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Este livro é dedicado à minha filha, Verônica, na esperança de que encontre o caminho de

volta. E à memória do mestre Raimundo Irineu Serra, na expectativa de que os valores


exaltados na doutrina daimista, fundada por ele — Amor, Verdade e Justiça —,
setomemrealidade. Agradeço ao jornalista Bernardo Horta, que desde o início desta dolorosa
jornada colaborou na elaboração deste livro movido por um profundo desejo de que
cheguemos a um final feliz.

SUMÁRIO

Prólogo

LSD e Revolução

AJornada do Herói

Lavagem Cerebral

O Xamanismo

Mestre Irineu

As Fardas.

Sebastião Mota

A Cura da Aids I.

A Cura da Aids II

A Cura da Aids III

UDV.

A Barquinha

A História.

Jambo..

CONFEN

Conclusão

Glossário
PRÓLOGO Este livro tem como objetivo a denúncia. Não foi escrito com finalidade literária.
Nem poderia, já que, sendo estrangeira, não sei escrever corretamente em português.
Desconheço a gramática portuguesa, suas regras, técnicas de redação, leis de concordância e
outros elementos necessários para a prática da literatura.

A consciência de que a denúncia tinha que ser feita compeliu-me a passar por cima da questão
formal. Trata-se de uma denúncia complexa, que abrange diversos assuntos. O principal deles,
em torno do qual giram os outros, é o uso da bebida conhecida no Brasil com o nome de
"santo daime", (ayahuasca) e sua utilização dentro de uma atividade religiosa desenvolvida por
uma seita que se alastra por todo o país e se estende até a Europa, os EUA, o Japão e outros
países da América Latina.

A complexidade do assunto exigiu um relato autobiográfico para que o leitor pudesse


entender os caminhos que trilhei, os objetivos que me levaram a percorrê-los e os motivos
éticos que me determinaram escrever este trabalho.

Como a questão principal, o uso da referida bebida, não é muito conhecida pela opinião
pública, foram necessários alguns capítulos explicativos sobre as origens dessas práticas, bem
como a separação do joio do trigo, já que nem tudo que acontece é denunciável. Há muita
coisa louvável.

Obviamente não sou a única vítima, há muitas outras. Entre elas, minha filha, hoje com dezoito
anos. Outras vítimas ajudaram de forma valiosa, fornecendo dados, relatando casos e
incentivando para que este trabalho se tornasse realidade, e assim fossem poupadas outras
vidas. Alguns nomes foram substituídos por outros fictícios, por necessidade de preservação
pessoal. Já os denunciados aparecem com seus nomes reais, para que não reste nenhuma
dúvida a respeito de quem estamos falando.

Com o fim de facilitar a compreensão dos leitores não familiarizados com tais assuntos foi
acrescentado um glossário.

LSD E REVOLUÇÃO "Atravessar oslimites do eu insulado representa uma tal libertação que
mesmo quando a autotranscendência é obtida por meio de náuseas que levam ao delírio, de
paralisias que levam à alucinação ou ao estado de coma, a experiência com drogas foi sempre
considerada, e continua sendo por muitos, como

intrinsecamente divina. Êxtases através do uso de inebriantes constituem ainda uma parte
essencial da religião de muitos africanos, sul-americanos e polinésios." Aldous Huxie Sou fruto
de uma união polêmica. Meu pai, oriundo de uma família tradicionalmente católica do sul da
Espanha, que emigrou para a Argentina em 1914, foi balizado com o nome de Jesus, porque
nasceu no dia de Corpus Christi. Quando jovem, tornou-se membro ativo do partido socialista
e, posteriormente, do comunista. A filosofia marxista condena a religião por considerá-la uma
forma de submissão e de atraso, "o ópio do povo". As convicções do meu pai a respeito do
assunto eram tão fortes, que ele chegou a entrar na justiça com uma petição para mudar o
nome, alegando razões de ordem ética. Como seu pedido não foi aceito, proibiu amigos e
parentes de chamá-lo pelo nome de Jesus.
Já minha mãe nasceu na Polônia, quando meus avós, judeus ucranianos, fugiam da revolução
comunista que tinha começado na Rússia em 1917 e se alastrava pelas repúblicas vizinhas,
formando a União Soviética. Eles chegaram à Argentina pouco antes da crise de 1929, atrás do
sonho de uma vida melhor.

Tive uma educação atéia. Meus pais e parte da minha família materna eram militantes do
partido comunista. Cresci dentro dos cânones morais que, supúnhamos, reinavam na União
Soviética.

Esses assuntos criavam uma enorme confusão na minha cabeça, quando criança. Durante
parte da minha infância, nos anos 50, moramos na Argentina. Naquela época a igreja católica
exercia enorme influência no governo e na sociedade. As minorias judias eram discretamente
marginalizadas e os adeptos de outras religiões, como os evangélicos ou os cristãos ortodoxos,
passavam desapercebidos. Religiões orientais, budismo, ioga e meditação eram
desconhecidos. obrigados a aprender religião. Eram os tempos da ditadura peronista. A
reivindicação foi aceita, e como conseqüência passamos a ter aulas de "moral" na hora das
aulas de religião.

As aulas de moral eram preparadas pelo mesmo padre que ensinava religião. Quando ele
chegava à sala, as crianças judias e eu éramos retiradas e levadas para outro recinto para
aprender "moral". Copiávamos num caderno próprio para tal fim máximas do tipo "Não devo
roubar", repetindo-as de cem a duzentas vezes dependendo do humor do padre.

A questão religiosa me intrigava. Tanto na Argentina quanto na Espanha, onde morei


posteriormente durante oito anos, a religião era parte importante na vida das pessoas. Ambos
os países possuíam ditaduras com forte influência da igreja católica. Aos domingos pela
manhã, o programa de noventa por cento da população era assistir à missa, que além do mais
era transmitida por alto-falante instalados em todas as esquinas. Eu observava as pessoas,
com suas melhores roupas, de missal e terço na mão, tomada por um forte sentimento de
marginalidade.

Na Argentina havia mais um elemento que contribuía para aumentar essa sensação de
marginalidade: morávamos no mesmo bairro que a parcela judia da população, na qual se
incluía minha família materna. Quando chegavam as datas em que se celebravam o dia do
perdão, a páscoa ou o ano-novo judeu, eu observava a mesma devoção que via nas pessoas
que assistiam à missa. Me perguntava por que eu também não tinha esse espaço. Meus pais
como quaisquer outros fanáticos, não permitiam sequer que essas questões fossem discutidas.

Acompanhei pela TV a entrada de Fidel Castro em Havana, (em 1° de janeiro de 1959), em


clima de festa comum às grandes vitórias. Nos almoços, nas ceias e nas reuniões familiares o
assunto era sempre "a revolução do proletariado". Meu pai tinha tido um desempenho
importante e heróico na guerra civil espanhola (1936-1939), quando o general Franco,
comandando as mais reacionárias forças que as direitas conseguiram reunir, esmagara a
utopia da República Espanhola, dando início a uma sangrenta ditadura que duraria mais de
quarenta anos.
Desde criança eu observava essas conversas empolgadas dos mais velhos com uma curiosa
sensação de que não era exatamente o que estava sendo dito o que importava, e sim que tais

discussões alteravam a freqüência energética das pessoas. Elas ficavam exaltadas, eufóricas,
falantes, e embora eu não entendesse muito do que se dizia, dava para perceber que até os
assuntos de sempre, mais ou menos os mesmos, tinham o poder de criar uma atmosfera que
transportava as pessoas para outra freqüência.

Posteriormente, a partir dos anos 60, minha geração viria a se tornar quase sinônimo de
experiência alucinógena e/ou de expansão da consciência. Nascemos no fim da segunda
guerra mundial. Eu em 1944. Crescemos embalados e influenciados pelos padrões de sucesso
que Hollywood exportava através do cinema. Doris Day, Rock Hudson e outros representavam
tudo a que se podia aspirar na vida, quanto a comportamento e possibilidades de consumo.
Embora não passasse de uma miragem adocicada e assexuada, minha geração cresceu
acreditando que a vida tinha que se encaixar nos padrões hollywoodianos, que Rock Hudson
era o protótipo que todo rapaz deveria imitar e que toda garota deveria almejar como
namorado.

No fim da nossa adolescência, no começo da década de 60, o primeiro grito de alerta de que
alguma coisa não era bem aquilo que parecia foi o surgimento dos Beatles. Inexplicavelmente,
esses quatro rapazes ingleses que cantavam melodias gostosas, cujas letras a maioria da
população não entendia dia, produziam crises histéricas nas pessoas que assistiam aos seus
shows, e certo estado hipnótico naqueles que os ouviam pelo rádio ou em discos. As emissoras
de rádio não paravam de tocar seus sucessos, e o comportamento deles era questionado pelos
setores conservadores da opinião pública, que se preocupavam com os seus cabelos. (Nos
primeiros tempos, eles deixaram os cabelos timidamente crescer pouca coisa além do
permitido, o que foi o suficiente para serem taxados de afeminados.)

