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ENTREVISTA: DES.

NÉRIO LETTI1

Apresentação
O Programa de História Oral do Memorial do Judiciário do Estado do Rio Grande do
Sul formou um Banco de História Oral, cujas entrevistas vêm sendo publicadas nesta revista,
como na série Histórias de Vida, que reúne coletâneas de depoimentos. A formatação da rede
de depoentes e a formulação dos questionamentos aos entrevistados coincidem com as
demandas animadas pelas pesquisas desenvolvidas no Memorial. Os depoimentos, depois de
degravados pelo Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do Tribunal de Justiça, são
textualizados pela equipe técnica do Programa e devolvidos aos depoentes para eventuais
ajustes e aprovação final. Aprovados, são indexados, de forma a facilitar o acesso aos
consulentes, e, em seguida, são devidamente arquivados.

Todas as declarações constantes nas entrevistas são de responsabilidade exclusiva dos


depoentes, que assinam um termo de cessão de direitos para o Memorial do Judiciário,
autorizando ou não a divulgação da entrevista. O Memorial do Judiciário garante total
liberdade de expressão aos entrevistados, procurando, ainda, ouvir todos os lados
interessados em uma eventual questão polêmica. Por isto, entendemos os fatos narrados nas
entrevistas não como verdades históricas em si, mas como representações e opiniões
individuais sobre o processo histórico e sobre fatos do passado. Recomendamos que as
entrevistas coletadas e divulgadas pelo Memorial do Judiciário, por este motivo, sejam lidas
sempre em seu contexto, comparativamente a outras entrevistas, publicadas nesta revista ou
na série Histórias de Vida.

Nério Letti é natural de Antonio Prado/RS, nasceu em 28 de julho de 1939. Formou-se


em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, (UFRGS), em 1962. Ingressou
na Magistratura Estadual em 1965, como Pretor, assumindo a Pretoria de Não-Me-Toque,
pertencente a Comarca de Carazinho/RS. Foi nomeado Juiz de Direito em 1965 e promovido
para o Tribunal de Alçada em 1985. Em 1990, foi promodivo a Desembargador do Tribunal
de Justiça. Aposentou-se em 1992.

* Depoimento concedido ao Historiador Gunter Axt e à Arquiteta Lídia Fabrício em 26 de junho de 2003, e a Lídia

Fabrício, no Memorial do Judiciário. Degravação do Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJ/RS. Textualização


de Daliana Amaral Mirapalhete.

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A entrevista aborda aspectos da trajetória pessoal e profissional do entrevistado. Trata
de diversos temas que marcaram a história regional: do incêndio do Tribunal em 1949, ao
panorama político do Rio Grande do Sul nos anos 1950 e à Legalidade em 1961. Comenta o
ambiente acadêmico e estudantil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o impacto
sentido com o Golpe Militar de 1964. Letti também fala sobre a Liga Eleitoral Católica, o PL e
o PDC.

Sobre o exercício da jurisdição, Letti nos narra a experiência nas Comarcas


do interior, começando pela zona de colonização italiana, onde a Justiça Comum
precisou lutar contra o hábito dos descendentes de imigrantes de deixarem as
propriedades por herança apenas ao primogênito, deserdando os demais filhos.
Sua entrevista também nos dá um panorama enriquecedor dos relacionamentos
multiculturais nas comarcas de colonização onde convivem várias etnias. Letti
comenta alguns processos do período do regime militar, em especial o IPM em
torno da prisão de 62 pessoas em Itaqui. Em função desse processo, Letti tece
considerações sobre questões de competência entre a Justiça Militar e a Justiça
Comum para julgar supostos crimes contra a segurança nacional, durante o
regime militar. Da vivência na Comarca de Canoas, Letti lembra do famoso caso
da “Cabeça Cortada
MEMORIAL – Desembargador, o senhor é natural de Antônio Prado, cidade de
colonização italiana não é mesmo?
ENTREVISTADO – Sim eu falo italiano e tenho cidadania italiana.
MEMORIAL – Quando o senhor nasceu?
ENTREVISTADO – Nasci em 28 de julho de 1939. Estou com 66 anos. Fiz o
Primário em Antônio Prado, com os Irmãos Maristas. Em Antônio Prado não havia
Ginásio. No 5° ano primário se fazia o exame de Adm issão ao Ginásio, com provas de
Matemática, História, Português e Geografia. Eu tinha três opções: sair de Antônio
Prado, ir para o seminário ou parar de estudar. Quem estava no 5° ano primário, em
Antonio Prado, estava no “último” ano. Era o suficiente. A maioria de jovens, meninas
do Colégio São José ou os meninos do Colégio dos Maristas - Sagrado Coração de
Jesus, paravam de estudar e iam ajudar em casa, no trabalho para o sustento do lar.
Poucos jovens tinham condições de sair e cursar o Ginásio em outra cidade.
Saí de Antônio Prado, e vim fazer o exame de admissão para o Ginásio no
Colégio Anchieta, que estava situado na Rua Duque de Caxias, ao lado do Museu Júlio
de Castilhos. Cursei o Ginásio como aluno interno. Recordo que no curso clássico se
dava ênfase para disciplinas das áreas do Direito e das Ciências Humanas, já no curso
científico a ênfase era nas disciplinas da Engenharia, Medicina, Veterinária ou Ciências

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Exatas. Fui anchietano de 1950 a 1957, foi um período extraordinário da minha vida,
tive a oportunidade de conhecer e conviver com os padres jesuítas de origem alemã.
Entre eles convivi com o famoso Padre Pio Buck, cujo nome foi posteriormente, dado ao
albergue dos apenados ao lado do Presídio Central. O Pe. Pio Buck fazia a
comemoração de Natal dos presos. Os alunos anchietanos, passavam tardes e tardes,
organizando as comemorações de Natal e Páscoa e os presentes para os presos. O
Pe. Pio conseguia os presentes através de doações, no comércio e na indústria e
depois trazia para o Colégio Anchieta. Em uma sala ampla, eram feitos individualmente
os pacotes para cada preso. O Pe. Pio como professor de desenho e de matemática
era detalhista e rigoroso. Inclusive nos presentes para os presos da Casa de Correção.
E assim se fazia em todos os anos. Várias gerações de alunos do Colégio Anchieta,
ajudaram e trabalharam com o Pe. Pio organizando o Natal dos presos da Casa de
Correção.
O Pe. Pio Buck era um cientista, como o Pe. Balduino Rambo, botânico e tantos
outros Jesuítas. O Pe. Pio criava em seu quarto na Clausura, cobras e aranhas.
Normalmente o Pe. Pio vinha dar aula no Colégio Anchieta com uma cobra no bolso da
batina. Ao estender a mão para o cumprimento vinha uma cobra enrolada. Que susto!
Impressionante! Muitas vezes assustava as pessoas na rua Duque de Caxias, em suas
andanças.
Como todo o jesuíta tinha que ter uma outra atividade extra pastoral, além do
magistério, onde Lecionava Desenho e Matemática, também foi capelão da Casa de
Correção. Ele lutou na I Guerra Mundial, como oficial da força alemã, era um homem
forte, que praticava boxe. O prédio da Casa de Correção se localizava ao lado da Usina
do Gasômetro e lamentavelmente foi demolido, era uma construção de uma arquitetura
magnífica, com grandes paredes e de estilo clássico. Penso que o Presídio Central
poderia ter sido transferido para outro local, como o foi para o bairro Partenon - demolir
o prédio foi um grande equívoco, foi mais prejudicial do que se derrubassem o prédio da
Usina do Gasômetro. O prédio do lado era muito melhor, podia ser sede hoje de um
Tribunal, de uma Universidade, enfim poderia abrigar qualquer Instituição da sociedade.
Guardo uma recordação muito boa desses tempos. Dedicação total ao estudo e futebol.
Como era interno no Ginásio entre 1950-1954, lembro-me que uma condição
para que pudéssemos sair na rua era a de freqüentar o curso de coroinhas. Então,
acabei fazendo o curso de coroinha, que era todo ministrado em latim, para fazê-lo
tínhamos que levantar às cinco e meia da manhã. Fui selecionado porque sabia latim e
toda a liturgia da missa, o Padre Pio Buck levava-nos para passear no Morro do Sabiá –
Ipanema e ajudar na missa nas Capelas e até a Casa de Correção. Estas caminhadas
com o Padre acabaram, posteriormente, influindo na minha carreira de Juiz. Nosso
trajeto era da Duque de Caxias, quando saíamos ao clarear do dia, e a primeira pessoa

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que ele encontrava e cumprimentava era o “velho” Borges de Medeiros, na época eu
não tinha noção de que ele era o Antônio Augusto Borges de Medeiros. Depois o
conheci muito, porque o Padre Werner, que era Professor de Filosofia, converteu
Borges de Medeiros. Ele morava sozinho ao lado do Museu Júlio de Castilhos, na rua
Duque de Caxias - nº 1205 - não tinha filhos e já contava, na época com 80 anos.
Freqüentava a missa dos internos na Capela pequena do Anchieta, tomava comunhão
de manhã, e eu, como coroinha, colocava a patena sob o seu queixo.
Prosseguindo nosso trajeto, passando pela Catedral, o Padre Pio Book
conversava com Dom Vicente Scherer – que era o Arcebispo -, e seguíamos depois
descendo a Rua Duque até a Casa de Correção. Chegando à Casa de Correção havia
um portão de ferro gigantesco. Quem abria o portão era um preso que marcou época,
conhecido como “Major Aragão”. Ele estava preso por ter sido acusado ou se auto-
acusado de ser responsável pelo incêndio do Tribunal de Justiça, que ocorreu no dia 19
de novembro de 1949. Era chamado de “major”, embora não o fosse, mas sim porque
dominava a Velha Casa de Correção, e o nome de Aragão, porque era nascido na
cidade de Aragão – da Espanha – ele cumpria pena por estelionato. Tratava-se de um
preso de nomeada, que exercia uma liderança na massa carcerária pela sua cultura e
habilidade, e não pela força. Ele era uma espécie de secretário do Padre Pio Buck, que
foi um padre extraordinário. Sabia o nome de todos os presos, entrava sozinho nas
galerias e dominava o presídio. Quando um preso o atacava ele dava-lhe um soco – eu
tive a oportunidade de presenciar este fato -, porque como já disse ele era forte e lutava
boxe. Quando era necessário também se impunha pela força física. Eu ajudava o Padre
Pio Buck na missa da capela da Casa de Correção e nós éramos ajudados pelo “Major
Aragão”. O Padre Pio foi capelão da Casa de Correção por 40 anos.
MEMORIAL – Quando a Casa de Correção foi destruída, em 1954, houve algum
clamor de parte da sociedade?
ENTREVISTADO – Não houve defesa, não havia essa consciência de
preservação do patrimônio físico da cidade. Veja que a Usina do Gasômetro ficou por
muito tempo fechada e abandonada. Ela foi erradamente chamada de Usina do
Gasômetro, mas nunca foi Gasômetro, era uma termoelétrica movida a carvão e que
dava energia para Porto Alegre. Era de propriedade de um americano, e o Leonel de
Moura Brizola a encampou quando foi Governador do Estado entre 1958 - 1962. Do
lado da Usina, ficava a Casa de Correção e, mais adiante, já na antiga Rua Pantaleão
Telles (Rua do Meretrício) atual Washington Luís), é que ficava o Gasômetro - o
depósito de gás - porque Porto Alegre tinha gás encanado. Ainda existem algumas
tubulações espalhadas pela cidade daquela época. É um erro histórico chamar a atual
Usina do Chaminé, de Usina do Gasômetro, pois esta era uma termoelétrica, movida a

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carvão, que provinha do município de São Jerônimo e arredores e produzia energia
elétrica para Porto Alegre.
Construída em 1924 - 1927 por um americano que residia na Avenida
Mostardeiro, ao lado da casa do Arcebispo, entre a Rua Mariante e Miguel Tostes. O
Gasômetro era mais adiante. Passando a Casa de Correção onde fica, hoje a
CIENTEC, é que ficavam os grandes tanques de depósito de gás. O gás vinha de navio,
pois, ficava bem na margem do rio Guaíba.
MEMORIAL – Os presos da Casa de Correção costumavam trabalhar também na
Usina do Gasômetro, não é verdade?
ENTREVISTADO – Sim, muitos presos tinham serviço externo na Usina do
Gasômetro, era um trabalho muito penoso. Eles descarregavam o carvão que vinha de
São Jerônimo, em um depósito que ficava atrás do prédio. Vocês conhecem a altura da
chaminé, ela está lá até hoje, imaginem qual não era a poluição. A fumaça que saía da
chaminé deixava a cidade cheia de cinzas. Era terrível! Não se sabia o que fazer com
as cinzas. Aos poucos se começou a criar a consciência ambiental e depois de
preservação do patrimônio. Quando houve o incêndio, em 1954, ele ficou restrito à área
interna, pois suas paredes eram gigantescas e de muita espessura.
MEMORIAL – Por que demoliram, então, a Casa de Correção?
ENTREVISTADO – A demolição da Casa de Correção doeu na alma de muita
gente. Para mim especialmente por vivido lá dentro ajudando na missa o Padre Pio
Boock, penso que pelo menos o portão de ferro da entrada deveria ter sido conservado,
como símbolo da opressão, da masmorra, do autoritarismo e dos castigos que eram
aplicados aos presos. Havia uma solitária no térreo. Quando o rio Guaíba enchia, os
administradores do Presídio colocavam os presos na solitária, com água, ratos e
cobras. Era um castigo medieval. A Imprensa fez uma campanha para a demolição da
Casa de Correção. Foi demolida pela “Construtora Catarinense” que ganhou a
concorrência. Faliu. Pensou que era fácil demolir aquele colosso. Passou a chamar-se
“Demolidora Catarinense”. Foi uma pena. Para Porto Alegre, foi uma perda histórica,
incalculável, porque era um prédio enorme, clássico, muito bonito. Basta ver as fotos da
época. Se estivesse ali hoje, estaria servindo para muitas coisas, porque sua área física
era dez vezes maior que a da Usina do Gasômetro. Estou dando este depoimento
porque me lembro da história. Quando ocorreu o incêndio do Tribunal de Justiça, em 19
de novembro de 1949, uma sexta-feira, eu ainda não estava em Porto Alegre, cheguei
ao Internato em 1950, poucos meses após. Naqueles passeios com o Padre Pio Boock,
eu então com 12 anos de idade, quando passava em frente ao Prédio do Tribunal ele
dizia: “Olhem ali o Tribunal de Justiça, atrás daquele tapume”. Ali, no dia 19 de
novembro, uma sexta-feira, ao amanhecer de um sábado, houve um grande incêndio.
Dizem que ele começou ao lado da Guarda da Brigada, que ficava de frente para o São

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Pedro, onde havia uma pequena entradinha, ali ficavam os guardas. Um fogareiro
“jacaré”; movido à pressão, à querosene -aqueles fogareiros de antigamente- teria sido
a causa do incêndio do Tribunal de Justiça”. Na verdade, mais tarde, a Imprensa
ocupou-se muito disso, e a melhor versão sobre o incêndio do Tribunal diz que os
responsáveis eram da própria Polícia. Ou melhor, pessoas que estavam sob inquérito
policial, na investigação dos atos arbitrários cometidos durante a II Guerra Mundial por
autoridades de diversos segmentos. Especialmente policiais, que seqüestraram bens de
italianos e alemães que apoiaram Benito Mussolini e Adolf Hitler – os chamados Quinta
Coluna, pois o Brasil, até 1942 estava apoiando os países do Eixo, como Alemanha e
Itália. Houve muitas arbitrariedades contra os colonos italianos e alemães: fecharam
colégios, igrejas, proibiram de falar alemão e italiano, aconteceram muitos seqüestros
de jóias e bens, etc. O famoso Inspetor Bauermann foi o depositário desses bens.
Houve um clamor da Imprensa sobre esses fatos quando acabou a II Guerra Mundial,
em 08 de maio de 1945. A própria Procuradoria, na pessoa do Procurador-Geral do
Estado, João Bonumá, chefe dos Promotores, designou uma comissão de Procuradores
para fazer a investigação sobre o chamado “Inquérito dos Súditos do Eixo” na Central
de Polícia, onde hoje está localizado o Colégio Sévigné, que também foi incendiada em
24 de Janeiro de 1950, quase junto com o Tribunal de Justiça. Queimaram então a
Central de Polícia, na esquina da Rua Duque de Caxias com a Marechal Floriano, em
frente ao atual Edifício Ouro Verde, ali ficava o Liceu, e queimaram o Tribunal de
Justiça, com o que se apagou praticamente tudo.
MEMORIAL – Como foi o final do inquérito?
ENTREVISTADO – Terminou, porque não houve mais como fazer a restauração
de autos. O que sobrou do incêndio do Tribunal de Justiça ficou guardado na Diretoria
Processual dentro de um baú até há pouco tempo. Conheço, porque trabalhei com isso,
o material era examinado com luvas e máscara. Voltando ao que eu estava contando, o
Padre Pio Buck dizia para nós na passagem da Catedral: ”Que tristeza ver isso aí.
Agora, vamos para a Casa de Correção, e quem vai nos abrir o portão de ferro é o
Major Aragão, que é o acusado de ter sido o autor do incêndio”. Na verdade, ele teria
feito um acordo com o Inspetor Bauermann: se ele se auto-acusasse, se dissesse que
tinha sido o autor do incêndio do Tribunal, o Bauermann o soltaria ou lhe daria
benefícios e privilégios na cadeia. Como era um espanhol fanfarrão, um estelionatário
refinado, ele se auto-acusou. O Cândido Norberto, na época, era do Jornal Folha da
Tarde ou Diário de Notícias, se não me engano, e ocupou-se muito desse fato posterior
ao incêndio. Um dia, uma manchete gigantesca dizia: “Major Aragão vai falar”. Numa
manhã, quando chegamos à Casa de Correção para fazer a missa com o Padre Pio
Book, havia um aglomerado de gente no pátio. Entramos, e o Padre Pio Book disse: “O
que houve com o Major Aragão que não veio abrir o portão hoje?”. Ele estava morto.

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Até hoje me emociono com isso. Ele estava todo ensangüentado no chão do pátio, tinha
sido morto a estocadas por outros presos. Não se sabia de quem foi a autoria do crime.
MEMORIAL – Como uma provável queima de arquivo?
ENTREVISTADO – Talvez, porque a Imprensa ocupou-se muito do assunto, e
havia um debate muito grande na época. Uns diziam que o Major Aragão tinha sido o
autor do incêndio no Tribunal; outros que ele era um fanfarrão, que estava se auto-
acusando para receber benefícios no presídio e até ser solto. Posteriormente, foi feito o
“Inquérito dos Súditos do Eixo” para averiguar os atos arbitrários que foram cometidos
durante a II Guerra Mundial. A Comissão responsável por este inquérito foi estabelecida
pelo Procurador-Geral João Bonumá e composta por Caio Brandão de Mello, José
Barros de Vasconcelos e Jutahy Nonoai. Esse três Procuradores do Estado fizeram
uma investigação jurídica e conseguiram devolver os bens dos italianos, alemães e
poloneses que haviam sido seqüestrados ou apreendidos durante a guerra. Esse
inquérito colocou como acusado o Chefe de Polícia da época.
MEMORIAL – O Inspetor Bauermann?
ENTREVISTADO – Não, o Inspetor Bauermann era um auxiliar. O Chefe de
Polícia foi que encabeçou o inquérito, que, se não me engano, era o Aurélio Pi. Como
ele era o Chefe de Polícia, arrastou os outros co-réus por conexão. Pelo Código de
Organização Judiciária de 1950, a competência para julgar o Chefe de Polícia era do
Pleno, ele tinha foro privilegiado, como foi o caso do Deputado Dexheimer, que foi
julgado, no processo Daudt, pelo Pleno. Pois bem, toda essa história eu vivenciei como
guri de 12 anos, mas não tinha consciência da gravidade do que estava acontecendo,
fui adquiri-la depois de ser Juiz. Mas sabia de todo o debate. Eu era um menino do
Interior, interno, só estudava. O debate que se travou foi o seguinte: o Pleno estava
reunido numa sexta-feira, se não me engano, numa sessão extraordinária presidida
pelo Des. Samuel Figueiredo da Silva. Eles estavam votando o recebimento ou não da
denúncia, voto a voto, no velho Pleno, que funcionava aqui no memorial do Judiciário
onde estamos agora, neste Centro Histórico, bem aqui nesta posição geográfica. Um
Desembargador pediu vista. Como o Presidente queria julgar logo, porque a Imprensa
estava em cima, convocou uma sessão extraordinária para a segunda ou terça-feira
seguinte, para, imediatamente, eles continuarem os votos seguintes ao pedido de vista.
Naquela sexta-feira à noite, ao amanhecer de sábado, houve o incêndio. Não foi feita a
nova sessão convocada, porque queimou tudo.
MEMORIAL – E nunca mais esse inquérito foi retomado?
ENTREVISTADO – Não. Queimaram a Central de Polícia e o Tribunal de Justiça.
Como eu vivenciei isso como menino de 12 anos e conheci pessoalmente o Major
Aragão, tinha a opinião de que realmente o Major não teve nada a ver com o incêndio.
Penso que o problema foi outro: tocaram fogo no Tribunal e na Central de Polícia para

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acabar com a situação que estava se desenrolando. Era um momento fantástico no Rio
Grande do Sul, era só do que se ocupava a Imprensa.
MEMORIAL – E as denúncias dos Promotores jamais foram retomadas?
ENTREVISTADO – Não houve mais seqüência, porque o Tribunal passou a
funcionar junto com o Foro de Porto Alegre. A 1ª e a 2ª Instâncias passaram para
algumas peças cedidas nos porões da Prefeitura velha. Em 1955 ou 1956, foi
construído o Edifício Comendador Azevedo na Rua Uruguai nº 155, na época o melhor
edifício de Porto Alegre, o Tribunal ocupou alguns andares. O Pleno e o Gabinete do
Presidente foram para o 8º andar do dito edifício. No dia 20 de setembro de 1960, o
Tribunal passou para o prédio do Palácio da Justiça ocupando o térreo, o primeiro e o
segundo andar e parte do terceiro. Mais tarde ocupou o quarto andar, com a
Corregedoria-Geral da Justiça e, bem mais tarde em 1969, o sexto, com o Pleno que
ocupou um salão grande e lindo. Mas a utilização deste prédio pelas Varas é de 20 de
setembro de 1960. Antes todas funcionavam no prédio Comendador Azevedo. Terminei
o 3º ano do Clássico no Anchieta em 1957. Fiz vestibular para Direito na URFGS em
1958. Entrei na Universidade e me formei em 1962. A advocacia sempre me apaixonou.
Depois de formado, fui advogar em Antônio Prado.
Na 4ª série ginasial, em 24.8.1954, no primeiro período, matéria Religião, o
Padre Prefeito. Emílio Hartmann suspendeu as aulas, mandou todos os alunos para
casa e recomendou não passar pelo centro e não apanhar o bonde na Praça 15, pois
havia convulsões populares nas ruas, quebradeiras, incêndios. Pelo fato de o Getúlio
Vargas ter se matado com um tiro no peito, em seu quarto, no Palácio do Catete, no Rio
de Janeiro. Quando saímos no portão da rua Duque de Caxias, foi o caos. A rua estava
trancada. Uma massa de povo. Com bandeiras, fotos enormes do Getúlio, ocupando
toda a largura da Rua Duque de Caxias, vinha em nossa direção. O sentido da
caminhada era Praça do Portão para a Catedral. Chegaram em frente ao prédio onde
funcionava a Rádio Farroupilha e a Rádio Difusora, dos Diários Associados, do Assis
Chauteaubriand, e jogaram várias latas com gasolina pela porta e janelas e atearam
fogo. Foi um grande susto para os radialistas, artistas, radio-atores, pois tudo era ao
vivo. Os músicos da Orquestra de Salvador Campanella, saíram do prédio e ganharam
a rua Duque de Caxias. O incêndio foi grande, rápido e traumático. A massa popular,
eufórica desceu pelo Viaduto Otávio Rocha em direção à Rua da Praia.
Um homem ficou preso nos fundos da Rádio, no segundo andar. Saiu pela janela
e ficou bem no canto do prédio, sobre o viaduto, perto do prédio do IAPB (Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Bancários), Rua Borges de Medeiros, nº 731, com os pés
sobre a platibanda, pelo lado de fora do prédio, para escapar das chamas. Ficou
agarrado com os braços abertos, um em cada esquina do prédio, pois, estava bem na
quina do prédio, nos fundos. As chamas eram enormes e este homem caiu, se

