável, perversa mesmo, que
Itabaiana, e o clássico em Aracaju. É assim que era era aquela promiscuidade entre ofício público
dividido o estudo na época. Depois de terminado e remuneração privada, herança dos tempos
o ginásio, havia o científico para os que queriam em que os cargos públicos eram explorados por
fazer medicina, química, engenharia, e o clássico, particulares, o que fazia com que o advogado, isto
para quem ia para direito, serviço social etc. Eu é, a parte, tivesse de pagar as citações e diligências
ainda comecei o científico e, por incrível que diretamente ao funcionário da justiça. Havia as
pareça, até que não era mau em física! Mas como tabelas oficiais, lógico, mas ninguém dava bola
gostava mesmo era de literatura, mudei para o para aquilo. Então, para fazer uma citação, o
clássico. Isso foi no Colégio Estadual de Sergipe oficial vinha com aquela conversa tipicamente
(espécie de Ginásio Pernambucano de lá) o qual, brasileira, “Doutor, o homem mora longe, vou ter
embora público, era o que de melhor havia em que pegar um taxi...” Era a institucionalização da
Sergipe. O ginásio, como disse, foi em Itabaiana corrupção. Não sei hoje em dia como andam essas
mesmo. Findo o clássico, fiz direito sem maior coisas. Espero que tenham melhorado. Ademais,
convicção, provavelmente porque era um curso de independentemente disso havia também minha
prestígio. Como avaliá-lo? As lembranças que eu própria dificuldade em ter um comportamento
tenho dessa época são acima de tudo lembranças de profissional liberal. Saber cobrar um preço
afetivas de um tempo em que eu e meu grupo de pelo meu trabalho, por exemplo, sempre tive
amigos fazíamos, como estudantes, uma tímida uma dificuldade insuperável em fazer isso.
resistência ao regime militar: jornal mural, Mas, por incrível que pareça, àquela altura eu
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 11
Palavras do homenageado

tinha me tornado um razoável profissional de suportava: elaborar contratos, dar pareceres etc.
direito. Como? Para falar a verdade, eu sempre Isso foi num domingo. Já na segunda informei
fui um mau aluno. Mas no último ano e meio aos meus sócios minha decisão de deixar o
de curso eu até que aprendi bastante direito, escritório. Foi ótimo para todo mundo. Algum
não na faculdade, mas num estágio que fiz tempo depois o colega que me convidara afastou-
na assessoria jurídica do Banco do Nordeste. se da Secretaria para ser promotor público e eis-
Foi lá que aprendi alguma coisa. A princípio o me promovido ao cargo que era seu: o de assessor
trabalho dos estagiários era ler o diário oficial jurídico do órgão. Nisso passei os anos de 1978 e
para acompanhar as ações de interesse do banco 1979. Até que, em 1980, larguei tudo e vim para
e fazer pesquisa doutrinária e jurisprudencial o Recife, fazer um mestrado.
para municiar os advogados nas petições e Mas por que decidi largar uma vida que
pareceres. Aos poucos, como sempre gostei estava tão arrumadinha na burocracia do Estado
dessa coisa de pesquisar e escrever, comecei de Sergipe e partir para um novo destino?
a construir arrazoados que acompanhavam o Simplificando bastante, eu estava um tanto farto
material que tinha pesquisado. Daí a pouco eu de viver elaborando pareceres que terminavam
estava fazendo minutas de pareceres, e depois, sempre com a fórmula clássica: “salvo melhor
os próprios pareceres! Em resumo, me tornei juízo”. Na faculdade nós tínhamos inquietações
um razoável parecerista. Mas o ano (era o ano de intelectuais e políticas que iam além do direito.
1976) terminou, e com ele acabou-se o que era Refiro-me ao grupo de contestadores a que
doce. Formei-me e me vi sem estágio, obrigado a eu pertencia. Evidentemente, éramos todos
me virar como advogado. marxistas. Era um marxismo de manual, mas
Como era comum naquele tempo para quem, tudo bem. Então eu diria que a tendência
como eu, não tinha uma família com banca intelectual mais natural para quem era marxista
instalada na praça, juntei-me a alguns colegas que não era o direito, mas a sociologia. A minha
já tinham um escritório. Aí era o que aparecesse: intenção, justamente, era fazer um mestrado em
usucapião, inventário, desquite... até cobrança de sociologia e voltar para ingressar na universidade
cheque sem fundo! Só do crime não me ocupava. nessa área, não na área do direito. Tanto que,
A ideia de fazer um júri, por exemplo, nunca quando vim embora, pedi uma licença para tratar
me passou pela cabeça. Na verdade, faltava-me de interesses particulares sem remuneração. Fui
vocação e ânimo para investir naquela carreira. viver de bolsa e de umas economias que tinha
Andava chateado, até pensando em abandonar feito, justamente já pensando nisso.
simplesmente o direito, fazer um concurso O meu mestrado não foi em direito, mas em
público em qualquer coisa, Caixa Econômica, sociologia. A definição por sociologia foi feita
Banco do Brasil, Petrobrás... qualquer coisa. conscientemente por mim. Mas a especificidade,
Quando, um belo dia, um ex-colega de isto é, sociologia jurídica, ou do direito, se vocês
faculdade me procurou em casa convidando- preferirem, foi um golpe de sorte – mais um na
me para ir trabalhar com ele numa repartição da minha vida.
Secretaria de Indústria e Comércio do Estado de Acontece que o mestrado para onde fui tinha
Sergipe. Fiquei até surpreso, porque ele tinha sido uma área de concentração em sociologia jurídica.
um daqueles alunos bem certinhos, de saber os Isso porque havia lá, na época, dois sociólogos
prazos recursais na ponta da língua (o que então do direito muito importantes: Cláudio Souto e
se chamava de C.D.F.), enquanto eu pertencia ao Joaquim Falcão. Mas eu não sabia de nada disso.
grupo dos “esquerdistas”, que nada queriam com O que eu conhecia de sociologia era, repito,
o direito. Foi o pessoal do Banco do Nordeste marxismo. Praticamente só. Talvez eu já tivesse
quem lhe recomendou o meu nome. Não pensei ouvido falar muito vagamente em nomes como
duas vezes. Afinal, o novo trabalho, além de me Weber e Durkheim, mas nada conhecia deles.
assegurar uma remuneração boa e certa, era o tipo E o que eu pretendia fazer, ao vir para cá, era
de advocacia que eu, se não amava, pelo menos aplicar o marxismo ao direito, como se estivesse
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 12
Palavras do homenageado