Estoura na França o movimento estudantil de maio de 1968. Os fatos ocorridos em Paris


sacodem a opinião pública e as consciências. Mas percebíamos, sem entender, uma espécie de
movimento sísmico subterrâneo, algo que não dava para explicar, mas que atingia e
questionava os valores que tínhamos adquirido na escola, em casa, em nosso meio ambiente.
O que parecia ser no começo uma greve operária na capital da França, ganhara
imediatamente, e pela primeira vez, o apoio do movimento estudantil. De um dia para outro,
os muros parisienses apareceram pichados com a expressão:

"Ce n'est q'un début", ("Isto é apenas o início"). Começam as passeatas, as adesões, os quebra-
quebras. Em poucos dias. Paris pegou fogo literalmente. A cidade ardia e as mentes também.
Por toda parte manifestos inflamados. Até hoje ninguém entendeu muito bem o que
aconteceu. Tentou- se em vão denominar tais fatos com nomes como "surto de demência
coletiva", "psicodrama coletivo" e outros. A partir de então, o mundo não foi mais o mesmo. O
jornalista brasileiro Zuenir Ventura, autor de 1968 O Ano que não Terminou, descreve como a
sociedade brasileira foi afetada pelos acontecimentos franceses e analisa com profundidade
seus efeitos até os dias de hoje.
As notícias da guerra no Vietnã começavam a incomodar. A mídia não tinha o poder que possui
hoje, porém a guerra lá do outro lado do mundo deixava de ser algo remoto e passava a
integrar os assuntos do nosso dia-a-dia.

Paralelamente, o movimentohippie alastrava-se pelo planeta. A proposta era contestar os


valores da sociedade considerados "alienantes" de forma amorosa, não-violenta. O lema: "Paz
e amor". Aos policiais que reprimiam manifestações ofereciam-se flores.

Sem dúvida alguma, existe uma forte ligação entre maio de 1968 em Paris e o surgimento dos
hippies. O estouro francês serviu para pôr em evidência os valores que já não tinham
possibilidade de sustentação. Mas, como mudar valores sem mudar estruturas? Os jovens
sentiam a mudança nas consciências, mas não tinham poder para mudar as estruturas
asfixiantes e obsoletas. Assim, a solução parecia ser "cair fora", algo semelhante a se
automarginalizar. A frase em voga era: "Não acredite em ninguém com mais de trinta anos".
Surge, desta forma, a cultura alternativa, que consistia em contestar os valores com atitudes
chocantes, porém não-agressivas. Usavam-se roupas fora de moda, de preferência velhas, e
evitava-se ao máximo comprar qualquer coisa. A troca, a prestação de serviços, as viagens de
carona eram a forma de instituir um novo tipo de relacionamento entre as pessoas.

Rapidamente o sucesso dos Beatles dá a volta ao mundo. Orock envolvia o planeta. Os Rolling
Stones, Woodstock (festival derock ocorrido na época, que contou com a presença de
monstros sagrados, como Jimmy Hendrix), a maconha e o LSD, tudo surgindo de repente,
pondo

em xeque o que até então era considerado inquestionável. Londres e São Francisco tornam-se
as cidades de vanguarda. As bandeiras de ambos os países —Inglaterra e EUA —são usadas de
forma debochada embutt ons, em objetos indecorosos ou com qualquer finalidade de
deboche: por exemplo, papéis para enrolar cigarros de maconha eram impressos com a
bandeira inglesa ou norte-americana.

Nos EUA, dois grandes cientistas, Aldous Huxiey e Timothy Leary, comandaram as mais sérias
pesquisas sobre a experiência alucinógena entre 1953 e 1967. O texto de Aldous Huxiey que
transcrevo a seguir foi o empurrão definitivo para me lançar na caminhada da expansão da
consciência, quando eu tinha pouco mais de vinte anos:

"Essa droga extraordinária tem o poder de transportar as pessoas para outro mundo. Na
maioria dos casos, o outro mundo ao qual o LSD25 dá acesso é celestial; por outro lado, ele
pode ser purgatorial ou até mesmo infernal. Mas positiva ou negativa, a experiência com ácido
é sentida por quase todos que passam por ela como profundamente importante e
esclarecedora. De qualquer modo, o fato de que as mentes podem ser transformadas tão
radicalmente a um custo tão pequeno para o corpo é verdadeiramente espantoso".

Portanto, nos anos 60, com o avanço dorock, com a disseminação da maconha e do LSD e com
a consolidação da revolução cubana, confirmam-se três vertentes, compondo assim as
variantes pelas quais se encaminharam os movimentos de protesto, de inconformismo e de
questionamento:.
A primeira seria composta por aqueles que redirecionaram sua busca a partir da
inconformidade com as religiões oficiais do ocidente e saíram atrás de revelações filosóficas e
metafísicas pêlos caminhos orientais: a ioga, o budismo, a meditação e outros.

A segunda seria a vertente político-guerrilheira. A palavra de ordem era "questionar", rever


tudo: organização política, religiosa, econômica, social. A terceira seria a que buscava nas
experiências com o LSD e com a maconha uma expansão da consciência que nos daria os
fundamentos para a "transformação". As três vertentes revolucionárias mencionadas tinham
alguns elementos em comum. O primeiro, o questionamento. As três se rebelavam contra
tudo o que tinha sido estabelecido durante séculos. O segundo era a necessidade de uma
atitude de mudança. Não se tratava só de questionar. Tinha que haver mudança.

No que diz respeito à mudança, a situação começava a ficar diferente. Enquanto a linha
político- guerrilheira achava que a solução estava na luta armada, seqüestrando , cometendo
atentados violentos, assaltando com o objetivo de conscientizar o proletariado, que os olhava
com desconfiança, as outras duas vertentes proclamavam a revolução interior.

A dissidência entre estas duas era a respeito dos meios válidos: uns condenavam abertamente
o uso de "substâncias químicas" e proclamavam que a verdadeira revolução estava na
consciência e devia ser obtida através da sua exploração, porém livre de químicas.

Já os que aceitavam a química tornavam-se devotos de Timothy Leary e Aldous Huxiey — os


papas da experiência alucinógena — e preconizavam os postulados dos espiritualistas, porém
com seus auxiliares químicos.

Estas três vertentes viviam se entrecruzando e, embora antagônicas, unificavam-se sob o


manto da contracultura. Havia momentos em que parecia existir uma quarta vertente, que
seria formada por praticantes de técnicas orientais — como meditação, desbloqueio
dechakras, técnicas de desenvolvimento do poder da mente — associadas ao uso de
substâncias. Porém tais grupos, formados por integrantes das outras vertentes já
mencionadas, não duravam muito tempo.

Na prática, entre uns e outros aconteciam discussões, sobre a utilização de recursos químicos
ou artificiais, que não levavam a lugar algum. Eu pertencia à terceira, a dos usuários de
substâncias expansoras da consciência, e à dos buscadores de verdades e valores espirituais
que substituíssem os que tinham ruído. Entre os ortodoxos da espiritualidade — os devotos
hare krishna, os iogues, os bioenergéticos e outros — e os usuários das substâncias, as
discussões sobre a validade das conquistas através da química eram freqüentes e acabavam
levando ambas as partes a certo sectarismo.

Era comum ouvir: "Ela é uma boa cabeça, pena que não desiste do LSD". Ou o contrário: "Eles
são ótimos. As práticas espirituais que realizam fazem muito bem. Pena que sejam tão
caretas".

Com os da guerrilha, a solidariedade de ambos acima era moral. Mais de uma vez aconteceu
de ter hospedado na minha casa algum músico deroc k que, além de usar alucinógenos,
sempre trazia a tira-colo algumas "figuras interessantes", algum guerrilheiro ou militante da
extrema esquerda, solicitando guarida porque estava sendo perseguido pêlos órgãos de
repressão. Obviamente, era acolhido, e as conversas e os confrontos resultantes do fanatismo
comum às duas vertentes criavam situações muitas vezes hilariantes.

Na época, minha situação profissional parecia contribuir com a possibilidade de vivenciar essas
experiências: trabalhava com interpretação simultânea (em várias línguas) em congressos e
convenções e como tour leader, acompanhando grupos de turistas, inclusive em outros países.

Vale destacar que o uso dessas substâncias, seu comércio e disseminação eram algo muito
mais inocente e inócuo do que hoje. O LSD era produzido em laboratórios caseiros,
obviamente por usuários, e comercializado pêlos próprios de forma amena e muitas vezes
festiva.

Os primeiros ácidos que comprei foram através de um músico, mais ou menos famoso na
época. Ia à casa dele, onde morava com a mulher e uma filhinha de poucos meses e onde
funcionava o estúdio de ensaios e gravação. Às vezes, quando eu chegava, eles já estavam
"viajando", esqueciam o lugar em que tinham guardado os ácidos restantes, e eu ficava
aguardando para ver se em algum momento datrip recuperavam a memória.

Nas primeiras viagens, organizávamos os preparativos como se fosse um ritual: escolhíamos as


músicas que iríamos ouvir (geralmente a experiência era compartilhada por três ou quatro
"navegantes da consciência"), o que comer no final, ou se por acaso houvesse uma eventual
queda do nível de açúcar no sangue, a denominada "pálida".

