Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Eduardo - E vocês, com as suas ideias pré- do Unibanco (União de Bancos Brasileiros,
-concebidas já, né? Alguns devem ter pensa- que se fundiu com o banco Itaú em 2008, tor-
do: é o típico arrogante gaúcho. Mas não, até nando-se Itaú Unibanco). Ele ganhava um di-
porque eu sou gaúcho, mas não exerço. Eu nheirão. Haviam oito empregados na minha
sou gremista. Há uma diferença. É uma for- casa, pra você ter uma ideia. Em geral, quan- Hélio, Jonas e Ronaldo
buscaram Eduardo no Ae-
ma superior de ser gaúcho. Eu estou agindo do um cara fala que nasceu rico, todo mundo
roporto Internacional Pin-
é com a arrogância típica do jornalista. Por- dá uma olhadinha meio de inveja. Em tese, to Martins, em Fortaleza,
que o jornalista é o cara que exerce-uma das né? E o outro: "Ah, o outro nasceu no Crato", no dia sete de novembro.
profissões mais arrogantes e prepotentes do Cara, mas você não imagina que tipo de pri- Eduardo os cumprimentou
com: "Eu sabia que acha-
mundo. Por quê? Porque há uma parte do são pode ser essa (nascer em família rica),
ria vocês se procurasse
princípio que ele tá qualificado pra descre- se você é um desadaptado, entendeu? Acho pelas pessoas mais feias
ver uma pessoa ou um .acontecimento com que, bem entre aspas, "cada um sabe a delí- do saguão!"
distanciamento e com objetividade. E já está cia e a dor de ser o que é", a velha frase. Mas
provado, antológica e filosoficamente, que -por um lado, na época, pelo menos, eu prefe-
é impossível você descrever qualquer coisa ria ter nascido no Crato. Até no Crato! (Grita).
com esse distanciamento e com essa objeti- Essa desadaptação encontrava uma válvula
vidade. O jornalista, quando chega pra fazer de escape muito rápida nos livros. Meu pai
ou uma reportagem ou uma entrevista, ele já era letrado, graças a Deus. Eu tenho sete mil
tem - e é natural que assim seja - ideias pré- livros hoje, a minha biblioteca. Porém eu já
-concebidas do que vai fazer. Então ... me livrei de dois mil! Meu pai tinha em torno
Hélio - (interrompendo) Eduardo, deixa de dois mil. Ele era um financista, ele curtia
eu aproveitar o que você tá falando, porque esse jogo do dinheiro, que eu nunca curti. Ele
a gente vai começar, na verdade, falando gostava de ganhar dinheiro em transações
da sua vida como jornalista, o início na car- financeiras, essa era a profissão dele, só ga-
reira. Eu quero perguntar sobre aquilo ou nhava o salário dele e toda-se. Tanto é que,
aqueles fatores que o levaram a escolher o conforme ele prometeu, nós não herdamos
jornalismo, esse interesse pela área, e so- absolutamente nada dele. Meu pai tinha um
bre a maneira como você entrou também lado meio beat, beatnik. Mas o fato é que ele
(na profissão). tinha essa biblioteca e essa biblioteca logo se
Eduardo- Desde o começo da minha vida, revelou o quarto encantado.
descobri que a fabulação e o vínculo com a Eu mergulhei muito cedo nesse mundo
palavra, tanto escrita por outros, como de- de letras. E muito cedo, aprendi que eu po-
pois eu vim a descobrir que também poderia deria, emulando, imitando os caras que eu
ser escrita por mim, era meu único caminho gostava e lia, escrever também. É engraça-
de salvação. Porque eu sentia um desconfor- do que o meu primeiro livro, que eu escre-
to muito grande com relação ao meu papel vi com oito anos de idade - eu ainda tenho
no mundo, na família, no colégio, em todas os cadernos-espirais - é um livro que indica
as estruturas vigentes. É até engraçado - eu o que eu viria a fazer depois: ser um mero
tava lendo a entrevista do Xico Sá (jornalista compilador de ideias dos outros (ri). Era um
colega de trabalho do Extra Ordinários, do livro sobre o Egito antigo. Eu tinha plena
canal SporTV, entrevistado na edição núme- convicção que eu tinha vivido no Egito numa
ro 32 da revista Entrevista), feita pela turma vida anterior, convicção que ainda tenho -
que antecedeu vocês - que às vezes você vê basta tomar os produtos certos que dá pra
a narrativa de caras que têm uma trajetória acessar essas vidas anteriores e... (risos).
nas artes ou nas Letras, digamos, e vários Meu primeiro tema de interesse na vida era
deles têm essa infância meio Severina, e ain- o Egito. Comecei a ler tudo o que eu encon-
No voo de Porto Alegre
da mais o Xico Sá que veio aqui do Nordeste. trava sobre e resolvi escrever sobre o Egito. a São Paulo, Eduardo lide-
E você tem um natural pendor: "Uau, o cara Eu pegava vários livros, tirava trechos um rou um movimento de "li-
suplantou tantas dificuldades", esquecendo por um e misturava. E eles acabavam fican- bertação" dos passageiros,
então impedidos de sair da
das dificuldades vividas pelo pobre menino do meus. Porque quem fazia o corte, aspas,
aeronave por quase duas
rico, no caso eu (fala rindo). a edição era eu. E também descobri, incons- horas, após episódio envol-
Eu nasci numa família de classeA-hahaha. cientemente, como você não só pode como vendo um (perdido) cigarro
Meu pai (Milton Bueno) era ligado à direção deve se apropriar das ideias dos outros. Ah! de maconha a bordo.