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estatelando no chão. Hoje, neste local, existe um edifício com o nome de Dom Felipe,
nº 1304. O Edifício Duque, em frente, estava sendo construído. Não existia o Edifício do
hoje Hotel Everest, na outra esquina, nem o Edifício amarelo, com as sacadas curvas
na outra esquina do Viaduto Octávio Rocha. Foi uma cena dantesca. Jamais, nós
jovens, com 15 anos, poderíamos imaginar que naquela manhã iríamos presenciar uma
tragédia igual. Quando o fogo amainou, deu para passar e eu fui para a pensão onde
morava, com meu irmão mais velho, acadêmico de Medicina da UFRGS, Nicanor Letti,
na escadaria da Rua 24 de Maio, perto da Rua 3 de Novembro, hoje André da Rocha,
no edifício 9 Irmãos, ainda existente, à direita de quem desce.
Ainda quando aluno do Ginásio do Anchieta, nosso professor de História e
Geografia era o Professor José Alexandre Zácchia. Líder dos jovens. Esportista. Amigo
de todos. Presidente do Clube da Praça Florida. Lecionava também no Colégio
Farroupilha, onde hoje fica o Hotel Plaza São Rafael, na Avenida Alberto Bins. Os
católicos se reuniram e fundaram o PDC, Partido Democrata Cristão, em 1953, com o
seguinte lema: “nem comunismo, nem capitalismo, uma terceira força, a democracia
cristã”, Liderados por vários Padres Jesuítas, entre outros, o grande mestre e médico
Pe. Arthur da Rocha Morsch, o professor de Filosofia Ernani Maria Fiori, Dr. Adroaldo
Mesquita da Costa, que morava na esquina onde está hoje a Assembléia Legislativa, o
professor Armando Pereira da Câmara, que residia praticamente sozinho, no Solar dos
Câmara, em meio a seus livros e seus cismares filosóficos. E assim muitos outros com
o apoio do bom jornal, chamado “Jornal do Dia” que era impresso na tipografia que fica
ao lado do Solar dos Câmara, hoje, um anexo da Assembléia Legislativa - sendo Diretor
do Jornal católico justamente o professor Armando Câmara. Pois bem, foi fundado o
PDC. Logo cresceu e com os pais dos alunos do Anchieta e do Farroupilha e com o
apoio da comunidade da Praça Florida, o Professor José Alexandre Zácchia, se elegeu
o primeiro vereador pelo PDC. O segundo foi o Dr. José Sperb Sanseverino. Nós que
ainda não éramos eleitores, tínhamos aulas de política na sede do PDC, nos altos da
Chapelaria da mãe do Dr. Leônidas Xausa – na Rua da Praia ao lado do Edifício Célia
Irmãos, pois, o Xausa era um entusiasta do PDC. Depois a sede passou para o
mezanino do Hotel Palácio, na rua Vigário José Ignácio, esquina com Riachuelo e daí,
partiu para a sede própria na Rua General Câmara, a Ladeira, n° 365, no prédio ao lado
do 3° Tabelionato. Muitos líderes católicos davam a ulas de política.
No dia do suicídio do Getúlio, o Dr. Celso Luiz Franco Gaiger – então da Ala
Moça do PDC junto com outros jovens correram à sede do PDC na Rua da Praia e
retiraram a grande placa fronteira com o nome Partido Democrata Cristão, com justo
receio de ser empastelado pelo povo enlouquecido.
Outros fatos recorrentes entre os padres jesuítas do Colégio Anchieta era a briga
que tinha ocorrido em 1943, entre o então Padre Reitor, Leonardo Fritzen e o Erico

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Verissimo. Ocorre que o filho mais novo do Dr. Getúlio Vargas, com o nome do pai,
chamado de “Getulinho” tinha sido aluno modelo no Anchieta. Depois foi para S. Paulo
e estudou química nos Estados Unidos. Retornou e se fixou em S. Paulo e muito jovem,
ainda não tendo trinta anos, morreu. Parece que teve polinevrite. Não sei. Foi um
choque a morte do filho caçula do então Ditador.
Numa Revista “Eco”, publicação católica - interna – dos Jesuítas e com
circulação entre os católicos, mormente entre os pais dos alunos da escola, o Padre
Reitor escreveu artigo sobre a morte do Getulinho. Elogiou. Depois descambou a atacar
ferozmente o Erico Veríssimo, dizendo que seus livros eram um veneno para a
juventude. Que deveria ser proibida sua publicação e leitura. Que os livros do Erico
estavam no “Index proibitorum” e, portanto, o católico não podia ler e devia queimar os
que podia meter a mão. Falou que o Erico se reunia na frente da Livraria do Globo onde
destilava o seu veneno. O Erico processou no Juízo Criminal, por difamação e injúria,
ao Padre Reitor do Anchieta, Leonardo Fritzen. Foi um frisson na sociedade gaúcha,
pois, a comunidade católica fez abaixo assinado apoiando o padre Reitor e a
comunidade de esquerda, os ditos “comunistas” fez abaixo assinado apoiando o Erico.
O fato tomou conta da imprensa e das falas em família. Dividiu a sociedade gaúcha,
pois os ódios estavam muito evidentes naquela época. O filósofo e professor da
Faculdade de Filosofia, prematuramente falecido, Fernando Casses Trindade, escreveu
artigo recuperando este processo. É que o processo queimou no grande incêndio do
Tribunal de Justiça, em 19.11.1949. A sexta-feira do lobisomem judiciário. Deu para
recuperar em parte o processo, pois, o Correio do Povo, publicou muita matéria sobre o
processo e a divisão da sociedade entre os dois litigantes.
Também, era assunto no Anchieta, de todos os dias, a morte do Padre João
Batista Reus – considerado santo pelos padres e muitos católicos que com ele
conviveram. Eu não o conheci. Ele morreu em 1947. Eu cheguei no Anchieta em 1950.
Mas, a imagem e a lembrança deste Jesuíta santo estavam por todos os cantos.
Iniciava-se a construir seu túmulo no velho cemitério dos Jesuítas, em São Leopoldo.
Não havia a UNISINOS naquela época. Existia o antigo Colégio Conceição dos Jesuítas
no centro de São Leopoldo e o grande Seminário – Cristo Rei – com a estátua de
braços abertos sobre o prédio ainda existente. No Cristo Rei, os padres se formavam
em Filosofia e Teologia para serem ordenados sacerdotes. O noviciado era em Pareci
Novo.
Como tinha uma divergência antiga entre os padres Jesuítas e o Arcebispo Dom
Vicente Scherer pois, tempos antes, quando arcebispo o Dom João Becker, os Jesuítas
que ocupavam a Cúria Metropolitana, construíram e dominavam a sede da
arquidiocese, foram expulsos pelo Dom João Becker e a arquidiocese foi entregue para
os padres seculares do clero diocesano, que comandam até hoje. Os Jesuítas nunca

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perdoaram esta expulsão. Havia uma velada e surda rivalidade entre os Jesuítas e a
Cúria Metropolitana. Tanto é, que se falava a boca pequena, mas era assunto
recorrente, que o Dom Vicente Scherer era contra a beatificação do Pe. João Baptista
Reus e já tinha até servido de advogado do diabo e mandado correspondência para
Roma, para o Sacro Colégio da Fé – que enquanto fosse arcebispo em Porto Alegre
não era para ser beatificado o Padre Reus, pois havia outros sacerdotes mais santos e
com melhor currículo para subir aos altares. Agora, passado muito tempo, o Padre
Jesuíta Luiz Marobin, retomou na Unisinos a causa da beatificação do padre Jesuíta,
natural da Alemanha, o nosso Padre Reus.
MEMORIAL – O senhor fazia parte de uma família de juristas ou foi o primeiro a
iniciar essa tradição?
ENTREVISTADO – Não, o meu pai era guarda-livro, filho de imigrantes italianos.
Possuo passaporte com dupla cidadania. Aprendi a falar italiano antes do português. E
minha mãe também era filha de imigrantes italianos. Ambos, tanto os Letti como os
Mondadori, são provenientes de Mântova, na província da Lombardia, na Itália.
MEMORIAL – O senhor foi um dos primeiros descendentes de imigrantes
europeus a ingressar na Magistratura?
ENTREVISTADO – Já havia outros na época, pelo que eu lembro: Celeste
Vicente Rovani, Clarindo Favretto, Balduino Mânica, Gino Luiz Cervi, Bonorino Butelli,
etc. O Tribunal de Justiça até algum tempo era dominado pelos Desembargadores do
Norte do País.
MEMORIAL – Exatamente, eram famílias derivadas de troncos nordestinos.
ENTREVISTADO – Todos. Esse é um fenômeno hoje estudado. O próprio Des.
Maurílio Alves Daiello, que conheci, pai do Des. Cristovam Daiello, era da Bahia. Houve
uma época em que o nosso Pleno era composto por Desembargadores do Norte. Não
era muito fácil chegar até o Tribunal, tinha-se de estudar muito. Como eu estava
falando, formei-me em advocacia em 1962 e fui advogar em Antônio Prado.
MEMORIAL – Como era advogar em Antônio Prado em 1962, logo depois da
Legalidade?
ENTREVISTADO – Cheguei em janeiro de 1963 a Antônio Prado, já com o
Brizola entregando o Governo para o Meneghetti. O Brizola tinha feito a Legalidade em
agosto de 1961, com a renúncia de Jânio Quadros. Eu era estudante de Direito,
participei, mas nunca fui a favor do Brizola. Entretanto, durante a Legalidade, apoiei
evidentemente a posse de João Goulart. Os estudantes de Direito, na época, iam todas
as noites a Praça da Matriz, era um tumulto. Eu tinha de trabalhar e estudar, então, não
me envolvia muito com política estudantil.
Na época existia a Juventude do Júlio de Castilhos, havia também os colegas
brizolistas e comunistas. Outro grupo era o formado por Carlos Araújo, Fúlvio Celso

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Petracco, a Cléia Carpi, Maria Elisa Carpi, o Crespo, o Fontoura, o Helinho, o Adão
Dornelles Faracco; do Alegrete; e o Simon, que já era presidente do Centro Acadêmico
Maurício Cardoso da PUC. O Brizola dava muita importância às lideranças estudantis.
O estudantado que estava do lado do Brizola era de Esquerda, liderado por José
Vecchio, Vereador e presidente dos motorneiros e cobradores da Carris.
Eu era da Direita. Nós éramos chamados pelos da Esquerda de “Grupão”. Eles
eram os comunistas, e nós, o “Grupão”, porque éramos de tradição católica. As nossas
lideranças eram Armando Câmara, nosso líder maior, Baltazar Gama Barbosa, Elpídio
Ferreira Paz, Galeno Lacerda e Cirne e Lima. Nós estávamos ao lado do Edgar Luiz
Schneider, do João Leitão de Abreu, o professor de Filosofia Dr. Ernani Maria Fiori, o
Adroaldo Mesquita da Costa, enfim de todos esses intelectuais. Eu era partidário do
velho PL, que foi fundado por Raul Pilla e outros, e da UDN, que era mais de Direita.
Gostava do Afonso Arinos, que tinha muitos representantes aqui no Rio Grande, como
Poty Medeiros, Daniel Krieger e o próprio Flores da Cunha. Também me identificava
com o Partido Libertador, de Mem de Sá, Paulo Brossard de Souza Pinto, Solano
Borges e Edgar Luiz Schneider. Este último foi Presidente da Assembléia Constituinte
em 1947, inclusive com o apoio do Brizola e do PTB da época, que dominava a política
do Rio Grande.
Essa coligação fantástica e praticamente impossível, para a época, unindo direita
e esquerda, o PTB com o PL e com a UDN gerou na Constituição Estadual de 1946, um
regime Parlamentar gaudério, próprio da independência gaúcha. Durou poucos dias,
pois, logo foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O recentemente
falecido José Bacchieri Duarte escreveu um livro sobre os dez dias de parlamentarismo
no RGS nesta experiência política pioneira. O PL era muito forte, principalmente seu
líder o Deputado e médico e professor da Faculdade de Medicina, Raul Pilla.
Então, vivi todos esses momentos. Em 1962, cheguei a Antônio Prado para
advogar. É uma colônia italiana. Nunca consegui ser o Dr. Nério Letti, sempre fui o filho
do Horácio, porque meu pai era do Partido Libertador e uma figura conhecida na
cidade. Eu me criei num lar italiano - meus pais e meus avós falando italiano - e ouvindo
falar mal do Getúlio Vargas. O meu pai dizia assim: “A desgraça do Brasil é o Getúlio
Vargas”, numa época que em todo mundo o apoiava. O Getúlio era o pai dos pobres,
era o dono da política. Fundou o PSD dos ricos, da elite, botou o irmão, Protásio
Vargas, como Presidente e fundou também, antes de sair, em 1945, o PTB, dos
sindicalistas, dos pobres, do povão. Seria o PT de hoje, digamos assim. O Getúlio foi
um gênio político. Para acomodar o País na sua saída, recolheu-se para a sua fazenda,
que não é em São Borja, mas em Itaqui – sei porque depois fui Juiz em Itaqui – agora já
vendida, onde o seu filho mais novo, Manoel Vargas se matou.

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Em 1930, após a vitória de Getúlio, na Revolução de 3 a 24 de outubro,
derrubando do governo a Washington Luiz e não deixando assumir o vitorioso das
urnas, o paulista Júlio Prestes, Getúlio assumiu pela Revolução. Logo depois, Getúlio
se vingou da família Osório, de Pelotas, que não apoiara na Revolução e tudo fez,
inclusive retirando o maior depósito que era da Rede Ferroviária Federal e fechou o
Banco Pelotense. Criou sobre o acervo do Pelotense o Banco do Rio Grande do Sul.
Foi uma tragédia econômica não só para Pelotas como para o RGS o fechamento do
maior banco privado do país. Era gerente do Pelotense, em São Borja, o sogro do
Getúlio, pai da dona Darcy, o Manoel Antônio Sarmanho. Pede o dinheiro. Honra o
pagamento e os depósitos. Reuniões na Associação Rural. E nada de vir o dinheiro. O
prejuízo foi total para os fazendeiros. O sogro do Getúlio, um dia, após o almoço, se
matou com um tiro no ouvido. Jamais a família Sarmanho perdoou o Getúlio por este
suicídio do sogro. Suicídio que Getúlio também praticou em 24.08.1954, no Catete, que
não faz muito, na fazenda do Itu, o filho mais novo, o Maneco Vargas, também se
matou. Nas eleições de 2.12.1945, para Presidente da República, aconteceu em
Antonio Prado um fato fantástico que me marcou. Meu pai tinha uma turma famosa, de
perdizadas, passarinhadas, jantares e canto italiano.
O Romano Nodari trabalhava no escritório junto com meu pai, na Firma Golin,
Irmãos & Cia. O Romano era culto. Tinha uma biblioteca em casa, vizinho nosso. Vivia
lendo. Coleções da Globo completas. Irônico. Um gozador. Quando da abertura e
marcação da Estrada BR-2 que passou por Caxias do Sul e foi em direção a Vacaria,
passando por São Marcos, nos anos 40, pelo DNER, hoje DNIT, se hospedou em
Antonio Prado, um dos engenheiros chefes do DNER, o Dr. Yedo Fiúza, do Partido
Comunista. Era gaúcho. Foi o Intendente de Caxias do Sul. Dante Marcucci, 1935/1945
quem conseguiu, pelo peso político e com muitas perdizadas e passarinhadas, fazer
que a estrada passasse por Caxias do Sul, não tivesse o primitivo traçado, no divisor de
águas da Serra do Mar, passando o Rio das Antas, no Passo do Korf, onde já havia a
ponte de ferro, de 1905, indo sair na localidade do Chico Manco, entre Bom Jesus e
Vacaria e seguindo daí, sobre o campo, sem serra, até Lages, passando o rio Pelotas,
onde hoje tem a ponte da Estrada de Ferro, do Tronco Principal Sul, após cruzar a
Fazenda do Socorro, O Romano Nodari se tornou grande amigo do Engenheiro Yedo
Fiúza. Mais tarde, após a queda do Getúlio, em 29.10.1945, veio a eleição para
Presidente em 2.12.1945, o Partido Comunista, que tinha sido legalizado, tendo uma
vida curta, lançou como candidato a Presidente da República, apoiado pelo Luiz Carlos
Prestes, o engenheiro Yedo Fiúza.
Foi um momento muito difícil. O Getúlio, se recolheu para o Itu, em Itaqui. Mas,
continuava a dar as tintas e dominar os cordéis da política. A LEC, Liga Eleitoral
Católica, ficou furiosa, com o avanço comunista e seus grandes comícios no Rio. Num

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comício, os comunistas tiveram mais de cem mil pessoas presentes. Em resposta em
16.11.1945, véspera da eleição presidencial, a LEC deu demonstração de força e
realizou grande comício no Rio de Janeiro. A LEC não podia suportar a artimanha
política. Luiz Carlos Prestes fora preso em 1937, no Estado Novo, por Getúlio. A mulher
Olga Benário foi entregue aos nazistas que a mataram. Sofreu nas mãos do Chefe do
DIP, Filinto Muller – e foi solto e anistiado por Getúlio e ainda teve candidato a
Presidente. Era demais.
O General Eurico Gaspar Dutra, ganhou a eleição para Presidente e derrotou o
Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da UDN, do PL e do PRP. O General Dutra não
fez nada no governo. Era um militar de carreira. Nunca foi político. Não gostava de
política. Tinha ajudado a derrubar o Getúlio, quando antes era seu Ministro da Guerra.
Um pastel político. Gastou as divisas que o governo Getúlio tinha economizado,
importando automóveis e bens supérfluos, como matéria plástica e outros
desconhecidos no Brasil daquele tempo.
Quem votasse no candidato dos Comunistas, o engenheiro Yedo Fiúza, era
excomungado, e praticamente tinha que se mudar de cidade, tal a campanha do padre
contra o simpatizante dos comunistas. Em Antonio Prado era pároco o Pe Ernesto
Mânica, homem culto, que fez campanha direta contra os comunistas. O meu pai, do PL
e sua turma das jantas e passarinhadas fizeram campanha total pelo Brigadeiro
Eduardo Gomes cujo lema era “o preço da Liberdade é a eterna vigilância”.
Trabalharam de casa em casa. Solicitando e implorando o voto para derrotar a turma do
Getúlio, pois, consideravam o Getúlio a desgraça do país. Valeu tudo. Pois bem. O
Romano Nodari, tipo fino, irônico, espalhou através do banco da Praça Garibaldi, onde
ficavam figuras notáveis de Antonio Prado, sentados o dia todo, falando da vida alheia e
rindo e gozando – fez alarde que iria votar no Yedo Fiúza. Foi o suficiente para o
comentário se espalhar pela cidade e merecer séria reprimenda no sermão da Missa
das oito horas, no domingo, do pároco. Ora, o Romano Nodari, comunista. Visitaram as
27 capelas do interior. Foram de casa em casa dos colonos pedindo o voto para o
Brigadeiro. Paixão política comovedora daqueles homens bons, trabalhadores e
honestos, Não queriam a eleição do Gen. Dutra, pois, sabiam que por trás estava o
velho matreiro político, Dr. Getúlio. Era o assunto. O voto do Romano Nodari no
engenheiro Yedo Fiúza. Veio a apuração, no salão de baile, do Clube União, Juiz de
Direito e Eleitoral, o Exmo. Juiz Julio Martins Porto. A turma do meu pai estava em
peso, assistindo a apuração. Quando saiu o voto do Yedo Fiúza foi uma festa.
Desceram do salão para o térreo, para a copa e tomaram o resto do estoque de vinho
do ecônomo festejando o único voto do Fiúza em Antonio Prado. Romano foi rei aquele
dia. Com o que o Fiúza fez um voto em Antonio Prado. Cujo voto secreto foi o voto mais
público que já existiu. Todos, antes, durante e depois do pleito, que o Romano Nodari

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tinha votado no candidato dos comunistas, do Prestes, o engenheiro Yedo Fiúza. Foi
uma festa até madrugada, no térreo do Clube União com a turma do meu pai. Enquanto
no salão, no primeiro andar, apuravam o restante dos votos.
Era um momento político muito efervescente quando cheguei para advogar em
Antônio Prado. Um ano e pouco antes tinha ocorrido o movimento da Legalidade, que
incendiou o Rio Grande. Vivi isto como estudante: o Brizola e o movimento que ele fez
na Praça da Matriz, os porões da Legalidade, em que todas as noites havia um povo
enorme em frente ao Palácio Piratini, até que o General Machado Lopes, Comandante
do III Exército, o apoiou. Então, as pessoas se reuniram, os políticos receberam o
Presidente Jango de volta, houve a Emenda Constitucional, e o Jango assumiu como
era 25.08.1961 – Dia do Soldado - o regime parlamentar de Governo, que foi extinto em
dezembro de 1963, num plebiscito.
O Brizola estava em baixa política total. Salários do funcionalismo atrasados.
Emitira as famosas “Brizoletas”, papéis sem valor, para pagar fornecedores do Estado e
os vencimentos. O comércio que aceitava a “Brizoleta” o fazia com grande deságio.
Jamais ao par. Aproveitou a Legalidade. Brizola, político esperto, da escola de Getúlio,
soube montar na Legalidade e se salvou politicamente e ficou na história. Em verdade,
não fez nada. Quem trabalhou e ajustou o dispositivo militar foram os generais e os
políticos estadistas do centro do País que tramaram e urdiram o retorno de Jango e sua
posse como Presidente no regime Parlamentar. Eu vinha do lar, em Antonio Prado,
ouvindo a fala comovida de meu pai, esbravejando contra o Getúlio “é a desgraça do
País” – “vai afundar o Brasil, como o Perón enterrou a Argentina, o País mais rico do
mundo na década de 50”. Meu pai tinha horror ao Perón e ao populismo da Evita.
Apesar de adorar e dançar o tango. Nos idos dos anos 40 e 50, ouvia o noticiário ao
meio-dia pelas rádios argentinas que entravam com som local em Antonio Prado,
Belgrano, Esplendid, El Mundo, e a Carve de Montevidéo. Meu pai era membro do PL –
Partido Libertador – e isto resume tudo. Quem viveu este tempo, sabe o que estou
dizendo. Nas eleições presidenciais, logo após a redemocratização do país, os do
Partido Libertador, em Antonio Prado, lutaram, de corpo e alma a favor do Brigadeiro
Eduardo Gomes, da UDN, PL e PRP (integralistas). Valeu tudo. Noivados se
desmancharam. Havia o café do Brigadeiro e na outra esquina o café do Dutra
(Getúlio). Havia o Clube do Brigadeiro e o Clube do Dutra. Havia a calçada na Praça
Garibaldi para o passeio após a Missa, uma calçada da turma do Brigadeiro e uma
calçada para os do Dutra. Nem mais se cumprimentavam. Dividiu a sociedade gaúcha,
e tudo fizeram para derrotar o candidato do Getúlio, o General Eurico Gaspar Dutra.
Por azar da turma de meu pai – foram novamente derrotados na profunda e
absoluta eleição para Presidente de 3.10.1950. O Getúlio, após a total campanha

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política “ele voltará” e do chamado “queremismo” “queremos Getúlio de volta” – O
Brigadeiro Eduardo Gomes voltou a ser derrotado, agora pelo próprio Getúlio Vargas.
O Brigadeiro Eduardo Gomes vai ressurgir com força total em 31 de março de
1964.
MEMORIAL – O senhor chegou a viver o plebiscito em Antônio Prado?
ENTREVISTADO – Sim, houve comoção popular pelo término do
Parlamentarismo. O Parlamentarismo no Brasil surgiu como possibilidade política em
um momento em que as instituições democráticas do país encontravam-se em grande
perigo. A velha UDN, uma parte do PSD e muitas figuras do Partido Libertador, como o
líder da época, o Brigadeiro Eduardo Gomes e outros tantos. Em agosto de 1961 não
deu nada como em agosto de 1954. Os três Ministros Militares, da Aeronáutica, do
Exército e da Marinha, reuniram-se num navio e fizeram a chamada República do
Galeão e decidiram:
O Getúlio estava deposto na reunião do Ministério cuja mesa ainda está posta no
hoje Museu do Catete, no Rio de Janeiro. Tinha acontecido, dias antes, o atentado da
rua Toneleiros, em 4.8.1954, à noite, quando Carlos Lacerda, da UDN, foi ferido no pé,
com um tiro. Faleceu atingido pelos tiros o Major Ruben Florentino Vaz, da Aeronáutica
– que seria amigo ou segurança de Lacerda. Os militares, não confiando na Polícia Civil
para fazer o Inquérito para investigar a autoria do atentado contra Lacerda, fundaram o
que se denominou de República do Galeão, fazendo uma investigação paralela e um
Inquérito Policial Militar sobre o atentado da rua Toneleiros. O choque foi questão de
dias. Os getulistas chamavam o Lacerda de “O corvo”, “Lanterneiro”, pois, o Clube da
Lanterna reunia os próceres da UDN.
O que desejo salientar é que o Jango, com Legalidade ou sem Legalidade do
Brizola, teria assumido a Presidência da República. Estamos no Brasil. Jamais
aconteceria revolução sangrenta com derramamento de sangue, brasileiro matando
brasileiro. Tudo se acomoda no momento que os políticos, com visão do futuro, sentam-
se à mesa e discutem. Tanto assim foi que ao terminar seu governo, em 1962, o Brizola
fez campanha forte, com o governo, para seu candidato o ilustre Dr. Egydio Michaelsen,
do PTB, foi derrotado pelo Dr. Ildo Meneghetti. O Brizola deu as costas para o RGS e
foi para o Rio para nunca mais voltar.
Na famosa Legalidade, à noite, na Praça da Matriz, era uma festa. Minha turma,
da direita, da Faculdade de Direito da UFRGS, no 4º de Direito, todos tínhamos que
trabalhar durante o dia para poder comer e pagar as contas. A aula de Direito era à
noite. Depois da aula dávamos uma esticada até a Praça da Matriz. Era uma farra.
Cheio de gente. Todos sem fazer nada. Todos queriam receber o lanche de graça,
entrar no Palácio, falar na rádio Guaíba e o principal, receber de graça um revólver
Taurus que eram distribuídos de dentro de grandes caixas dentro do Palácio Piratini. Eu