inventando algo novo, imaginem. De sociologia a seus alunos de direito nas suas ausências. Ele
jurídica eu não sabia nada. também tinha fundado um grupo de trabalho
E aí encontro os dois. E os dois eram a na ANPOCS (Associação Nacional de Pós-
sociologia jurídica recifense. E sem dúvida o Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). O
que de melhor havia em termos de sociologia grupo se chamava Direito e Sociedade, e reunia
jurídica no Brasil. Cláudio era um nome famoso. gente de todo o país. O pessoal de Warat em
Pensando na disciplina em termos de pesquisa Santa Catarina, o pessoal de José Eduardo Faria
empírica, era praticamente o seu fundador em São Paulo, o pessoal de Roberto Lyra Filho
no Brasil. Já no começo dos anos 60, ele havia em Brasília, tinha também Miranda Rosa do Rio
feito pesquisas empíricas para subsidiar uma de Janeiro – e por aí vai, ou ia...
legislação estadual sobre reforma agrária. Aí veio Em 1981, no meu segundo ano no Recife,
o fatídico ano de 1964 e seu trabalho de sociólogo Joaquim me leva para uma dessas reuniões
reformador foi interrompido. Mas Cláudio, que e, como seu mandato de coordenador estava
era socialista cristão (não sei se ainda é socialista; terminando, indica-me seu sucessor! Todo
cristão, certamente!), sempre teve uma vocação mundo, lógico, votou no meu nome e eu, um
para a teoria sociológica e terminou assumindo ilustríssimo desconhecido, tornei-me uma
essa vocação e voltando-se para temas como alta autoridade nas instâncias institucionais da
sentimento e ideia de justiça, encarados numa sociologia jurídica brasileira – mais num lance
perspectiva bem teórico-formal. Ele sempre de sorte! Já estava de bom tamanho, não? Mas
foi preocupado em construir uma teoria mais tem mais.
geral sobre o direito, a justiça e o próprio social. Quando vim para o Recife, a minha intenção
Para um marxista como eu, era tudo muito era passar aqui apenas dois anos. Pelos meus
abstrato. Já Joaquim trabalhava com coisas mais cálculos, era o tempo suficiente para fazer os
próximas de minhas preocupações. Na época ele créditos, fazer a pesquisa e voltar para escrever
pesquisava conflitos entre proprietários de terras a tese em Aracaju. Só que, algum tempo antes
e invasores urbanos no Recife. Essa coisa que de escoar-se o prazo, Joaquim tinha sido
num país como o Brasil continua atualíssima. convidado pela Fundação Joaquim Nabuco para
Ele estava interessado em ver como o judiciário, fundar um Departamento de Ciência Política, e
os proprietários, os ocupantes e o Estado agiam ficou nas duas instituições, a Universidade e a
nessas ocasiões. Quais as estratégias jurídicas Fundaj. E aí, quando eu já estava fazendo minha
para resolver, nos marcos de um direito civil pesquisa de campo e até me preparando para
e processual privatístico, conflitos que eram voltar para Aracaju, ele me convidou para ir
coletivos? trabalhar com ele na Fundação. Entre lisonjeado
Terminei afinando-me intelectualmente mais e temeroso, aceitei. E foi assim que me radiquei
com Joaquim. O mais engraçado é que, de início, “definitivamente” no Recife.
o meu orientador era Cláudio. Como eu não Joaquim tinha formado um time dele. Éramos
conhecia nenhum dos dois quando cheguei, o eu, Alexandrina Moura e Affonso Pereira. Os
coordenador do mestrado, ex-officio, designou dois últimos também tinham formação jurídica
Cláudio como meu orientador. Mas, com o passar e tinham trabalhado com ele na pesquisa sobre
do tempo, eu comecei a ver que o meu negócio invasões urbanas. Ou seja: o Departamento de
era mais com Joaquim e Cláudio também sentiu Ciência Política terminou tendo, na prática,
isso. Tanto que, num determinado momento, um perfil preponderante de Departamento de
muito elegantemente, deixou-me completamente Sociologia Jurídica. Logo depois Alexandrina foi
à vontade para mudar de orientador, se quisesse. para os Estados Unidos fazer um doutorado com
Eu quis. E fui ser orientando de Joaquim. David Trubek e ficamos, eu e Affonso, tocando
Virei “menino de Joaquim”. Que era uma as pesquisas sociojurídicas.
pessoa muito dinâmica e empreendedora. Vivia O que dizer dessa “escola pernambucana”
viajando, e eu comecei a dar aulas de sociologia da sociologia jurídica – como uma vez um
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 13
Palavras do homenageado