Afinal um dos meus maiores ídolos, o 80b você mistura ou não mistura sua paixão com
Dylan, ele copia tudo. Mas o jeito que ele co- o jornalismo, entendeu?
piou é só ele que seria capaz de fazer. Quem Aquilo para mim não era jornalismo, mas
me dera inclusive eu fosse um copiador que começou obviamente a encaminhar minha
nem ele, né? carreira para o jornalismo esportivo. Tan-
Jadiel - Mas nessa sua forma de regis- to é que, quando eu fui fazer o vestibular,
trar as coisas que lia, você já tinha consciên- não restava outra possibilidade para mim
cia de que era jornalismo? Como é que você que não fosse o jornalismo. Porque eu já ti-
foi ter consciência? nha concluído que eu não ia fazer história.
Eduardo - Não, eu tinha zero consciência Eu já era meio refratário às estruturas fixas
de que era jornalismo. Eu queria ser egip- da história, da historiografia. Todos os his-
tólogo e arqueólogo. Concluí logo que para toriadores que eu gostava tinham um viés
ser arqueólogo, principalmente, tinha que ter muito mais literato do que propriamente
dentre as suas qualidades a meticulosidade historiográfico. Dois nordestinos que muda-
e a paciência. Eu nunca tive nenhuma das ram minha vida: Gilberto Freyre e Luís da
duas, nem um arremedo (ri). E eu nunca tive Câmara Cascudo, que eram historiadores,
método. Meu método sempre foi errático. mas escreviam como grandes romancistas.
Mas veio a coisa da palavra e a necessidade
vital de escrever. Veio também uma paixão
por futebol, pelo glorioso Grêmio, o que me
fez começar a escrever sobre os jogos do
"Então decidi entrar
time, lá pelos dez, 11 anos de idade. Porque no jornalismo. Foi
vocês sabem - isso tem de ficar registrado
- que a imprensa é vermelha (fala gritando uma opção bem
ao gravador)! A imprensa, além de petista e
vermelha, ainda é colorada! Todo mundo é extraordinariamente
um protocolorado. Todo mundo tem um co-
lorado escondido dentro de si! E a gente tem consciente, para um
Fizemos contato com
de se revoltar ... Não (volta ao tom normal, o
que faz a equipe rir), mas eu lia as coisas e
garoto que tinha
Eduardo inicialmente por
meio de Cláudia Saraiva, se-
cretária dele na editora Bue-
ficava: "Não estão vendo o jogo do jeito que
eu vi! Eu vou escrever o jogo do jeito que
dezessete anos de
nas Ideias. Sem a coopera-
ção, insistência e paciência
foi!" Incrível isso, né? Porque tem a ver com idade e fumava um
a natureza do jornalismo, tem a ver com essa
de Cláudia, esta entrevista
provavelmente nunca teria natureza de você ter o seu olhar, tem a ver todo dia"
se concretizado. com aquela história de paixão, de que jeito
No dia da entrevista,
Eduardo vestia uma cami-
sa amarela com as inscri-
ções Beat Generation e On
The Road, referências ao
movimento com o qual se
identifica e ao livro símbo-
lo dessa filosofia.
riedade.o Peninha me deu esse nome que Hélio - Não sendo um apelido que referen-
me protege. Depois vocês vão lá pesquisar de muita seriedade, muita carga de profissio-
sobre a história do Peninha, porque é do ca- nalismo, como foi que você ganhou o apelido?
ralho. Eu sou grato ao Boró por ter me ape- Eduardo - O meu irmão disse: "Ó, você
lidado. A primeira história do Peninha é ele, não pode entrar lá. Você não pode". Isso era
vegetariano, convencendo o dono (do jornal junho. Eu fiz o primeiro semestre, entrei na
A Patada, onde o personagem trabalha) a vi- faculdade ... Era junho de 1976 e o cara dis-
rar vegetariano e a fazer ioga! Puta que pariu, se: "Se entrar eles vão foder contigo direto".
quase ejaculei (quando ele leu). (risos) O Pe- Eu entrei na faculdade em março de 1976 e
ninha, com o qual hoje eu me identifico, me era o pior pesadelo do mundo. Era ... Ele está
permitiu a criação de uma persona. Tanto é perdendo a foto, ó! Eu estou com as mãos
que o Augusto Nunes (jornalista que dirigiu assim (se dirige ao fotógrafo Jonas enquanto
a redação do jornal Zero Hora quando Peni- arqueia os braços para cima com os dedos
nha foi editor chefe. Augusto é hoje da Veja) tensionados) e ele perdeu a foto. Ele veio do
é um dos que diziam: "índios, crianças e o Maranhão, o entrevistado põe as mãos na
Peninha são imputáveis". Porque, cara, eu já cara, faz assim e ele só fez a foto porque eu
fiz tanta merda, já fiz tanta loucura que os ca- continuei com as mãos pra ele fazer.
ras diziam que não podia ser possível. Jonas - Depois você podia ficar mais bo-
É um personagem que me protege. Mas nito também, pra ajudar.
o que ele me tirou? Quando eu tento trazer Eduardo - É. Depois você me faz uma
as coisas para um nível de seriedade maior, foto abraçado com as meninas. Quando eu
especialmente com os meus livros de histó- entrei na Zero Hora, o jornal só saía de se-
ria ... Costumam dizer que os historiadores gunda a sábado. E o Correio do Povo (jornal
não gostam (de seus livros historiográficos). pertencente à Rede Record), que era o jornal
Diz o nome de um! Não tem nenhum! Ne-
nhum que tenha dito o nome e posto a cara.