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entrei várias vezes na fila para ganhar um “3 oitão” mas nunca consegui. Percebi que
era preciso ter algo mais, ser do partido, conhecido, isto é, só os amigos. No que o
Brizola estava certo. Ora, arma os inimigos. A minha turma aproveitava para namorar
as gurias, principalmente, aquelas do CAD, do Teatro Universitário, todas adiantadas
que fumavam, dançavam de rosto colado e até algumas já “dormiam para fora”. Sem
problema algum. Sem culpa. Mas, não era fácil conquistar uma moça culta, inteligente e
dona de seu nariz. Todas de esquerda. Os da Arquitetura era todos de esquerda.
Impressionante! Ricos, pobres, remediados. O CAD tinha sido criado pelo Reitor Elyseu
Paglioli, como curso autônomo, na curva da Av. Salgado Filho, com o teatro que ainda
existe, pois, era um Departamento da Filosofia. Assim com a Faculdade de Arquitetura,
o Paglioli criou a partir de um Departamento do Instituto de Artes da UFRGS, na Rua
Senhor dos Passos. Seguidamente, à noite, o então Major Léo Etchegoyen – do 3º
Exército – passava pela Praça da Matriz, num jeep do Exército e conversava com os
jovens. Homem culto. Capaz. Sabia se comunicar. E dizia, rindo, vão todos para casa.
Já está tudo resolvido. O que vocês estão fazendo aqui? Falava sério. Sabia das
coisas. Ele trabalhava diretamente como o General Machado Lopes, o Comandante do
3º Exército. Sempre dizia: “O Jango vai demorar muito para chegar, mas podem ficar
tranqüilos, o Exército não vai deixar ocorrer guerra entre brasileiros como quer o
Brizola”... Ele tinha razão, pois, mais tarde, o General Machado Lopes, tranqüilamente,
quando entendeu oportuno, sem pressão, ao natural, num ato de expediente e de rotina
do militar que comanda um Exército, foi até o Palácio Piratini e deu o apoio a Brizola.
Mas, fez isto quando o dispositivo militar já estava acertado e o Jango estava garantido.
Ninguém era louco atirar contra o povo reunido na Praça da Matriz, seria uma
mortandade de gente e um genocídio. Ninguém estava preparado. O Brizola foi um
irresponsável, pois, com o microfone poderoso da Rádio Guaíba, à sua disposição, 24
horas por dia, sem pagar, fez um esparramo e quase incendiou o Rio Grande do Sul. A
História vai se encarregar de mostrar isso. Quanto mais as pessoas falam sobre a
Legalidade, inclusive alguns militares e políticos, da intimidade do Brizola, que
participaram dos fatos, ditos fatos são repetitivos, iguais e nada acrescentam de
inusitado. O Jânio renunciou. Foi preso em Cumbica – pelo Comandante da Base
Aérea, Brigadeiro Faria Lima. E o confinou em Cuiabá e não permitiu mais seu retorno.
Daí foi para a Europa. Foi só o tempo do Jango voltar da China e assumir o Poder com
o regime Parlamentarista. Por isso, pode-se afirmar que foi mais uma bravata do
Brizola, como era do seu costume.
Temos então o problema formado, os Ministros Militares impedem a posse de
Jango por o considerarem comunista. Foi então que o Brizola teve aquela atitude
fantástica e levantou-se contra os Ministros Militares aqui do Rio Grande. Na ocasião,
Leonel de Moura Brizola tinha 37 anos de idade. Ninguém se lembra disso.

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MEMORIAL – Como o senhor acompanhou todos esses movimentos políticos
que estavam acontecendo no país?
ENTREVISTADO – Eu gostava muito de ir ver aqui as gurias, todas muito bonitas
do CAD, – Centro de Arte Dramática da UFRGS, hoje DAD –, todas da Esquerda. O
pessoal do teatro era todo da Esquerda: a Lílian Lemertz, o Paulo José, o César Pereio,
o Antônio Abujamra, o Luiz Carlos Maciel, o Geraldo Moraes, o Lineu Dias, pai da Júlia
Lemertz, meu amigo, que casou com a Lílian Lemertz e outros tantos que não lembro o
nome neste momento. Eles eram do Centro de Arte Dramática da UFRGS, o prédio
ficava ao lado da Rua Salgado Filho. Foi o Paglioli que o construiu quando foi Reitor em
1957 ou 1958. Essa gente era de Esquerda, eram esclarecidos... Era fantástico para
nós! Isso era bem caracterizado. Elas eram para frente. Quando explodiram, nos anos
de 1960 os Beatles, o rock and roll do Elvis Presley e a juventude transviada da turma
do James Dean, elas adotaram a moda. Nós, não, nós ficamos no Grupão. Eu, por
exemplo, praticamente não curti na época os Beatles e o Elvis Presley, porque já me
havia formado e estava chegando a Antônio Prado para advogar. Com meus 23, 24
anos de idade, eu era um circunspeto advogado, um senhor que tinha de se tratar com
o Juiz. O Juiz da Comarca chamava-se Leoveral Viana de Negreiros, e o Promotor era
o Elias Manoel Teixeira, que ainda vive, é meu amigo e mora em Farroupilha.
Tive o prazer de conviver com ele há pouco tempo no casamento de uma prima.
Como estudante do quarto ano de Direito, adquiríamos na época, pelo Estatuto da
Ordem dos Advogados do Brasil, a carteira de Solicitador. Era muito importante, era
como que uma carteira de estagiário. Matriculados no quarto ano, íamos a OAB,
fazíamos um teste e recebíamos a carteira de Solicitador que ainda guardo comigo.
Essa carteira de Solicitador permitia a prática de alguns atos no processo previstos no
Código. De posse dela, fui ao Foro e me apresentei ao Dr. Charles Edgar Tweedie,
Diretor do Foro, que me nomeou Estagiário da Defesa. Eu queria lidar com o processo,
ler os autos, escarafunchar a prova, fortalecer minha formação, pois a Faculdade era
muito teórica. Então, o Des. Tweedie nomeou-me Estagiário da Defesa junto à 5ª Vara
Criminal, no 2º andar deste prédio, cujo Juiz era o Dr. Luiz Amado Figueiredo e o
Promotor, o Dr. Esmeraldo Rodrigues. Conheci os Juízes e Promotores da época,
porque, como Estagiário da Defesa e como estudante, participava de audiências,
datilografava audiências com o Escrivão Zilmar Mendonça. Trabalhava na 6ª Vara
Criminal.
Eu, como estudante quartanista e quintanista de Direito, trabalhei neste prédio,
de graça, como Estagiário da Defesa, defendendo os pobres. Era o início da Defensoria
Pública. Das sete Varas Criminais que havia, lembro-me de alguns advogados: o Cari
Neri Borges, a Caterina Caprio, a Priscila Lindner, o Rui Gusmão Brito e outros, que
eram funcionários do DAER, do DEPREC e de outros organismos do Estado e que se

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formaram em Direito. Para não ficarem em desvio de função esses rapazes e moças
foram colocados à disposição da Direção do Foro, do Tribunal, para defender os
pobres. Estava aí o embrião da Defensoria Pública do Estado. Primeiramente, era um
apêndice da Procuradoria-Geral do Estado, que funcionava aqui embaixo na Rua
Riachuelo, onde está hoje o Arquivo Público. Essa experiência de dois anos de
Estagiário da Defesa foi muito válida, porque, além de gostar de estudar Direito e obter
notas razoáveis na faculdade, eu praticava Direito com afinco, participava de
audiências, tinha contato com Juízes e Promotores. Isso tudo levei para minha prática
da advocacia em 1962. Para me sustentar, porque era pobre, eu trabalhava na
secretaria da Escola do SENAC, – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial –, na
Rua Coronel Genuíno, nº 130 e também dava aulas. Tornei-me conselheiro e atendia
todas as pessoas tanto da cidade quanto da colônia. Como sabia falar italiano, atendia
os colonos, os camponeses de Vacaria. Mais ou menos por esta época houve eleição,
em Antônio Prado para Prefeito. Em 1963, o Prefeito era o Cláudio Bocchese, do velho
PTB do Brizola. Depois assumiu o Governo municipal Luiz Baggio, um alfaiate. Ele foi
eleito pela Frente Democrática - PSD, UDN e PL, partido do Governador da época, Ildo
Menegetti, que substituiu o Brizola. O Meneguetti ganhou as duas eleições, em 1954,
do Pasqualini, e em 1962, do Egídio Michaelsen.
O Brizola candidata-se a Deputado Federal e é fantasticamente eleito pelo
Estado da Guanabara. Ele vai embora do Rio Grande do Sul. O Brizola abandona o Rio
Grande, deixando seus colegas da Esquerda, na época, sem apoio. O movimento de
março de 1964 o apanhou como Deputado Federal da Guanabara. Pouco mencionado
não se pode esquecer que em 1.11.1951 – na 1ª eleição para Prefeito de Porto Alegre,
após a redemocratização – o Dr. Ildo Meneghetti - da aliança PSD, UDN, PL – derrotou
o Brizola – PTB, PSP, PRP. Mas, como a eleição para Vice-Prefeito era independente
do Prefeito, o Vice Eleito o Dr. Manoel Sarmanho Vargas – “Maneco Vargas” - filho do
Presidente da República. Getúlio Vargas se elegeu Vice-Prefeito de Meneghetti - sendo
candidato do Brizola. O Vice do Meneghetti, o Dr. Henrique Fonseca de Araújo não se
elegeu.
Então, o que aconteceu? Em Antônio Prado, uma pequena cidade interiorana,
além de advogado, eu era o Secretário do Prefeito Luiz Baggio, que havia sido eleito. O
Ildo Meneghetti era o Governador. No dia 31-03-64, nós, numa Rural Willys da
Prefeitura, saímos de Antônio Prado às 4h da manhã - o Prefeito Luiz Baggio, que era o
Presidente da Câmara, Presidente do PSD e amigo do Meneghetti e eu - para irmos
fazer reivindicações ao Governador. Chegamos a Porto Alegre ao meio-dia, porque
tínhamos que atravessar de balsa o Rio das Antas. O Palácio estava cercado pelas
Forças. Aí eu disse: “Vamos embora porque deu a Revolução. O Gen. Olímpio Mourão
Filho está movimentando-se em Juiz de Fora e vai tomar a Guanabara”. E nós viajando

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de Antônio Prado de madrugada, sem informação, porque não havia rádio na Rural
Willys.
Certa feita, Juiz em Rosário do Sul, houve a troca de comando da Brigada da
Cavalaria de Uruguaiana – pois acabaram com os cavalos, a cavalaria hipo e foram
introduzidos os carros de combate, Urutu e Cascavel – portanto, se tornou Cavalaria
Mecanizada – cujo comando passou para Santa Maria, mais no centro do Estado, por
estratégia militar, para fazer frente aos argentinos e uruguaios. Esta troca de Comando
e a retirada dos cavalos das grandes coudelarias, do Rincão em São Borja, do Saicã,
em Rosário do Sul e de outras e dos quartéis da Fronteira, foi um trauma para a
sociedade da época onde havia os famosos quartéis de cavalaria. No ato de passagem
de comando de Uruguaiana para Santa Maria eu compareci como Juiz de Rosário do
Sul. Sentei no almoço ao lado do General Fragomeni que comandava uma grande
unidade do Exército em Santa Maria. Foi pelos idos de 1971. Ele pertencia a uma
família de militares. Homem calmo. Culto. De cabelos brancos. Conversamos bastante
no almoço e o papo se estendeu tarde adentro. Foi aí que o General Fragomeni me
disse que entre os militares firmaram convicção de que o Brizola era perigoso quando
ele armou os famosos “Grupos de Onze”. Enquanto o Brizola foi formando os “Grupos
de Onze” não havia problema. Há que se lembrar que o Exército Brasileiro tem sua
formação básica no Grupo de Combate. E a menor fração de combate, em que se sub-
divide o Exército Brasileiro é o Grupo de Combate, que é formado por dez soldados,
comandados por um cabo fuzileiro, portanto, menor fração de tropa é um grupo de onze
soldados. Ora, o Brizola, só para irritar os militares, bem coisa do Brizola, meteu o
nome dos guerrilheiros que ele pretendia formar justamente de “Grupos de Onze”.
Enquanto só filosofavam. Tudo bem. Mas certa feita em escaramuças pelo interior, com
invasão de terras e fazendas, os militares descobriram que os “Grupos de Onze”
estavam armados e muito bem armados. Foi a gota d’água e desde aí grande parte dos
militares brasileiros se convenceram que era preciso dar um basta ao Brizola. Era
demais.
Tanto é verdade que as palestras das Sextas-Feiras que o Brizola fazia desde a
sede do PTB, na Praça da Alfândega, onde hoje está o prédio da Caixa Econômica
Federal, ao lado da firma Wilson Sons & Cia. Transmitidas ao vivo pela Rádio
Farroupilha não preocupava ninguém. Eram palestras infindáveis. O Brizola falava até
três horas, quatro horas, tipo o Fidel Castro. Começava e não sabia parar. Era uma
chatice horrível. Isto durante anos. O Brizola sabia doutrinar. Não tinha preguiça.
Trabalhava todo o dia e depois, à noite, ainda ia fazer a famosa palestra das sextas-
feiras. Os do PTB, todos ouviam. Era uma religião. Formava opinião. Todo o interior
escutava. Os a favor e os contra o Brizola.

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Pois bem. O jornalista, recentemente falecido, José Bacchiere Duarte fazia um
contra-ponto, muito gostoso, culto, irônico, sem ofender, na segunda-feira seguinte,
logo após o famoso programa ao vivo da Rádio Farroupilha, Rádio Seqüência – onde
tudo era ao vivo, Escolinha da Dona Rita, Dois Dedos de Prosa, de Manoel Braga
Gastal, o piano ao vivo da Aderbal Dávila, a típica de Romero Rodrigues, tangos,
valsas, milongas e boleros, com os cantores Lurdes Del Campo (imitava Libertad
Lamarque) e a Orquestra da Rádio Farroupilha, regida pelo Maestro Salvador
Campanella, famosa. Pinguinho e Walter Broda. Pinguinho fazia o colorado e Walter
Broda, “na banca do sapateiro”, - fazia o alemão gremista. Gozação total. O Walter
Broda tinha um bordão – “entrrrra prrreeeguinho” e batia imitando o som do martelo do
sapateiro batendo na sola do sapato. Era um programa fantástico de auditório, cujo
prédio ainda existe, na Rua Siqueira Campos, ao lado do hoje 5ºTabelionato, em frente
à Travessa Leonardo Trudda. Aí era o auditório da Rádio Farroupilha. Aí era o
fantástico programa dos domingos à noite “O Grande Rodeio Coringa” de Darci
Fagundes e Luiz Menezes e outros nativistas e folcloristas. A Rádio Seqüência
terminava a uma hora da tarde com o Repórter Esso, primeiro na voz do Rui Figueira e
depois na voz inconfundível de Lauro Hagemann. Após a Rádio Seqüência, às
segundas-feiras, havia um programa muito ouvido e popular, pois, com muita cultura,
engenho e arte, pela magia do rádio, o José Bacchieri Duarte, grande radialista, fazia a
“Palestra do João” – todas segundas-feiras – onde ele gozava, comentava, ironizava a
palestra do Brizola da anterior sexta-feira. Começava que o “João” dizia que em meia
hora diria mais do que o Brizola em três horas. Sempre com fundo musical, ao vivo.
Então, este tipo de rádio e esta programação mantinha o ouvinte sempre atento,
agradando a “gregos e troiano”. Variado. Esperto. Com ritmo. Alegre. Noticioso. Música
ao vivo. Era perfeito para a época. Nunca mais teve nada igual no rádio gaúcho.
Grandes produtores, redatores, etc, etc. Pleno emprego de radioatores, com as
novelas e variada programação. O Cândido Norberto e o Dr. Manoel Braga Gastal
podem contar esta história pois foram testemunhas vivas do período. Assim como o
grande Roque Araújo Vianna, hoje com o programa na Rádio da Universidade Federal,
todos os dias, às 20 horas “Tangos em la noche”...
O rádio era tudo. O Orson Welles nos Estados Unidos, sozinho, ao microfone de
um rádio, com efeitos sonoros, ao fundo, irradiou a invasão dos marcianos à Terra e o
povo americano ficou em pânico. Isto, pelos idos de 1939. Lógico, sem a rádio Guaíba à
disposição, às 24 horas do dia dentro do Palácio Piratini, jamais o Brizola teria feito a
chamada “Legalidade”. Basta raciocinar um pouco e ser razoável e pensar o Brizola
isolado com seus correligionários dentro do Palácio Piratini, sem o estrépito do rádio,
esperando o retorno do cunhado Jango da China. Além de monótono seria fastidioso e
não teria cooptado ninguém.

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MEMORIAL – Mas não havia uma movimentação, uma conspiração civil que
tomava conta...
ENTREVISTADO – Sim, mas, em Antônio Prado, foi mínima a repercussão. Nem
todo mundo se envolveu. Foi uma coisa urbana. No Interior rural pouco repercutiu.
Havia uma comoção da Imprensa, isso sim.
MEMORIAL – Mas os partidários do Governador Meneghetti do PSD, da UDN
não percebiam as movimentações do Governador, as reuniões? Porque o Lacerda,
inclusive, esteve no Rio Grande do Sul às vésperas, algumas semanas antes, não foi?
ENTREVISTADO – Sim. O próprio Jango, como Presidente da República, foi
traído pelos seus próximos. O Chefe da Casa Militar dele, o Gen. Assis Brasil, o Gen.
Osino Ferreira Alves, que comandava Santa Maria e outros muitos Generais que diziam
para ele: “Tudo bem, Presidente, o Comando está conosco”. Ninguém estava com o
Jango, já estava todo mundo conspirando contra ele. Quando o Jango precisou do
dispositivo militar ele estava minado. O Jango foi sábio, quando viu que não tinha mais
o apoio das Forças Armadas, principalmente da Aeronáutica. O Brigadeiro Eduardo
Gomes vinha sendo desde 1950, líder da UDN. Ele era o candidato do meu pai numa
eleição fantástica em que se jogou tudo, inclusive noivados desmancharam-se por
causa dela. Ocorreu que o Jango ficou sozinho, não teve mais apoio, e aí, para evitar
uma guerra civil e, evidentemente, o derramamento de sangue, ele concordou,
embarcou no avião e foi embora. A própria Varig o levou, e os militares assumiram com
o Castelo Branco.
MEMORIAL – O Brizola, nesse momento, como muito bem lembrado, já estava
no Estado da Guanabara, já havia sido...
ENTREVISTADO – Deputado Federal, veio para Porto Alegre e homiziou-se aqui
com o Professor Ajadil de Lemos, que foi meu professor de Constitucional, no Edifício
Duquesa, no viaduto Otávio Rocha. Ele havia sido Procurador-Geral do Estado, como
Chefe dos Promotores, mas não era Promotor de carreira.
MEMORIAL – Não era Promotor de carreira, era advogado. Aliás, foi um dos
mais novos Promotores-Gerais do Estado do Rio Grande do Sul. Era moço e tinha uma
inteligência brilhante.
ENTREVISTADO – Extraordinário Ajadil de Lemos! Ele foi meu professor de
Direito Constitucional no segundo ano de Direito em 1959. As suas aulas estão aqui na
minha cabeça. O que fiz como Juiz de Direito em Constitucional devo às aulas dele,
porque nunca mais esquecemos uma boa aula. Por exemplo, minha formação em
sociologia e filosofia do Direito devo às aulas do Armando Câmara. O Ajadil de Lemos
deu-nos a parte orgânica da Constituição de 1946, do art. 1º ao 140, dissecou a
Constituição Federal. No segundo ano, foi talvez um dos melhores professores que
tivemos na UFRGS. O Prof. Francisco Brochado da Rocha tinha um defeito na perna e

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dava a aula toda caminhando, em tom de discurso. Era o pai do Otávio Caruso
Brochado da Rocha. Ele lecionou a parte dos direitos e garantias fundamentais. O
Francisco Brochado da Rocha, no segundo ano, deu-nos a parte filosófica da
Constituição, que hoje seria o art. 5º da Constituição de 1988 e seus derivados. Na
Constituição de 1946, era o art. 141, dos direitos e das garantias fundamentais do
homem, como o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança e ao trabalho.
Nada mais é do que a Carta das Nações Unidas, os princípios da Revolução Francesa
e, para os católicos, o Sermão da Montanha. Mas isso foi fundamental, porque, lá na
minha advocacia em Antônio Prado, eu levei toda essa formação. Evidente, não podia
escapar disso, estava marcado por essa formação que tive de Direita, católica
apostólica romana, dos líderes da época do Anchieta. Fui marcado pelo Anchieta, sou
anchietano de cruz na testa. Do 5º ano primário até o 3º clássico e nos cinco anos de
faculdade jamais aderi ao Brizola, sempre fui contra e fazia campanha anti Brizola.
Quando o Fernando Ferrari fez a grande cisão em 1962, 1963, e fundou o MTR –
Movimento Trabalhista Renovador -, “o homem das mãos limpas”, eu aderi a ele, que
era um líder, um orador extraordinário. Ele morreu num acidente aéreo, quando seu
avião decolou do Aeroporto de São Leopoldo, na Vila Scharlau, e bateu no Morro do
Chimarrão em Torres, em 25.05.1963. Aderi ao Ferrari e votei nele para Governador,
mas ele foi derrotado.
MEMORIAL – O Meneghetti era um grande fazedor de votos, não é? Ele
começava mal uma eleição e terminava...
ENTREVISTADO – O Meneghetti foi um fenômeno raro de marketing. Este
termo, marketing, não existia, é uma coisa moderna, mas ele era o próprio marketing.
Hoje se fala tanto que Lula contratou esses publicitários especialistas em marketing
político, mas o Meneghetti era o marketing na essência. Ia para as colônias alemãs,
italianas, polonesas, russas, para a única colônia holandesa que havia em Não-Me-
Toque e trazia todos os votos. Tanto é que, na eleição de 1954, ele derrotou o grande
Alberto Pasqualini, ideólogo do PTB, homem católico, de comunhão diária, só nos votos
da colônia, como Arroio do Meio, porque, nos grandes centros urbanos, o Pasqualini
deu uma lavagem de votos no Meneghetti em 1954.
Depois, em 1958, o Brizola derrota o Peracchi Barcelos. O candidato do Brizola
ao governo do estado, quando ele vai para a Guanabara, para concorrer a Deputado
Federal, era o Egídio Michaelsen, extraordinário homem público, que fez o Edifício
Santa Cruz e era do Banco Agrícola Mercantil. Era um homem fantástico, natural de
São Sebastião do Caí, mas foi derrotado pelo Meneghetti nas urnas. Apesar de ganhar
nos grandes centros, como Pelotas, Uruguaiana, Rio Grande, Porto Alegre, Caxias do
Sul, etc., perdeu quando vieram os votos das colônias italianas, alemãs, polonesas,
russas. Aí o Meneghetti foi encostando e disparou, ganhando a eleição com os votos da

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colônia. Quando o Brizola tornou-se Governador em 1958, fez uma coisa fantástica:
uniu-se com a extrema direita da época para ganhar a eleição. Ele se uniu com o então
PRP, Partido Republicano Popular, do Plínio Salgado e Guido Mondin. Fez uma
coligação com o que havia de mais direita na época: os remanescentes do integralismo
e do autoritarismo nazi-fascista, liderados por Plínio Salgado, Alberto Hoffmann, Antônio
Pires, José Diogo Brochado da Rocha. Vi com os meus olhos os integrantes do PRP de
bota, culote e camisa verde, com o sigma no braço esquerdo, desfilando com bandeiras
na Sogipa. Eles eram extremamente nacionalistas.
O Brizola fez uma composição política na véspera eleitoral de sua campanha,
muito bem feita, porque os grandes políticos da época disseram: “Brizola, tu vais perder
a eleição para Governador. O Peracchi vai te derrotar”. Brizola ficou desesperado. Ele
tinha trinta e poucos anos quando foi candidato, já era casado com a Neusa, moça
riquíssima, irmã do João Goulart. O que ele faz? Aconselhado pelos políticos, une-se
com o PRP, faz uma coligação. Tanto isso é verdade que ele põe de candidato do PRP
um dos líderes do integralismo rio-grandense: Guido Mondin, que se elegeu Senador.
Guido faleceu há pouco. Era extraordinário orador, homem íntegro, político fabuloso. O
Brizola prometeu duas Secretarias de Estado e, no seu Governo, cumpriu a promessa,
colocou na Secretaria da Agricultura o Alberto Hoffmann, um homem alto, grande,
alemão de Ijuí, e na Secretaria de Administração o Antônio Pires, que ainda está vivo e
é integralista.
Existe o Centro Integralista de Porto Alegre, onde eles se reúnem, estudam e
buscam guardar a memória do Integralismo, que nada mais era do que um apêndice
nacionalista do Fascismo. Eram mais próximos do Mussolini da Itália do que do
Nazismo do Hitler na Alemanha. Foi assim que Brizola ganhou a eleição. Um fenômeno
semelhante repetiu-se há pouco quando Olívio Dutra ganhou a eleição do Antônio
Britto. Veio o Brizola aqui no Sul e, no segundo turno, mandou votar no Olívio. Acham
os políticos e os sociólogos que foi decisivo, o Brizola levou para o Olívio Dutra uns 300
mil votos. Talvez se o Coronel Peracchi Barcelos, grande líder do PSD, Comandante-
Geral da Brigada, grande orador, homem íntegro, fosse vitorioso nas eleições de
Brizola, a história fosse outra. Assim como seria outra a história do País se, em
1945/1946, o Dutra não se elegesse, se em 1950, o Getúlio não se elegesse
Presidente. Vivi isso tudo.
Em Antonio Prado, aos domingos, após a missa última, das nove horas, os
integralistas, liderados pelo farmacêutico Olímpio Dotti, do PRP – partido fundado por
Plínio Salgado – Desfilavam nas ruas centrais com bandeiras, fardados, de culote,
talabarte e cinturão, camisa verde, levando sigma no braço esquerdo. Era uma festa.
Com o braço direito levantado, estendido, reto para frente, paralelo ao solo, faziam a
saudação integralista e pronunciavam a palavra de ordem e progresso “Anauê”.