Posteriormente descobrimos que viajar ao ar livre, em espaços abertos, era muito mais
interessante. Parecia que a expansão da consciência era proporcional ao espaço em que a
experiência

acontecia. Outra forma muito comum naqueles tempos era tomar ácido nos concertos
derock,que viravam, assim, verdadeiras viagens coletivas da consciência expandida. É
interessante destacar que o fenômeno de buscar a expansão da consciência através de
auxiliares químicos não se limitava a país algum. Pelo contrário, ao que me consta, no mundo
ocidental a prática ganhava, a cada dia, mais adeptos, e em todas as línguas foram criadas
gírias especificas que denotavam padrões semelhantes de experiência.

Assim, a vivência era denominada "viagem",trip, e os usuários, "cabeça feita", "malucos",


"viajantes" e por aí afora. Uma resultante da vivência alucinógena, quando bem conduzida, é o
bom humor. No ano de 1966, Aldous Huxiey trocava idéias com o cientista Humphry Osmond a
respeito do nome "psicodélico" ou "fanerotímico", que eram as duas denominações dadas às
substâncias expansoras da consciência naquele tempo. Discorrendo a respeito do que poderia
ocorrer com a massificação do seu uso, eles criaram o que poderia ser umjingle para
publicidade na TV:

"Para este mundo trivial sublime se tornar, basta meio grama de psicodélico tomar. Para um
mergulho no inferno ou um voar angélico, você precisa de uma pitada de psicodélico".

Como não podia deixar de ser, parte da sociedade de consumo incorporou rapidamente esses
elementos, e surgiu a moda alucinógena, que tinha sua capital mundial em Londres, na famosa
Carnaby Street. Tudo o que era vendido lá e nas lojas semelhantes em outras cidades tinha um
toque, um estilo próprio que induzia ou sugeria alucinação: roupas, objetos, enfeites, discos,
pôsteres e até material para produzir LSD em casa.

Da mesma forma como outras atividades tais como foi o surfe, o esqui e a canoagem foram
estabelecendo points de concentração no planeta, o mesmo aconteceu com a experiência
psicodélica. No Brasil, os lugares onde mais se viajava — e onde, portanto, era fácil encontrar
pessoas que fornecessem, compartilhassem a experiência ou dessem dicas dos melhores
points — eram Búzios (RJ) e Itapoã (BA). Nos EUA, Sausalito; na Espanha, Ibiza; na Argentina,
Vilia Gessei.

Outra das características peculiares do ácido lisérgico foi a de não ter caído nas garras do
tráfico. Em geral, as fórmulas eram conseguidas por estudantes universitários que o produziam
em laboratórios de fundo de quintal ou até mesmo nas próprias universidades, de forma
clandestina. A substância obtida era um líquido incolor e inodoro, e a dose era uma gota.
Assim, para facilitar seu transporte, distribuição e venda, apelava-se à criatividade. O método
mais freqüente consistia em

fazer algum tipo de marcas engraçadas ou graciosas num papel mata-borrão, como pequenos
carimbos de personagens de Watt Disney, flores ou estrelas, e acima de cada desenho
pingava-se uma gota. Na hora de ingerir a dose, recortava-se o pedacinho do papel
correspondente a um desenho, mastigava-se durante alguns minutos como se fosse um
chiclete e cuspia-se o que sobrava do papel.

Assim, dizia-se: "Fulano acabou de engolir o Pato Donald", ou "Estou com os Irmãos Metralha",
ou ainda "Está rolando um Pateta ótimo". Até 1966, o laboratório suíço Sandoz produziu
legalmente , LSD25 de excelente qualidade, com o objetivo de fornecê-lo para as pesquisas
que eram realizadas na época em diversas universidades e aos pesquisadores autônomos.
Cheguei a consumir algumas doses dessa raridade.

Vale destacar também que, enquanto milhares de pessoas no mundo inteiro usavam e
abusavam dessas práticas, com o intuito de expandir suas faculdades psíquicas, o Pentágono e
a CIA realizavam experiências fornecendo a mesma substância aos soldados no Vietnã. A
questão é polemica: diversos governos norte-americanos tentaram sem sucesso abafar a
divulgação desse fato. Segundo alguns altos funcionários desses órgãos, vítimas de raras crises
de arrependimento, os motivos teriam sido amenizar a dureza, a incoerência das experiências
dessa guerra tão cruenta. Desta forma, fazendo com que o LSD chegasse ao front, os cérebros
de Washington pensavam que aliviariam o estresse produzido pela barbárie. Mais uma vez, o
feitiço voltando-se contra o feiticeiro: grande parte os massacres ou de atitudes suicidas
cometidos por soldados americanos durante a guerra no Vietnã aconteceu sob os efeitos dessa
poderosa substância. O filme Apocalipse Now, do diretor americano Francis Ford Coppola,
trata dessa questão com genial ousadia.

Minhas primeiras experiências com o LSD foram de fato deslumbrantes. Após


aproximadamente meia hora de mastigação, deglutindo a dose pingada no mata-borrão, a
temperatura do corpo começava a se alterar, alternando sensações de frio e calor. Os
músculos da face ficavam um tanto tensos, as cores dos objetos tornavam-se cada vez mais
intensas, o ouvido aguçava-se e a mente disparava.

Tinha a sensação de que a mente tomava-se uma espécie de tela de cinema, onde eram
projetadas as crenças, os valores, os pensamentos, as lembranças marcantes e/ou traumáticas,
tudo crivado por um estranho senso de ridículo. Ria de mim mesma, achava absurdo tudo o
que tinha levado a sério. Sentia que me afastava do meu centro para me colocar numa posição
de observadora do meu próprio ser, desdobrando-me para poder questionar-me com
exagerado senso crítico. Tudo misturado com imagens e visões belíssimas.

Geralmente deixávamos o som tocando. Na experiência alucinógena, o som tem um papel


fundamental. As notas e os acordes adquiriam cores que não existem na natureza. O "papa"
Aldous Huxieyjá avisava em 1958: "Uma das vezes que tomei LSD descobri que ouvir discos de
poesias ou textos religiosos é bom de várias maneiras. Em primeiro lugar, há a mesma
experiência estranha que se tem ao ouvir música; a sensação de que, embora otempo
permaneça inalterado, a música dura anos. A poesia ou os textos religiosos adquirem essa
mesma qualidade quase eterna. Outro ponto interessante: a pessoa parece penetrar no
significado interior do que está sendo lido, o significado para ela própria, mais completamente
do que em circunstâncias comuns".

Após ter adquirido certo domínio sobre a experiência em ambientes fechados, parti para os
espaços abertos. No início escolhi o mar. O som das músicas era substituído pelo barulho das
ondas. A proximidade do mar, a sensação de infinito que ele sugere me cativava de forma que
não conseguia expressar em palavras. Anos mais tarde, lendo Freud a respeito do que ele
chamou de "experiência oceânica", encontrei a explicação.

Quem parte para uma vivência dessas está querendo transcender os limites do seu eu. Há
milênios os seres humanos se debatem para resolver a agonia do que se denomina o "eu
insulado" ou "ilhado" na prisão representada pelo ego. E esse ego é composto por todos
aqueles elementos citados anteriormente, que se tornam hilariantes sob a ótica do LSD — as
crenças, os valores, os pensamentos, os condicionamentos, as lembranças, entre outros. A
experiência denominada oceânica por Freud seria a saída da prisão egóica, da gaiola, e o
mergulho no imenso oceano da consciência coletiva.

deles foi a lâmpada estroboscópica: uma engenhoca que piscava na frente do sujeito da
experiência, enquanto ele permanecia de olhos fechados. Comprovou-se, assim, uma relação
entre os impulsos recebidos pelo cérebro e a freqüência das ondas cerebrais. Esse
experimento caminhou paralelamente à pesquisa com substâncias, e hoje seus resultados são
utilizados na fabricação de "sintetizadores de ondas cerebrais", de ampla difusão no mercado.
Trata-se de pequenas máquinas similares aowaïk man que emitem impulsos sonoros e
luminosos, induzindo o usuário a estados compatíveis aos diferentes ritmos das ondas
cerebrais — vigília, sono, disposição para atividades físicas, entre outros. Muitos médicos e
psicólogos utilizam os sintetizadores como instrumento co-terapêutico no tratamento dos seus
clientes.
0S PRIMEIROS CONTATOS COM AS PLANTAS DE PODER Em 1974, já morando no Brasil, por
questões profissionais visitei o Equador. País estranho. Naquele tempo, beneficiados com a
crise do petróleo, os equatorianos viviam um dos seus melhores momentos econômicos. O
sucre, moeda local, valia mais do que o dólar, e a sociedade equatoriana vivia uma verdadeira
febre de consumo. As pessoas admitiam que não sabiam como gastar o dinheiro, e, assim,
Quito possuía a maior quantidade de restaurantes —em proporção ao número de habitantes
—do mundo. A febre de consumo era tamanha, que algumas pessoas jantavam fora duas
vezes na mesma noite.