Só tem uma coisa assim corporativista, sem 11( ... ) abriu um
nome, anônima, anódina, sabe? "A academia
não gosta do Peninha". Quando vem o cara puta de um corte
com o nome, depois eu digo todos os nomes
dos caras que saíram em minha defesa ... na minha mão, a
Tem o Evaldo Cabral de Mello (historiador e
escritor recifense). Tá bom, né? Eu podia pa- cachaça (molhou
rar nesse, mas tem mais, muito mais. Nico-
lau Sevcenko (historiador de São Vicente-SP,
a ferida): 'Aaah l",
falecido em 2014), o maior ... Tem muitos. O
apelido me tirou um pouco dessa coisa da
ardeu pra caralhol A entrevista estava mar-
cada para às 15 horas do
dia oito de novembro de
seriedade. Não que eu tenha tanto interesse (...) Eis que o Boró 2014, no Mareiro Hotel da
na seriedade. Mas é que, quando veio essa Avenida Beira Mar - onde
coisa do histórico e do confronto com a aca- diz: "Contratamos o Eduardo esteve hospeda-
do. O espaço foi um audi-
demia, precisava de seriedade ... Os caras
falavam: "É o Peninha, se chama Peninha". Peninha" tório de reuniões de frente
para o mar, cedido pela
Não é um apelido que referende muita ... Né? gerência do próprio hotel.
(quase sussurrando). Todo mundo era cacha- minha ligação com a palavra escrita e com a
ceiro . E esses caras, se eles não bebessem a leitura sempre teve um viés esquizofrênico.
partir das 11 da noite, o cara começava a ter Como eu falei, ela sempre foi fruto de uma
um treco. Não podia beber no jornal. Assim desadaptação. Eu não me sentia adaptado
como não pode fumar maconha em avião ao mundo, então eu me refugiava no mundo
até hoje, o que é um absurdo (após uma co- dos outros, no mundo da literatura e mes-
missária de bordo ter encontrado um "base- mo no mundo da história. Porque o mun-
ado" no chão do banheiro da aeronave em do da história que eu sempre julguei como
que Eduardo estava - ainda em Guarulhos, literatura também, porque a história é uma
antes da conexão para Fortaleza - e aciona- fabulação, né ... A história é uma fabricação!
do a Polícia Federal, os passageiros do voo O cara que escreve escolhe deixar fora algu-
passaram quase duas horas sem poder sair mas coisas e dentro outras. Ele não pode ter
do avião) (risos). Os caras decidiram que iam a pretensão de escrever a história total. Cla-
beber. E fizeram - chegou na resposta agora ro que muitos historiadores têm um apreço
- duas garrafas de cachaça com mel e dei- gigante por serem fidedignos. Eu, no meu
xaram escondido debaixo da mesa do che- trabalho como jornalista, eu sempre me es-
fe, que já tinha voltado dos Estados Unidos, forcei o máximo para, não só ser objetivo ...
Com Hélio e Ronaldo pre-
parando o auditório do hotel o tal Antonio Oliveira. Todo mundo tinha o Objetivo nunca me esforcei muito! Mas para
para a entrevista, Eduardo direito a beber um talagaçozinho (um gole). ser fidedigno eu sempre me esforcei muito,
conversava com a equi- Eu também era filho de Deus, embora não porque eu sabia que a minha natureza de ge-
pe. Falou de seus hábitos
fosse (sorri), e perguntei: "Eu posso beber?" miniano, de maluco, poderia me abrir portas
de corrida - incluindo pela
Beira-Mar na noite anterior, Os caras disseram: "Não, não me diz que tu para desconfiança no meu trabalho. E eu sa-
onde contou exatamente 50 bebes?" Eu digo: "Sim, eu bebo". "Ah, o Ri- bia que a pedra angular na qual eu tinha de
prédios de apartamentos. quinho quer beber, o Richie Rich quer beber! construir a minha carreira era o fato de ser
tando isso pra você. Foi assim que eu conse- do", de que só tem veado no Rio Grande do
gui meu espaço muito cedo na Zero Hora ... Sul - que é maravilhosa. Porque, o seguin-
Eu tinha a ânsia, o desejo de fazer a matéria te, quem conhece o Rio Grande do Sul e vai
com um tom pessoal. O que eu vi eu estou em Bagé, no Alegrete, em Uruguaiana, né ...
contando, não estou contando como se eu Vá lá fazer piadinha de "gaúcho veado" pra
fosse um fantasma, entendeu? Um observa- você ver o que é que acontece. Os caras são
dor inatingível. tão machos, tão machos, especialmente lá
Hélio - Eduardo, considerando essa tua na fronteira do Uruguai com a Argentina ... E
posição em relação à fidedignidade e tam- machista e sexista. E uns carnívoros, come-
bém a teu esforço, desde sempre, de te co- dores de carne, que tem mais de pegar no pé Eduardo não cansou de
locar dentro do teu próprio trabalho, a gente e chamar de veado mesmo. E dentro dessa cortejar as quatro entrevis-
chega a um ponto que foi todo esse proble- brincadeira que a gente faz com preconcei- tadoras - entre elogios e
ma envolvendo a tua pessoa no Extra Ordi- tos, o Xico Sá pega no pé ... brincadeiras durante todo o
contato. Uma pena, seg
nários (Um trecho do programa, onde Edu- E eu estava falando ... Era (o jogo da Copa do ele próprio, que a e _
ardo chamava o Nordeste de "aquela bosta" do Mundo de 2014 entre) Holanda e Espa- vista contasse tambem
ganhou repercussão na Internet e gerou po- nha. E, na santa ignorância das pessoas, os presenças mascurnas..