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Os melhores estudos sobre os últimos anos do grande país, Argentina, que tinha
tudo, riquíssimo, cultura, finíssimo indicam que o peronismo foi um grande mal. Hoje
parece lógico e conforme as coisas argentinas dizer que o golpe de Estado que o
General Juan Domingo Perón deu em 1945 e assaltou o poder, com os “descamisados”
e seu populismo a Argentina seria outra. Mesmo admitindo a Evita Duarte Perón. Não
teria tido os Montoneros, guerrilheiros urbanos e a extrema Direita, consolidada na
famigerada AAA (Ação Anticomunista Argentina) que gerou 30.000 desaparecidos e as
“madres de la Plaza de Mayo”. Também a tragédia que significou a vitória de Perón em
1950, quando derrotou em eleições ao grande líder da União Cívica Radical, o
professor e advogado Ricardo Balbin, a Argentina seria outra. Não teria ocorrido a
queda do Perón, a ditadura militar sangrenta e truculenta, não teria ocorrido a volta
trágica do Perón para a Argentina, sua morte de câncer, o governo de sua segunda
mulher, Isabelita. Não teria surgido a figura de Carlos Saul Menem, e outros que se
sintetizam, hoje, no patagônico casal Nestor Kirchner e sua esposa, senadora pela
Província Patagônica de Santa Cruz, Cristina Kirchner.
O Getúlio ganhou a eleição de 3.10.1950 pois, na última hora, o Ademar de
Barros, Governador de São Paulo, do PSP – Partido Social Progressista – o apoiou e
fez os votos dos paulistas, caso contrário, não tivesse o apoio decisivo de Ademar, é
certo que o Brigadeiro Eduardo Gomes teria ganho a eleição e o Brasil seria outro, pois,
não teria suportado o peso do populismo, da ineficiência e do espírito vingativo e
pensativo depressivo do Getúlio e sua grei que se apoderaram do poder. Em 1946,
Getúlio tramou nos bastidores e conseguiu derrotar seu amigo e correligionário do PTB
histórico, Alberto Pasqualini, pois, Walter Só Jobim, do PSD se elegeu Governador do
Estado.
Em 1951, aqui no Estado ocorreu a tragédia da morte em acidente de avião em
São Francisco de Assis, quando ia em visita a Getúlio no Itu – o Senador Joaquim
Pedro Salgado Filho – que era o candidato a Governador do Estado pelo PTB e já se
contava eleito, pois, tinha o apoio do então poderoso PTB e de Getúlio, porém Salgado
Filho morreu tragicamente, em 29.7.1950. No dia anterior, em 28.7.1950 tinha ocorrido
o acidente do Constellation da Panair que bateu no morro do Chapéu vindo do Rio de
Janeiro, quando morreram famílias inteiras da elite de Porto Alegre, muitas retornando
da Copa do Mundo que perdemos para o Uruguai em 16 de julho de 1950, no
Maracanã. Em lugar do falecido Salgado Filho, Getúlio logo escolheu um parente
próximo e general do exército, para acomodar o dispositivo militar, na pessoa do
general Ernesto Dornelles, inexpressivo, serviu sempre fora dos RGS, mais em Minas
Gerais, nunca fora Vereador, nem Prefeito, tinha sido sim interventor ao tempo da
ditadura de Getúlio aqui no RGS. Não fez nada. Péssimo administrador, derrotou um
político fantástico do PSD, Dr. Pompílio Cilon da Rosa, homem de Montenegro, de larga

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folha política, estadista e também derrotou o candidato do PL, o professor catedrático
de Ciências das Finanças do Direito da UFRGS, o grande político e fantástico homem
público Edgard Luiz Schneider. Nesta eleição, os comunistas se agruparam em torno de
uma figura de Pelotas, do professor Bruno de Mendonça Lima, candidato do Partido
Socialista Brasileiro – o PSB.
Na eleição de 1954 – o PTB lança para a sucessão de Ernesto Dornelles, o
grande político Alberto Pasqualini – estava ganha a eleição. Nem precisava fazer
eleição. Eis senão quando se reúne a oposição ao redor da figura histórica do Dr. Ildo
Meneghetti – do PSD, UDN, PL, PDC, formando a coligação que se denominou “Frente
Democrática” e derrota o grande Alberto Pasqualini numa eleição fantástica que
movimentou e dividiu o RGS. Não dá para imaginar meu pai, em 1954, lutando, de
casa em casa, pedindo voto para o Meneguetti. Acreditavam que tinham que derrotar o
Pasqualini, pois, apesar de ser o Pasqualini, em verdade, seria manter a turma do PTB
no Governo. Um desastre sob a liderança do matreiro e pensativo Getúlio. Enigmático.
Dito isto pelo amigo de Getúlio, o Dr. João Neves da Fontoura, nunca ninguém sabia o
que queria Getúlio. Não falava, não escrevia, ficava calado fumando charuto, depois
agia, na sombra. Nesta eleição, ocorreu o fato importante, pois, o PRP, o integralismo
que crescia, mormente na colônia alemã e italiana teve candidato próprio na pessoa do
ilustre médico de Campo Bom, Dr. Wolfran Metzler. O pessoal do Ademar de Barros,
cujo Partido o PSP – Partido Social Progressista – começava a ganhar adeptos no
RGS. Também teve candidato na pessoa do ilustre gaúcho, de tradicional família, José
Diogo Brochado da Rocha, um dos filhos ilustres de Otávio Rocha, por fim, os
comunistas mais uma vez se reuniram ao redor de João Pereira de Sampaio, famoso
PSB, Partido Socialista Brasileiro. Esta eleição mostrou bem a clivagem ideológica do
RGS. Aí estavam bem representadas as idéias e as ideologias reinantes.
Na eleição de 1958, Leonel de Moura Brizola, com seu PTB histórico, muito forte,
com diretórios em todos os municípios, estruturado, extrema esquerda para a época
coligou com o que existia na época de extrema direita, o PRP, o integralismo, portanto,
Brizola foi hábil político e retirou o PRP da coligação que governou no Governo anterior
com Meneghetti, e conseguiu que o PRP se coligasse com o PTB, sob a promessa de
que se eleito daria duas secretarias de Estado para os Integralistas. Brizola cumpriu,
deu as secretarias de administração com Antonio Pires e a Secretaria da Agricultura
com o político de Ijui, o germânico Alberto Hofmann. O Senador Guido Mondin, figura
histórica do integralismo, foi eleito senador, portanto, o PRP foi decisivo na vitória de
Brizola. O PRP que era do Meneguetti, que fazia parte da coligação “Frente
Democrática”, abandona o antigo ninho e marcha para o pleito coligado com o figadal
inimigo, o Dr. Brizola. Mais o apoio velado dos comunistas do PSB e dos ademaristas
do PSP – então foi fácil para Brizola derrotar o grande político gaúcho, Walter Peracchi

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de Barcellos, uma pena para o Rio Grande. Só assim conseguiu derrotar a Walter
Peracchi de Barcellos por larga margem de votos. Ocorreu um erro primário político e
eleitoral da antiga Frente Democrática. Não conseguiram manter a unidade da
coligação da “Frente Democrática” da eleição anterior. A coligação se esfacelou. Então,
o coronel da Brigada Militar, grande líder, homem correto, realizador, Walter Peracchi
de Barcellos foi torrado, antes dentro do próprio PSD e depois nas urnas. O pleito foi
muito mal conduzido. Veja que Peracchi de Barcellos correu somente pelo PSD. O
velho e bom PSD. Não se manteve a coligação da “Frente Democrática”.
Nesta eleição correu um fato político trágico e definiu a eleição na colônia alemã
e italiana. Os próceres do PTB, orientados por Brizola e Getúlio, duas raposas da
política, espalharam pela colônia que fora Walter Peracchi de Barcellos quando
Comandante Geral da Brigada Militar, durante a Segunda Guerra Mundial, proibira de
falar alemão e italiano e mandou fechar os colégios alemães e italianos. Só em Porto
Alegre foram fechados cinco colégios italianos, que ensinavam todas as matérias
curriculares só que em italiano. Foi um atraso total. Em verdade, a afirmação era falsa.
Pois, jamais Peracchi de Barcellos deu essa ordem e nem era de sua competência
mandar ou proibir falar o italiano e o alemão. Foi um abuso com dano irreparável para o
candidato Peracchi de Barcellos.
Meu pai ficou enfurecido. Sofreu muito com esta mentira. Saíram pelas colônias,
de casa em casa, procurando mostrar e provar aos colonos italianos que não era
verdade que tinha sido o Peracchi de Barcellos que tinha proibido falar italiano e fechou
os colégios italianos. Não adiantou. O mal já estava feito. Tocaram na parte mais
sensível do italiano. Lamentável.
Por sorte, o RGS, em 1962, elegeu novamente como Governador o Ildo
Meneghetti com a coligação chamada ADP – Ação Democrática Popular – que
procurava reavivar a velha coligação Frente Democrática. Meneghetti derrotou a Egydio
Michaelsen, candidato do Brizola e do PTB. Ajudou muito a vitória da direita com
Meneguetti, a dissidência ocorrida no seio do PTB, de Fernando Ferrari. O grande
político de São Pedro do Sul, jovem e brilhante, bom de voto, se afastou do PTB. Houve
séria divergência. Fundou seu partido, o MTR – Movimento Trabalhista Renovador – e
concorreu ao governo do Estado em 1962, obtendo o 3° lugar, lógico que esta
dissidência ocorria dentro do velho PTB como Ferrari ajudou a Meneghetti ganhar o
pleito.
Foi nesse Governo do Dr. Ildo Meneghetti que ocorreu a Revolução de 31 de
março de 1964. O mandato foi prorrogado por um ano. Depois os governadores foram
nomeados, Walter Peracchi de Barcellos, Euclides Tricches, Sinval Guazelli e José
Augusto Amaral de Souza e por fim em 1982, Jair Soares, – do PDS (da antiga ARENA)

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–, na primeira eleição após o término do governo dos militares, derrotou a Pedro Simon
– MDB – e a Alceu Collares, do novo PDT.
Mas, na eleição presidencial de 3.10.1950 o Getúlio, homem esperto, tramou e
dentro do movimento do “queremismo” – queremos Getúlio de volta – conseguiu outra
proeza política. Candidatou pelo PSD o mineiro Cristiano Machado, mas, depois,
queimou o candidato, cuja fritura passou para a história com o termo de “cristianizar”,
isto é, vamos queimar, fritar, afastar do pleito por manobras eleitorais.
O termo vem da cidade de Coventry, ao lado de Londres, na Segunda Guerra
Mundial – quando Hitler mandou a Força Aérea destruir e acabar com Coventry, para
mostrar aos ingleses que se entregassem pois daí uns dias seria bombardeada
Londres. Por isso, o termo passou para a história com o nome de “coventrizar”, vamos
coventrizar, isto é, botar tudo abaixo.
Portanto, eu vivi estes momentos quando jovem, na minha casa, em Antonio
Prado, pelo fato de meu pai ser um homem que além de trabalhar no escritório como
guarda-livro era um ser profundamente político e transmitiu essa paixão aos filhos. Vivi
o drama de meu pai e sua turma quando lutaram bravamente para derrotar o Gen
Dutra, em 1945 e Getúlio Vargas, em 1950. Queriam o Brigadeiro Eduardo Gomes na
Presidência. Participei das lutas de meu pai para eleger os governadores contrários ao
PTB de Getúlio, dominante na época. Meu pai achava a política do Getúlio a desgraça
do país, com sinceridade e com argumentos. Depois eu passei a viver pessoalmente o
que acabei de narrar longamente.
Dir-se-á que o depoimento do Juiz deve se prender somente a sua atividade
judicial. Penso que não. Sobre a jurisdição o que posso afirmar é que em todas as
Comarcas que trabalhei posso afirmar o óbvio. Trabalhei muito. Cumpri meu dever com
o povo. Mantive o serviço em dia. Sempre morei na Comarca e vivi intensamente a vida
das Comarcas onde residi com minha família. Por isso, meu depoimento abrangeu fatos
vividos e sentidos.
Tive a satisfação de ter criado alguma coisa como Juiz além de meu trabalho
como Juiz. Fui profissional como Juiz. Agora, cabe aos novos Juízes, retomar o fio da
meada, procurar manter o serviço forense em dia. Mais tarde, agora com este
Departamento Histórico contarão a história política e econômica das Comarcas que
jurisdicionaram como eu estou procurando fazer. Ligando o tempo passado com o
tempo futuro.
Sempre fermentou em mim ao agir assim a doutrina católica que aprendi no
Colégio Anchieta e desenvolvi na Faculdade de Direito, principalmente o ensinamento
filosófico do grande professor de Filosofia do Direito, Armando Pereira da Câmara.
No dia 31 de março de 1964 eu e o Prefeito Luiz Baggio viajamos de Antônio Prado a
Porto Alegre de madrugada fazer reivindicações ao Governador Ildo Meneghetti. O

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governador era um homem extraordinário, de 74 anos de idade, recebia todos os
Prefeitos, conversava com todos, tinha o Rio Grande na cabeça: a ponte, o rio, a
estrada, a escola, o parque, a paróquia, sabia tudo do Estado. O meu colega e amigo
Presidente do Tribunal de Justiça, Des. José Eugênio Tedesco, é um fenômeno assim.
É impressionante! Apesar de ser Juiz e não ter a necessidade de ter o Rio Grande na
cabeça para administrar o Judiciário, ele é um Meneghetti.
Se perguntares ao Des. Eugênio Tedesco sobre o município de Pedro Osório,
Itaqui, Canguçu, Antônio Prado, ele conhece o Fórum de cada local, sabe se quebrou o
vidro, se está chovendo dentro. Ele sabe, não precisa consultar nada! São pessoas
privilegiadas, e o Des. Tedesco é um privilegiado dentro da Magistratura, com essa
capacidade fantástica de assimilar o Rio Grande. Então, o Meneghetti tinha a política na
pele. Depois houve esse movimento todo da Revolução de Março de 1964, não se
sabia que rumo tomaria. Houve uma conturbação no Brasil, na época em que o Castelo
Branco assumiu a Presidência. Foi o Ato Institucional e o Ato Institucional II. O Brizola
estava sumido, não se sabia onde ele estava, era Deputado Federal e teria viajado para
o Sul, mas os militares queriam prendê-lo. Foi então que se iniciou a chamada
clandestinidade. Meus Colegas, o Carlinhos Araújo foi preso, depois, mais tarde, foi
condenado a cinco anos de cadeia pelos militares por suas atividades políticas da
época. Carlos Araújo foi condenado, e eu o visitava no Presídio. Éramos amigos e
fomos companheiros de aula, ele era filho do Afrânio Araújo. Alguns colegas meus de
esquerda foram apanhados pelo Movimento de 1964, presos e torturados, como o
Flávio Tavares, que escreveu um livro espetacular: “Memórias do Esquecimento”.
O Flávio Tavares está naquela famosa foto da troca do Embaixador americano
Charles Elbrick é o da ponta esquerda. Um jornalista, meu colega, amigo, o Moisés de
Deus Lopes – que mais tarde criou o SIV no edifício Cacique. O Glênio Argeni – líder
bancário e companheiro de geração. Então, tudo isto me perturbou, ver meus colegas,
meus amigos, pessoas com os quais eu havia convivido, serem reprimidas daquela
forma. O próprio Capitão Lamarca, que era do Colégio Militar, foi morto no Araguaia. Os
padres dominicanos o entregaram. Essa situação que vivenciei com 25 anos, já com
dois ou três anos de advocacia, me marcou muito. Houve uma ruptura da ordem
democrática, ocorreu o fechamento do Congresso Nacional, e não havia mais a
Constituição que tanto estudei, que tanto amei. O estudante de Direito tem de ter a
Constituição, está tudo ali e dali sai tudo. Quando eu consultava o Francisco Brochado
da Rocha sobre qualquer tema, locação, separação, alimentos, etc, ele tirava o texto da
Constituição de 1946 do bolso e dizia assim: “Vamos ver a raiz constitucional”. Ele
folheava aquele livro e dizia: “Aqui está a raiz constitucional do teu problema, meu filho”.
Aí ele vinha descendo para o Código de Processo Civil, o Código de Processo Penal,
mas sempre partindo da Constituição.

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O Presidente Castelo Branco começou a governar com os atos institucionais: Ato
Institucional I, Ato Institucional II, Ato Institucional III. Como houve a ruptura da ordem
antiga, prenderam-se pessoas, e falou mais alto a boca do canhão, já que a lei cedeu
lugar à força – o que é muito perigoso. Aconteceu então um fato interessante: houve
uma certa paralisação em quase todas instituições democráticas, porém o Judiciário
continuou funcionando.
A própria Revolução precisou do Judiciário para se institucionalizar e se garantir.
Vim a Porto Alegre e, conversando com colegas meus, Lio Cezar Schmitt, Fábio Koff,
Alfredo Guilherme Englert, Décio Erpen, Péricles Fontoura Mariano da Rocha, Mário
Rocha Lopes, Vicente Rovani, Cacildo de Andrade Xavier, Donato João Sehnen,
pessoas da minha geração, José Paulo Bisol, que era da Esquerda e tinha um
brilhantismo fantástico, fiquei sabendo que estava sendo aberto o concurso para Pretor
e que todos iriam fazê-lo. Fomos ao 8º andar do edifício Comendador Azevedo, o Fábio
Koff, o Vladimir Giacomuzzi, o Luiz Guimarães Neto, o Péricles Fontoura Mariano da
Rocha, o Alfredo Guilherme Englert e outros colegas e nos inscrevemos. Havia um
pequeno concurso para Pretor. Fazia-se uma prova de Direito Civil, Direito Processual
Civil, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Constitucional. O concurso foi
feito no velho Pleno do 8º andar. Flávio Tavares escreve hoje: “Temos orgulho disso e a
maturidade de 30 anos depois nos fez aprender até com erros. Outro sonho frustrado
nos uniu: Criar sob a liderança de Brizola, um Partido Socialista Democrático. Em
1981/1982 trabalhamos juntos na Assembléia Legislativa e, lá, descobri que o aparente
jeito duro de Dilma Rousseff não é rispidez, mas coerência e honesta franqueza que se
oculto na imensa ternura interior marcada pelas experiências brutais da prisão e
tortura”.
MEMORIAL – Isso em 1964?
ENTREVISTADO – Início de 1965. Havia um pequeno-grande concurso para
Pretor aberto e livre para qualquer pessoa, qualquer estudante que preenchesse os
requisitos. Isto é o que caracteriza o Judiciário do Rio Grande: concursos públicos
abertos e democráticos. A pessoa vai lá, inscreve-se e, se passa, entra. Comecei aí
minha carreira. Fiz o concurso e tirei o quinto lugar.
Todas essas experiências foram importantes para mim, principalmente o estágio
na Defesa na 5ª Vara Criminal. Fui nomeado pelo Des. João Clímaco de Mello Filho,
grande Presidente, que vinha do Quinto Constitucional do Ministério Público; mora na
Rua Quintino Bocaiúva, pai de um colega meu, Promotor, que já morreu. Fiz o concurso
para Pretor, e, em seguida, o João Clímaco nomeou-me para Não-Me-Toque. Foi a
minha primeira Pretoria, pertencente à Comarca de Carazinho. Isso foi em 1965. O
Pretor de Carazinho era Décio Antônio Erpen; eu era o Pretor de Não-Me-Toque e de
Tapera era Armindo Sarturi, sendo a cabeça da Comarca Carazinho. Mais tarde, eles

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terminaram com esse sistema, os Pretores ficaram vinculados e foram extintas as
Pretorias.
Hoje há os Pretores estáveis. Esse foi o grande estágio que fiz, fiquei de Pretor
quase um ano em Não-Me-Toque. Morava lá, onde fazia tudo o que tinha que fazer.
Conheci nesse período o antigo Distrito de Cochinho, pertencente à Não-Me-Toque na
época, e que pertence hoje a Carazinho. Após a sua emancipação, passou a chamar-se
Victor Graeff em homenagem ao grande homem público de Não-Me-Toque. O Juiz tem
de meter a mão na massa, tem de fazer júri, audiência, dar sentença, não se pode
admitir que o Juiz não mexa em tudo. Então, logo de saída, na minha Pretoria em Não-
Me-Toque,eu era a autoridade judiciária do Município. E o Dr. Élido Sampaio Moreira,
como tinha muito serviço em Carazinho, pediu-me: “Letti, faz todos os atos
preparatórios do plebiscito, e eu chancelo o que tu fizeres”. Lógico que eu fazia com a
chancela dele. Havia a área que queria a emancipação e a liderança que não queria a
emancipação. Houve um debate político fantástico entre os alemães que me marcou
em Não-Me-Toque.
Era muito comum em Antônio Prado o italiano fazer o que chamam de “ficta
vendita”, – venda fictícia –, para ele deixar a terra, pouca, quinze hectares, para o filho
mais velho. Eles não queriam genro nem nora. Então, faziam em vida uma transferência
da propriedade para um amigo, para que, quando ele morresse, fosse transferida ao
filho mais velho, passando para trás os outros. Isso era muito comum na Itália. Traziam
essa tradição da Itália, porque lá quem herdava a terra era o primogênito. Naquele
tempo não existia o Funrural, que veio depois com a Revolução de 1964, implantado de
fato no Governo do General Emílio Garrastazu Médici. Então, eles esperavam que o
filho mais velho ficasse trabalhando na terra e os sustentasses até a morte. Assim eles
garantiam a terra, de onde vinha o pão, o sustento, que eles haviam recebido quando
aqui chegaram. Ficava a terra com os mais velhos, porque os mais jovens iam embora
para colônias novas em Santa Catarina, Paraná, etc. Os mais velhos tinham de ficar na
terra, trabalhar no plantio, fazer a colheita e sustentar o imigrante idoso até o fim da
vida.
Aqui está o fundamento sociológico desses casais de velhos italianos, sem
qualquer maldade, dolo ou culpa, passar a terra por meio dessas escrituras. O Poder
Judiciário anulou muitas delas, porque não se pode passar o bem só para um filho em
prejuízo dos outros. Tem que dar igualmente para todos. Então, eu trazia essa vivência
cultural. Fiz o concurso, passei, e, em seguida, o Des. João Clímaco de Mello Filho nos
chamou. Não houve tempo para nos dar cursos ou algumas pinceladas. Ele disse: “Vão
para as Comarcas, porque o Judiciário precisa de vocês. Há fome de justiça no Interior”.
O Vladimir Giacomuzzi foi para Gaurama, o Fábio André Koff, ex-presidente do Grêmio,