Hospedei-me na casa de uma família de judeus prósperos, amigos dos meus pais, cujos filhos,
que estudavam nos Estados Unidos, encontravam-se de férias em casa, na cidade de Quito.
Logo fui convidada pelo filho mais velho a conhecer uma tribo indígena num lugar
relativamente próximo à cidade. Aceitei. No dia seguinte, bem cedo, pela manhã, partíamos
numa camioneta, quatro rapazes e eu. Me perguntava o porquê do convite, de eu tê-lo aceito
sem pensar. Minha intuição me dizia que a experiência seria legal.

A cidade foi ficando para trás, e a paisagem, cada vez mais empolgante. Quito é uma das
capitais mais altas do mundo, situada a mais de três mil metros de altitude, e nós subíamos
por uma estrada belíssima, atravessando montanhas, beirando lagos e rios.

A conversa, própria de judeus jovens, cultos e inteligentes, era salpicada por observações —
por parte deles —do gênero: "Olha que planta bonita! Qual será o efeito que ela tem se
fumada?" Eu carregava comigo um papel mata-borrão com uma quantidade de ácidos de
excelente qualidade, porém disfarçava. Fingia não entender. As insinuações continuavam.
Chegamos a Otavalo, uma vila muito mais alta do que Quito, cujos habitantes, conhecidos
como "otavalenhos", apresentavam fortes características orientais e diferiam de tudo o que eu
conhecia, tanto na forma de vestir-se quanto em hábitos e tradições.

Tanto os homens como as mulheres usam a mesma indumentária, e, segundo os meus


cicerones, há séculos é a mesma. Compõe-se de calças de brancura impecável, largas e curtas
até a metade da canela, blusa branca bordada, chapéu preto e um poncho preto dobrado e
usado só de um lado, por cima do ombro. As mulheres usam colares de diversas voltas no
pescoço, bem apertados, parecendo ouro, e tanto os homens como as mulheres têm o cabelo
comprido e trançado numa trança só.

O orgulho étnico dessa interessante população reside em não ter pertencido ao império inça,
do qual o Equador de hoje era uma remota província, e, ao mesmo tempo, de não ter-se
deixado dominar pelo conquistador espanhol. Assim, eles conservaram através de milênios sua
identidade

cultural, suas tradições, seus mistérios.

A distribuição da vila, em torno de um mercado central, assemelhava-se à dos povoados


tibetanos.

Numa parte do mercado vendiam-se ervas. Os rapazes conversavam com os vendedores de


ervas
sobre alguma coisa que não prestei atenção. Soube mais tarde que era a respeito de
alucinógenos

locais.

A altitude de aproximadamente três mil e quinhentos metros torna tudo muito diferente. O
céu parece estar mais perto. Durante o dia o calor era intenso, e o frio da noite também. No
segundo dia tomamos parte dos ácidos que eu tinha levado. A experiência foi agradável. O
grupo se harmonizou. Eles já o tinham tomado nos Estados Unidos, e parecia que nos
conhecíamos há muito tempo. No caminho da expansão da consciência, os relacionamentos
são fundamentais. O clima de camaradagem estabeleceu-se no grupo, e todos nos sentíamos
felizes e plenos.

Havia um pequeno restaurante freqüentado pêloshi ppies que descobriram o lugar. Entramos
e sentamos. No cardápio, no meio da lista dos pratos, estavam escritas pêlos clientes
itinerantes, em inglês, alemão, francês e outros idiomas, referências aos tipos de alucinógenos
que se podiam encontrar na região. Por exemplo: "O sanpedrito da dona Maria dei Socorro
não é bom", "Se for tomar a purga com Celestino leve chocolate", e outras com as mais
variadas referências alucinógenas, em diversas gírias internacionais.

Um índio jovem, com quem os rapazes tinham conversado no mercado, percebeu que
estávamos viajando e perguntou o que tínhamos tomado. Trocamos idéias com ele, e nos falou
do "São Pedro".

Eu já tinha ouvido falar que existiam em alguns lugares do mundo índios que utilizavam
plantas alucinógenas, mas era algo que me soava exótico demais. A possibilidade de vivenciar
uma experiência dessas nos deixou extasiados. No início, a proposta de permanecer em
Otavalo era de um ou dois dias, no máximo. Resolvemos ficar e encarar esses mistérios.

Eu estava eufórica, acreditava estar trilhando o caminho de Jack Kerouac, William Burroughs,
Allen Guinsberg, que eram, e continuam sendo, os maiores malditos da contracultura. Sabia
que eles tinham percorrido selvas, florestas e desertos atrás de substâncias expansoras da
consciência, que desenvolvessem a telepatia e aumentassem a percepção.

São Pedro é o nome sincrético de um cacto de três a seis metros de altura que só cresce em
lugares de mais de dois mil metros de altitude. Os índios preparam uma bebida que
denominam "cimora", fervendo pequenas fatias do cacto. A cultura indígena lhe atribui a
propriedade de "abrir as portas do céu", daí o nome de São Pedro. Seu princípio ativo é a
mescalina, igual ao do peyote mexicano.

Acertar os detalhes de como, quanto, onde e com quem foi fácil. À noite tomamos a cimora,
na casa de um curandeiro. Não havia conforto algum, era cansativo. O curandeiro — ou xamã
— utilizava um chocalho e entoava alguns cânticos que me pareciam mantras. Alguém explicou
que se chamavam "ícaros", que eram algo assim como um mantra pessoal e que os
curandeiros recebiam seus ícaros do astral, numa espécie de iniciação.

Comparando com a experiência de expansão da consciência que eu mais conhecia na época, o


LSD, poder-se-ia dizer que foi uma viagem leve. Mas foi o bastante para sentir com clareza que
me encontrava frente a uma das mais misteriosas vivências que o ser humano pode atingir, e
que por trás dessas pessoas tão estranhas havia um conhecimento que vinha sendo guardado
há milênios e que dependeria da minha atitude desvendá-lo ou não.

A sessão acabou sem maiores acontecimentos, e voltamos para a hospedaria, a pé, numa noite
sem lua, silenciosos e introvertidos. Ficamos com vontade de aprofundar a viagem. Nos dias
seguintes procuramos saber de algum curandeiro que trabalhasse com ayauhasca, mas parecia
que não era o momento. Matamos a vontade de viajar acabando com meu estoque de papel
mata-borrão.

Quando retornamos a Quito, procuramos saber mais sobre a misteriosa bebida que tinha sido
impossível encontrar. Conseguimos a informação de que o caminho era procurar nas regiões
de floresta amazônica e de que a área de Iquitos, no Peru, era uma das mais apropriadas.

Como a minha passagem de retorno ao Brasil percorria Quito — Lima — Santiago — Buenos
Aires e, depois de alguns dias. Rio de Janeiro, achei interessante desdobrá-la, e assim, junto
aos meus parceiros de aventuras, embarquei rumo a Iquitos.

Não foi difícil. Chegamos numa quinta-feira e na sexta já sabíamos que os curandeiros,
vegetalistas ou ayauhasqueiros abriam os trabalhos geralmente aos sábados. Passamos o dia
colhendo informações de como escolher o melhor deles. Achava estranho pedir seriamente
referências sobre algo que ainda considerava um "barato". Os conselhos que recebíamos e os
critérios utilizados me resultavam um tanto hilariantes. Todo esse vaivém aumentava nossa
expectativa. Após horas de procura, sentamos numa sorveteria para checar e cruzar
informações e democraticamente escolhemos um deles e acertamos todos os detalhes para o
trabalho, que começaria no sábado à noitinha. Nossa ansiedade não tinha limites. Recebemos
instruções de fazer abstinência de sexo, álcool, outras drogas e carne de porco.

Finalmente chegou o momento. O local era uma espécie de palhoça de aproximadamente


vinte metros de diâmetro. No centro, o ponto do curandeiro: uma mesa com objetos de poder
—cristais, penas, imagens etc. — e alguns garrafões com um líquido marrom esverdeado.
Olhando para o

conteúdo do garrafão, tive a idéia de que estava frente a um poder que teria uma influência
determinante na minha vida. O curandeiro discursava, enquanto as pessoas acabavam de
chegar e calmamente buscavam um lugar para se acomodar. O discurso era uma ladainha de
feitos maravilhosos relatados pelo vegetalista como obra do seus poderes, e dava para
perceber logo que a modéstia não era seu forte. Falava sobre curas que tinham acontecido
com pessoas que tomaram a purga preparada por ele, de como achava feitiços nas pessoas e
as livrava deles. Enfim, se a metade fosse verdade, estaríamos na presença de um dos homens
mais poderosos do mundo. Dava para perceber que entre as pessoas presentes havia outros
curandeiros. Após todo mundo ter encontrado um lugar para se ajeitar, houve um breve
silêncio, seguido de uma reza conduzida pelo curandeiro e acompanhada pêlos presentes, e
deu-se o inicio da sessão.

Um a um fomos bebendo um copo daquele líquido de sabor ácido e enjoativo e voltando aos
nossos respectivos lugares. O mestre curandeiro entoava seus ícaros. Quando calava, alguém
dentre os outros curandeiros presentes entoava o seu. Eles não deixavam o silêncio tomar
conta. As pessoas iam se aquietando, e os ícaros quebrando o silêncio davam-me a impressão
de que rasgavam um véu invisível que nos estava levando a outra dimensão.