pesquisador a descreveu? É sempre um tanto de Joaquim, vendo nas ocupações uma forma
complicado falar em “escola”. Nesse caso, os de aquisição da propriedade, ou o meu, onde
trabalhos dos seus supostos integrantes eram se trata do problema do acesso à justiça, são
muito diferentes. Entre mim e Cláudio, por trabalhos que, digamos assim, rendem-se ao
exemplo, há diferenças significativas. Como fetichismo do direito. Eu, até por minha formação
talvez saibam, a dissertação de mestrado que marxista, tinha consciência sim dessa dimensão
acabei fazendo foi sobre práticas judiciárias profundamente ideológica do direito. E ainda
exercitadas por comissários de polícia no tenho, aliás. Mas e daí? Pode-se viver fora da
Recife, resolvendo pequenos casos das classes ideologia? Como disse o próprio Althusser no
populares sem acesso ao judiciário oficial. A seu famosíssimo Aparelhos Ideológicos de Estado,
tese se chamou Sua Excelência o Comissário, a ideologia é eterna!
e é até hoje o meu trabalho mais conhecido. Mas, se é assim, passar a vida toda
Fiz o que os antropólogos chamam de uma desnudando-a termina sendo um exercício
etnografia desses julgamentos, descrevendo as repetitivo, monótono, óbvio e... inútil! Além
partes, seus argumentos, a linguagem por eles disso, termina-se ficando só no que Althusser
utilizada etc. Para Cláudio, sempre interessado chamava de “trabalho teórico”. Não se mete a
em leis gerais do social, tudo isso é muito pouco mão na massa. Termina sendo um bom álibi para
rigoroso em termos científicos. O que não não se fazer pesquisa empírica, que dá muito
impede que tenhamos tido e tenhamos até hoje mais trabalho. Pois então. Enquanto o pessoal lá
valiosas relações pessoais. Eu nutro por ele um em Santa Catarina lia Miaille, Althusser, Barthes
sentimento próximo do afeto filial, que deve ser e outros, Joaquim (que tinha e me emprestou o
recíproco, aliás. Mas, em termos de paradigmas, livro de Miaille, aliás) passou-me de preferência
eu com meu marxismo, ele com seu cristianismo, autores americanos como Laura Nader, Donald
estávamos bem distantes um do outro. Como Black, David Trubek. Tudo “empiricista”! Mas
eu costumo brincar com ele, “nossos santos são também foi por meio dele que conheci o trabalho
diferentes”. de Boaventura Santos, um autor marxista, mas que
Mas e a “escola recifense”, finalmente, tinha feito uma pesquisa empírica numa favela
existiu? Eu acho que é possível dizer que sim, se do Rio de Janeiro estudando um sistema jurídico
abstrairmos as diversas orientações substantivas local operado pela associação de moradores, a
das pessoas que a fizeram e atentarmos para que ele deu o nome de “direito de Pasárgada”,
um aspecto, digamos, procedimental, pelo e que, depois, tornou-se a maior referência
qual é possível nos aproximar numa mesma teórica da sociologia jurídica brasileira dos anos
tendência: a busca de uma base empírica para 80. Bem, a escola pernambucana de sociologia
o nosso trabalho. Eu posso dizer que isso nos jurídica, se existiu, era isso que a caracterizava: o
distinguia, por exemplo, de Santa Catarina, com pejorativamente chamado “desvio empiricista”.
o movimento “crítica do direito”, de inspiração Mas volto à Fundaj e à equipe que então
marxista, e nomes então reluzentes como o de formamos – sobretudo, com a ida de Alexandrina
Michel Miaille, Althusser e outros, os quais, via para os Estados Unidos, eu e Affonso Pereira.
Santa Catarina, entraram no mundo da crítica Findo o meu trabalho sobre os comissários,
jurídica brasileira. O movimento do sul fazia trabalhamos juntos em uma pesquisa sobre
uma crítica de certa forma radical ao direito, conflitos coletivos e acesso ao judiciário.
mas uma crítica teórica, sem contato com a Dela resultou um livro, Conflitos Coletivos e
pesquisa empírica, coisa que era vista (mal vista, Acesso à Justiça, editado pela própria Fundaj
na verdade) como “empiricismo”. com o patrocínio da OAB-PE, que passou
Eu sei que estou simplificando, ma non troppo! completamente despercebido. A pesquisa tinha
Porque essa perspectiva “crítica” analisava o algo da perspectiva daquela de Joaquim sobre as
direito em termos de fetichismo, procurando invasões – ou, como se diz hoje, ocupações. Ou
desnudá-lo. Ora, nesse caso, trabalhos como o seja: conflitos coletivos para os quais o sistema
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 14
Palavras do homenageado

jurídico, estribado em bases privatísticas, não argumentação baseada em dados demonstráveis,