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foi para Aratiba, em Erechim, o Luiz Mello Guimarães Netto foi para Rosário do Sul, eu
fui para Não-Me-Toque. A turma espalhou-se pelo Rio Grande.
Tive o prazer de substituir, em Não-Me-Toque, o Pretor anterior, que tinha sido o
Cacildo de Andrade Xavier, que veio a ser o Presidente do Tribunal. Não-Me-Toque
tinha a única colônia holandesa do Rio Grande do Sul. Os holandeses foram trazidos
pelo Meneguetti – que derrotou Pasqualini em 1954 - no seu primeiro Governo, depois
que ele visitou Holambra, em São Paulo, de onde trouxe uma grande quantidade de
colonos holandeses, que mantiveram a cidadania holandesa. Os colonos holandeses
que envelheciam e não tinham qualquer tipo de assistência social e de saúde, como
não haviam perdido a cidadania holandesa, voltavam para a Holanda. Era muito comum
em Não-Me-Toque, eu participar, como Pretor, de solenidades de despedida do velho
casal de holandeses que havia sido trazido pelo Meneguetti. Muitas vezes, eles iam
definitivamente, e era uma choradeira, porque a despedida era para sempre. O casal de
idosos voltava para Holanda, pois continuava com a cidadania holandesa, e lá ele tinha,
depois dos 65 anos, toda a assistência social, previdenciária, médica e farmacêutica. A
Igreja Luterana dos Holandeses ficava de um lado da praça, e a Igreja Católica
Apostólica Romana, de outro. Havia dois grandes salões paroquiais.
Como Pretor, fiz o casamento (porque o Pretor tinha essa competência) da
primeira moça holandesa com um não-holandês, era um alemão. Fizeram uma festa
enorme, que começou de manhã na Igreja Católica Apostólica Romana. Lá fizeram uma
solenidade, o padre benzeu as alianças, atravessamos a praça em séqüito e fomos
para a Igreja Luterana, onde fizeram mais uma solenidade. O almoço, depois de muito
debate, foi feito na Igreja Luterana, porque a comida dos alemães era melhor que a dos
holandeses. Festejou-se até a madrugada.
Participei dessa integração de etnias, dessa fermentação do Governo, que,
infelizmente, estamos perdendo. Agora, há o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra,
mas não é por aí. Lembro-me do trabalho dos holandeses que vieram para cá. Muitos
colonos, inclusive a família Graeff, tinham abandonado as terras de Não-Me-Toque por
serem improdutivas, não produzirem mais milho, soja, trigo, cevada, etc. “As terras
estão cansadas, não são mais férteis, não colhemos mais nada”. Em Não-Me-Toque,
houve um fenômeno raro: havia vastidões de terra, que hoje são jardins. Meneguetti viu
isso, foi ao Banco do Brasil, era Presidente o Nestor Jost, e pediu que financiasse. Por
isso que precisamos de políticos, eles são essenciais. O dia em que não tivermos
políticos, estamos liquidados. Que se renovem de quatro em quatro anos! E o Judiciário
permanente! Os militares tiveram essa visão em 1964, – no início, não, mas, em
seguida, sim –, assim como teve Napoleão Bonaparte, que, depois da Revolução
Francesa, criou uma Magistratura – os Códigos Napoleônicos – para poder manter-se.
O Meneguetti teve essa visão fantástica e levou a esses colonos holandeses

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financiamentos de dez anos do Banco do Brasil, da carteira agrícola, financiamento
similar ao do antigo BNH para a casa própria.
Essa colônia holandesa prosperou, e hoje Não-Me-Toque tem talvez a maior
feira agrícola do Rio Grande do Sul, Cotrisal que é resultado destas medidas. Não-Me-
Toque era uma cidade pequena, tinha sido distrito de Carazinho, quando cheguei em
1965, hoje é uma capital, pelo consumo da população, da sua produção agrícola,
comércio e setor de serviços. O que aconteceu com Não-Me-Toque é um movimento
semelhante ao que ocorreu no Norte da Itália. Meus avós vieram pobres da Itália,
miseráveis, passando fome, e hoje o Norte da Itália é desenvolvido, próspero, tem uma
agricultura e uma agropecuária maravilhosas, uma indústria fantástica e um comércio
no setor de serviços estupendo. Meu serviço na Comarca é julgado pelo povo. Pergunte
ao chofer de praça se julguei alguma questão de sua família ou se coloquei algum filho
seu na cadeia. Esse é o teste que faço.
Terminado esse período em Não-Me-Toque, aconselhado pelo Dr. Élido
Sampaio Moreira, Juiz da Comarca, e pelo Promotor Lauro Guimarães, fiz o concurso
para Juiz de Direito junto com essa mesma turma. Fizemos o concurso lá no 8º andar
edifício do Comendador Azevedo na rua Uruguai, nº 155. Meu concurso marcou,
porque foi a turma de agosto de 1965, em que houve a maior nevada do Rio Grande do
Sul. Nunca mais houve uma nevada igual. A famosa nevada de agosto de 1965 foi
durante o concurso. Caiu a ponte do rio Pelotas, na divisa de Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, no Passo do Socorro – isolou o Rio Grande do Sul, e Não-Me-Toque -
tenho fotos -, na praça, ficou com um metro e meio de neve. Quase morremos de frio.
Fizemos o concurso e fui nomeado para Sobradinho, que foi a minha primeira Comarca
como Juiz de Direito. Cheguei em Sobradinho pela Estrada de Cerro Branco, Rincão
dos Cabrais, hoje Novo Cabrais, passando Candelária, onde fiquei por toda a primeira
entrância. Trabalhei muito lá. Era uma Comarca difícil, mas de gente boa,
trabalhadores, italianos e alemães, negros e “brasileiros”. Ali nasceram meus filhos o
Eduardo e o Felipe, que hoje são comandantes da Varig, e foram atendidos no Hospital
pelo Dr. Homero de Lima Menezes.
Dediquei-me de corpo e alma a Sobradinho, posso dizer que vesti a camiseta.
Pegamos um terreno, que era da antiga Diretoria de Terras e Colonização – depois
IBRA, e após INCRA, que estava abandonado e sobre aquele terreno, nós, junto com o
Prefeito Ovídio Bavaresco, construímos a casa do Juiz. Era a quarta casa da AJURIS, a
inauguramos em 1968. Como a estrada era muito ruim pelo Cerro Branco, tínhamos
que subir o morro e queria levar para inauguração da Casa, a Diretoria do Tribunal, foi
então que resolvemos fretar dois táxis aéreos. Compareceram na inauguração da Casa
da AJURIS, o Presidente, o Vice-Presidente, o Corregedor - já era o Mário Boa Nova

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Rosa - e outros Juízes. Todos os Juízes que jurisdicionaram em Sobradinho depois de
1968 moraram nessa casa.
Fiz também uma reforma enorme no prédio do Foro, na época, em que era
possível fazer leilão de armas apreendidas. Quando fiz o leilão de armas em
Sobradinho, lembrei-me do Inspetor Bauermann, do Padre Pio Buck. As armas eram
leiloadas, apurávamos o dinheiro e aplicávamos em melhorias. Era um prédio alugado,
da família do Galileu Maieron. Fizemos uma reforma completa no prédio, com gabinete
para o Juiz e um salão para o júri. Até o Pedro Soares Muñoz, que era Desembargador
e havia passado por Sobradinho em 1946, época que entrou para a Magistratura, foi
sua primeira Comarca. Foi também a primeira Comarca de Aristides Dutra Boeira, de
Ugolino Uflacker. Em Sobradinho, cumpri meu tempo de primeira entrância, fui
promovido deixando o meu serviço em dia.
MEMORIAL – Que tipos de processos?
ENTREVISTADO – Muito crime.
MEMORIAL – Pergunto-lhe, porque o senhor saiu de uma área tipicamente de
colonização italiana, em que provavelmente a área cível deveria ser mais ativa do que a
área criminal.
ENTREVISTADO – Em Antônio Prado, não havia crime. Em Sobradinho, havia
muito. Em Sobradinho, como Juiz, fiquei quatro anos, na despedida, houve uma
solenidade no Clube do Comércio, e eles me deram várias lembranças. Eu devo ter
presidido uns quarenta júris. Júris de morte. Havia muito homicídio.
MEMORIAL – Arma branca ou arma de fogo?
ENTREVISTADO – Mais arma branca e muito machado, muita pedrada, muita
lesão. Não havia muita arma de fogo. Lembro-me de caixotes de facões, facas, armas
brancas apreendidas nas brigas.
MEMORIAL – Eram brigas em decorrência de bailes, envolvendo álcool, cancha
reta, ou eram disputas por bens materiais?
ENTREVISTADO – Eu discutia muito o porquê da alta criminalidade em
Sobradinho, superior a de São Borja, superior a de Itaqui, isso dito pelos Des. Moltke
Germany, Mário Rocha Lopes, Túlio Medina Martins, Celso Luiz Franco Geiger, que foi
Juiz e morou lá, e outros tantos. O próprio Ministro Pedro Soarez Muñoz pôde constatar
isso. A verdade é que o índice de criminalidade em Sobradinho era muito elevado.
Havia reuniões periódicas do Júri, e chegavam a fazer doze ou quinze Júris
encordoados, todos crimes de morte, a maioria por arma branca, muito poucos com
arma de fogo. Por quê?
Essa pergunta é interessante. Vou tentar explicar a raiz neurótica e a origem
sociológica do crime em Sobradinho. Sobradinho, como cidade, era um fim de linha, a
pessoa ia até Sobradinho e voltava, não ia adiante. Estavam fazendo a barragem do

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Salto do Jacuí. Não existia Itaúba, nem Passo Real. Foi inaugurada há pouco a
Comarca do Salto do Jacuí, que pertencia à Comarca de Sobradinho. Arroio do Tigre,
que não era Comarca, era distrito de Sobradinho, não tinha nem Pretor. Então, o que
acontecia? Havia em Sobradinho uma zona de colonização italiana, chamada Ibarama,
com produção de uva. Descendo a Serra, em direção a Agudo, onde está Dona
Francisca, Arroio do Tigre, zona de colonização alemã, onde a igreja evangélica era
enorme, e a católica pequena, onde prevalecia o alemão, todo mundo falava alemão.
Ao norte, passava o distrito de Segredo, ia-se em direção a Soledade, pegando o
Campo de Sobradinho, Pitingal, Passa Sete, onde o Des. Wedy tem campo. Em direção
a Soledade, depois do Arroio do Tigre, no sentido de Cruz Alta, onde abre-se o campo,
começavam a aparecer aqueles a quem chamávamos de pêlo-duro, o português, o
peão de estância, aquele homem que estava a 80km de Soledade, 40km de
Sobradinho, mas encontrava-se abandonado. Sobradinho foi o 4º Distrito de Soledade.
Um dos últimos atos do Dr. Borges de Medeiros como Governador do Estado foi a
emancipação do município de Sobradinho, separando-o de Soledade, em 3.12.1927.
Conheci o líder da emancipação. O Dr. Reinaldo Seitenfus, médico, liderou a comissão
de emancipação de Sobradinho. Depois, quando eu estava lá, ele vai liderar a comissão
de emancipação de Arroio do Tigre. Mais tarde, Salto do Jacuí, que é a evolução
natural das coisas, se emancipou. A cidade de Sobradinho era um cadinho cultural da
Itália. O colono italiano não queria que sua filha namorasse o pêlo-duro de jeito
nenhum, mas a menina italiana apaixonava-se muito facilmente pelo fazendeiro, de
bota, de bombacha, que freqüentava o CTG. Ele era mais bonitão. Ela desdenhava o
colono italiano. O jovem italiano, apaixonado pela menina italiana, matou o filho do
fazendeiro por ciúmes, por ter sido renegado.
Quando o 4º Distrito de Solenidade, a chamada a Terra dos Bombachudos,
ocorreu um levante “Dois monges barbudos” – cuja grei acabou sendo presa e levada
para Soledade pelo Delegado de Polícia da época, o Dr. Moltke Germany, depois, Juiz
e Desembargador. O fato ocorreu no distrito de Jacuizinho. Os antigos donos das
terras, abandonaram as terras e tentaram outras terras ou vieram morar na cidade.
Ficaram os pobres, posseiros, antigos peões, sem escritura da terra. O tempo passou e
alemães de Santa Cruz do Sul descobriram as primeiras pedras preciosas da região.
Foi um corre-corre pela posse da terra. Os antigos proprietários voltaram e quiseram
retomar a posse da terra. Afinal havia pedras preciosas a explorar. Os posseiros
resistiram. O conflito foi inevitável.
Os posseiros devido ao abandono, falta de estradas, sem escolas, nos fundões e
socavões daquelas serranias, sem hospital, sem luz elétrica, sem nada, passaram a
formar um verdadeiro quisto racial de abandono. Tipo os alemães Mucker no Ferrabraz.
Um fato identifica o atraso e o abandono: não tinham igreja, nem padre, nem pastor de

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qualquer religião. Não havia assistência religiosa. Então, o líder, o que tinha conseguido
arranjar algum dinheiro na cidade com o atravessador vendendo as pedras semi-
preciosas. Comprou tecido. Fez roupa nova e vestiu a filha adolescente na época do
aniversário. Fizeram festa. Chamaram os vizinhos. A menina gostou do vestido novo.
Não queria mais tirar a roupa nova. O pai lhe deu mais uns dois vestidos. Então, ela
criou uma sala na sua casa onde ficava quase sempre vestida com o vestido novo.
Os vizinhos e amigos, todos miseráveis, descalços, pois não tinham calçado,
vinham até a casa da menina para ver o seu vestido novo e assim aconteceu uma
espécie de admiração e veneração pela moça. Rezavam suas rezas. É preciso lembrar
que esta gente ficou totalmente abandonada, distante de Soledade uns 80 quilômetros,
sem estrada. Abandono total. Por isso aconteceu a “a adoração” da adolescente,
Disseram para a polícia que estavam adorando pessoas e que a menina ficava no altar.
Então, se criou esta lenda imaginária naqueles confins do mundo. O que ocorreu de
verdade foi uma renovada luta pela posse da terra, dado que após muitos anos, a terra
retomou valor, pela descoberta das pedras semi-preciosas. Hoje, Soledade é um
grande produtor de pedras semi-preciosas e exporta para a Europa.
MEMORIAL – E o crime de sedução também era freqüente naquela época?
ENTREVISTADO – Sim, era muito comum. Na época, como Juiz, eu tinha
surpresas fantásticas. A sedução do art. 217 ainda está em vigor; o art. 218, corrupção
de menor; depois vem o estupro, do art. 213. O crime está ali, é dos homens, da
natureza humana. Em Sobradinho, aconteceu algo interessante: entrava um processo
de sedução de uma menina da colônia; num primeiro aspecto tinha-se que proteger a
menina, que era colona, aquela coitadinha, que merecia toda a compreensão, era
inexperiente, inocente, não sabia nada de sexo, tinha sido seduzida por falsas
promessas de namoro por aquele rapaz que se aproximou, etc. Depois, muitas vezes,
após a instrução cuidadosa do processo, via-se que ela já tinha tido relações sexuais.
Essa situação era muito complicada, as audiências eram muito difíceis, tinha que
se ter muito tato. Aprendi muito. Partia-se do princípio filosófico de que a menina era
inocente, inexperiente, que tinha sido seduzida e desvirginada, e de que o rapaz era um
tarado, mas não era bem assim. E era difícil de absolver, porque o Promotor ficava
muito em cima. O primeiro Promotor em Sobradinho foi o Tupinambá Miguel Castro do
Nascimento, Desembargador, muito eficiente, senhor da situação. Mesmo assim absolvi
muita gente, porque me convencia, na prova, de que não havia a anterior inocência da
menina. A menina, fruto da boa alimentação, fruto do contato com a natureza, que
trabalhava na colônia, via o bagual cobrir a égua, o galo cobrir a galinha, o porco cobrir
a porca, o touro cobrir a vaca, quer dizer, ela tinha toda a sapiência rural do sexo entre
os animais, que é muito saudável e natural.

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Como ela era uma moça, em princípio, saudável, acabava tendo relações
sexuais. Era um assunto muito vivo. Os processos da época eram muito complicados.
Tinha de ter muito cuidado, fazer uma prova muita bem feita, com muita segurança,
porque havia um debate total entre os advogados, entre a moça e o rapaz. Depois tive
um choque. O padre Benjamim Copetti, pároco de Sobradinho, grande figura humana,
trabalhador e dedicado ao seus paroquianos, me contava que era raro um casal de
colonos casarem sem antes terem mantido relações sexuais. Ele os confessava,
casava e tinham filhos e eram felizes no seu viver campesino de gente rural. O sexo
explodia naqueles jovens bem alimentados e sadios.
O Padre Paza era o pároco da Vila do Segredo. Um dia, ele me procurou no
Fórum e disse: “Doutor, estou com um problema muito sério. Na confissão, tenho
recebido muita queixa de pai tendo relação sexual com a própria filha. Como é na
confissão, não posso fazer nada. Minha consciência não pode ficar calada, mas é
segredo da confissão”. Era um padre à antiga, que estava tão torturado em sua
consciência, que veio falar comigo, como Juiz. Eu disse para ele que consultasse os
seus maiores, – havia aqui em Porto Alegre um Tribunal Eclesiástico –, sobre a sua
conduta, primeiro como religioso, os votos que ele havia feito, de pobreza, de castidade,
de sigilo de confissão, que é um sacramento. Ele disse: “Não, não posso me calar,
porque há vários pais que têm casos com suas filhas, e estas terão filhos defeituosos”.
Respondi que isso era um problema de consciência dele. O Padre Pasa falou com o
Bispo de Santa Maria, Dom Victor Luiz Sartori, e então foram abertos vários inquéritos
policiais contra pais que mantinham relações sexuais com as próprias filhas naqueles
rincões abandonados da terra. Lógico. Muitas condenações, a maioria foi submetida a
Laudo Psiquiátrico Forense e foram pacientes internos no Instituto Psiquiátrico Forense
– Maurício Cardoso– no Partenon – com Medida de Segurança defendida por absoluta
doença mental e dali nunca mais saíram, lógico.
Abeberei-me com o Dr. Homero Lima Menezes, grande médico, que fazia os
laudos, as perícias médicas de morte, lesões. Em Sobradinho, havia muita lesão, muita
briga de facão, e a briga de facão era depois das festas de igreja, das quermesses.
Então, havia um dito popular em Sobradinho. O réu chegava na minha frente e dizia:
“Não, doutor, não fiz nada para o meu vizinho, não dei de fio nele, só dei de estouro, só
dei pranchaço”. Na concepção de quase analfabeto, de peão de estância, isso era
verdade. A mão dele era uma grosa, de trabalhar na roça, trabalhar com os animais, era
um cascão. Para mim, o documento era a mão. Numa briga de facão, o autodomínio de
não dar de fio para abater o adversário, e só dar de prancha, é fantástico. Nós, da
cidade, não temos esse controle.
MEMORIAL – Isto é uma questão cultural.

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ENTREVISTADO – E era muito comum: “Doutor, eu não fiz nada, só dei de
prancha nele”. Ele estava muito seguro do que estava fazendo, porque sabia lidar com
a faca desde pequeno. Eles sabem tirar o couro do porco, tirar o couro da vaca... Então,
é preferível lutar com ele de revólver do que de faca. Ao término de alguns bailes em
Sobradinho, depois da quermesse, o padre ia embora, não havia luz, ficava só a luz do
lampião, o pessoal se tramava na faca e morriam dois ou três. Era comum fazer Júri
com duas, três mortes. Impressionou-me esse problema do namoro, do ciúme, que
gerou muito crime.
Depois de muitas dúvidas se deveria ou não condenar, por crime de sedução, o
rapaz forte, sem muitas luzes, criado lá fora, de boa família mas que já tinha essa
experiência de sexo dos animais, formei uma convicção. Ele tem que trabalhar com
isso. Esse pêlo-duro lá de cima, de Soledade, de Tamanduá, de Pitingal, de Passa
Sete, nascido em Segredo, não namorava a alemã de olhos azuis de Arroio do Tigre,
ele gostava da italiana de Ibarama. Era muito comum. E aí “fechava o tempo”. Um dia,
numa missa, numa festa, num encontro, estava feito o triângulo amoroso: o rapaz que
era apaixonado pela menina italiana de Ibarama, vendo-se abandonado pela moça, que
se apaixonara pelo guri do campo, bem arrumado, pilchado, de bota, do CTG, tocando
violão, vindo bem montado a cavalo. Feito o triângulo amoroso, estava feita a encrenca,
era só riscar um fósforo. Desses casos eu tive muito em Sobradinho. Essa menina
italiana era uma inocente, mas não do ponto de vista sexual, porque não era mais
virgem, caía-se então no crime de sedução (art. 217). Ficava, talvez, o do art. 218
(corrupção), mas era difícil. Hoje, fazendo uma revisão dos conceitos, mesmo depois de
Juiz de Alçada por cinco anos e Desembargador por três numa Câmara Criminal (3ª
Câmara Crime). O tema é vasto e permite debate. Era gente boa, trabalhadora.
Sobradinho era o maior produtor de fumo do Rio Grande do Sul, embora a
indústria esteja em Santa Cruz. É também o maior produtor de feijão. As indústrias de
Santa Cruz dão permanente assistência técnica por meio de agrônomos e técnicos, que
percorrem as colônias agrícolas. É a cadeia produtiva mais perfeita do Rio Grande.
Nem a do arroz, nem a da carne, nenhuma tem essa integração. O Governo não se
mete: o colono produz, a indústria assiste, financia, fornece o remédio, o fungicida, o
herbicida, o veneno. Eu nunca vi colocarem tanto veneno em cima de uma planta como
na do fumo. É impressionante. Eu visitava, em Arroio do Tigre; então distrito; a colônia
do Sr. Francisco Eusllin, que veio depois a ser o segundo Prefeito de Arroio do Tigre.
O primeiro Prefeito foi o Sr. Rudolf Spacil, ambos alemães. Francisco era um
homem alto, de 1,90m de altura, adorava o Hitler, gostava do Richard Wagner. Ele tinha
uma vitrola na qual ouvia As Valquírias, de Wagner. Isso lá no Interior! Ele dizia com
orgulho: “Aqui está a minha colônia de produção de fumo. Faz 40 anos que exporto
fumo para uma firma lá em Londres. Compram o meu fumo, porque é bom e não muda

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nunca”. Ele tinha o comércio certo para o seu fumo. É verdade, é como se fosse um
fornecedor de carne, um fornecedor de uva, um produto certo, garantido, seguro, de
qualidade. Ele estava bem de vida porque tinha colocação certa do seu produto da
colônia em Londres. Esses produtos químicos usados no fumo perturbavam aqueles
trabalhadores, principalmente os que trabalhavam nos galpões onde se preparava o
fumo em corda, ou seja, o fumo para o cigarro crioulo. Vocês já viram fazer aquele
fumo? As folhas secas do fumo são enroladas com o bagaço, com aquele caldo, vão
enrolando com as mãos e fazendo o rolo de fumo. Aquele cheiro perturba o psíquico da
pessoa, altera o cérebro e causa um problema pulmonar muito sério. Essa pessoa se
torna um delinqüente em potencial. Em baixo de cada casa, havia um galpão de fumo.
Esse homem que trabalhava todo o dia no fumo ficava alterado, intoxicado, houve
muitos suicídios.
Tive muitos casos em que havia suspeita de homicídio, mas não era. O Dr.
Homero de Menezes fazia a perícia e dizia: “Não. Foi suicídio. Suicidou-se, porque está
louco devido ao fumo”. Lá na colônia, todo colono sabe que isto pode acontecer.
Também houve várias sanções políticas, porque Sobradinho sofreu muito com a
Revolução de Março de 1964. Quando lá cheguei, a repercussão dos fatos ocorridos
em 1964 era total. Havia uma figura fantástica, o Dr. Ivo Mainardi, pertencente a uma
família de lá, que morreu há pouco. Ele era advogado, foi Promotor e Deputado
Federal. Era o Presidente do PTB quando ocorreu a Revolução de 1964, e ele teve de
fugir. Muita gente foi presa. Subiu o Exército de Santa Cruz e prendeu essa gente. Uns
foram torturados, outros não sei. Eu não estava lá no momento da repressão. Cheguei
depois e peguei o efeito.
Isso tudo marcou a sociedade de Sobradinho. Ela ficou dividida entre os que
estavam a favor da Revolução e os que estavam contra. Sobradinho era uma pequena
cidade interiorana, com várias divisões sociais e raciais. Também havia a divisão entre
os que trabalhavam com o fumo, com o feijão e os colonos explorados pela indústria. A
indústria de Santa Cruz, riquíssima, dava todo o apoio técnico ao colono. Também
representava o progresso para muitas destas famílias, era a partir de iniciativas da
indústria que estas pessoas tinham acesso a certos produtos que antes não chegavam
até elas, como sapatos novos, vestidos da moda etc. Mas apesar disto, as indústrias de
Santa Cruz, não deixavam de explorar seus trabalhadores: pagavam ao colono o preço
que queriam, da forma que bem entendessem, o que acabava mantendo o trabalhador
quase escravizado. A indústria buscava a safra do colono, que era o trabalho de um
ano inteiro de toda a família.
Durante duas safras, no período em que fui juiz na cidade (1968 e 1969), a firma
de Santa Cruz uniu-se a uma revendedora Chevrolet (do Valdemar Bublitz) e, em vez
de pagar em dinheiro o colono, vendia Rural Willys velha ou Jipe. O colono queria uma