Comecei a sentir alfinetadas pelo corpo todo. Ao mesmo tempo, minha cabeça disparava.
Como num filme acelerado, imagens de minha vida se misturavam, ao mesmo tempo que
parecia haver uma voz emoff dentro de mim que fornecia uma explicação de cada visão.
Compreendi que estava tendo visões, embora a mente pouco ou nada pudesse compreender.
Os ícaros tinham um papel fundamental: seus sons pareciam abrir minha consciência para um
conhecimento deslumbrante. Quando entre um e outro fazia-se um pequeno silêncio, a
experiência ficava difícil e algumas pessoas saíam para vomitar. Entendi por que quando
tomávamos o LSD dávamos tanta importância ao som.

O que mais impressionava era a velocidade com que a consciência funcionava. Adquiri a
certeza de que existia uma realidade invisível, que dava sustentação ao universo
tridimensional que acreditamos conhecer. O invisível suporte do visível. Neste conceito cabiam
todas as buscas da humanidade, atrás de sabedoria, poder, magia, conhecimento e também
religião — religação.

A nossa cultura academicista, universitária, cartesiana, lógica e petulante tinha criado tal
crosta nas consciências, que a função de Aldous Huxiey e Thimoty Leary, ao nos guiar pela
senda alucinógena, era de pôr-nos em contato com um removedor de couraças semelhantes a
inúmeras camadas de tinta, que precisavam de uma substância que progressivamente as
amolecesse, para posteriormente removê-las. Era esse também, num nível mais massificado, o
efeito do trabalho dos Beatles ou dos concertos de bandas derock:

através da sua música, muitas vezes ouvida em estados de consciência alterada, pessoas no
mundo inteiro rasgavam o mesmo véu que separava os diversos níveis de realidade, da mesma
forma como nós o estávamos fazendo nessa palhoça. A diferença residia na metodologia. Essa
forma um tanto indígena, um tanto mestiça, parecia ser mais garantida, ao menos era legal,
não dava cadeia, e transmitia uma segurança silenciosa através de seus enigmáticos oficiantes.

Algumas pessoas levantavam e saíam às pressas para vomitar e quando retornavam aos seus
lugares aparentavam se sentir melhor. Quando o trabalho acabou, uma corrente de
tranqüilidade e bem-estar espalhava-se por todos os cantos. Senti vontade de conversar com
as pessoas, de saber o papel que a ayauhasca ocupava na vida delas. Assim, fiquei sabendo
que, na sua maioria, integravam as camadas mais carentes da população, ou seja, não tinham
acesso a boas escolas e muito menos a universidades. Serviço de saúde, nem pensar!
Recorriam à ayauhasca em busca de alguma cura, da solução de algum conflito, para se livrar
de algum trabalho de inveja ou de mau-olhado. Não pareciam nem um pouco preocupadas
com as questões éticas e/ou esotéricas que nos afligiam. Aceitavam natural e
espontaneamente que a poderosa bebida os levasse ao ponto invisível onde o poder se
manifestava.

Na volta ninguém conseguia dormir, nos sentíamos eufóricos e ao mesmo tempo cansados,
porém não era fácil transmitir o que acontecia com cada um. A telepatia imperava de forma
amena. No dia seguinte, cada um tomou seu rumo. Eles de volta a Quito, e depois para os EUA,
eu para Buenos Aires, a caminho do Rio de Janeiro, Uma certeza: não éramos mais os mesmos.
A ayauhasca assemelhava-se a uma iniciação, um batismo. Nunca mais tive notícias dos meus
companheiros; não sei se continuaram a jornada.

O avião fez escala em Santiago do Chile. Eram os primeiros tempos da ditadura militar do
general Pinochet. Os carabineiros (a polícia chilena, calcada nos moldes da Gestapo) entraram
no avião e ostensivamente revistaram as bagagens de mão e nos comunicaram que quem
estava em trânsito deveria permanecer no avião, numa espera de mais de três horas.
Normalmente minha reação teria sido algo como pedir para descer, criar algum caso para
exercitar a contestação às normas impostas. Em vez disso, para minha surpresa, fiquei calma,
sentada na poltrona, meditando sobre o poder que as sociedades repentinamente investem
em oficiais, soldados e policiais, que na maioria das vezes atuam de forma irracional e gratuita.

Algumas horas depois, estava em Buenos Aires. Meus pais e minha família moravam lá. Eu
sabia desde criança que esse não era meu lugar, sem saber sequer o porquê. Não é à toa que
na época já morava no Rio de Janeiro.

Estava frio, era um inverno rigoroso que contrastava com o clima agradável da Amazônia e do
Equador. Atravessando a cidade, compreendi que para mim ela representava o lugar no
planeta onde vingava um conhecimento que seguia a trilha oposta à da ayauhasca. Tive a
certeza de que não era o meu lugar. Os valores que sustentavam essa cultura não eram os que
eu buscava. Pelo menos tinha a certeza do que eu não queria.

Nos dias seguintes em Buenos Aires, tive algumas experiências desagradáveis que me deram a
determinação de me instalar definitivamente no Brasil. Parecia haver um efeito retroativo na
ayauhasca ou talvez a porta de percepção que ela me tinha aberto nunca mais se fechasse.

Sentia uma enorme diferença na minha forma de compreender os fatos do cotidiano.

Na volta ao Rio, a experiência peruana era cada vez mais presente.

Reencontrei os amigos brasileiros, companheiros de viagens, e resolvemos marcar uma data


para tomar ácido juntos. Nesses tempos, cada vez com mais freqüência, tinham-se noticias de
alguém que tinha embarcado em alguma bad trip ou que tinha "comido uma pálida" —
referência à palidez que caracteriza a queda brusca da pressão sanguínea. Eu mesma achava
que os ácidos não tinham mais aquela conotação divertida das primeiras experiências. O
divertido dava lugar ao cáustico. No início achava graça nas contradições e absurdos da nossa
realidade, que o ácido me mostrava. Depois de um tempo ou de certa quantidade de
experiências alucinógenas, as incoerências tomavam-se cada vez mais nítidas e mais difíceis de
serem aceitas. Ai residia o foco da bad trip. Muitos se atiraram de janelas, cometeram
loucuras, achando que sair desta para a melhor era a chance.

As viagens de ácido, depois da ayauhasca, tomaram-se desagradáveis. Era possível sair do


corpo, porém ficava difícil voltar. Compreendia, no Rio de Janeiro, a experiência de Iquitos: os
ícaros garantiam a viagem e seu correspondente retorno ao corpo. O xamã, ou curandeiro, era
o elemento mediador que estabelecia a conexão entre os dois planos da realidade.

Resolvi parar de usar LSD e, já que no Rio a possibilidade de achar ayauhasca era remota,
prometi a mim mesma que um dia iria para a Amazônia aprender mais com a poderosa bebida.
Enquanto isso não acontecesse, trilharia somente os caminhos tradicionais:

ioga, meditação, sufismo... Assim, além de praticar ioga, adquirir técnicas de meditação,
estudei Patanjali, Krishnamui ü, recebi algumas iniciações na ordem rosacruz, e mergulhei na
teosofia, a doutrina secreta de Helena Blavatsky. Freqüentei as escola do quarto caminho, cuja
proposta me fez reconhecer alguma antiga empatia, talvez originária de vidas passadas, e
encontrei nas práticas deixadas pelo mestre Gurdief o trabalho ao qual eu mais me adaptava.

O VEGETAL Dois anos após a viagem ao Equador, em 1976, nasceu minha filha.

Nessa época minha busca espiritual continuava pêlos caminhos tradicionais.

Anos depois, num domingo no ano de 1983, leio uma matéria no Jornal do Brasil sobre uma
seita

na cidade de Rio Branco (AC) que utilizava uma bebida nos seus rituais chamada santo daime.
Li a

matéria com muita atenção. Nela o autor descrevia os "trabalhos de ritual", "bailados", as
mulheres usando uma roupa estranha, e pensei que talvez a bebida fosse ayauhasca ou algo
semelhante.

Prometi a mim mesma que daria um jeito de fazer uma viagem ao Acre. A promessa não
incluía data. Por uma estranha coincidência do destino, no mesmo dia três pessoas amigas
minhas, mas que não se conheciam entre si e que não eram usuárias de alucinógenos, me
entregaram recortes do mesmo jornal, com a matéria, achando que o assunto era do meu
interesse.

Tive a impressão de que alguma força invisível estava querendo certificar-se de que eu
entenderia o recado. No dia seguinte, uma segunda-feira, outra coincidência interessante:
uma vizinha muito distinta e muito culta convidou-me para uma reunião na casa dela na parte
da tarde, onde compareceriam outras mulheres, todas com filhos pequenos, na mesma faixa
etária da minha filha, com o objetivo de que juntas criássemos um programa de atividades
extracurriculares para os nossos filhos.
Pouco tempo após a reunião ter começado chegaram três homens, parecendo caboclos ou
nortistas, e a dona da casa levantou-se para atendê-los com um ar de intimidade que
contrastava pela diferença socioeconômica entre ela e eles. Parecia-me que eram encanadores
ou pedreiros, que realizariam algum tipo de serviço, mas a nossa anfitriã dirigia-se a eles com
ar de reverência e consideração. Assim, ela levantou-se e pediu desculpas, já que tinha
marcado a reunião sem saber que os "mestres" chegariam nesse momento, e pediu que
continuássemos sem ela.