tinha respostas satisfatórias. Só que dessa vez deixando de lado aquela forma de discutir
eram temas ideologicamente menos quentes, baseada em argumentos de autoridade do tipo
digamos. Nós pegamos dois tipos de conflito, “como preleciona magistralmente o insigne...” e
ecológicos e de consumidores, e fomos verificar por aí vai.
a adequação ou não do direito processual para Vejam bem: não é transformar o direito numa
resolvê-los. ciência social. Eu francamente não acredito
Lógico que verificamos a inadequação. Mas, nisso. Mas é que o direito no Brasil continua
para chegar a essa verificação, construímos sendo tratado com base nessa forma pré-
uma tipologia de conflitos baseada nas suas moderna de argumentar, onde os autores são
características reais: quais eram os mais ícones. Eu ainda me lembro do meu professor de
numerosos, quem eram os infratores, quantas Introdução à Ciência do Direito, que se referia ao
pessoas estavam envolvidas como vítimas etc. E autor do nosso código civil como “sábio e santo,
aí nos deparamos com dados que nos levavam a santo e sábio Clóvis Bevilácqua”... Ele mesmo,
certas conclusões interessantes. Por exemplo: a e isso sem nenhuma intenção irônica, tratava
teoria clássica da responsabilidade civil, baseada Tobias Barreto de “Himalaia da cultura jurídica
na solvência do devedor, não serve para tratar o brasileira”! É evidente que não está em discussão
conflito ecológico porque, hoje em dia, com os nem a sabedoria de Clóvis nem a cultura jurídica
processos produtivos potencialmente danosos de Tobias. Mas tratá-los de santo, de Himalaia...
que temos, qualquer fabriqueta cujos bens Essa não é uma questão meramente estilística,
valham, digamos, 500 mil reais, pode despejar vejam bem. No caso (como sempre, aliás), o estilo
uma porcaria num rio e causar um dano a 500 mil é portador de um conteúdo. Eu acho que essa
pessoas! Mesmo que seus donos sejam pessoas nossa retórica, onde todo mundo é benfeitor da
honestas e queiram pagar o prejuízo (hipótese humanidade, tem a ver com algo mais profundo
apenas para argumentar, como se sabe...), eles na formação brasileira. A nossa história é toda
não poderão fazê-lo. Então tem que se pensar feita de conciliações superficiais que mascaram e
em controle prévio das atividades industriais, em não resolvem os nossos conflitos fundamentais.
processos administrativos abertos às associações Nós temos horror do confronto. De alto a baixo.
ecológicas e de consumidores para intervir no Todo mundo é amigo de todo mundo e ninguém
procedimento de licenciamento da atividade, critica ninguém. Fala mal, mas pelas costas, o
por exemplo. E também na representação que é outra coisa. Na cara, não, até porque aqui
judicial por intermédio dessas associações e do se confunde crítica com ofensa pessoal.
Ministério Público. Mas avancemos um pouco porque, como dizia
Lógico, a pesquisa está datada. Ela foi feita em Cazuza, o tempo não para! Da Fundaj fui para
1984, e desde então houve mudanças processuais a França, fazer meu doutorado, que não foi em
no sentido da necessidade que tínhamos ciência política. Foi, formalmente falando, outra
detectado, inclusive a Lei da Ação Civil Pública. vez em sociologia. Só que o meu orientador,
Mas isso é só para dar um exemplo do tipo de Claude Lefort, nunca foi sociólogo. Que eu saiba,
trabalho que fazíamos, e também para mostrar ao nunca fez uma pesquisa sociológica na vida. Era
jurista o tipo de trabalho que lhe pode servir, que (porque já faleceu) um filósofo da política, e a
eventualmente ele mesmo pode fazer. Não se trata minha tese de doutorado, que não deixa de ter
de nenhuma pesquisa sociológica sofisticada, uma parte sociológica, acho que seria melhor
com métodos avançados de sociologia. É mais classificá-la como sendo em filosofia política.
um aporte de dados sociológicos a um trabalho Mas por que Lefort como orientador?
que é, em sua essência, jurídico, destinado a Antes é preciso que eu diga que a minha tese
finalidades práticas. Seria ótimo que os juristas foi sobre os direitos humanos e o pensamento
adotassem posturas desse tipo, incorporassem político de esquerda no Brasil. Como já disse, eu
algo da démarche sociológica, no sentido de uma vinha de uma formação basicamente marxista.
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 15
Palavras do homenageado