caras nem sabem que Espanha e Holanda ti- Raso da Catarina! Porque ia virar um depósi-
nham travado uma batalha por Salvador em to de lixo nuclear. Quando descobri que exis-
1621, porque era ainda a União Ibérica, por- tia um lugar que era abaixo do nível do mar,
tanto o Brasil ainda era uma colônia de Por- que era um lugar selvagem, intocado, onde
tugal, que por sua vez estava vinculado, tinha o Brasil estava planejando jogar lixo nucle-
sido engolido pela coroa da Espanha. E a Ho- ar, eu não só me vinculei à campanha contra
landa estava travando com a Espanha uma o lixo nuclear ser jogado lá, como fui para
guerra de independência. Os países estavam ver onde era o lugar. Eu conheço a Serra das
sob domínio espanhol e eles (holandeses) Confusões, cara, que é do lado ali da Serra da
atacaram o Brasil também como uma forma Capivara (ambas no Piauí). Conheço a Serra
de atacar a Espanha, e travaram essa batalha da Capivara, com as suas pinturas rupestres.
em Salvador. E eles iam jogar em Salvador: Conheço aquele indício de fósseis brasileiros
Holanda e Espanha! Porra, cara, era um mo- na Paraíba - esqueci agora o nome - os caras
mento ... E eu estava dizendo: "Eles estavam estão roubando os fósseis brasileiro há anos.
atacando lá..." E o Xico Sá: "Sim, a parte Conheço a Pedra do Ingá ...
mais rica do Brasil". E era mesmo. Eu disse: Jadiel - Sousa (na Paraíba).
"É, sim, aquela bosta lá". Dentro da nossa Eduardo - Sousa, é. Conheço essa porra
coisa (da brincadeira entre ele e Xico Sá) e inteira! Li tudo o que tinha de ler! Conhe-
continuei a história que eu estava contando, ço estado por estado da porra do Nordeste!
que era uma história interessante. E pegaram Conheço a história e a arte da região! E o
essa parte "aquela bosta", "aquela bosta". E cara vem encher o meu saco (começa a gri-
botaram lá na Internet, Twitter e Facebook. tar) dizendo que eu sou contra o Nordeste!
Quem sugeriu o nome
de Eduardo Bueno para o Mas eu digo: "Tá, tá, mas eu não me conhe- Eles que vão tomar no cu! Eles têm todos
projeto foi Hélio Grangei- ço, eu não vou ter um ataque histérico". os evangélicos do mundo para lutar con-
ro, que já lia sobre o escri- Cara, eu conheço o Nordeste inteiro, to- tra! Os evangélicos que estão proibindo as
tor e usou de uma expan-
dos os lugares. Cara, eu conheço o Raso da estátuas de orixás na Lagoa de Abaeté (no
siva argumentação sobre
a quantidade de histórias Catarina (área de atual preservação ecológi- município de Itapuã-BA)! Eles têm todos os
que o jornalista e escritor ca, na Bahia)! Eu fiquei uma semana lá pe- empresários filhos-da-puta nordestinos que
poderia ter para contar. gando a vibe - a vibe! (gíria, a sensação) - do construíram 50 prédios nessa orla (refere-se
Os estadunidenses Dick
Kinney e AI Hubbard cria-
ram o Peninha, original-
mente Fethry Duck, em
1968 em homenagem à
geração beato A atribuição
a Eduardo não parece ter
sido mera coincidência.
que é uma condição inata. E eu me lembro lixo na rua ... Hoje eu vi umas pessoas jogan-
a primeira vez que - e agora estou falando do lixo aqui na praia "assim" (gesticula), e é
supersério, e queria compartilhar com vo- impressionante. E tem um outro lado que é
cês porque nunca compartilhei isso publi- Brasil, igual aqui (Ceará). E aqui é um milhão
camente. A primeira vez que eu pensei que de vezes mais Brasil: a arte, o artesanato, a
talvez, quem sabe, o Rio Grande do Sul não comida, o clima, o comportamento, as rela-
fosse superior, por exemplo, à Bahia. Por- ções humanas são muito mais o que o Brasil
que na verdade o "preconceito" se dá de supposed to be do que lá. É aquilo que eu
tal jeito - e eu acho que vocês devem saber falo: Salvador é de 1549, Porto Alegre é de
disso - que para o sulista "médio", o Nor- 1773... São 220 anos. Aquela merda lá só ti-
deste é tudo Bahia. Daí eu devia ter uns 15 nha neve. Lá naquela porra, aquilo faz frio.
anos, andando na rua e pensei "PÔ, Caeta- Hélio - Considerando isso que você falou
no, Gil, Jorge Amado ... Poxa, não tem nada de que mesmo como historiador nunca deixou
nem parecido aqui no Rio Grande do Sul!" de ser jornalista, inclusive pela linguagem, pelo
E música é o seguinte: (gritando) tinha de modo de apresentar: que pontos negativos e
ter uma lei contra a música gaúcha! Tipo positivos você acha que essa linguagem enri-
MPB, claro que não a música gaúcha de raiz quece ou empobrece a historiografia?
- que é do caralho! Eu digo essas coisas aí, Eduardo - Primeiro eu tive a ideia de fazer
Engenheiros do Hawaii, essas coisas ... Tá, esses livros já baseado nos livros que outros
literatura: "Tem o Érico Veríssimo. Mas o jornalistas já tinham feito antes de mim, por
Érico Veríssimo ... Ah, prefiro o Jorge Ama- quem nem morro totalmente de amores. O
do ... PÔ,será que a Bahia se equipara ao Rio
Grande do Sul?" Juro. Porque é uma coisa
que estava introjetada - hoje mudou, mas
até os 80 estava -, sabe o Sul Maravilha? Da
JlE música é o
Graúna (personagem do cartunista Henfil),
aquela coisa. Sul Maravilha! Cheio de "ale-
seguinte: (gritando)
mão", as pessoas são loiras dos olhos azuis tinha que ter uma
- que nem eu (Eduardo é moreno, tem olhos
e cabelos castanhos). lei contra a música
Cara, mas era isso, e é incrível: se ainda
pegar umas certas facções e for conversar gaúcha! Tipo MPB,
a sério com os caras, eles vão achar que
o tema talvez não seja relevante: porque é claro que não a Eduardo Bueno e Xico
Sá - entrevistado na edição
indiscutível a superioridade do Sul sobre o
Nordeste. E, quando tu paras pra pensar:
música gaúcha anterior -, além de amigos,
são colegas na apresenta-
aquela porra nem Brasil é! (risos) Para o bem
e para o mal, porque tem um lado bom de
de raiz - que é do ção do Extra Ordinários,
que faz parte da programa-
ção do canal SporTV desde
não ser Brasil também, sério, tem um lado caralho!" o período da Copa do Mun-
do de 2014.