Minha curiosidade não tinha limites, e quando ela retornou, já no final da reunião, perguntei-
lhe que mestres eram esses, e respondeu serem os mestres da União do Vegetal. Em resposta
à minha pergunta, se era a mesma bebida a que o Jornal do Brasil tinha se referido no dia
anterior, disse que a bebida utilizada era a mesma, que tinha também o nome de santo daime
e que o termo original que denominava as duas era ayauhasca. As diferenças entre o pessoal
do daime e da UDV residiam também no ritual. Eu não acreditava que a metros da minha casa
tinha acontecido o encontro que há tanto tempo esperava e imaginava que seria no Acre.
Perguntei se era possível tomar no Rio. Eles faziam trabalhos todo sábado, e no próximo eu
poderia participar. O combinado foi que alguém me apanharia na minha casa, sábado, no fim
da tarde.

E, assim, no sábado seguinte, um casal de argentinos apareceu na minha residência, dizendo


que iriam comigo por sugestão da nossa amiga em comum e que nunca tinham tomado a
bebida, que seria a primeira experiência.

O local e a situação representavam plenamente o sincretismo racial e cultural característico do


Brasil. O endereço que tínhamos que procurar era numa favela na zona sul, perto do cemitério
São João Batista. A casa ficava no alto do morro, e à direita dela havia um boteco com pagode,
cachaça e toda a bagunça correspondente. À esquerda, uma igreja evangélica que com alto-
falantes pregava uma moral apocalíptica. A casa era um sobrado, e o ritual de que
participaríamos, embora sendo da União do Vegetal, era uma espécie de dissidência, uma
linha talvez um pouco diferente da tradicional. Não havia móveis, só esteiras e algumas
almofadas. Além do mestre oficiante, havia mais um casal de vegetalistas, todos do norte, e o
grupo todo não passava de dez pessoas.

O casal de argentinos me contou que ambos eram refugiados políticos, que estavam sob a
custódia da ONU e que tinham estado presos na Argentina por suas atividades terroristas. O
resto do grupo era composto por intelectuais de diversas origens, na faixa etária dos trinta e
cinco aos cinqüenta anos todos com aquele ar reprimido que tomava conta das pessoas que
tinham algo a dizer nos tempos da ditadura militar.

Bebemos um copo cheio, sem cerimonial, sem ritual. O vegetal era fraco, o trabalho também.
Numa vitrola velha começaram a tocar músicas religiosas muito semelhantes às que eram
cantadas na igreja ao lado. Eu perguntava a mim mesma por que eles não usavam música da
nova era ou mantras. Entre um disco e outro, conversas leves. A Argentina começou a me
relatar suas atividades terroristas, o tempo que passara numa cadeia em Córdoba, na
Argentina, as torturas que sofrera —quando fora presa ela estava grávida —e como seu filho
tinha nascido na cadeia e nem tinha podido vê-lo. Pensei na minha filha, na época com sete
anos de idade; nesse momento, estaria em casa dormindo. Entendi que a ayauhasca me
mostrava que, caso eu tivesse ficado na Argentina, meu destino teria sido semelhante.

Enquanto ela continuava seu relato em espanhol e bem baixinho, para não atrapalhar a
miração das outras pessoas, seu marido mantinha uma atitude tensa e alerta. Só falava para
mim, e em péssimoportunh ol, com atitude de um guerreiro capaz de suportar qualquer prova:
"Esse negócio aí não me fez nada! Eu estou normal!" Compreendi que ele pertencia ao grupo
da revolução do

Até que ponto não seria essa informação fruto do imaginário coletivo? Até que ponto as
atitudes e a fama dele na cidade de Rio Branco, assim como as arbitrariedades que acontecem
dentro do CEFLURIS, não seriam um estimulo à imaginação popular?

Aqui cabe uma afirmação: embora possa dizer que foi ele quem deu o grande aval para minha
filha entrar nessa trilha que a está levando à autodestruição, o objetivo dele, quando a
aconselhou a tomar o daime, não era esse.

A impressão que me resta é a de ser o Sebatião Mota um remanescente amazônico da filosofia


do movimentohippie. Ele só queria contestar os padrões de consumo em que a sociedade se
apóia. Atitude que assumem muitas pessoas que utilizam as substâncias já mencionadas.

Acredito, também, que não concordaria com muita coisa que começou a acontecer no
CEFLURIS após sua morte. De concreto, pode-se afirmar: após a morte dele, o CEFLURIS
rompeu definitivamente com os princípios cantados nos hinos: Amor, Verdade e Justiça.

ACURA DA AIDS I Neste capítulo, e nos dois seguintes, selecionei os casos de portadores do
HIV que achei mais significativos. Muito mais se poderia contar sobre fatos estarrecedores
ocorridos no CEFLURIS com portadores do vírus da AIDS que tentaram curar-se com a
ayauhasca e foram lesados pela seita.

Poucas doenças ao longo da história tiveram uma conotação moral tão culposa quanto a AIDS.
Nem a sífilis, antes dos antibióticos, gerava tanta culpa, pois no fundo tinha uma espécie de
glamour machista. Era "doença de homem".

Já a AIDS parece ter vindo para detonar tudo àquilo que ficava subentendido, que era para se
calar. No ocidente, o elaborado sistema de culpa judaico-cristão desaba em cima do portador
do vírus. As religiões tradicionais têm dificuldade em lidar com a síndrome, em especial após o
surgimento de padres e pastores contaminados. Logo no primeiro ano de existência da igreja
daimista de Mauá houve a primeira morte. Um rapaz fardado, que morava na comunidade,
onde poucos sabiam que era portador do vírus, contraiu uma pneumonia e teve um rápido
fim.

Não demoraram a aparecer outros portadores do vírus. Além dos estragos que a doença causa
nas formas do pensamento, a certeza de uma morte sofrida torna a agonia ainda mais terrível.
Em geral, a atitude dos doentes era a de não tomar o AZT, tomar daime, fazer "trabalhos de
cura" e se deixar levar.
No carnaval de 1989 apareceu, na minha residência, um desconhecido: Nome: Nestor
Perlonguer Nacionalidade: argentina Profissão: antropólogo, poeta, professor da Unicamp e
bolsista da Fundação Guggenheim. Havia tomado daime em São Paulo, num grupo ainda
pequeno comandado por Pedro Malheiros, que fora incumbido pelo padrinho Sebastião (ainda
vivo e liderando o CEFLURIS) de organizar a igreja daquela cidade. Veio à minha procura,
querendo tomar daime em Mauá.

Explicou que o que ele buscava na bebida era o êxtase, no sentido dionisíaco. Não acreditava
em religião e sim em expansão da consciência através do êxtase. Entendia que o daime
associado aos bailados o levariam a este estado. Abstraia-se do conteúdo religioso.

Subimos a serra. No carnaval são realizados trabalhos nos quais se canta o hinário de António
Gomes, contemporâneo do mestre Irineu. A igreja naquele tempo ainda era em cima do
morro. Após certa quantidade de hinos, vi que ele não conseguia mais bailar. Saímos e
sentamos numa pedra. Ele disse que nunca tinha visto "nada tão forte", e o trabalho estava
leve. Trocamos idéias sobre religião. Enquanto conversávamos, ainda sob os efeitos do daime,
eu tinha a sensação de ver a morte no rosto dele. Contou que era a primeira busca do êxtase
através de um caminho espiritual. Anteriormente tinha tentado atingir a consciência
expandida através da prática da homossexualidade e de todos os abusos possíveis dentro dela.
Não tinha se furtado a nada. Na Argentina, um dos países mais fechados à questão
homossexual, tinha sido fundador do primeiro grupo de militância pêlos direitos dos
homossexuais. Era preso continuamente. Às vezes no mesmo dia em que tinha sido solto o
prendiam de novo.

"Me levavam puxado pêlos brincos", comentou. Vale esclarecer que no tempo em que ele
usava brincos na Argentina, só alguns audaciosos em São Francisco ousavam usá-los. No Brasil,
havia produzido um trabalho antropológico, pioneiro no gênero, que tinha se transformado no
livro O Negócio do Michê. O trabalho consistia numa pesquisa antropológica e no respectivo
mapeamento das áreas de prostituição masculina em São Paulo. Ele pensava naquela época
defender tese na Sorbonne, em Paris, sobre o mesmo tema.

A amizade com Nestor mostrou-me outro universo de daimistas. Até então, as pessoas que
formavam o grupo de Mauá eram na sua maioria cariocas, alternativos que pretendiam formar
parte da contracultura, mas que não tinham a cultura necessária prévia para poder de fato
fazê-lo. Muito menos uma formação esotérica que desse um suporte e/ou uma meta ao
trabalho com o daime.