Ora, dentro dessa tradição, o direito é uma a intenção de fazer um trabalho sobre marxismo
superestrutura ideológica destinada, aliás, a e direitos humanos ficou sempre gotejando na
desaparecer um dia numa sociedade comunista minha cabeça.
reconciliada, onde todo mundo vai viver Vai daí que, um dia, já concluído o mestrado
fraternalmente. Nesse caso, a reflexão sobre o e procurando ideias para o doutorado, li um
direito é mais uma reflexão contra o direito. E os texto de Claude Lefort, “Direitos do Homem
direitos humanos entram de roldão nessa crítica. e Política”, que na época, naquele momento
Ora, mesmo tendo vindo fazer o mestrado no de reinvenção da democracia entre nós, foi
Recife com a ideia muito vaga de analisar o direito muito lido no Brasil. Quando li o texto, tomei
a partir do marxismo, eu comecei a alimentar um choque. Lefort fazia uma leitura crítica da
uma pulga atrás da orelha assim que comecei a crítica marxista do direito e dizia coisas que eu
ler, a sério, sobre o assunto. Porque nós, nós que também tinha pensado. Pronto, a escolha estava
vivemos sob a ditadura militar, sabemos muito feita. O resto foi incrivelmente fácil. Escrevi-lhe
bem a importância prática que tem o respeito aos uma carta expondo genericamente o que queria
direitos humanos, porque nós vimos, e alguns de fazer, consultando-o sobre a possibilidade de ser
nós até sentiu na pele, o que é viver num regime meu orientador. Ele prontamente respondeu,
que os desrespeita. Explico-me. aceitando-me. E fui fazer meu doutorado. Em
No longínquo ano de 1976, ano em que me setembro de 1986, eu e minha pequena família –
formei, passei uma semana de horror, com medo Bebé, então minha esposa, e nossa filhinha Júlia
de ser preso e torturado para confessar sabe lá – partimos para a França.
Deus o quê! Oito dias antes do carnaval daquele Em 1o de abril de 1991, desembarquei no
ano, no fim da tarde de uma inesquecível sexta- aeroporto dos Guararapes com a tese defendida.
feira, alguns colegas da faculdade e conhecidos Ela se chama Imagens da Democracia, e tem por
dos meios políticos e sindicais começaram a subtítulo: Os direitos humanos e o pensamento
“desaparecer”. Passaram pelo calvário hoje em político de esquerda no Brasil. Passei um tempão
dia tão conhecido: incomunicabilidade, capuz e procurando publicá-la numa grande editora.
choque elétrico. Tinham sido presos pelas forças Não consegui. A Brasiliense, depois de muitas
de segurança do regime militar que já começava a idas e vindas, encomendou-me um trabalho
se desagregar, mas ainda tinha força e ferocidade menor. Lá publiquei, em 1994, um livrozinho
bastantes para tais ignomínias. Todos eles foram pela coleção Tudo é História, chamado Do Nunca
torturados durante um longo, longuíssimo, fim Mais ao Eterno Retorno – Uma reflexão sobre a
de semana nas dependências do 28º Batalhão tortura, reeditado em 2009. A tese, terminei
de Caçadores sediado em Aracaju. Quando publicando-a numa pequena editora recifense,
reapareceram, todos tinham marcas de tortura. que nem existe mais, praticamente uma edição
(Um deles, Milton Coelho da Graça, sindicalista do autor. A circulação, claro, foi muito restrita.
da Petrobrás, ficou cego como sequela dessas Nela faço uma análise de como o tema dos
torturas.) direitos humanos, inexistente e até menosprezado
Ora, já no Recife, fazendo o meu mestrado, como ideologia pequeno-burguesa na cultura
quando comecei a ler mais sistematicamente o política marxista, passa a ser incorporado pelo
que o marxismo dizia sobre o direito, comecei pensamento político de esquerda depois do
a achar que suas análises eram insuficientes. Foi choque que foram as brutais violações desses
quando li Marx a sério, e até flertei com a ideia direitos durante o regime militar.
de fazer uma tese teórica sobre essa questão, De volta do doutorado, reintegrei-me à Fundaj,
ideia que não levei adiante – desincentivado, mas o núcleo informal de sociologia jurídica que
aliás, pelo próprio Joaquim, que sempre investiu tínhamos ali tinha praticamente desaparecido.
numa sociologia de base empírica, como Joaquim Falcão, seu fundador, há muito
terminou sendo o caso da minha dissertação de tempo tinha deixado a Fundaj e o Recife, indo
mestrado sobre Sua Excelência o Comissário. Mas estabelecer-se definitivamente no Rio de Janeiro,
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 16
Palavras do homenageado

de onde era oriundo. Alexandrina Moura, que salvo. Mas para não parecer bonzinho e angélico
tinha assumido a chefia do Departamento em seu nesse meu relato de salvação daquele Programa,
lugar, terminou assumindo um perfil de cientista permitam-me aduzir que meu gesto não foi
política. E Affonso Pereira, meu companheiro inteiramente desinteressado. Havia da parte de
de pesquisas, que se havia tornado meu amigo Robinson a promessa – feita a mim e ao colega
mais íntimo, tinha simplesmente abandonado que comigo foi – de que, assim que possível,
a pesquisa! Assumiu cargos administrativos seria feito um concurso para nos incorporar à
na Fundaj e fez um percurso inverso ao meu: Universidade. A promessa foi cumprida. Assim
voltou ao direito. Explicando sua decisão, certa que surgiu a ocasião, fiz um concurso preparado
vez ele me disse: “O sociólogo quer transformar à minha feição – mais uma sorte? – e mudei-me
o mundo, mas não transforma. O juiz não quer para lá, onde fiquei na ativa até o ano passado e
transformar o mundo, mas transforma alguma onde, de certa forma, ainda me sinto estando até
coisa quando dá uma sentença”. Eu brinco com hoje.
ele, dizendo que isso é um álibi que ele inventou Aqui sucedeu algo curioso. Desde que
para justificar sua deserção. Mas reconheço que parti para fazer meu doutorado sobre direitos
tem uma boa dose de verdade no que ele diz. O humanos e pensamento político de esquerda no
diabo é que a sentença de um juiz pode também Brasil, e depois, já de volta, com o fim virtual do
transformar o mundo para pior... nosso núcleo informal de sociologia jurídica no
Foi por essa época que comecei a dar aula, em Departamento de Ciência Política da Fundaj,
regime de cooperação, no mestrado em ciência tinham praticamente cessado minhas ligações
política da Universidade Federal de Pernambuco, com a sociologia do direito. Até meus interesses
para onde fui paulatinamente me mudando. intelectuais tinham mudado. Lembro que
Como e por quê? Mais uma vez, a sorte! Naqueles durante algum tempo, nesse período, dediquei
anos – início dos anos 90 do século que passou minhas leituras a uma filósofa da política,
–, o mestrado em ciência política (hoje o bem Hannah Arendt, a ela levado pela descoberta,
sucedido Programa de Pós-Graduação em na França – onde fiz meu doutorado –, do olhar
Ciência Política) estava para fechar as portas. fenomenológico sobre o mundo e o fenômeno
Motivo: falta de doutores em número suficiente político. Praticamente nada mais tinha a ver
para atender às exigências da Capes. Sua nota com uma “sociologia de resultados” – aquela da
estava lá embaixo e a própria reitoria da UFPE minha pesquisa sobre os comissários e minha e
já pensava na possibilidade do fechamento. Seu de Affonso sobre os conflitos coletivos. E aí...
coordenador era Robinson Cavalcanti – que Ocorre que, mesmo tendo entrado na UFPE
tinha apenas o título de mestre. Como os que por meio e sob os auspícios da pós-graduação
são daqui sabem, Robinson, um homem cristão em ciência política, formalmente falando eu fiz
e portanto emissário de paz, foi morto há cerca um concurso para o Departamento de Ciências
de dois anos de forma violenta e no contexto de Sociais, o que obviamente implicava obrigações
uma tragédia familiar. Mas passemos. docentes que não se restringiam à pós-graduação.
Robinson me convidou – a mim e a um Ora, por uma série de razões que não vem ao
colega da Fundaj, também recém-doutor – caso detalhar, a disciplina sociologia jurídica,
a nos integrarmos ao Programa, livrando-o por ser sociologia, e mesmo sendo ministrada na
assim da degola. Fomos. Foi então pela mão Faculdade de Direito, era então assegurada pelo
de Robinson Cavalcanti e pelos dons que eram departamento onde tinha acabado de entrar. E aí,
seus, de diplomata sorridente e simpático, que, por força do meu passado – de minha formação
recém-chegado do doutorado no exterior e com em direito, de minhas ligações com Cláudio
um diploma novinho em folha, fui parar lá na Souto e Joaquim Falcão, entre outros –, eis-me
Ciência Política, cumulando as novas funções de designado para ministrá-la. O que fiz a partir do
professor com minhas obrigações de pesquisador ano letivo de 1994 até o ano passado, quando me
da Fundaj. E o Mestrado em Ciência Política foi aposentei. Voltei ao antigo aprisco. Como veem,
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 17
Palavras do homenageado