mais "civilizado". No Brasil "neguinho" joga
JJEuVOU ser um
profeta com a
garganta cheia de
trovões, que nem o
80b Dylan é. E nem
que eu tenha de
ficar pregando no
deserto - e é isso
que eu vou fazer."
sempre soube que foi no dia oito de março
de 1975. O disco que eu digo que eu ouvi
não tinha saído em oito de março de 1974.
Eu não poderia ter ouvido, a não ser que eu
XIX, ele é o arauto do século XX, ele é o cara tivesse ouvido vozes (diz "vozes" fantasma-
que anuncia o século XX para o Brasil. E são goricamente, arqueando os braços). Ooh!
temas que estavam mais ou menos esqueci- Ele fez a foto agora quando eu disse 'voo-
dos e desconhecidos pelas pessoas. zes' (refere-se ao fotógrafo). Se eu não gos-
Eu peguei o que todo mundo sabia, que tar dessas porras dessas fotos que você tá
era aquela porra do colégio, que era didáti- fazendo, você tá fodido, Ô, maranhense. Eu
co ou coisa que estava desde a cartilha até a dou um telefonema pra minha amiga Rose-
porra do vestibular, que era o descobrimen- ana Sarney e você tá morto. (risos da turma)
to do Brasil, Cabral (Pedro Álvares Cabral) e Quando eu ouvi o Bob Dylan eu disse:
Ao passo que Hélio e Ja-
diel apresentaram a "figura" dei essa outra roupagem, com o intuito es- "Vou me rebelar, eu vou passar a vida inteira
de Eduardo, uma das gran- pecífico de ajudar a história a se libertar do sendo rebelde, ninguém nunca mais vai dizer
des inseguranças do grupo banco escolar- que foi o que eu fiz! Os livros o que é que eu tenho de fazer ou deixar de
esteve no trato com o entre-
venderam mais de um milhão de exempla- fazer. Eu vou ser um profeta com a gargan-
vistado. Ana Maria chegou a
revelar um certo "( ...) medo res! E a história virou tema de discussão em ta cheia de trovões, que nem o Bob Dylan
de falar alguma besteira e bar, neguinho se encachaçando e dizendo: é. E nem que eu tenha de ficar pregando no
ser cortada por ele". "Porra e aquele livro lá do Peninha, 'Náufra- deserto - e é isso que eu vou fazer. É isso
desde o primeiro contato. Que todo mundo Criou uma identidade cultural e histórica do
sabe do massacre dos índios americanos gaúcho, a Revolução Farroupilha, o caralho!
lá, pelos cowboys, na década de 1860, os Tudo mentira, mas acredita, e é legal e é do
índios-sul Apaches, Comanche, das grandes caralho! O Ceará também! - mesmo sendo
planícies. Mas eles começaram a ser mor- essa porcaria aí. Criou-se uma identidade cul-
tos já ali onde hoje é Boston, Nova lorque, tural. Existem uns lugares que não criaram!
ele conta desde o início. E eu pirei e concluí Sabe? Santa Catarina, Paraná são um lugar
que era óbvio que só podia ter sido assim no que fica entre Rio Grande do Sul e São Pau-
Brasil também. Porque, cara, o seguinte: os lo. Ninguém sabia nem quem eram os índios.
índios mal apareciam na história, né, cara? Eu comecei a pesquisar pra caralho os índios Outros integrantes da
A não ser que por meio de um indigenista, catarinenses. Concluí que eu queria escrever equipe reveleram tentar, de
claro, o Darcy Ribeiro ... Mas os livros de his- sobre os índios e o primeiro contato (com o início, uma posição analí-
tica de "expectadores" da
tória, as história dos índios (bate uma mão europeus). Era um sonho antigo, que depois
entrevista, para melhor se
na outra balançando a cabeça pros lados) ... eu mudei e escrevi pelo olhar eurocêntrico, (o situar em relação àquela
E começou aquela trip de índio. Foi até livro) que se chama Viagem do Descobrimen- personalidade instável que
quando eu comecei a ir pra Santa Catarina, to. Vem um monte de idiota e diz: "Mas não se apresentava ao grupo.
saiba. Se eu tivesse
descoberto
. algo
,
que runquern
nunca tinha falado,
eu tinha saído nu
pintado de azul,
preto e branco."
Ceará. O cara podia ter vindo. Não veio porque nha, baseado no A Coroa, a Cruz e a Espada,
tinha as costas quentes. E veio pra Salvador, informação em primeiríssima mão, num fil-
em 1549. Ele tinha de ter vindo em 1532, 1533, me que vai se chamar Sardinha. Com roteiro
no máximo 1534, pro Ceará. Passaram-se 15 do brilhante, do admirável, do inigualável. ..
anos e ele veio pra Salvador como Ministro da Eduardo Bueno (todos riem).