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condução, já que só tinha carroça e cavalos. Então, em vez de receber em dinheiro
para pagar o colégio, ir ao hospital, movimentar o comércio da cidade, comprar o
remédio, roupa nova, pagar as dívidas, recebia um Fusca ou uma Rural ou ainda, uma
camioneta Dodge. Eles não pagavam o Valdemar Bublitz, e o colono não sabia disso.
Essa era uma grande discussão com o Ivo Mainardi, que era advogado na época, antes
de ser Promotor. Era o chamado consentimento obtido não-formulado, não-válido. Já
tinha entrado em vigor, logo depois da Revolução de Março 1964, o Decreto-Lei nº 911,
que criou no Brasil a alienação fiduciária e substituiu a reserva de domínio.
Sendo assim, todos aqueles carros velhos, usados, foram vendidos para os
colonos com alienação fiduciária, uma coisa nova, que ninguém conhecia. Quando ele
não pagava três prestações; o que era comum, porque ele não tinha renda mensal; o
Bublitz e seus advogados iam a Sobradinho e tiravam o carro. Havia um advogado de
Santa Cruz, pai da Lia Luft, Dr. Germano, que subia seguidamente a Sobradinho para a
busca e apreensão de automóveis porque os donos estavam inadimplentes duas ou
três prestações. A colônia tinha uma boa safra, e o Valdemar Bublitz vendeu uns
quinhentos veículos usados para os colonos. O vendedor do carro usado vendeu
querendo roubar a prestação mensal. Contudo, o colono adquiriu o veículo pensando
em pagar com a próxima safra. Até se fosse possível à vista. Não estava na cabeça do
colono pagar prestações mensais. E o carro estava alienado fiduciariamente.
O negócio do colono em Sobradinho é feito em bolsas de soja. Isso é
fundamental. Se o Juiz não entender isso, é melhor pegar o chapéu e se mudar para
Porto Alegre que tem ambientação urbana. Essa era a ambientação rural. O Osvaldo
Peruffo, Juiz, cidadão honorário de Tenente Portela, Alegrete, Palmeira das Missões,
entendia sobre isso. E eu, como Juiz, na quinta ou sexta vez, não dei para o Dr.
Germano a busca e apreensão direta do automóvel do colono. Saía o mandado do Juiz,
o Oficial de Justiça ia com a Polícia, pegava o carro e levava embora.
Alienação fiduciária é isso: se não são pagas as prestações da máquina de lavar
roupa, do forno de microondas, essas coisas modernas que vieram depois, do
automóvel, a Justiça tira por meio do mandado de apreensão. Depois se vai discutir,
mas sem o bem, que é entregue. O bem fica alienado até que o proprietário pague a
última prestação e dá a baixa. Aí criei umas coisas novas por lá. Pensei: “Sou Juiz de
Sobradinho, adoro esta terra, os meus dois filhos nasceram aqui, fiz a casa do Juiz, e
eles não vão levar mais embora esses carros. Esses colonos são honestos e vão pagar,
só que vão demorar um pouco para pagar”. Comecei a despachar os processos no
sentido de que, primeiro, tinha que rescindir o contrato, mas o bem ficava na mão do
colono. O Dr. Germano ficou brabo comigo, recorreu para o Tribunal, houve decisões,
variadas discussões enormes sobre a lei. Começou-se a pegar as revistas de

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jurisprudência, e havia muitos casos de Sobradinho discutidos sobra a antiga reserva
de domínio e o Decreto-Lei nº 911, que estabeleceu no País, a alienação fiduciária.
Em Sobradinho ocorreu a grande transformação da antiga Associação Rural do
Pe. Walter Strack , que congregava os colonos minifundiários da caixa tipo Raiffeinsen
do Pe. Theodor Amistad de linha imperial de Nova Petrópolis. As duas leis do Fernando
Ferrari – Estatuto do Trabalhador Rural e Estatuto da Terra – de 1964/1965 estenderam
ao colono o Funrural e Assistência Previdenciária – Aposentadoria de meio salário
mínimo. Portanto, ao fim do mês entrava em Sobradinho um bom dinheiro com umas
cinco mil aposentadorias. Mais tarde atribuída à mulher colona... Transformaram a
antiga Associação Rural em Sindicato Patronal Rural, que ficou com uns dez sócios que
tinham mais terras que o módulo rural. Seriam os patrões, os grandes fazendeiros. Os
latifundiários. E se criou a coisa totalmente nova: Sindicato dos Trabalhadores Rurais
(nome errado) pois, agrupou e conjugou como sócios os pequenos proprietários rurais,
os colonos. E o verdadeiro trabalhador rural, o peão, – o empregado rural do colono –,
com interesses totalmente conflitantes não teve seu Sindicato próprio e se agrupou no
Sindicato dos Trabalhadores Rurais – antagônico – gerou grande conflito. A cidade foi
tomada pelos colonos liderados pelo médico de Arroio do Tigre, do PL, Dr. Nilton Beck
– veio o exército de Santa Cruz do Sul para prender. Expliquei. Voltaram. Suspendi o
“Sem Terra”.
MEMORIAL – O que o senhor estava propondo, na prática, era uma transição
cultural entre a reserva de domínio e a alienação fiduciária, porque o colono tem um
timing diferente do citadino?
ENTREVISTADO – Totalmente. Ele dava uma pequena entrada, porque o fumo
rendeu, e ele tinha o crédito na grande indústria de fumo, passava o crédito direto para
o Valdemar Bublitz (revendedor Chevrolet) e recebia o automóvel com a alienação
fiduciária. Na época, o colono não sabia o que estava fazendo. A prestação era mensal.
Mas o colono não tem salário mensal, só tem a renda anual da safra. Saí de
Sobradinho em 1969, fui promovido para Itaqui, e aí mudou tudo. Chego em Itaqui,
cidade da Fronteira, na barranca do Uruguai.
MEMORIAL – Outro tipo de criminalidade?
ENTREVISTADO – Completamente diferente, e outros casos cíveis também.
Cheguei a Itaqui no final de 1969, não havia televisão, não assistimos à Copa de 1970.
Em Sobradinho, eu jogava futebol como titular pelo Atlético. O Lio Cezar Schmitt era
Juiz em Candelária, e eu o substituí várias vezes. Joguei no Interior campeonatos
amadores pelo Atlético. Tínhamos uma combinação: dentro do campo, jogando bola, o
pessoal me chamava de Letti; terminado o jogo, era Dr. Letti. Em Arroio do Tigre, havia
o Fluminense e o Farroupilha, e eles gritavam: “Vai ali no doutor que ele é o furo do

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time”. Um fato interessante de que me lembro bem se passou num jogo do campeonato
amador.
O Atlético de Sobradinho jogou num domingo contra o Juventude de Candelária.
Eu era o half-direito. O ponta-esquerda do Juventude era um alemão grande, um pastor
protestante, de 1,90m de altura. O zagueiro central do meu time, o Barreiro, era de
minha confiança, se passava por mim, o Barreiro atacava, era ferreiro. Ele era um
italiano enorme. A bola saiu, o alemão correu, deram a bola por cima de mim, e o
alemão me bateu na corrida, chutou e quase fez gol. Eu me embolei com ele. Demorou
um pouco e, de novo, deram uma bola alta, passou por cima de mim, o alemão pegou
na esquerda, tive de dar um carrinho nele para tirar a bola, fomos ao chão, e, quando
ele levantou, pisou na minha mão. Gritei de dor e disse: “Barreiro, ele me pisou na
mão”. Ele disse: “Pode deixar para mim, que na volta eu pego ele”. A bola vinha só em
mim. Aos quinze minutos, o juiz me expulsou. Não havia alambrado, era parapeito. O
alemão passou por mim na corrida, ia fazer o gol, quando vim por trás, dei um carrinho
e me embolei com ele. Quando vi que o juiz vinha para o meu lado para me expulsar,
com o dedo em riste, não havia cartão na época, pulei o alambrado e fui para o
vestiário. Não dei aquele gostinho para o juiz.
MEMORIAL – Quer dizer que o senhor fugiu do juiz?
ENTREVISTADO – Pois é. O Promotor de Candelária era o Tael Selistre. O meu
Promotor, que era o técnico do time, era o Tupinambá Miguel Castro do Nascimento.
Foi ele quem me tirou do time. Perdi a posição no Atlético de Sobradinho para um guri
bom de bola que engraxava sapatos na rodoviária. Em Itaqui tudo mudou muito. Fiquei
lá quase três anos. Cheguei em 1969.
MEMORIAL – O senhor pegou as conseqüências do AI-5 em Itaqui.
ENTREVISTADO – O grande Juiz Adalberto Libório de Barros estava lá em
1964. Ele foi pressionado pelos militares que prenderam muita gente. Os militares
levaram os presos para o hangar do Aeroclube, ao lado do Primeiro Regimento de
Cavalaria, na saída para Uruguaiana. Colocaram 62 políticos do PTB, todos do Brizola,
inclusive o Haroldo Pífero Monteiro, o Luiz Alberto Rocha, que depois veio a ser
Promotor. Cito esse processo, porque houve uma dúvida de competência entre o AI 3 e
o AI 4 até chegar ao AI 5. No AI 2, a competência para julgar os crimes dos IPMs – os
Inquéritos Policiais-Militares - que as autoridades militares tinham aberto contra as
pessoas que eram de esquerda, era das Auditorias Militares do Exército. Seriam crimes
contra a segurança nacional, e a competência era da Justiça Militar.
Depois houve a decisão dizendo que esses delitos não eram crimes militares e
que a competência não era das Auditorias Militares. Os próprios Auditores Militares que
estudavam os casos entendiam que não havia crime militar e que, portanto, a
competência não era deles. Assim, eles mandavam o processo para a Justiça Comum

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Estadual. Então, quando cheguei a Itaqui, aconteceram dois fatos que me marcaram.
Primeiro, a Conceição Floriano, Escrivã do Fórum, disse-me: “Doutor, o senhor está
assumindo a Comarca e já vamos mudar o Fórum. Em cima de sua mesa, há uma carta
de ordem assinada pelo Des. Pedro Soares Muñoz despejando o Fórum”. O Decreto-
Lei nº 4 criou o Tribunal de Alçada, porque extinguiu a Lei nº 1.300, Lei do Inquilinato,
de Getúlio, e vai criar a denúncia vazia. O Decreto-Lei nº 4, do Castelo Branco, vai
gerar o grande despejo. Os aluguéis eram antigos, permanentes e estavam defasados.
Ficávamos dez anos pagando o mesmo aluguel.
Essa foi uma das primeiras reivindicações da elite que ganhou a Revolução de
Março de 64, e o Castelo Branco cedeu, editando o Decreto-Lei nº 4, que permitiu a
denúncia vazia. Foi uma forma de romper com todos aqueles contratos locatícios
antigos com base na Lei nº 1.300/50, de Getúlio Vargas. Houve um grande despejo no
Brasil. A Rua da Praia foi toda despejada. O proprietário do prédio do Fórum era o Sr.
Jaime Manoel, proprietário do Hotel Majestic, homem riquíssimo, fazendeiro. No dia em
que cheguei a Itaqui para a posse, um dia quente, recebi a notícia de que tinha de sair
do Fórum. O acórdão do Tribunal, cujo Relator era o Des. Pedro Soares Muñoz, dava
ganho de causa à família proprietária do prédio do Fórum com a denúncia vazia, porque
eles não queriam mais a locação. Não havia mais prorrogação automática de contrato,
mantido o preço do aluguel, com base na lei de Getúlio. Houve ruptura total disso com o
Decreto-Lei nº 4. Esse fato deu tanta questão de inquilinato e contrato de locação que
gerou a criação do Tribunal de Alçada. Eu afirmo isto: o Tribunal de Alçada foi criado
em cima da enxurrada de questões inquilinárias decorrentes do Decreto-Lei nº 4. Agora
o Tribunal de Alçada foi extinto. Na época, tive de cumprir o acórdão do Tribunal de
Justiça que decretava o fim do contrato de locação.
MEMORIAL – E o senhor chegou em Itaqui sendo um sem-teto, digamos assim?
ENTREVISTADO – Fui ao Prefeito, que era o Mário Lacroix Flores, Interventor
nomeado, já tinha passado a Revolução de 64, que cassou e prendeu o Prefeito Gil
Marques e o Vice-Prefeito Júlio Santiago e colocou de Interventor o Mário Flores,
suplente de Vereador da Arena. A Revolução extingue todos os partidos políticos e cria
dois partidos: a Arena e o MDB. A Arena era o partido do Governo, e o MDB, o partido
da oposição. Como não deu certo, depois vieram a Arena 1, a Arena 2 e a Arena 3, as
sublegendas - para acomodar as camadas -, o MDB 1, o MDB 2 e o MDB 3. Hoje,
temos trinta e dois partidos políticos. Tive então de cumprir a decisão do Tribunal. Não
podia ficar naquela casa. O Interventor foi muito bom, o Mário Flores ficou nove anos
como Prefeito, foi renovada a sua nomeação. Quando saí de lá ele continuou Prefeito.
Passamos a ocupar parte do prédio da aduana, da Receita Federal no Porto do
rio Uruguai, que fazia divisa com Alvear, a cidade de Corrientes, na Província de
Corrientes, Argentina. O prédio da aduana era grande, espaçoso. Falei com o chefe da

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Receita Federal. Em seguida os militares, muito amigos do Judiciário, nunca
prejudicaram os Juízes. Tinham ordens de ajudar e proteger o Juiz. Na semana
seguinte, saímos do Fórum, pegamos os processos e fomos para umas salas boas,
grandes, no prédio da Receita Federal no Porto e trabalhamos lá todo o tempo.
Adquirimos um terreno, onde foi construído o prédio do Fórum, onde está até hoje. Essa
saída provocou a reivindicação da comunidade, e o Presidente do Tribunal
imediatamente começou a construção do novo prédio do Fórum, que existe até hoje. Ao
mesmo tempo, fizemos um usucapião da família do senhor Koff, um argentino que ali
morava. Em Itaqui havia muitos argentinos fugidos do Peronismo, movimento
Justicialista absoluto. Quando cheguei a Itaqui, fervia na Argentina os montoneiros, o
que vai gerar as Madres de la Plaza de Mayo, a revolução. Em Montevidéu, havia os
tupamaros; na Argentina, os montoneiros.
Os dois movimentos guerrilheiros no Uruguai (Tupamaros) e Montoneros,
(Argentina) tiveram alguma influência na fronteira. O Brasil, de forma clandestina
ajudou, com soldados de elite e bem treinados, principalmente no Uruguai, com o
pessoal de CIA, liderados pelo famoso Dan Mitrione, americano especialista em prender
e matar Tupamaros. Isto eu fiquei sabendo depois, como Juiz de Rosário do Sul, em
conversa com militares que tinham problema no Fórum, ou de alimentos ou de outra
ordem. Era uma tropa de elite. Em represália, os Tupamaros, quando descobriram que
tinha soldado brasileiro metido nas tropas do Presidente que deu o golpe de Direita,
Juan Maria Bordaberry – então – se vingaram e deram um alerta, seqüestrando nosso
Cônsul Geral em Montevidéu – Aloísio Dias Gomide – em 3.7.1970. Foi um trauma.
Ficaram com o Gomide seqüestrado durante uns nove meses. Não adiantou apelos e
pedidos. O Flavio Alcaraz Gomes fez vários programas da Rádio Guaíba, como
enviado, diretamente de Montevidéo, procurando descobrir o esconderijo do nosso
Cônsul. A mulher dele fez uma campanha em todo o Brasil e arrumou duas malas de
pedido pelos Tuparamos com o que o Cônsul Gomide foi solto. Ele está vivo para
contar a história.
Em Itaqui havia fazendeiros antigos, ricos, que não aderiram ao Perón e fugiram.
Muita gente também estava ali fugida da revolução militar que derrubou Perón, no
Justicialismo dos anos de 1970. Inicia-se com o Videla e a ditadura militar Argentina,
dizem que há 30 mil desaparecidos, uma brutalidade contada pelo Flávio Tavares, pelo
Flávio Koutzi. Isso está aí para ser estudado. Eu vivi isso esses tempos. Em seguida ao
despejo do Fórum e sua mudança para o prédio da aduana, começou a construção do
outro Fórum, que não inaugurei, porque não deu tempo. Depois, fizemos usucapião do
terreno do Koffi para instalação da casa do Juiz e demos início à sua construção.
Também não cheguei a inaugurá-la. De Itaqui fui removido, a pedido, para Rosário,

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porque em Rosário, já havia asfalto, casa de Juiz e o meu pai estava muito mal em
Antônio Prado. Cheguei a Rosário em 1972.
MEMORIAL – O senhor mencionou ainda em Itaqui o episódio relacionado ao
IPM e a disputa de competência entre a Justiça Comum e a Justiça Militar Federal.
Esse tema é interessante, porque o AI 2 explicita que a competência dos crimes contra
a segurança nacional, de militares e também de civis, cabia à Justiça Federal Militar. E
o AI-5 ratifica esse aspecto?
ENTREVISTADO – No meio, tivemos o AI 3 e o AI 4. Entre o AI 2, do Castelo
Branco, e o AI 5, de dezembro de 1968, há um espaço de tempo. Nesse tempo, houve
os IPMs em Itaqui também. O meu Promotor chamava-se Nilly Burger. O Auditor Militar
deu-se por incompetente. Isso nesse interregno entre o AI 3, o AI 4 e o AI-5, que é
marco divisório. Depois, fixa-se a competência do militar, e acaba com a festa. Os
advogados também queriam que seus clientes fossem julgados pelos Juízes de Direito,
com plenitude democrática. Então, eu tinha em cima da mesa estes dois problemas: o
despejo do Fórum pelo Tribunal (Decreto-Lei nº 4) e o IPM muito grande, feito contra 62
pessoas que tinham sido presas e ficaram 65 dias no antigo hangar do Aeroclube ao
lado do Primeiro Regimento de Cavalaria de Itaqui. O Auditor Militar deu-se por
incompetente, entendendo que aquela gente não teria cometido crime militar ou contra
a segurança nacional e que, portanto, a competência era da Justiça Comum, e remeteu
o processo para o Fórum de Itaqui.
MEMORIAL – Mesmo depois do AI 2?
ENTREVISTADO – Mesmo depois do AI-2.
MEMORIAL – Baseado em quê?
ENTREVISTADO – Porque ele entendeu que não havia crime militar nem crime
contra a segurança nacional. A Revolução acabou aposentando alguns auditores.
Falar a respeito disto é fácil. Naquele momento, era difícil julgar um processo
daquele tamanho. Eram 62 pessoas presas, começando pelo Prefeito cassado e seu
Vice-Prefeito, todos ilustres cidadãos de Itaqui, gente que víamos na rua e que foi presa
e torturada. Havia muita pressão. Em Itaqui, o Cel. Caetano era o Comandante do
Regimento. Ele era janguista, de confiança do Jango. Depois de 31 de março de 1964,
quando viu que o Estado-Maior estava do lado da Revolução, ficou contra o Jango.
Oficializou e chancelou as prisões dessas pessoas, que eram buscadas de madrugada
em casa, de pijama e levadas para o hangar do Aeroclube.
MEMORIAL – Sendo janguista, inclusive, deve ter ajudado a denunciar e a
entregar.
ENTREVISTADO – Evidente. Houve um fato muito importante: em Itaqui, houve
o Comando Civil da Revolução, de que faziam parte, três integrantes da UDN. Esses
três líderes foram designados para o Comando e se arvoraram de senhores da

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verdade. O Cel. Caetano sucumbiu a eles, que indicavam as pessoas de Esquerda.
Então, o Cel. Caetano saía de noite num jipe, cheio de soldados com os mosquetões, e
prendia quem o Comando Civil da Revolução indicava.
MEMORIAL – O senhor está trazendo um dado muito importante.
ENTREVISTADO – Esses três tinham idéias que na época eram até defensáveis.
Viver o momento é muito difícil; fácil é falar depois. Não estou criticando o Comando
Civil da Revolução, mas talvez o Cel. Caetano, como militar, não tivesse feito nada se
não tivesse sofrido as pressões quase diárias que sofreu. Os membros deste Comando,
os líderes da então Frente Democrática se arvoravam naquele momento de senhores
da verdade e de Itaqui, buscando no Coronel a força militar para prender os brizolistas e
comunistas para “limpar a área”. O Cel. Caetano, depois, não sei se devido ao AI 5, foi
reformado. A própria Revolução o apanhou. O Cel. Caetano, no início, era totalmente
janguista, mas aderiu ao seu Estado-Maior quando viu que os Capitães, os Majores
estavam todos já sublevados e ele estava sozinho.
Então, ele perdeu a confiança. Não sei quando, mas não muito depois, li no
jornal: “Cel. Caetano reformado”. Ele foi uma figura importante na Revolução de Março.
Se vocês entrevistarem o Dr. Adalberto Libório Barros sobre isso que estou dizendo,
ele, que era Juiz de Direito quando aconteceu esse fato em Itaqui, vai dizer que sofreu
muita pressão. O Cel. Caetano mandou prender essa gente toda pressionado pelos
chefes civis da Revolução, que eram pessoas da cidade. Todo mundo se conhecia, mas
houve a fratura total e absoluta, só não houve guerra civil, derramamento de sangue,
graças a Deus.
O Dr. Adalberto Libório estava trabalhando no Fórum quando entrou o Major
Subcomandante do Quartel, a mando do Cel. Caetano, e disse: “Doutor, o meu Auditor
Militar pede que o senhor chancele as prisões”. Ele pediu para o Juiz legalizar aquelas
prisões preventivas que haviam sido feitas no IPM. O Adalberto Libório Barros; que era
um homem calmo, tranqüilo, falava pouco; disse: “O senhor ponha-se para fora daqui!”
Uma grande atitude de Adalberto Libório Barros. “O senhor se perfile e bata
continência. Eu sou o Juiz da Comarca. O senhor tem de me respeitar, e o seu Exército
está aí para me defender.” O Major posicionou-se e disse: “Não, doutor, eu não vim lhe
ofender”. “O senhor não está me ofendendo. Chame o seu Coronel. Eu não vou assinar
isso aí.” Deu a maior aula de Direito em cima do fato. Veja que Juiz bem formado o
Adalberto Libório Barros!
MEMORIAL – Isso no primeiro momento da Revolução.
ENTREVISTADO – Em cima do lance. Estavam as pessoas presas lá, em 1964.
Eles estavam prendendo gente e levando para o hangar do aeroclube.
MEMORIAL – Onde está esse inquérito? Ele existe ainda guardado em algum
lugar?