a sorte continuava me perseguindo. que as pessoas leram-no direito? O “direito de


Foi no contexto dessa volta que voltei a antigas Pasárgada” que emerge entre os favelados não é
questões. O movimento “crítica do direito”, por parte de um projeto de mudança da sociedade,
exemplo, tinha sido substituído, pelo menos é apenas uma estratégia de sobrevivência de
em termos de denominação, pelo movimento pessoas pobres que, sem o título de propriedade
do direito alternativo, muito ativo e professado do chão onde habitam e sem acesso ao judiciário
naqueles anos. E aí, voltando a adotar o “desvio oficial, inventam uma forma local de resolução
empiricista” de uma década antes, pus as unhas dos conflitos ligados à posse da terra. E o direito
de fora e entrei no debate. Comecei por escrever que eles aplicam entre si reproduz, em linhas
um artigo bem simples – Ilegalidade e Direito gerais, o direito oficial. E Boaventura diz isso. As
Alternativo –, que teve uma audiência inesperada, pessoas compram e vendem os barracos, alugam,
mesmo por parte dos “alternativistas”. Nele brigam por questões de vizinhança etc. Tudo
procurei exercitar um “bom-senso empírico” que mais ou menos igual ao que ocorre no mundo
via faltar nas formulações dos teóricos do direito burguês circundante. Eu costumo dizer que os
alternativo. Na verdade, apesar das críticas que pobres são normais... ou seja: são como nós!
eles gostavam de fazer ao idealismo dos juristas Aqui adentro rapidamente a questão
tradicionais, que escreviam desconectados do que seria um ensino jurídico crítico,
da realidade, eu acho que eles também eram tão recorrentemente reivindicado pelos
idealistas. Estou utilizando essa palavra não no alternativistas. O que seria esse ensino crítico?
sentido corrente, que considera idealista aquele Um ensino para formar juristas que fossem
que tem um ideal (nesse sentido eu também críticos das iniquidades da nossa sociedade?
sou um idealista), mas no seu sentido técnico, Estou de acordo. Mas, nesse caso, lembro que
ligado à filosofia do conhecimento, que significa não é só o jurista que deve ser crítico, também o
a interposição, entre o sujeito cognoscente e o economista, o médico etc. Agora, antes de tudo,
objeto conhecido, de uma ideia normativa sobre o médico deve ser um bom médico, conhecer
a realidade. bem medicina, como o jurista deve antes de tudo
Que ideia? A de que o povo, as classes conhecer bem o ordenamento jurídico, saber
populares são portadoras de uma concepção operá-lo com competência técnica.
de justiça mais justa, igualitária e libertadora Não, não se assustem, não virei um horroroso
do que a concepção de justiça do direito oficial. reacionário, embora até pareça, reconheço. O
Tenho minhas dúvidas. Não é que isso não que estou querendo dizer é que não adianta,
possa acontecer. É que, em primeiro lugar, isso por exemplo, o camarada ser um advogado
não ocorre necessariamente. E, em segundo progressista e não saber fazer uma petição
lugar, que isso não se aplica a todas as áreas da bem feita. Então, é basicamente para aprender
juridicidade. Reconheço, lógico, que algumas “direito” direito, se me posso permitir o jogo de
ações dos movimentos populares trazem consigo palavras, que o sujeito vem para uma faculdade
uma concepção desse tipo de direito mais justo. de direito. Mas, na verdade, não é só isso que
Por exemplo, as ações dos sem-terra, dos sem- estou querendo dizer. Estou também pensando
teto e assim por diante. Essas ações são, até por num nível, digamos assim, epistemológico. Eu
definição, contra o direito de propriedade inscrito tenho certas dúvidas a respeito do que seria um
no Código Civil. E, até por razões estratégicas, ensino crítico do direito. Ou, dizendo melhor,
coletivas. Mas isso não transforma os seus atores porque as duas coisas não são idênticas, tenho
em coletivistas. dúvidas sobre o que seria um direito crítico...
Acho que esses equívocos são em parte Deixem-me explicar melhor.
fruto de uma leitura muito idealista do “direito Meu antigo orientador Joaquim Falcão
de Pasárgada” detectado por Boaventura colocou, certa feita, a seguinte questão (estou
Santos. Esse trabalho tornou-se uma espécie citando de memória): “se a medicina é uma
de paradigma do direito alternativo. Mas será ciência a favor da saúde, por que o direito não
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 18
Palavras do homenageado