Fazenda, como servidor-moro Amanda - Você falou de a história estar
Ana Maria - Por que é o melhor livro? presa nos bancos de escola. Isso é uma coisa
Eduardo - Porque é um livro muito reve- que você sentia quando ainda era estudante?
lador para o Brasil e trata de assuntos de um Eduardo - Sim, pra mim era um tormen-
jeito que nunca ninguém tratou antes. Por to. As minhas aulas de história foram um
exemplo, a morte do bispo Sardinha, que era tormento. Os meus professores de história
um corrupto, que era um canalha também, eram horrorosos. Com exceção de um que
que mereceu o fim que teve, comido pelos era ótimo, chamado Arno Kern, que é o maior
índios Caetés. Não tem nenhum texto no arqueólogo do Sul, da história do Rio Grande
Brasil que reúna, nenhum livro no Brasil que do Sul até hoje. Porém, ele entrava na aula
reúna tanta informação sobre o bispo Sar- e a primeira coisa que ele dizia era "Bueno,
dinha. Não tem nenhuma informação nova. rua" (ri). Estou falando sério, porque eu tinha
Nenhum livro meu tem nenhuma informação certeza, na época, que eu sabia mais história
nova, que ninguém saiba. Se eu tivesse des- que ele. Eu queria falar mais que ele na aula.
coberto algo que ninguém nunca tinha fala- Ele entrava e já me mandava pra rua direto.
do, eu tinha saído nu pintado de azul, preto e Eu nunca consegui ter muita aula com ele.
branco (cores do seu time) gritando: "Desco- Ele era meio prepotente, mas, porra, é que
brimos, porra!" Mas eu nunca descobri nada. ele não tinha saco pra mim, com toda a ra-
Até porque eu nunca pesquisei em arquivos zão. Eu tenho 56 anos de idade e sou assim,
em fontes originais, eu só pesquisei em li- você pode me imaginar com 16, né? Eu não
vros de outros que estão citados ali. era muito diferente do que eu sou com 16,
No entanto, eu tenho uma enormidade de porque eu já tinha ouvido Bob Dylan. Mas eu
livros e eu tenho livros de 1800 e tanto. E eu tinha 16, então você pode imaginar que não
faço uma releitura desses livros muito mais era muito fácil aguentar. Tá, mas daí. .. Qual
potável, muito mais palatável. Por exemplo, era a pergunta antes que eu não terminei de Por diversas vezes o
professor Ronaldo foi
o bispo Sardinha: não tem nenhuma novida- responder? (comenta-se tentando relembrar
questionado sobre o uso
de sobre o bispo Sardinha. Mas ninguém fez a pergunta anterior) Faltou uma coisa. Qual de "palavrões" na Revis-
um perfil tão completo e juntou tudo o que era a pergunta anterior? ta Entrevista - por alu-
se sabia sobre ele do jeito que eu juntei. Es- Jadiel - Era falando sobre o livro e nos, convidados e a pró-
pria Universidade. "Mas
tava tudo esparso. E botei tudo ali, sobre a depois foi ...
se eles falam, o que é
morte dele. E o Walter Salles (diretor do filme Eduardo - ...Ah, o melhor livro e depois que a gente pode fazer?
On The Road, 2012, adaptado do livro de Ke- esse imbecil aqui (se referindo Jadiel) per- Pedir pra serem mais
rouac) vai filmar o episódio do bispo Sardi- guntou qual é o pior. Nenhum, filho da puta! educados? Não!"
livro quando eu era jornalista, sempre soube ainda sou um cara consciencioso - e o pior
que esse livro ia ser de história, e no fundo é que agora é verdade. O que eu me inspirei
eu sabia que ia ter a ver com índios e com no George Martin não é um mundo de fanta-
o descobrimento! Isso nunca foi consciente sia nem a criação de um mundo: o que me
mas estava latente, e eu sempre soube que inspirou nele foi o jogo de poder. São famí-
ia escrever um romance na minha vida. E era lias que eu estou criando, quatro míseras fa-
óbvio que ia ser um romance histórico, mas mílias - ele criou 200 famílias que ainda por
eu realmente não sabia que ia ser sobre o cima viram reinos! Mas essas quatro míseras
Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro é um lugar famílias vão ter ramificações por esses 500
marcante na minhavida. Eu já escrevi vários anos de história e vai ser esse jogo de po-
livros sobre o Rio de Janeiro: a história da der sórdido, vil e rasteiro - quase nordestino
Avenida Rio Branco - antiga Avenida Central (brinca). Esse ódio familiar, esse nepotismo,
-, da Avenida Presidente Vargas, a História esse "Eu ponho meu filho no poder", esse
da Higiene Pessoal no Brasil - toda centra- "Eu te mato", vai ser isso. Em cima da família
da no Rio, que era um lugar mais sujo, mais Sá - do filho da puta do Xico Sá -, que vai
imundo. Então, eu já tinha uma "coisa" com existir como é ela, a verdadeira, do mal, do
o Rio há anos, e aí pá! Veio esse. mal, do maaal. .. Se tu leres vai ser: "Porra,
Por que ficção? Porque, embora a base isso aqui foi o George Martin que escreveu"
seja histórica, vai ter vários personagens que e não, é isso aqui mesmo. E três outras fa-
não existiram, são criações ficcionais. E al- mílias ficcionais, foi por isso que eu falei de
gum de vocês - tu, me entregaste, porque és Game of Thrones: não tem dragão!
dedo duro (apontando para Hélio que havia, Hélio - Eduardo, sobre suas principais -
em reunião, informado a equipe sobre a pro-
dução e influências de Eduardo) - fala: "PÔ,
o cara falou que vai ser um Game of Thro- 11( ... ) qual é
nes! (série de televisão baseada na série de
livros A Song of Ice and Fire, de George R. realmente o grande
R. Martin)" E infelizmente eu não tenho a
menor condição de escrever alguma coisa
dilema do Brasil?