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ENTREVISTADO – Deve existir. É um processo enorme. O iniciante está na
Auditoria Militar, foi julgado pelos militares, porque eles tiraram a minha competência.
MEMORIAL – Aí houve o quê? Uma avocatória?
ENTREVISTADO – Aí, veio o AI 5 e acabou com esse jogo, digamos, essa crise
de competência que começou com os Auditores Militares. Os Auditores Militares, à luz
dos casos concretos - nem todos evidentemente -mas neste sim, disseram no
despacho: “Não há crime militar, não há crime contra a segurança nacional. Não sou
competente para julgar este processo. Mando para o Juiz de Direito da Comarca de
Itaqui”. E mandaram para mim. Cheguei lá, e estava aquela bomba em cima da mesa.
Mandei para o Burguer, o Promotor: “Ouça-se o Promotor”. A primeira coisa a ser feita
era ratificar a denúncia. Sabe o que o Burguer fez? Pediu o arquivamento: “Peço o
arquivamento”. Então, o processo foi para a minha mesa para mandar arquivar e jogá-lo
as calendas gregas, mas havia a pressão, o rumor ainda dos chefes civis da Revolução,
que queriam que aquilo andasse.
MEMORIAL – Queriam que aquelas pessoas efetivamente fossem condenadas e
presas.
ENTREVISTADO – O Gil Marques e Dr. Haroldo Pífero Monteiro, o Luiz Alberto
Rocha, o Darci, toda a elite do velho PTB.
MEMORIAL – O Promotor quis acalmar a coisa.
ENTREVISTADO – O Promotor pediu o arquivamento: “Peço o arquivamento.
Não há crime a investigar”. O Promotor pode pedir o arquivamento. Ficou em cima da
minha mesa aquele problema para que eu pudesse estudar. Eu passava madrugadas
lendo aquilo, ouvia as pessoas, para me inteirar da situação. A cidade estava fraturada,
porque foi muita traumática essa situação. Ficaram 63 dias presos, não podiam ser
visitados, os familiares ficavam na cerca de arame, vendo e abanando, os pais, os
filhos... Aí, quando alguém precisava fazer suas necessidades fisiológicas, o soldadinho
o acompanhava até o WC de campanha e ficava na sua frente de espingarda em
punho. Felizmente, não chegaram a fatos mais graves. Houve a prisão evidentemente.
Eu estava presente nesse momento de indecisão, onde não sabia se deveria
julgar ou não julgar, quando veio o AI 5. Nesse momento a fermentação era muito
grande, estavam pipocando inquéritos por todo o País. Estou contando o caso de Itaqui,
que era muito grave para a sociedade de lá, porque envolvia 62 pessoas, médicos,
advogados, Prefeito, Vice-Prefeito, Secretário, a elite que apoiava Brizola. Eu trazia
toda essa ambiência do meu tempo de estudante, do Brizola, da Legalidade, como já
falei, e fiquei estupefato, porque, realmente, essa gente não tinha feito nada. Que
crimes tinham cometido? Por ser do Brizola? Por ser do PTB? Eles estavam
trabalhando! Eram pessoas simples! Eles eram acusados de subversão, e havia uma
ala militar que estava em cima disso e queria que eles fossem para a cadeia, queria

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exilá-los, degredá-los. Veio então o AI 5 e acabou com isso. Todos os processos,
inclusive o meu, que estavam tramitando na Justiça Comum acabaram e foram para a
Justiça Militar, que os julgou. Nós da Justiça Estadual talvez tenhamos julgado dois ou
três no máximo ou nenhum.
Das 62 pessoas do PTB – presas em Itaqui – nenhuma era participante dos
“Grupos de Onze”. Havia pressão no sentido que os próceres do PTB - da cidade - da
elite – apoiavam e incentivavam a formação dos “Grupos de Onze”. Nunca acreditei.
Não havia prova. Os “Grupos de Onze” eram formados pelo Brizola no meio rural e
eram compostos por gente simples, rude, a peonada. Em Itaqui fui Presidente da
Comissão Pró-Instalação da Televisão. Fizemos de tudo e não adiantou. Não pegamos
a Copa do Mundo do México de 1970 – Brasil Tri-Campeão. Foi um trabalho grande.
Um instalou antena rômbica. O Firmino Fernandes Lima Neto levantou uma torre de
som. O Dom Raimundo, na Estância das Três Figueiras também conseguiu ver nada.
De repente encontramos, nesses torvelinhos jurídicos, nesses atropelos
revolucionários, uma pessoa inteligente, um Juiz Militar que sabe e diz: “Aqui comigo
não!” Foi o que aconteceu com os Auditores Militares. Os IPMs feitos ao sabor das
circunstâncias, às vezes por ordem superior, na ponta da baioneta, iam ao Auditor, que
dizia: “Não tenho nada a ver com isso. Sou estável na função. A mim não pegam”.
Sei que, depois, a Revolução aposentou alguns Auditores. Até hoje é normal
surgirem dúvidas de competência entre a Justiça Militar e a Justiça Comum quando, por
exemplo, um brigadiano comete um crime. No caso do IPM de Itaqui o Dr. Auditor
Militar descobriu crime militar nem crime contra a segurança nacional nem subversão e
remeteu os autos à Comarca de Itaqui para que o Juiz de Direito julgasse. Então, em
Itaqui, marcaram-me essas duas coisas, mas deixei lá definido o terreno e dei início à
construção da casa do Juiz e do Fórum, que não terminei porque não deu tempo.
Cheguei a Rosário do Sul, por remoção, e fui morar em frente a Swift, empresa
que tinha quatro mil funcionários e hoje está fechada. Fiquei lá quase três anos. Em
Rosário, também reformei a casa do Juiz. Tiramos o Fórum do velho prédio e fomos
para o Engenho São José, da família Jardim, ao mesmo tempo em que demos início à
construção do novo Fórum, que até hoje está lá. Rosário era uma cidade diferente, com
muito trabalho na época por causa das vilas do BNH, que eram muito bem feitas. Mas
também ficou marcada pela Revolução de Março de 64.
Quando cheguei lá, já se tinham acomodado os grupos divergentes, porque o
Prefeito do PTB, Antônio Visintaimer, tinha sido cassado com todos os seus
correligionários. Havia um advogado em Rosário, que era o Presidente da OAB,
Rubens Clair Vianna, que também tinha sido cassado e preso. Artigas Castilhos Pignau
tinha sido Juiz de Direito. Depois ele pediu demissão. Em Rosário, eu me dediquei mais
ao trabalho, tinha muito serviço no Fórum. Acompanhei o auge do Frigorífico Swift.

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Quando eu saí de lá, houve o fechamento da Swift, a decadência da ferrovia. Há pouco,
voltamos a Rosário e, infelizmente, constatamos que a ferrovia está acabada, a
Ferroviária fechada, a Swift fechada, não há mais emprego para ninguém. Senti
vontade de chorar por Rosário.
MEMORIAL – Qual a característica da atividade forense em Rosário?
ENTREVISTADO – Muitas questões cíveis. Não havia muito crime. Rosário era
uma cidade assentada na sua estrutura agrária, nas suas fazendas. A cidade havia
crescido muito, mas tinha emprego. A Swift empregava três mil e quinhentas pessoas.
Em função disso, foram construídas as melhores vilas do BNH. Havia seis vilas da
COHAB. A coisa mais linda!O Prefeito era fantástico. No meu tempo de Juiz, o Prefeito
era o Jairo de Agostini, um sujeito de visão, um estadista. Eu o chamava de Jucelino
Kubitschek. É claro que a cidade estava marcada pela Revolução ainda, mas ele era
superior a isso. Em Rosário, foram dois anos e meio de trabalho forense mesmo.
O “Tolerância Zero” de New York, que dizem se deve ao Prefeito Rudolf Giulianni
não é bem verdade. Antes há o pleno emprego na grande cidade. O Presidente Bill
Clinton aplicou soma enorme de recursos. Tanto que reside em New York e sua esposa
Hillary é Senadora pelo Estado de New York.
Em Rosário, aconteceu um fenômeno: o Fórum estava muito velho, a CORSAN
começou a abrir grandes valos, e, numa chuvarada, o prédio quase caiu. Fomos para o
Engenho São José, da família Jardim de Guaíba, um prédio bom, na Av. Mário Souto,
onde nós passamos a trabalhar e demos início à construção do Fórum. Em Rosário,
preocupei-me muito em manter o serviço forense em dia. Fazia a audiência e dava a
sentença. Então, recolhia-me em meu gabinete e o máximo que eu fazia era ir na Swift,
onde o gerente Clóvis Correa me mostrava o abate de oitocentos bois por dia. Uma
coisa fantástica!
E tudo virava carne pronta para exportação. Isso tudo acabou. E Rosário morreu
por causa disso. Peguei Rosário com pleno emprego, com vilas boas de residências,
não havia favela, não havia pobres. Vivia-se uma atividade sadia. O Prefeito, com o seu
dinamismo, arrumando estradas, fazendo escolas. Rosário tinha escola de balé, de
música. Aquela grande massa de trabalhadores, sete, oito mil pessoas recebendo o seu
salário. Sabe o que isso significa? Um advogado me chamou a atenção: “Doutor, aqui
nós vamos ter de trabalhar, porque, com toda essa gente, vamos ter que fazer
usucapião, escritura da terra, fazer inventário”. Em Rosário, aprendi a ser profissional.
O máximo que eu fazia era ir na Swift, porque gostava muito de ver aquele trabalho.
Havia turnos de manhã, de tarde, de noite. Na entressafra, os colonos plantavam
ervilha e, aproveitando as caldeiras, produziam a famosa ervilha “Coração de
Manteiga”. Então, havia pleno emprego. E o Juiz tinha de trabalhar, tinha de dar
resposta à sociedade daquilo que estava ali, porque a farmácia estava andando, a loja

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estava andando, a indústria estava andando, o ônibus melhorando, e vinha tudo para o
Fórum.
Se o Juiz trabalha, os advogados começam a ajuizar, não fica nada no escritório.
Um Juiz que trabalha chama serviço, um Juiz que não trabalha afasta serviço. Como
em Rosário tinha pleno emprego, estou falando em Rosário do Sul de 1972, 1973, a
sociedade caminhando... O Juiz tinha de estar pronto, disposto para dar a resposta,
trabalhar, fazer audiências, dar sentenças. É o que o Juiz tem de fazer. Se sobrar um
tempo, vai ao Lyons ou Rotary e vai para casa trabalhar. Não é verdade? Esse é o
tema. Lógico, há Juízes que produzem mais, outros menos, mas, em Rosário, aprendi a
ser um Juiz profissional.
MEMORIAL – O Lyons e o Rotary têm um papel importante, sobretudo no Interior
do Estado, na medida em que eles ajudam a superar a divisão política entre os partidos,
reunindo especialmente os Magistrados, os profissionais liberais e fazendo uma costura
no sentido de superar a cizânia política. O senhor concorda com essa visão?
ENTREVISTADO – Concordo. Apóio totalmente esses clubes de serviço. Nunca
fui do Lyons ou do Rotary até para manter a minha independência, mas sempre fui
convidado e participei de reuniões do Rotary em Itaqui, participei do Lyons em Rosário.
Convidavam-me, eu discursava, todos os meus amigos estavam lá. No Lyons, havia
pessoas a favor e contra a Revolução, mas ali se procurava a paz na família rio-
grandense. É verdade, eles ajudavam o Juiz, ajudavam no setor de menores
abandonados, por exemplo, com campanhas. É uma bela atividade.
De Rosário fui promovido para Vacaria, onde fiquei quase sete anos. Lá construí
a segunda casa do Juiz no loteamento de Firmino Camargo Branco e o Fórum. O último
ato que o Pedro Soares Muñoz praticou como Desembargador do Rio Grande do Sul,
antes de assumir como Ministro, foi no dia 27 de fevereiro de 1976. Tenho as fotos
daquele dia inesquecível. Ele recebeu o convite, mas não queria ir. Então, fui falar com
a D. América, sua esposa, no Edifício Esplanada, onde ela ainda mora. O Sinval
Guazzelli, amigo meu, era o Governador. Eu falei a ele: “Vamos fazer o Fórum”. O
Sinval concordou e desviou a verba do Fórum de Rio Grande. Penso que o Chefe do
Poder Executivo tem esse poder, tem essa competência, nomeia, demite, pode destinar
uma verba para construir o Fórum da sua terra, Vacaria. Construímos uma maravilha de
Fórum.
No dia 27 de fevereiro de 1976, fizemos uma homenagem a Pedro Soares
Muñoz. Levamos o Des. Muñoz, já indicado para Ministro do Supremo, para cortar a
fita. Fizemos um churrasco para ele, que era um homem muito emotivo, embora fosse
autoritário e enérgico. Era uma figura sábia, um gênio, sabia tudo de Direito. Ele vivia
estudando, não viajava. Acho que foi o Sinval que o convenceu a ir. O Fórum ficou com
1.700 metros quadrados. Então, ele levou o Pedro Soares Muñoz, que, no dia 27 de

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fevereiro de 1976, inaugurou o Fórum. Passamos o dia inteiro de festa, começamos de
manhã e terminamos à noite. Movimentamos toda a cidade.
Vacaria marcou-me muito. Os meus filhos cresceram lá, estudaram no Colégio
Marista. Lá, eles queriam que eu lecionasse. Lecionei em Sobradinho e Itaqui. Cheguei
a Vacaria, – ali já era a 3ª entrância –, com 33 anos de idade. Então pensei: “Não vou
lecionar mais. Vou concentrar-me no trabalho”. Precisava me dedicar também à
construção do Fórum e da segunda casa do Juiz. O outro Juiz era o hoje Des. Antônio
Carlos Stangler Pereira. Participei da primeira eleição de Jarbas Lima em 1974. O
Sinval não era mais candidato, o Getúlio Marcantônio não era mais candidato, abriu a
vaga e veio aquele furacão, que era o Jarbas Lima.
MEMORIAL – Ele era advogado.
ENTREVISTADO – Sim, era meu vizinho. Fui o incentivador do Jarbas Lima,
grande orador, grande figura. Lamentável que, com quarenta mil votos, não tenha sido
reeleito Deputado Federal. A origem dele era o Partido Libertador. Em Vacaria, fiquei
até início de 1977. Vacaria foi importante para mim, porque, de novo, fui um profissional
naquela Comarca, tinha muito serviço e de toda ordem. O Prefeito Marcos Palombini
reelegeu-se três vezes. Agora, é o Subsecretário da Agricultura. Lá aconteceu um
fenômeno: acompanhei a introdução da maçã e a revolução econômica que ela
produziu. Quando eu ia substituir em Bom Jesus, que fica a 68 quilômetros de Vacaria,
passava por uma estrada de campo, com cercas velhas. Hoje, essa estrada é um
jardim, cheia de maçãs, e isso se deve ao Prefeito Marcos. Ele trouxe os franceses da
Argélia.
Quando teve início a revolução de independência da Argélia, muitas famílias de
franceses que plantavam frutas para abastecer a França vieram para Vacaria, trazendo
uma experiência de 300 anos. O Marcos teve essa felicidade incrível de trazer o
agricultor europeu que se tinha fixado na Argélia, que tinha amor ao trabalho na terra,
conhecimento e experiência. Para trabalhar na terra, tem de ter vocação. Ele trouxe
essa gente para o plantio da maçã industrial, o plantio da “maçã gala”, a “maçã fugi”.
Participei do primeiro churrasco que ele fez com os franceses que vieram da Argélia.
Eram argelinos, porém franceses, porque não perdem a cidadania.
MEMORIAL – A Argélia teve uma violenta guerra de libertação.
ENTREVISTADO – Então eles vieram para cá. Eram argelinos da terceira
geração de franceses. Eles ficaram impressionados comigo, porque sou segunda
geração de italianos e me sinto brasileiro. Eles jamais se sentiram argelinos, sempre
foram franceses, jamais se sentiram muçulmanos. Deixaram tudo: plantações, casas,
dinheiro, tudo... De noite, correndo... Vacaria marcou-me por uma série de fatos
políticos, profissionais e pessoais. Quando assumi, o Bispo era o Dom Henrique Gelain,
que era o pároco em Antônio Prado quando nasci e que me batizou. Um dia, houve um

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Rodeio Crioulo. Vocês não fazem idéia do que seja um Rodeio Crioulo. Os guris de
Porto Alegre botam a barraca com som de mil megawatts de rock and roll para estragar
a música gauchesca. Botaram dez mil barracas no Parque de Ferradura, e a minha
casa foi escalada para hospedar, – não havia hotel –, os dois ginetes que vinham do
Texas para competir.
Os nossos ginetes dão de dez a zero neles. O irmão do Raimundo Faoro, que
morreu, da Academia Brasileira de Letras, que é de lá, pegava o touro à unha e torcia o
pescoço dele. Eu vi com os meus olhos, sem laço, sem nada, a cavalo, o touro solto.
Dominava o touro e jogava no chão, como fazem os caubóis americanos, no braço.
Minha casa foi escalada para hospedar os dois ginetes que vieram. Eles não sabiam
nada, vieram não sei de onde, eram urbanos, sabiam andar a cavalo um pouco e
perderam para os vacarianos. Em Vacaria, eles têm, durante todo o ano, todas as
capelas e todas as filiais do CTG, ternos de laço. Todo sábado e domingo há festa e
eles treinam muito. São todos exímios ginetes, como em Barretos, São Paulo. Em
Vacaria, mantive o serviço em dia, nunca trabalhei tanto como Juiz, porque pegou essa
revolução da maçã, que acabou com aquela cidade pequena, campeira, onde o gado
andava pastando e o fazendeiro esperando o gado. Hoje, o gado, em Vacaria, é o
quarto, quinto produto; o primeiro é a maçã. Já estamos falando de 73, 74, 75, 76, 77.
MEMORIAL – Esse foi o período do Governo Peracchi Barcelos e do Governo
Triches. Foi um período de compressão dos salários do Magistrado. Como era a infra-
estrutura de que o Magistrado dispunha para trabalhar? Já falamos da construção dos
Fóruns, etc., mas havia esse problema salarial também. Como o Juiz sentia isso?
ENTREVISTADO – O meu salário de Juiz nunca atrasou. Desde que entrei como
Pretor em Não-Me-Toque, em 1965, sempre recebi o meu salário em dia. Como sou de
origem humilde, sempre achei o meu salário satisfatório. Tudo o que tenho, porque não
recebi herança e casei com uma mulher pobre também, veio do salário: a minha casa
da praia, a instrução dos meus três filhos. Dois deles são comandantes da Varig,
instrução cara, e a mais velha é arquiteta.
Cheguei a Porto Alegre em 1978. Tive uma rápida passagem por Canoas para
substituir o Fábio Koff, porque ele tinha ido para o Grêmio como Vice-Presidente do
Hélio Dourado. Eu era amigo do Fábio e fui substituí-lo na 1ª Vara Criminal. Eu não
acho que durante a época militar tenha havido uma redução de salários. Eram
reivindicações normais da classe. Há Juízes que, se receberem dez, gastam vinte.
Então, não dá. Acho que o Juiz tem que se assumir como classe média e ficar dentro
de seus padrões, se não vamos ficar como a Argentina. Aprendi isso em Itaqui. O oficial
do Exército argentino era a elite da elite. A maior autoridade de Alvear era um Capitão
de Cavalaria de Buenos Aires, que estava desgarrado, degredado, exilado em Alvear.
Corrientes, para o portenho, não é Argentina, aquela província é uma tragédia.

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Correntino, para o buenairense, não existe. Então, coitado daquele rapaz, que,
acostumado em Buenos Aires a ouvir tango, tomar o seu vinho, freqüentar as famosas
cafeterias, foi servir em Alvear. É inconcebível, é um castigo dos deuses! Ele era um
tipo enfático e tinha um sonho: trabalhar de segunda a sexta em Alvear, cumprir o seu
dever, pegar o trem, se não tivesse avião, e percorrer mil e duzentos quilômetros até
Buenos Aires, onde passava o fim-de-semana.
Então, eu sempre digo para meus colegas, que para nossa sorte os militares que
assumiram a partir de 1964 eram pobres, viviam de salário E o grosso do Exército
brasileiro é do povo. Então, o capitão quer comprar o seu apartamento em
Copacabana, na Barra da Tijuca, ao passo que, na Argentina, o oficial argentino era a
elite da elite. Abaixo estavam os subtenentes, os sargentos. As aspirações do Juiz não
são tantas. O salário sempre deu para viver. Quanto à compressão salarial, houve um
fato quando o Peracchi assumiu. Ele foi Deputado, depois veio a Revolução de Março
de 64, que prorrogou o mandato do Meneguetti por mais um ano, que era o Governador
eleito. O primeiro Governador nomeado foi o Peracchi. Ele foi um bom homem, era o
chefe da Brigada Militar, um líder político nato, um grande orador. Conheci o Peracchi.
A Brigada, à qual ele era muito dedicado, guardo a melhor recordação dele,
como a Fundação Peracchi Barcelos. Contam no Judiciário que o Des. Balthazar Gama
Barbosa, que era o Presidente, foi ao gabinete do Peracchi pedir um aumento para os
Juízes. Balthazar Gama Barbosa era um sacerdote, um Juiz vinte e quatro horas por
dia, como o Púperi, só sabia ser Juiz. E ele entrou pela primeira vez nesse rolo, nessa
confusão de político. O Peracchi prometeu para ele que ia dar um aumento para os
Juízes. Era a primeira reivindicação pós-Revolução. O Balthazar mandou ofício para os
Juízes todos, dizendo que ia ter aumento. Quando chegou lá, o Peracchi vetou, disse
que não dava, que não tinha dinheiro. Conta-se à boca pequena que o Balthazar,
aquele homem de comunhão diária, aquele homem puro, pela primeira vez entrando
nessa luta dos políticos, dos entreveros, teve um infarto que o vai levar à morte.
Respondendo à tua pergunta sobre a compressão salarial, lembro desse fato concreto
logo após a Revolução.
MEMORIAL – Há um outro episódio. No final do Governo Peracchi, um pouco
antes de o Triches assumir, o Dr. Peri Condessa renuncia à Procuradoria-Geral também
em função do problema salarial.
ENTREVISTADO – Meu amigo, o Peri Rodrigues Condessa. Faleceu faz pouco.
Ele pegou a Procuradoria aqui na Riachuelo. Quem mudou a Procuradoria lá para o
prédio do IPE foi o Lauro Guimarães. Prosseguindo, de Vacaria passei por Canoas,
onde fiquei por pouco tempo substituindo Fábio Koff na 1ª Vara Crime. Havia muito Júri
para fazer em Canoas. Inclusive, o Júri do caso “Cabeça Cortada” fui eu que fiz.
MEMORIAL – Conte-nos sobre esse processo, que foi famoso.

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ENTREVISTADO – O Bonorino Butelli era o Presidente e fanático pelo Colorado,
Presidente do Conselho, enquanto o Fábio era fanático pelo Grêmio. Eles eram íntimos
amigos. O Fábio foi falar com ele, que disse que ele tinha de assumir a Vice-
Presidência do Grêmio com o Hélio Dourado. O Bonorino sugeriu: “Por que tu não te
aposentas?” Mas ele não tinha tempo para se aposentar. O Fábio Koff me ligou e disse:
“Estou assumindo a Vice-Presidência do Grêmio com o Hélio Dourado. Vamos
interromper a série do octa. É o time do Telê Santana”. Era 1977, e o Inter ia ser
campeão, time do Figueroa, que foi octacampeão com Marinho, Manga, Figueroa, etc.
Esse time do Grêmio, do Telê Santana, do Fábio Koff e do Hélio Dourado, de
1977, com Ladinho, Eurico, Oberdan, etc., interrompe a série. O Fábio foi para o
Grêmio, e eu vim para Canoas assumir a 1ª Vara. Isso foi em março de 1977. Fiquei lá
seis, sete meses trabalhando os processos do Fábio. Havia muito serviço em Canoas.
O Fórum era velho, ao lado da Prefeitura, atrás do avião. Havia duas passarelas. Esse
caso das “Cabeças Cortadas” envolvia dois marginais. Acho que havia um pouco de
homossexualismo entre eles, não sei, não há testemunhas, mas vou dar a versão do
rapaz que sobreviveu. Ele tinha uma borracharia. Um deles - o que vai morrer - era
assaltante. Eles praticavam assaltos sábados e domingos. O da borracharia, convidado
a fazer três assaltos na Vila Matias Velho, disse que não ia. O cara insistiu, beberam
umas cachaças na borracharia. O Promotor do caso foi o hoje falecido Dr. José Fidalgo
Filho, e o Defensor Dativo que nomeei foi o Roberto Vargas, filho de um Escrivão aqui
de Vila Niterói. Brigaram esses dois rapazes e se desafiaram: “Já que tu não queres
mais assaltar comigo, vamos lá embaixo, na Matias Velho. Eu pego esta faca, tu pegas
aquela. Se eu te matar, corto a tua cabeça e boto na passarela. Se tu me matares, tu
cortas a minha cabeça e botas em cima do avião”. Essa foi a combinação dos
marginais, psicopatas completos. Afinal um abateu o outro. Precisa ver ele descrevendo
no Júri como degolou o outro! O perito explicou que para cortar a cervical é muito difícil;
à faca, ele não conseguiria. Ele virou o cara de bruços, botou os dois joelhos sobre os
ombros da vítima no chão, pegou-a pelos cabelos, sacudiu e tirou a sua cabeça.
Embrulhou a cabeça numas folhas de jornal, veio até a rua, chamou um táxi, entrou na
frente e botou a cabeça nos pés, foi até a casa dele, jantou.
De madrugada, como não sabia o que fazer com a cabeça, passou pela
passarela e, como não havia ninguém, largou a cabeça ali de frente para Porto Alegre.
De manhã, um policial encontrou a cabeça quando atravessava a passarela para
chegar ao Quartel da Brigada, que ficava do outro lado. Ele levou um susto enorme e
confirmou que a cabeça estava voltada para Porto Alegre. O réu não falava na Polícia
nem em juízo. No Júri, esse rapaz resolveu falar com uma frieza impressionante. Da
experiência como Juiz, nunca vi um psicopata tão perigoso como esse. Em nenhum
momento, esboçou alguma emoção, não teve modulação afetiva nenhuma.