seria uma ciência a favor da justiça?” A frase crítico também da ordem burguesa injusta? Na
é ótima. Mas acho que ela é problemática. Em sua contestação vai dizer que o seu cliente é um
primeiro lugar, a analogia não é perfeita porque explorador? Se fizer isso, o patrão o destituirá e
a saúde e a justiça não estão num mesmo chamará outro. Além disso, estará cometendo
patamar de consenso. Estou querendo dizer o uma infração ao próprio ordenamento, o
seguinte: todos nós sabemos o que é a saúde. chamado “patrocínio infiel” – não é isso?
E assim todos nós queremos a mesma coisa, Isso dito, que fique bem clara uma coisa: do
correto? Mas a justiça, nós não sabemos direito fato de que aceito de um modo geral a visão
o que é, e assim não queremos a mesma justiça. lefortiana da legitimidade dos conflitos nas
As sociedades democráticas, aliás, como diria sociedades democráticas, não se segue que
outro mestre meu, Claude Lefort, alimentam- considero (nem acho que Lefort considerasse,
se permanentemente do debate sobre o que é aliás) todos os conflitos, num mesmo momento
justo e o que não é. Então, nessas sociedades, a histórico, igualmente legítimos. Dito de uma
existência do conflito é legítima. O direito, aqui maneira mais precisa, que considero todas as
entendido como ordenamento jurídico, é apenas pretensões em conflito igualmente empatadas em
uma série de prescrições que dizem como, em termos de justiça. Não! Todas as opiniões não se
determinado momento histórico, esses conflitos equivalem. De forma alguma passa pela minha
devem ser resolvidos. E ele próprio, por seu lado, cabeça tal relativismo. A sociedade não é um
está também sujeito permanentemente a esse amontoado de mônadas soltas e de valores sem
debate, por isso está mudando o tempo todo, sentido, todos valendo a mesma coisa como se
num movimento incessante e sem fim. fossem marcas de sabonete num supermercado.
Ora, nessas condições, é difícil conceber o Isso não é verdade. E não estou simplesmente
que seria o verdadeiro direito, o direito justo, expressando uma opinião pessoal. Quando digo
um direito crítico da injustiça existente na que isso não é verdade, estou me referindo a um
sociedade e cuja aplicação estaria a cargo dos dado objetivo. Ou seja: objetivamente falando,
juristas formados num ensino diferente, crítico. não é verdade que todas as opiniões se equivalem
Não apenas é teoricamente difícil conceber porque existem certas coisas que as pessoas
que prescrições conteria esse direito, como isso consideram mais certas do que outras, para falar
se chocaria com o princípio democrático da de um modo bem simples. Como diria Cláudio
legitimidade do debate sobre o que é legítimo e o Souto, não se pode chamar de direito aquilo
que não é. Raciocinemos em termos empíricos, que está errado. Existe, em alguma medida,
como eu gosto de dizer. Como todos sabem, nós hierarquia nos valores.
vivemos em sociedades divididas em classes. E Imaginemos um conflito opondo camponeses
a luta de classes está em toda parte. Muito bem. miseráveis sem terra e o proprietário de uma
Mas como as sociedades em que vivemos não são fazenda improdutiva do tamanho da Bélgica,
apenas conflituosas, são também democráticas, coisa que num país troncho como o Brasil é uma
as lutas de classes são, por assim dizer, legítimas. realidade. Eu não tenho dúvidas, e certamente a
E o direito, entre outras coisas, é um instrumento opinião pública brasileira também não tem, de
de administração dessas lutas. Sejamos francos: que lado está a justiça. Mas, ainda aí, o nosso
o direito não existe para acabar com elas. Existe fazendeiro “belga” vai ter direito a ser representado
para administrá-las, isto é, domesticá-las. na justiça, não? E eu garanto que vai aparecer mais
Nesse caso, puxando o debate para o nível advogado interessado em patrocinar a sua causa
empírico, um conflito entre patrões e empregados do que a dos camponeses miseráveis... E esse não
que desemboque no judiciário vai exigir que as vai ser um advogado “crítico”, vai ser dogmático,
duas partes estejam representadas. Vai ter que vai apelar para o que diz o Código Civil sobre
ter o advogado dos explorados e o advogado dos a propriedade e seus modos de aquisição. Já o
exploradores. O primeiro pode, e aliás deve, ser advogado dos camponeses vai ter de fazer uma
um advogado “crítico”. Mas e o segundo? Vai ser construção teórica mais elaborada, vai ter de
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 19
Palavras do homenageado