,
como Game of Thrones. Inclusive eu tenho
fama de egocêntrico, o que é um absurdo,
E um dilema ético
porque eu sou uma das pessoas mais mo-
destas do mundo! Aliás talvez tenha de ficar
e moral: é um país Eduardo reafirma sua
registrado aqui: a minha modéstia não só é sem ética e moral, personalidade dupla - e
dúbia: um "Eduardo Sue-
maior que todas as de vocês juntas, como se no" de pessoa jurídica,
vocês pegarem todas as modéstias de vocês vê os jeitos que as jornalista, historiador
analista de um país; outro
e
dação e Estilo do Estado foi escrito por Edu- proibida!" Daí ele: "É, pois é..." E eu digo:
ardo Martins, com primeira edição lançada "Vem cá, posso fazer uma matéria só com
em 1990. Martins trabalhou durante toda a palavras proibidas?" "Pode". Cara, eu passei
vida no jornal O Estado de S. Paulo, come- um mês ... O que eu gastei de maconha e de
çando em 1956 como colaborador, aos 17 neurônio naquela merda, juntando as pala-
anos, criando Palavras Cruzadas). O cara era vras proibidas, caara ... Mais parecia quebra-
um caixa do Bradesco! É que essa frase não -cabeça. Aí pá! Entreguei uma matéria só
é minha: eu trabalhava na L&PM - abri mais com palavra proibida, com início, meio e fim,
um parêntesis, o meu estilo é parentético: eu pum! Ah, do caralho, pode me cumprimen-
abro chave, colchete, parêntesis e travessão, tar, uma salva de palmas, por favor, pra ficar
mas depois eu fecho o travessão, o parên- registrado ... (grita) Uma salva de palmas!
tesis, o colchete e a chave e volto ao tema (palmas fracas)
original. É um dom que eu tenho. Então: me Eduardo - É, obrigado ... Foi meio brocha
Jadiel Lima quis retri-
buir a descontração com esqueci do que eu estava falando (risos entre mas té, merecia. Bom, fechei o parêntesis,
que Peninha os havia tra- todos). agora o colchete. Té, qual era a pergunta?
tado e perguntou qual a Hélio - Estava falando das tuas principais Hélio - A pergunta era sobre as suas in-
relação entre ele e Laerte
influências na escrita. fluências na escrita ...
(tendo ambos narizes tão
parecidos). "Nós dois co- Eduardo - Não! Eu ia contar essa história ... Eduardo - Tá. Ouvi o Bob Dylan, jurei que
memos a tua mãe", res- (confusão geral, várias vozes) ia ser rebelde. Daí é o seguinte: jornalismo
pondeu o gremista. Eduardo - Eu trabalhava na L&PM (Edi- tem de ser o texto telegráfico: sintético, fra-
eu venero! Como um homofóbico que sou, tem de ser um gênio. Eu sou incrível né, cara?
adoraria odiá-Io, mas não consigo, porque Sabe que eu sou a pessoa mais incrível que eu
sou solúvel em talento! conheço? Falando sério (risadas gerais).
E, na história, os brasileiros são Sérgio Hélio - ...Mas levando isso em conside-
Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre e Câ- ração eu quero perguntar: pra além do que
mara Cascudo. Mas eu também tenho admi- você faz, como você se percebe, como de-
ração num cearense, que é o Capistrano de finiria a sua maneira de "se colocar", de se
Abreu, e o Capistrano é um positivista, tá ul- apresentar ao mundo?
trapassado, mas é o seguinte cara: é genial, Eduardo - Que bom que você fez essa
é maravilhoso, eu adoro, é o meu cearense pergunta! Porque é o seguinte: eu sou o ver-
favorito, my cearense number one, viu, Xico dadeiro "que não se enxerga", cara. Falando
Sá? (Eduardo ressalta também a importân- sério, se eu ficasse me enxergando, me per-
cia do historiador Francisco Adolfo de Var- cebendo, eu não conseguiria ser desse jeito
nhagen) Eu tenho uma foto do Capistrano de que eu sou. Não pensa que não tem um lado
Abreu no meu escritório, ao lado do "pan- que eu tenho "vergonha" do jeito que eu sou
teão" ... Ele não ia gostar, porque ele tá junto - claro que eu não tenho vergonha, mas é o
com Jean Genet, com o Rimbaud, com o Bob seguinte: eu sou histriônico, maluco, porque
Dylan, ele ia se sentir meio mal eu acho, com eu dou vazão à minha natureza expansiva,
aquela veadagem ali mas ... Fazer o quê? (gri- mas eu não fico me enxergando. Por exem- Jonas Bastos de Araú-
ta) Embora eu odeie veado! Tá cheio de foto plo: nesse episódio da maconha no avião. Eu jo, fotógrafo que registrou
a entrevista de Eduardo e
de veado no meu escritório mas é por acaso! me esqueço, graças a Deus, que eu sou uma
acompanhou os proces-
Olha ... Não quero censura nessa merda des- pessoa conhecida e as pessoas me reconhe- sos de produção e prepa-
ta entrevista, hein? Não deixá eles me censu- cem, porque, se eu ficasse me lembrando, ração junto à equipe, já foi
rarem (para o professor Ronaldo)! eu não ia ter coragem de levantar e começar caixa do Bradesco.
você falou que não é nem um pouco pacien- sobre o Gary Snyder. E o Allen Ginsberg,
te e já comentou em entrevista anterior que que eu também conheci pessoalmente, era
é totalmente religioso. Se me permite a leitu- ligado ao budismo. Então, era um caminho
ra: "Gostaria de me dedicar inteiramente só natural pra todo mundo que era meio hippie
a meditar, mas é meio difícil pra mim. Abrir chegar nessa coisa budista, tomando LSD...