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Ele narrou aquilo de forma linear, como se nada tivesse ocorrido. Para mim, era
um psicopata. No Júri aconteceu um fato interessante. Esse rapaz não falou na Polícia
nem no interrogatório em juízo. O Júri ocorreu na Câmara de Vereadores e pelas três
horas da tarde. Começou o interrogatório. Não fumo, mas eu tinha um cigarro, que
ofertei a ele. Eu olhava para ele, ele olhava para mim. Pedi que tirassem suas algemas
e permiti que fumasse. Expliquei a ele o que era um Júri e como funcionava. Mostrei a
ele os jurados, o Promotor, o Defensor. Disse a ele que tudo o que ele dissesse a mim
teria de ser dito aos sete jurados também. A sorte é que ele teve uma empatia comigo.
Isso foi comentado depois, porque, na hora, eu não me dei conta, eu estava
preocupado em dar um nocaute nele, pois ia ser um desastre se ele não falasse.
Chovia muito forte. Ele foi aos poucos contando a sua versão. Eles condenaram, mas
desclassificaram o crime para homicídio simples. Fixei a pena em nove anos de cadeia.
O crime foi comum. A degola é que foi incomum, mas, quando ele degolou, a vítima já
estava morta, abatida por treze facadas. Isso foi provado cientificamente pelo laudo de
necropsia. Então, ele cometeu um outro delito, que é o de outro artigo do Código Penal
(vilipêndio a cadáver). Não se pode vilipendiar um cadáver. O morto tem de ter um
enterro digno. Tanto é assim que, na guerra, param, enterram os mortos, e continua a
luta. Então, pelo vilipêndio a cadáver, dei dois anos. No Presídio de Charqueadas, ele
foi morto vinte dias depois. A família dele veio falar comigo. A mãe dizia que tínhamos
matado o seu filho, que não podia ter sido mandado para Charqueadas, que eles
sabiam que ele ia ser morto. Mas em Canoas não havia presídio, e o Central era pior
ainda.
MEMORIAL – O que houve em Charqueadas, briga de presos?
ENTREVISTADO – Uns dizem que ele se enforcou, outros que foi enforcado.
Acho que ele foi morto, fecharam o círculo em torno dele e o mataram, mas nunca
descobriram quem foi. Esses dias os estudantes da Ulbra queriam pegar este processo
para fazer um teatro, uma reprodução.
MEMORIAL – Vamos pedir que este processo venha para cá. Como era o nome
todo do réu?
ENTREVISTADO – Não me lembro. Fui o Juiz do processo, o Promotor foi o
José Hidalgo Filho, e o Defensor foi o Roberto Vargas. É o famoso crime da cabeça na
passarela. Deve alguém antigo de Canoas lembrar-se disso, deve estar no arquivo. As
fotos eram impressionantes. Ele foi em casa, jantou com aquela cabeça embrulhada.
Era um sábado. Domingo de manhã, às 5h30min, ele não sabia o que fazer com a
cabeça e, em vez de enterrá-la, botou em cima da passarela, pois disse que queria
cumprir o acordo que tinham feito: “Se ele tivesse me degolado, a minha cabeça estaria
em cima do avião”. (Gloster-Meteor)
MEMORIAL – Depois o senhor sai de Canoas?

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ENTREVISTADO – Fiquei na 5ª Vara Criminal, 1ª Vara Criminal, mas me fixei na
12ª Vara Criminal, porque criaram mais sete Varas Criminais, que funcionaram aqui.
Depois, vieram os Fóruns distritais. Para o prédio da Secretaria da Fazenda na Siqueira
Campos foram só as Varas Cíveis. O Fórum foi lá para baixo, mas só o Cível; o Crime
nunca foi. Mais tarde, o Des. Tedesco instalou as Varas Criminais no prédio onde
funcionou o Alçada, aqui em frente. Terminou o meu tempo de Juiz de 4ª entrância em
1985. Fui promovido para o Tribunal de Alçada junto com muitos colegas, como o
Mangabeira, Talai Selistre, Élvio Schuch Pinto. Fiquei cinco anos no Alçada e fui
promovido em 1990 para Desembargador. Fiquei até outubro de 1992, quando me
aposentei e voltei a advogar.
MEMORIAL – O senhor atuou no Tribunal de Justiça junto a quais Câmaras?
ENTREVISTADO – Fui titular na 3ª Câmara Crime. Os Des. Nelson Luiz Púperi,
Luiz Gonzaga Pilla Hofmeister, Luís Carlos Carvalho Leite, José Eugênio Tedesco,
Vasto Dela Giustina, Luiz Ari Azambuja Ramos e eu integrávamos a Câmara.
MEMORIAL – Como era o cotidiano dessa Câmara?
ENTREVISTADO – Muito boa, pois nos reuníamos uma vez por semana. Na
Presidência da Câmara, estava o Des. Nelson Luiz Púperi, que tinha voltado da
Presidência do Tribunal com uma experiência fantástica. Ele era um sacerdote, Juiz
vinte e quatro horas por dia, sabia tudo, um homem educado, de uma ironia fina, sabia
interpretar o processo. O Luiz Gonzaga Pila Hofmeister era um grande Juiz. Digo que,
se todos os Juízes fossem como ele, a Justiça seria outra. Nesse ínterim, no primeiro
ano, o Des. Tedesco sai de jurisdição e cria o Conselho de Administração, que veio a
presidir. O Conselho ficava no segundo andar, na frente da Caixa Econômica Estadual.
Ele começa a construção do Fórum Central e o prédio novo do Tribunal na Borges de
Medeiros. O Desembargador Tedesco é um grande administrador. Deixou a jurisdição
da 3ª Câmara CrimInal em 1993.
Quando completei os 35 anos de serviço, a carreira me deu aquilo que tinha de
me dar: o sétimo qüinqüênio. O Juiz ganha, a cada cinco anos, 5%; as professoras têm
os triênios, são os avanços, essas conquistas das leis. Então, vai acumulando, mas há
um limite: com 35 anos de serviço, ganha-se o sétimo qüinqüênio, e pára por aí, mesmo
que se fique por mais tempo em atividade. Foi o Serviço de Magistrados, na pessoa da
Lourdes Dadalt, substituindo a Leda Puggina, que me avisou que eu havia recebido o
sétimo qüinqüênio. Na 3ª Câmara Criminal, a convivência foi ótima, porque tínhamos,
mais ou menos, a mesma formação. O Des. Púperi era o mais idoso, mas o Tedesco, o
Hofmeister, o Carvalho Leite e eu éramos da mesma geração, tínhamos a mesma
maneira de pensar, ninguém tinha sido Brizolista. Isso é importante para não se entrar
em choque. Isso cria choques. Numa Câmara, o trabalho é coletivo. O Juiz acostuma-
se a trabalhar sozinho. Fica quinze, vinte anos decidindo sozinho. É o Juiz monocrático:

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“Eu julgo, eu sentencio, eu faço, eu aconteço. Intime-se”. De repente, ele é promovido e
cai num colegiado. Do colegiado fazem parte três, quatro, doze, quinze, vinte e cinco
Juízes. Daí as coisas mudam.
Lembro que tive várias discussões nas Câmaras Criminais Reunidas, para definir
o traficante ou usuário de tóxicos, e eu era mais humano, eu queria desclassificar de
tráfico para uso para dar uma chance ao menino e não colocá-lo na cadeia. No entanto,
eu era implacável com os crimes sexuais violentos, estupros. Mas eram posições
ideológicas, jurídicas. Resumindo, de 1965, quando entrei como Pretor em Não-Me-
Toque, até hoje, 2005, se eu tivesse chance, voltaria a fazer tudo de novo. Ia para Não-
Me-Toque, Sobradinho, Itaqui, Rosário. Em Rosário, substitui Livramento, Dom Pedrito,
Cacequi, São Gabriel, Vacaria, Bom Jesus, Lagoa Vermelha. Começaria tudo de novo.
É apaixonante. Eu só lamento que nenhum filho meu é advogado.
MEMORIAL – No seu período no Tribunal na Alçada e na Justiça, o senhor
lembra de alguma jurisprudência marcante que tenha sido fixada, de alguma
característica peculiar das sentenças e das decisões?
ENTREVISTADO – Substituí no Cível também. No Alçada, entrou em vigor a
Parte Geral do Código Penal, que alterou a pena de multa, de reclusão e estabeleceu
as penas alternativas. O réu condenado a uma pena de até dois anos, se primário, bons
antecedentes, etc., tinha a pena substituída por prestação de serviços à comunidade.
Era uma reivindicação dos sociólogos, estudiosos, psiquiatras. Como querem acabar
com os manicômios judiciários, era uma tentativa de tirar da cadeia. No Cível, trabalhei
com muitas matérias também, principalmente locação, alienação fiduciária, busca e
apreensão direta de bens. Primeiro tem-se de analisar o contrato, ver a situação
concreta. Por que tirar a máquina de lavar roupas, o microondas, o automóvel, como
aconteceu com os colonos em Sobradinho. São coisas que nos marcam.
Aqui no Tribunal de Justiça, também se reanalisa o Júri. O Júri, formado por sete
jurados, é soberano. É possível rever, só não pode mexer no veredicto. São discussões
eternas. Penso que a estrutura do Judiciário está muito melhorada agora, com a
informática e com o Des. Tedesco fazendo quase todos os foros do Interior,
promovendo todos esses concursos. Isso é muito bom, porque a luta maior do Juiz
sempre foi à falta de funcionários. A economia que o Judiciário fazia, não em termos de
salário dos Juízes, mas em termos de não gastar, de ficar num prédio simples, de não
fazer os concursos, prejudicava o desempenho. Vejo que, com o Des. Tedesco foram
publicados editais de muitos concursos, como para Escrivães Judiciais, Tabeliães,
Oficiais de Protestos, tanto cargos judiciais quanto extrajudiciais, que, desde o meu
tempo, estavam vagos e agora serão providos. É uma situação lenta e difícil, mas tem
de fazer. Sou da tese de que, emancipou o Município, tem de fazer a Comarca, tem de
ter a Delegacia de Polícia, tem de ter a Delegacia de Ensino. Aquele povo merece a

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Comarca. “Ah, não há Juízes, não há dinheiro”. Não digo todos, mas a maioria dos
distritos merece uma Comarca, porque isso dá mais emprego. Na Capital, é diferente,
mas, no Interior, só o fato de um Juiz, um Promotor residirem numa localidade já
diminui a criminalidade.
O povo vê, cumprimenta o Juiz todos os dias, sente que ele está integrado na
comunidade. Então, ele passa a amar e defender o Juiz. Os advogados, perdendo ou
ganhando a causa, defendem o Juiz, porque sabem que ali está seu ganha-pão, que o
Juiz está trabalhando, fazendo audiências, é um profissional. Nesse exato momento, o
Juiz adquire uma autoridade moral. A palavra dele decide, porque a autoridade do Juiz
impõe-se pela sua dignidade moral, pela sua personalidade. Está presente o
magistrado, acabou. Vai soltar o réu, acabou. Vai prender o réu, acabou, fim. Quem não
gostar que recorra ao Tribunal. O último degrau, a última escala da garantia do direito
do cidadão não é a Revolução de Março de 64, não é o Brizola da Legalidade, é a
consciência do magistrado. Isso foi dito pelo Napoleão. Quando ele assumiu depois da
Revolução Francesa, em 1789, e se tornou um ditador, criou a sua Magistratura e os
Códigos Napoleônicos.
Houve um fenômeno orgânico com o Dr. Osvaldo Peruffo. Eu era Juiz em
Rosário, e ele, em Alegrete. Alegrete estava conturbado, difícil, havia problemas no
Foro. Ele chegou lá em 1970, logo depois da Revolução. O ex-Prefeito tinha sido
cassado, havia muita criminalidade, começava a se formar uma coroa de miséria, as
favelas ao redor da cidade. Havia poucos pobres, mas aí começou o êxodo rural, que
hoje se sintetiza no Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra. Um horror! No campo do
Rio Grande, no Interior do Rio Grande, formara-se aquela favela, aquela miséria sem
esperança, sem emprego, a não ser talvez o serviço rural sem carteira assinada.
O Peruffo chegou, sentou à máquina, começou a julgar e diminuiu a
criminalidade em 80%. Isso foi dito pelas estatísticas, pelas pessoas, pelos advogados,
pelo Prefeito e pela comunidade de Alegrete, tanto que, quando ele saiu dali e veio
promovido para a 4ª entrância, em Porto Alegre, veio gente pobre das vilas abraçar o
Juiz. Sem imprensa, sem nada, espalhou-se como um rastilho de pólvora aquela
notícia. Isso é verdade, tal o amor que aquele povo simples e humilde das vilas tinha
pelo Juiz. Eles conheciam o Juiz. Ele não se escondia, ele estava lá, e a comunidade, a
elite, a Câmara de Vereadores reuniram-se e deram o título de cidadão honorário ao Dr.
Peruffo. Nenhum Juiz, em mais de cem anos, tinha recebido o título de cidadão
honorário de Alegrete, e o Peruffo o ganhou por unanimidade naquela Câmara de
Vereadores de Alegrete. E a Câmara era muito conturbada politicamente. Sei porque fui
substituto lá. Pelo Peruffo, uniram-se todos.
Era uma festa e um lamento, porque aquele Juiz tão querido ia embora. Cito
esse fato, porque o Peruffo foi Juiz da Vara dos Registros Públicos. Fato foi marcante,

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de um Juiz que assume a Comarca, mora na comunidade, julga, trabalha, vai absolver
ou condenar, não interessa, conforme a sua consciência. Aí ele passa a ser respeitado.
Aconteceu o crime lá na Vila Tio Zeca, dali a um mês, todo aquele pessoal está vindo
para o Foro dar depoimento, um já começa a escapar, o outro vai para o Uruguai.
“Estão prendendo!” Não é só prisão de Polícia, de brigadiano. É o Juiz! Porque o povo
sabe das coisas, o povo respeita o Juiz. Tanto é assim que, em qualquer motim num
presídio, eles pedem a presença do Juiz. No primeiro motim do “Carioca”, no Presídio
Central, em que foi seqüestrado o Dr. Volnei Sacomor, psiquiatra do Departamento
Médico Judiciário. No Monza dele, o “Carioca” desceu a Ramiro Barcelos, – com sete
pessoas dentro do carro –, a 140 Km/h, derrapou na Cristóvão Colombo e foi embora. O
Dr. Volnei ficou amarrado numa árvore. O que aqueles presos que estavam no motim,
naquele tumulto, naquela confusão, gritavam de dentro do presídio? “Queremos o Juiz
da Execução”.
O motim começou pelo Hospital Psiquiátrico, quando pegaram os médicos como
reféns. Depois o “Carioca” foi preso naquela casa tipo castelo, na subida do Morro São
Caetano, que vai para o Hospital Espírita, naquele Castelinho de Pedra, com o filho do
advogado. Quando a Polícia descobriu e entrou na casa, a mulher do advogado teve
um infarto e morreu. Acabaram prendendo os nove. Então, esse pessoal não queria o
brigadiano, não queria o policial, não queria a metralhadora, queria o Juiz.
MEMORIAL – E o que o Juiz faz numa hora dessas?
ENTREVISTADO – O motim de presídio tem de ser conduzido por profissionais.
Não pode um amador, um Juiz querer intervir, porque não vai fazer nada. Num motim
de presídio, em que há mortes, os profissionais têm de atuar, como o Batalhão de
Choque, que foi ensinado para isso.
MEMORIAL – Mas há deputado que se enfia no meio do motim.
ENTREVISTADO – Têm de ser profissionais preparados, treinados para isso, e
não amadores.
MEMORIAL – Des. Nério, para concluir, o senhor sai do Judiciário, aposenta-se e
volta para advocacia, que foi o seu ponto de origem. Como o senhor hoje, do ponto de
vista da perspectiva do advogado, percebe a situação que vive o Judiciário no Brasil e
toda essa discussão de reforma do Judiciário? O senhor percebe uma crise no
Judiciário ou, avaliando a sua trajetória de anos de Judiciário, houve um período de
evolução e de conquistas? Como o senhor vê o Judiciário hoje no Brasil?
ENTREVISTADO – Vejo com certa preocupação não tanto em relação a salários
e vencimentos. Não, não é por aí. No Poder, pode estar o Lula ou qualquer outro, pois
ele é passageiro, principalmente se houver eleições democráticas de quatro em quatro
anos. As pessoas mudam, é a essência da democracia. Não vejo a tal “caixa preta”. Os
episódios que houve no Judiciário foram isolados, como o do “Lalau”, que desviou uma

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verba lá, e nem foi tanto ele que a desviou, a gente sabe disso, o dinheiro teve outros
fins. Afirmo que, se todos os organismos do Estado tivessem economizado como o
Poder Judiciário do Rio Grande do Sul economizou até hoje, nós teríamos um
organismo extremamente rico.
O Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, pela experiência que tenho desde que
entrei aqui, sempre foi um Poder econômico em tudo. Agora é que o Poder Judiciário
está fazendo este serviço histórico, este Memorial, uma coisa nova. Para mim, é uma
coisa fantástica, que apóio. Isso é importante. Agora, é lógico que nós precisamos
formar bem o Juiz, uma vez que nós só poderemos defender a nossa classe na medida
em que o Juiz for bom. Querem tirar alguns benefícios que a lei outorgou ao longo de
muitos anos. Pedro Soares Muñoz, Bonorino Buttelli, Samuel Figueiredo Silva, Candal,
Esperidião de Lima Medeiros e outros tantos que estão no Memorial de vocês fizeram
essas conquistas lentas, difíceis, para chegar a um salário digno, à vitaliciedade. O
exemplo está em Napoleão. Houve coisa mais sangrenta que a Revolução Francesa?
Cada um que subia degolava o inimigo, corria da guilhotina o sangue, até que
chegou o Napoleão e fechou. No dia seguinte, ele criou a Magistratura e fez os Códigos
Napoleônicos, verdadeiros monumentos jurídicos. Jamais o Judiciário pode, em favor
do povo, abdicar da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de salário. No
momento em que o Poder Executivo fecha em si poderes muito fortes, o que é um erro,
ele não tem o freio e o contrapeso do magistrado que está em Sobradinho, do
magistrado que está em Itaqui, do magistrado que está em Vacaria, Não-Me-Toque,
Rosário.
Em Livramento, concedi um hábeas, e o Coronel da Brigada não cumpriu. “O
senhor tem de cumprir a minha ordem!” Um tenente dele prendeu um advogado numa
questão de trânsito e levou para o quartel preso. Dei o habeas corpus, e ele não quis
cumprir. Por coincidência o advogado era filho do Pancho Góis – o que matou o Prefeito
sobre a linha da divisa com o Uruguai. Quem comanda aqui é o coronel mais antigo, e o
coronel mais antigo é o coronel Fulano do Exército”. Ele acabou soltando o cidadão.
Não pode, num momento desses, temer o coronel. Para eu fazer isso com tranqüilidade
e segurança, tenho de ter os três predicamentos da Magistratura: irredutibilidade,
inamovibilidade e vitaliciedade. Ninguém mexerá comigo aqui, mesmo quando eu errar,
porque daquele meu despacho cabe recurso para o Tribunal, e há esperança de que o
Tribunal reforme a tempo e a prazo até a decisão de um Juiz preguiçoso, inábil ou que
não tenha estudado os autos, que prolate um despacho injurídico.
Essa história de que o Judiciário não é fiscalizado não é verdade. O Judiciário é
fiscalizado! Em todos os processos, há advogados, parte autora, parte ré, Promotor.
Não se faz nada nos autos sem ter a fiscalização das partes. Qual é o Juiz que lida com
o dinheiro? Nessa trajetória toda, falei de várias construções, casas, fóruns, e nunca

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tive um tostão na minha mão, sempre foram os organismos competentes os
responsáveis pela parte financeira. Lembro que nas casas que morei no interior não tive
telefone.
MEMORIAL – Já sofre a fiscalização do Tribunal de Contas.
ENTREVISTADO – Se me dão o dinheiro sai o fórum, porque não sei construir. O
Juiz não sabe administrar, com exceção de poucos, como o Des. Tedesco. O Juiz não
gosta de ser diretor, de ser administrador, de ser construtor; Juiz é Juiz, ele tem de
trabalhar no processo. Quando ele produz economicamente, quando ele rende? Ele
rende no momento em que estuda os autos, faz audiência, despacha a sentença. Aí ele
gera dinheiro, porque os advogados ganham, o alvará sai.
MEMORIAL – Há mais alguma coisa?
ENTREVISTADO – Voltei a advogar, gosto de advogar. Faço votos de que a
Escola da Magistratura, com essa juventude aí forme bons Juízes, apaixonados como
fui e continuo sendo pela Magistratura. Tenho feito muitas audiências no Interior, e
coisas fantásticas têm ocorrido em São Jerônimo, Arroio dos Ratos. Num Foro Distrital,
terminei uma audiência, porque o Juiz ficou nervoso. Com a permissão dele, ditei para o
Escrivão. Vi que ele não ia terminar a audiência, porque o advogado começou a fazer
perguntas, e o Juiz as indeferiu. Esse foi um fato episódico.
Como regra geral, acredito no Judiciário e nos mais de seiscentos Juízes que o
Estado tem nas 161 Comarcas, a última a do Salto do Jacuí. O Rio Grande do Sul tem
496 Municípios. Destes só 161 são Comarcas. Algumas Comarcas incluem quatro ou
cinco Municípios. Não há mais Pretorias, como antes. Concordo com a reivindicação do
povo: por que aquele distrito não é comarca? Por que não tem Juiz, não tem foro? É
uma reivindicação justa, mas faltam recursos. Temos de chegar lá, está tudo por fazer
neste Brasil: saneamento básico reforma agrária.
MEMORIAL – Como advogado, o senhor acha que a Justiça é lenta ou ágil em
face dessa explosão processual que estamos vivendo nos últimos anos?
ENTREVISTADO – Todo processo tem um autor e um réu. O réu não pode
deixar passar uma chance. Se a Câmara do Tribunal de Justiça julga, e perco por três a
zero, é necessário que eu entre com um recurso especial ao Superior Tribunal de
Justiça. Assim pede a parte, e assim diz a lei. É necessário que eu entre com um
recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, porque assim quer o meu cliente.
Está no sentimento da população: “O meu caso levo a Brasília”. Então, ele quer a
primeira instância (o Juiz na Comarca), quer a segunda (o Tribunal) e quer Brasília. Ele
não quer que termine aqui.
É muito improvável que as pessoas se convençam de terminar só com o Juiz da
Comarca de Não-Me-Toque. O próprio Juiz quer que recorra para o Tribunal. Quando
chega ao Tribunal, vai para Brasília. Isso está arraigado na nossa cultura. Quando sou

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autor, eu quero pressa; quando sou réu, quero demora.Então, devagar com a procissão
porque o andor é de barro. Não podemos culpar tanto o Judiciário. As leis são boas.
Uma lei severa na mão de um bom Juiz pode se tornar uma lei doce. Agora, uma lei
branda na mão de um mau Juiz pode se tornar uma lei terrível! São necessários
mecanismos democráticos de contrabalançar, num sistema de freios e contrapesos,
também o autoritarismo do Juiz. Quando o Juiz prolata um despacho contra alguém,
tem de haver um mecanismo previsto em lei para que ele possa recorrer. Sei que o
Tribunal de Justiça está cheio de agravos, mas a lei criou o agravo.
MEMORIAL – Mas não há excesso de agravos na mão do brasileiro? E aí repete
todo o processo, copia tudo, faz tudo de novo. Isso gera volume, documentação...
Como guardar isso?
ENTREVISTADO – Concordo. No agravo de instrumento, teria que limitar, a
petição não poderia ter mais de 10 folhas. Porque o que está acontecendo ultimamente
é que os advogados juntam tudo que é papel no seu escritório e põem no processo. O
Judiciário se torna um depósito de papel velho. Talvez tenhamos de criar a “polícia da
retórica”, como chamam. Não sei se entendeste o que eu disse. Para um habeas
corpus, não se pode escrever mais de uma folha e meia. Para pedir para soltar um réu,
não se pode juntar oitenta e dois documentos, pois fica com muito volume, e tem de ser
digitado e numerado na Diretoria Processual. O custo do manuseio disso é altíssimo.
Num agravo interposto, por exemplo, em Brasília, por que juntar tudo? O
advogado adota a lei do menor esforço, fotocopia de capa a capa, e fica aquele
pergamasso, que vai, volta e é apensado. Fica horrível isso para o povo, porque a
imagem é péssima. Mas o povo quer o recurso...

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MEMORIAL – Ainda há os embargos declaratórios, os embargos infringentes,
etc. Não há recursos demais na legislação infraconstitucional brasileira?
ENTREVISTADO – Sim. Nós pagamos um tributo muito caro. Isso vem das
Ordenações Afonsinas e das Ordenações Manuelinas, que se sintetizaram em Filipinas
– por causa do Grande Filipe da Espanha, que dominou Portugal –, chegando até nós
pela Consolidação Teixeira de Freitas, de 1850, que foi adotada no Código Civil de
1916. Pagamos um preço muito grande, pois fomos um país-colônia por muito tempo, e
as elites precisavam ir até as Cortes portuguesas.
MEMORIAL – É possível fazer uma reversão de uma cultura secular como essa?
O senhor entende que os Juizados Especiais são um caminho nesse sentido?
ENTREVISTADO – Os Juizados Especiais são bons. Quando eu estava saindo,
estavam sendo criados os Juizados Especiais, o Des. Guilherme Tanger Jardim estava
inaugurando o primeiro em Rio Grande. Penso que eles são uma necessidade. É
preciso aprimorá-los. O tema está em debate e sou favorável a eles.
MEMORIAL – Como advogado, o senhor também acha que os Juizados
Especiais são positivos?
ENTREVISTADO – Acho uma boa. Todas as grandes vilas deviam ter um
Juizado Especial. Não se pode é vulgarizar, porque se criam muitos Juizados Especiais,
o cidadão vai querer sempre o Juiz de Comarca, o juiz letrado.

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