convencer o juiz de que o Código Civil tem de se abandonar o barco. Eliane terminou fazendo
adequar à Constituição que prevê a função social sozinha a análise do material. Cheio de remorso,
da propriedade etc. Voltando à minha exigência aceitei organizar com ela um seminário nacional
inicial, vai ter de ser um advogado competente. na PUC-Rio, no ano de 2000, no qual talvez
Em suma, também um bom dogmático! Bem, algum dos presentes tenha comparecido. E foi
acho que é tempo de concluir. só.
Volto à pergunta inicial: O que sou? Eu Desde então, sobretudo nos últimos anos,
fui apresentado e homenageado como sendo terminei minha carreira dando aulas aqui nesta
sociólogo do direito. O título até que me cabe, casa mais como uma obrigação do que como um
sem dúvida. Mas eu não tenho uma dedicação prazer. Como tinha uma experiência acumulada,
permanente à sociologia jurídica como tem um ligava o “piloto automático” e ficava esperando o
Cláudio Souto, um Joaquim Falcão, uma Miriam fim do semestre. Lógico que não fiquei de braços
de Sá Pereira da Universidade Católica de cruzados todo esse tempo. Mas, como o errático
Pernambuco, ou uma Eliane Junqueira do Rio de que sou, fui sendo atraído por outros interesses
Janeiro. Hoje, entre nós, creio que meu querido (pensamento social brasileiro, por exemplo)
Artur Stamford da Silva está percorrendo esse e autores que, definitivamente, nunca foram
caminho. Eu, de minha parte, sempre fui um sociólogos do direito: Claude Lefort, Hannah
errático. Arendt e, mais recentemente, Michel Foucault.
Li, certa vez, ou creio que li, um epigrama Produzi e publiquei – até que bastante – e assumi
atribuído a Bernard Shaw segundo o qual cada vez mais minha vocação ensaística. O
“a celebridade é uma série de equívocos em ensaio, afinal, permite-me, para citar outra vez
torno de uma pessoa”. Não que me ache (e, Machado, “atar as duas pontas da vida”.
aliás, não sou) célebre. Mas, pelo menos nesta Quero com isso dizer que, no fundo, talvez eu
manhã estou curtindo esta fugaz celebridade seja simplesmente um literato não realizado. É a
que Artur, contando com a paciência de vocês, volta ao meu primeiro amor – intelectualmente
proporcionou-me. Mas me pergunto: até que falando, obviamente –, aquele que a gente nunca
ponto ela não tem um quê de equívoco? Juro esquece. Da mesma maneira que qualquer
que não estou sendo falsamente modesto – até garoto que joga futebol sonha em ser Pelé, eu já
porque toda modéstia é falsa. Estou pensando no sonhei em ser José de Alencar, Érico Veríssimo,
que, em termos de sociologia jurídica, tenho feito Guimarães Rosa, Machado de Assis, mas
nesses últimos vinte anos, desde que me tornei também Graciliano Ramos. Acho que esse amor
professor da disciplina nesta casa. Pensando à literatura também me ajudou a matizar desde
numa sociologia jurídica de base empírica – cedo meu marxismo. Eu me lembro de discussões
como entendo que deve ser –, é verdade que dei intelectuais com meus amigos marxistas,
minha contribuição. Mas isso, rigorosamente na Aracaju da minha juventude, adeptos do
falando, deu-se na primeira metade dos anos 80 chamado “realismo socialista”, onde eu dizia, e
do século que passou! De lá para cá, o que fiz não apenas para provocar, que Guimarães Rosa
que fosse uma verdadeira contribuição para o era o maior escritor brasileiro porque, como
campo? Deus, ele tinha criado um mundo que não existia
A última pesquisa de que participei com esse antes da sua criação. E um “reacionário” como
caráter, praticamente deixei-a pela metade. Foi Machado de Assis? Com a maturidade, e agora
no final dos anos 90. Por iniciativa de Eliane às portas da velhice, minha admiração por ele
Junqueira, iniciamos uma enquete de caráter só foi crescendo. Suas grandes obras, aquelas
nacional sobre o ensino da sociologia jurídica que vão de Memórias Póstumas de Brás Cubas a
no Brasil. Recolhidos mais de uma centena de Memorial de Aires, escritas há mais de cem anos,
questionários que amealhamos via postal entre não têm uma ruga! De vez em quando pego
professores da matéria, vi-me presa de um fastio um desses livros e releio. O humor de Machado
tão grande diante daquele calhamaço que resolvi continua devastador. Meu amigo Fernando da
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
ABraSD JULHO 2014
REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 20
Palavras do homenageado

Mota Lima, numa fórmula feliz, qualifica-o de


“humor dissolvente”. E Graciliano? Esse, sim,
foi um Himalaia! Como explicar o milagre de
um sujeito como ele, comerciante de tecidos em
Palmeira dos Índios, interior das Alagoas, ter
escrito no começo dos anos 30 do século que
passou uma obra-prima irretocável como São
Bernardo?... Paro por aqui.
A literatura foi e é importante na minha vida.
Como literato frustrado, procuro sublimar-
me no que escrevo, procurando tanto quanto
possível fugir do jargão acadêmico. Sempre que
posso, dou uma pitadinha de sal literário aos
meus textos. E confesso que às vezes não fico tão
descontente com o resultado final...
Do fundo do coração, muito obrigado!

REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA DO DIREITO


ABraSD JULHO 2014

Você também pode gostar