mão de tudo. Meu maior delírio é virar um Olhando uma margarida e... (balbucios
andarilho rezador". Nessa tua personalidade contemplativos) Esse misticismo empurra
tão explosiva, que grita muito e ao mesmo naturalmente para o zen-budismo e para o
tempo busca a meditação, o que a espiritua- budismo. Como a minha hippiedade, a mi-
lidade representa na tua vida? nha rebeldia foi sempre baseada em mode-
Eduardo - É, então, é exatamente isso. lo literário ... Tudo que eu fiz na minha vida
Toda essa geração hippie, toda essa história era uma "cópia" ou tinha uma "base" num
via Geração Beat ... Não foram os beats que modelo literário. Eu não fiz nada sozinho,
introduziram o zen-budismo e o budismo sempre fui orientado por mestres da pala-
no Ocidente, mas foi na mesma época que vra, os caras que eu lia e eu dizia "Bá, vou
eles estavam fazendo a obra deles e por vias ser assim!" Entendeu? Graças a Deus todos
muito similares. E depois eles ajudaram, os caras que eu li eram malucos, rebeldes.
especialmente o Jack (Kerouac) e o Gary Os que me pegaram mesmo foram os tais
Snyder - que é budista praticante, vive ain- beats, e eles tinham esse apreço pelo budis-
da em mosteiro ... E o Jack escreveu aquele mo, que eu imediatamente desenvolvi.
Dharma Bums, os vagabundos do Dharma, É uma boa piada: eu tenho 140 livros so-
bre budismo e zen-budismo e vem um cara
"Eu não fiz nada e (diz:) "Pode ter lido, mas nunca aprendeu
nada, né?" Eu já estou bem mais distante, já
fazer essa coleção Terra Brasilis. Eu escre- bém. Cocaína, cigarro e café pra ninguém!
vi A Viagem do Descobrimento em 44 dias, E eu achava mesmo, eu achava que as pes-
Náufragos, Traficantes e Degredados em 62 soas tinham de ser amarradas e (gritando:)
dias e Capitães do Brasil em 98 dias. É im- "Vai fumar esse baseado aqui e toma isso
possível escrever nessa rapidez, a não ser aqui que vai ser bom!" Eu descobri que pra
que tu estejas "turbinado". Eu sempre odiei cada pessoa ela age de um jeito.
a cocaína, sempre' achei uma droga do mal Oavid - Eduardo, você tem o trabalho
total, acho que ela tá supervinculada ao de- como um lugar sagrado, um lugar que dig-
mônio. Para continuar no meu misticismo: nifica o homem de um certo modo. E falou
eu acredito em Deus e acredito no demônio agora que tinha de usar drogas para produzir
plenamente. Tenho quase pena de quem mais. Como é que se dá essa relação?
não acredita no demônio, porque, cara, o Eduardo - Não, dá fácil, dá fácil! Porque
demônio não só existe (rindo) como ... Ru- é o seguinte: era, nesse caso, como jogar
les! Manda pra caralho! dopado, entendeu? Porque é o seguinte: o
As pessoas me perguntam muito: "Qual (atleta) Ben Johnson ... Esses caras que cor-
o melhor livro que tu já leste na vida?" E rem dopados: tudo bem, não pode porque
todo mundo acha que é piada mas não é: eles vão morrer, por isso que é proibido.
a Autobiografia de um logue do Yoganan- Não é moralmente, é uma proteção ao indi-
da. Ele descreve o processo de iluminação víduo. Agora: "Se eu usar o mesmo doping
dele: vendo o universo inteiro em um satori do Ben Johnson ou do (pugilista) Mike Tyson
- na súbita iluminação, no súbito despertar. ou quem for, eu vou conseguir fazer o que
E eu acredito totalmente, mas entre o acre- o cara faz?" Não vai, né, cara! Aquilo é uma
ditar e o praticar há um abismo. Começou qualidade nata do cara que aquela substân-
por causa dessa cheiração, né? E a cheira- cia só potencializa. É o meu caso: o meu tra-
ção leva ao cigarro, cigarro ao café. Porque balho era sagrado. Eu usei drogas que não
pra mim é o seguinte: se eu pudesse escre- são sagradas, sem afetar com isso a sacra-
ver ... E eu adoro falar sobre drogas porque lidade do meu trabalho e a devoção a ele.
é tão hipócrita o discurso. As pessoas são E ao contrário: eu usei pra ter mais devo-
tão filhas da puta, é tão ridículo o jeito que ção a ele, entendeu? Então, se eu pudesse,
elas falam, que elas pensam, que elas são. E e se essas três drogas não fossem ruins, eu
é o seguinte: quem usa, em geral, não fala, trabalharia única e exclusivamente: de ma- Hélio já conhecia a filha
e os que falam, falam pra acusar e nunca drugada; cheirando cinco carreiras de pó; mais nova de Eduardo. Ao
comentarem o fato com
usaram, ou então conheceram uns idiotas tomando uma garrafa térmica de café "deste Eduardo, Jadiel recitou o
"lá" que usaram ... O que eu mudei na vida tamanho" (mostra com as mãos o tamanho verso de Chico Buarque
é que antes eu achava aquilo de "maconha que seria) e fumando seis cigarros ... Ou sete. "Você não gosta de mim,
é para todos". Depois, LSD pra todos tam- Todo dia. Com isso eu rendo muito mais, eu mas sua filha gosta".
Peninha se surpreendeu
em como a entrevista assu-
mia por vezes um caráter
"confessional, quase psicana-
lítico". Foram nesses momen-
tos que o escritor se manifes-
tou mais sério, introspectivo
e contemplativo, em contra-
dição ao lado explosivo dele.
Apesar de se definir
como "expansivo, histriô-
nico e maluco", Eduardo
é fortemente influenciado
por filosofias e crenças
orientais, especialmente
ligadas ao budismo. Acre-
dita na valorização do in-
divíduo por suas próprias
ações e relações humanas.