Estas carências justificavam muitos deslumbramentos. Através de Nestor conheci um tipo de


vanguarda esotérico-universitária-nova era-paulista que, partindo de diversas origens,
convergia no daime. A mistura era, além de eclética, interessante. Tinha de tudo:

antropólogo pai-de-santo, sociólogo erudito em orixás, iogues, ex-saniases do Rajneesh, ex-


padres da teologia da libertação, anarquistas, astrólogos, terapeutas alternativos e
tradicionais, músicos, pessoas de teatro, donas-de-casa, além dos habituais curtidores de
barato.
A mistura não era muito harmoniosa, porém achei-a divertida. Detesto caretice e pessoas
massificadas. Gosto de indivíduos que buscam, que procuram. Na época, Nestor pretendia
viajar a Paris para defender tese na Sorbonne sobre a evolução da prostituição masculina.
Alguma coisa nesse trabalho em Mauá, durante nossa conversa naquela pedra, determinou
uma súbita mudança nos planos: resolveu que sua tese seria sobre o santo daime e a vida nas
comunidades daimistas.

Partiu numa viagem para o Céu do Mapiá e depois Paris. Na primeira escala, na floresta
amazônica, conviveu com Sebastião Mota durante algumas semanas, colhendo material para a
tese. Já em Paris, telefonou angustiado, era maio de 1989. Um dos motivos da sua angústia
eram manchas na pele e feridas na boca que não saravam. Sugeri o teste HIV. Aquele militante
que tinha encarado a polícia argentina, que tinha se aprofundado nos subterrâneos da
prostituição e da degradação em São Paulo, que tinha enfrentado a floresta amazônica para
chegar aonde o padrinho residia, morria de medo do teste. Foi difícil. Mais difícil ainda abrir o
envelope com o resultado: positivo.

O medo, a frustração e a tradicional rejeição com que os franceses recebem os estrangeiros


fizeram com que retomasse ao Brasil, sem chegar a defender a tese. Antes de retomar foi
visitado em Paris por dois daimistas franceses, residentes no Brasil, de férias na França.
Sophie, cuja chegada ao daime eu tinha presenciado em Mauá, dividia seu tempo entre o
Brasil, os Estados Unidos e a França, negociando cristais, e Antoine, que residiaw c om unidade
de Mauá.

Convidaram-no a tomar daime num parque, nas proximidades de Paris. Antoine foi categórico:
disse ao Nestor que não deveria tomar AZT nem fazer tratamento algum — só uma colher de
café de daime, todo dia de manhã, em jejum. Assim, ele "garantia" a cura. Nestor me
telefonou apavorado, a imposição de Antoine colocara-o em crise. Perguntou minha opinião.
Achei loucura. Então, ele me perguntou como eu tomava daime e discordava dos dogmas. Os
dogmas eram conseqüência de devaneios de daimistas, no meu entender.

Retornou ao Brasil, doente, cheio de culpas por não ter completado sua missão. Além da AIDS
para atrapalhar, havia a rejeição dos acadêmicos franceses: o tema santo daime, cultura
alternativa, não interessava na França.

Uma vez em São Paulo, a doença tornou-se prioridade. O assédio dos daimistas deixava-o
irritado. O daime piorava as diarréias e irritava as mucosas do aparelho digestivo. Queixava-se
de ser alvo do fanatismo místico-religioso. Criticava asperamente, e com fundamento, a
instituição que se tinha formado a partir da bebida, a avidez por dinheiro da cúpula da seita e
o novo chefe da igreja de São Paulo, o antropólogo Walter Dias, até seus últimos dias de vida,
em 1992.

Guardou, sim, uma especial consideração pelo amigo e antropólogo Edward McRae e por
Ulysses e João, segundo ele, as únicas pessoas que empregaram o amor e a solidariedade
conforme se expressa nos hinos.
Até as últimas vezes que o visitei no hospital, em São Paulo, não cansou de me advertir dos
perigos que a expansão do daime nas grandes cidades significava. Insistia na idéia de encontrar
uma forma de alertar a sociedade a respeito.

Foi enterrado em São Paulo, num dia chuvoso, ao som dos hinos do daime. ACURA DA AIDS II
Em 1° de novembro de 1989, durante o trabalho de finados, conheci uma nova integrante da
comunidade de Mauá: Cecília Boriá. Também Argentina. Na época tinha trinta e seis anos e era
portadora do vírus HIV. Devido à óbvia empatia que acontece por falar a mesma língua, e por
alguma razão mais profunda, foi logo contando: tinha contraído o vírus usando drogas
injetáveis. Apresentava-se como ex-prostituta e ex-assaltante de hospitais para roubar
morfina. Falava desses assuntos com incrível naturalidade.

Chegara à comunidade em busca de apoio e redenção. Tinha freqüentado o ambulatório do


Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde recebia o AZT gratuitamente. Porém, a consciência
da doença a levara a uma busca espiritual.

Ao chegar à comunidade, recebeu a promessa da cura. Fiquei espantada. Na época eu estava


em contato com um médico de fama internacional, o doutorLUÍS Moura, residente na região,
que trabalha com sistemas alternativos de aumento da imunidade, por ele desenvolvidos,
baseados na bioenergética e na auto-hemoterapia. Tinha constatado resultados excelentes em
outros casos de deficiências imunológicas. Obviamente não faria mal algum a ela participar
desse tratamento paralelamente aos "tratamentos espirituais" prometidos pêlos "curadores"
da comunidade.

Uma das condições que lhe tinham sido impostas como parte das regras que deveria cumprir
para morar na comunidade de Mauá, era evitar conversas comigo. Como era rebelde,
descumpriu essa condição e fomos ver o mencionado médico. Recebeu dele as instruções para
realizar a auto- hemoterapia. O carisma do doutorL U ÍS Moura a tinha cativado.

Logo em seguida, constatou uma incrível melhora no seu estado geral. Cecília era uma pessoa
muito lúcida, percebia com clareza os processos de lavagem cerebral da doutrina daimista,
porém, por ser muito carente, submetia-se na aparência, atraída pela promessa da cura.

Eu argumentava com ela que a cura do vírus ainda não existia, nem mesmo na medicina oficial
e muito menos na alternativa. Existiam, sim, como acontece hoje, diversos métodos para
melhorar as condições de sobrevida. Ela se sentia entre a cruz e a espada. Resolvi não
interferir. Tinha mostrado a ela uma trilha, no mais, seu livre-arbítrio deveria conduzi-la. Fiz a
ligação entre ela e o Nestor, que na época estava na França e já sabia que era soropositivo.

Ela mesma constatou que, como conseqüência da melhora obtida pelo tratamento indicado
pelo doutorLUÍS, os ataques à minha pessoa e as exigências de se afastar de mim por parte das
lideranças da comunidade aumentaram.

Apareceu um dia na minha casa, voltando da cidade de Resende, onde tinha ido buscar o
resultado de um exame de sangue. Perguntei que exame era esse, e ela me respondeu que se
tratava do teste HIV, que estava fazendo mensalmente, por indicação do pessoal da
comunidade, para ver se "ainda" era soropositiva. Manifestava a certeza de que em qualquer
momento o teste passaria a dar resultado negativo por obra e graça do daime.
Achei tudo uma loucura e disse a ela. Fui bem clara, pois compreendia que a vida dela estava
em jogo. Ela respondeu que a comunidade de Mauá estava empenhada na cura dela, que, uma
vez obtida, ela seria uma "amostra" dos poderes do daime para grupos de aidéticos que
começariam a vir dos EUA, trazidos pelo médico José Rosa, integrante da comunidade e dono
de um consultório em Boston.

Assim, ela retribuiria o empenho deles, mostrando sua "cura" e colaborando para aumentar o
faturamento da comunidade. Estávamos nos primeiros meses de 1990. Comecei a distanciar-
me da comunidade. Minha filha freqüentava-a nos fins de semana, mais por causa dos grupos
de jovens que pelo daime em si. A Cecília me visitava esporadicamente, quando conseguia sair
da comunidade com o pretexto de fazer algum exame. Quando fazia calor, íamos tomar banho
nas cachoeiras de Penedo e, quando estava frio, passear na cidade de Resende. Alertei-a sobre
os invernos de Mauá e o risco

das infecções oportunistas. Parecia não querer tocar no assunto, e fiquei quieta. Fizemos um
trato: qualquer coisa que acontecesse, poderia contar comigo, mandando recado através de
alguém. Em abril de 1990, com os primeiros sinais do frio, recebi um dramático pedido de
socorro: Cecília estava mal e queria me ver. Parti para Mauá. Cheguei à comunidade e
encontrei-a queimando de febre, chorando e em profundo desespero.

A pessoa da comunidade que lhe aplicava as injeções de auto-hemoterapia, que segundo ela
constatara faziam-lhe um bem enorme, recusava-se a continuar com o tratamento. A
desculpa: medo de se espetar com a seringa com o sangue contaminado. Ora, a assistente
era^enfermeira profissional, e a possibilidade de o contágio acontecer era muito improvável.

Cecília tinha piorado nos últimos dias e manifestado seus dois pontos fracos: asma e infecção
renal. A asma melhorara com a auto-hemoterapia, e quanto à infecção renal, ela tinha feito
uma cultura, com Bactrim. Os daimistas não a deixavam tomar o Bactrim e exigiam que ela
tomasse daime. A ayauhasca costuma produzir diarréia e a AIDS também.

Assim, fragilizada, recusava-se a tomar o daime e deixava de corresponder às expectativas dos


seus zeladores. Ante os apelos dela pelo Bactrim, a médica da comunidade tinha lhe fornecido
amostras grátis de um antibiótico específico para infecções respiratórias, o que em nada
contribuía para resolver a infecção renal e piorava o estado geral dela.

Cecilia queixava-se também da forma como era tratada —segundo ela, com agressividade. E,
além do mais, recebia pouca comida. Estava frágil e revoltada. Fiquei atônita, voltei para
Mauá, comprei algumas caixas de Bactrim e retornei à comunidade. Não tinha condições
materiais de assumir essa situação. Já mais calma, botei-a no carro e fomos dar um passeio.

Os daimistas me olhavam com apreensão. Expliquei-lhe meu parecer: a vida dela estava em
jogo. No meu entender, tinha que voltar para São Paulo e se tratar no Hospital Emílio Ribas.
Após um tempo de tratamento lá, quando melhorasse, poderia ficar na minha casa.

Retornamos à comunidade, deixei-a lá e desci a serra preocupada. Uma semana depois, na


sexta-feira à noite, apareceu na minha casa um integrante da comunidade — Robertinho —,
nervoso mas querendo parecer calmo, perguntando se a Cecília (que aguardava no carro)
poderia passar a noite na minha casa. Acrescentou que ela estava muito mal, mas garantiu que
ela não iria fazer a "passagem" (morrer) nessa noite. Fiquei perplexa. E ainda mais: no dia
seguinte, a atual esposa do ex-marido dela viria buscá-la para levá-la a São Paulo. Obviamente
concordei. Era uma sexta-feira, véspera de um feriado prolongado. A Cecilia ardia em febre,
mas estava exultante.

Com alguma dificuldade consegui entender a história. Após minha descida de Mauá na semana
anterior, preocupadas com o agravamento do estado dela, e sabendo que eu estava ciente do
caso, temerosas de serem responsabilizadas por algum eventual desfecho trágico, as
lideranças da comunidade daimista tinham resolvido agir.

Uma das características do fanatismo é a de fazer as coisas diferentes de como devem ser
feitas. Ela tinha sido cadastrada no Hospital Emílio Ribas, que já era, e continua sendo, o
melhor local para tratamento da AIDS em toda a América Latina. Pois bem, já que ela
implorava ser encaminhada para São Paulo, eles a tinham levado para o Rio de Janeiro.
Naquela cidade, tinha sido submetida a uma maratona tentando internar-se em hospitais,
onde, após aguardar horas, recebia sempre a mesma resposta: "Além de não termos vagas,
não há razão alguma para ela procurar hospital no Rio, quando tem a chance de ser tratada no
melhor lugar possível, que é o Emílio Ribas, em São Paulo".

Após uma semana de desgaste, no calor do Rio de janeiro, de filas em hospitais, encontrava-se
exausta e doente. Depois de alguns dias na minha casa descobri que ninguém tinha feito
contato com o ex-marido dela, como haviam me informado.

Assim mesmo, achei vantagem no fato de ela estar fora da comunidade. Levei dias até achar
seus familiares, em São Paulo, e demorou até que eles se dispusessem a vir buscá-la. Ela não
perdia o bom humor, e não parava de celebrar a façanha de ter-se livrado dos daimistas. A
doença avançava assustadoramente. Consegui uma vaga na Santa Casa de Resende, e após
alguns dias foi transferida para o mencionado hospital paulista, onde veio a falecer duas
semanas depois. Deixou comigo, na esperança de retornar, seus objetos pessoais e o diário da
sua "cura" durante o tempo que passou em Mauá.

No diário ela relata as sessões de "terapia", realizadas pela Patrícia, para o que não tem
nenhuma habilitação médica. Em várias dessas sessões também estava outra suposta doente:
a francesa

Sophie — a mesma que visitou Nestor, em Paris, sugerindo que ele suspendesse o AZT e
tomasse apenas daime. Alguns meses depois de Cecília falecer em São Paulo, Sophie suicidou-
se em Paris.

A CURA DA AIDS III

A casa de daimistas para onde ela tinha se dirigido era a do ator Carlos Augusto Strazzer, pai
de três adolescentes, todos daimistas, e que na época encontrava-se gravemente doente.
Pessoa de profunda sensibilidade, Carlos Augusto demonstrou compreender como ninguém o
que estava acontecendo e apontou um caminho para uma solução digna. Após conversar com
a Verônica e induzi-la a retornar para casa da minha amiga, me telefonou dizendo: "O que se
passa com a tua filha é conseqüência de uma desastrada intromissão das pessoas da seita num
relacionamento entre mãe e filha. A religião, que deveria ter funcionado para unir, foi utilizada
para separar. Você não deve se afastar, deve lutar dentro da doutrina, continuar tomando
daime. No dia dos Santos Reis — 6 de janeiro — o padrinho Alfredo (principal líder da seita,
normalmente na Amazônia) estará no Rio de Janeiro". (Nessa data acontece um trabalho de
daime que é um dos pontos alto» do calendário daimista.) "Eu falarei com ele — acrescentou
— para se reunir contigo, tomar conhecimento dessa história e encontrar uma solução."

O Carlos Augusto me emocionara, achei que, enquanto houvesse pessoas com essa clareza,
nem tudo estava perdido. Na data combinada, viajei ao Rio e antes de ir para a igreja passei na
casa dele.

Com enorme sabedoria, ele me explicou que em todo grupo humano o ponto mais delicado
são os adolescentes. De alguma forma, o caso da Verônica era um alerta. Segundo ele, eu
deveria conseguir que o Alfredo entendesse que a questão devia ser focalizada não como uma
situação conflitante entre mãe e filha, e sim como uma manifestação de que a organização não
dispunha de um fórum especial para tratar desses casos, e que, se continuassem sendo
tratados no "grito" ou no diz-que-diz, não demoraríamos em amargar terríveis tragédias.

Chegando à igreja, procurei o Alfredo. Eu o tinha conhecido anos atrás, quando viera da
Amazônia conhecer a comunidade e ajudar na sua estruturação. Nessa época ele era um
caboclo simples, humilde, usava chinelos de dedo e calça surrada. Era simpático e tímido. Não
tinha o hábito de tratar com urbanóides do sul do país.

Músico nato, cativava as pessoas com seus modos delicados. Mas com o tempo, e com o
poder, o padrinho Alfredo se modificou muito. Ao procurá-lo, não demorei para perceber que
o "circo estava armado". Com a desculpa de que estava doente, com úlcera no estômago, foi
adiando a nossa conversa até o final do trabalho. O Alfredo já não era mais o mesmo.
Elegantemente trajado, ficara inacessível, como todo líder de seita, cujos acólitos mais
próximos mantêm no alto de um pedestal.

A reunião aconteceu com o dia amanhecendo. Depois de uma noite inteira tomando daime,
pitando (fumando maconha) e bailando, o raciocínio é sinônimo de desafio. Da reunião
participava ostaff do Céu do Mar e outras pessoas que, além de não conhecer o caso, nada
tinham a ver. As pessoas interferiam, chegavam a gritar colocando-se entre o Alfredo e mim,
não me permitindo falar quando eu tentava relatar os fatos que incriminavam os daimistas.
Sentia-o dividido: se por um lado entendia que tinham sido cometidos muitos erros, por
alguma razão não lhe interessava resolver a questão.

Fazendo uso de um raro talento político, ele concluiu: "O caso é complicado, não me cabe
encontrar a solução. Só posso lhe dizer que enquanto o problema não estiver resolvido, e a
senhora não estiver morando de forma harmoniosa com sua filha, ela está proibida de tomar
daime. Só não sei lhe dizer de que forma a senhora vai chegar a essa harmonia. Porém,
reafirmo aqui minha determinação de que enquanto a senhora não me comunicar que as
coisas se resolveram, a Verônica não fará trabalho de daime".
Compreendi que ele havia sido engolido pelo espírito de grupo. Aquele homem simples que eu
tinha conhecido anos atrás, estava inebriado pelo poder. Coloquei para ele a seguinte
comparação: "Há alguns séculos, o homem civilizado chegou à bacia amazônica, tomou o ouro
e as pedras preciosas dos índios, e em troca deu bolinhas de gude e espelhinhos. A ayauhasca
pode ser comparada ao ouro, pelo seu enorme valor para se atingir o conhecimento. E o
senhor como os índios está recebendo, em troca desse ouro, espelhinhos e bolinhas de gude".

Posteriormente, soube que na época ele se encontrava no Rio de janeiro devido a problemas
que tinham acontecido com uma jovem carioca, que como tantas outras tinha-se deslumbrado
com o universo descortinado pela bebida e seguido a trilha que leva para o Céu do Mapiá, na
floresta amazônica. Lá, fora seduzida pelo padrinho Alfredo, que já é casado com três
mulheres, e a moça tinha apresentado um surto esquizofrênico.

Além da poligamia em si, o caso é agravado pelo fato de que duas de suas mulheres são irmãs
e moram na mesma casa com aquele que hoje é o líder do CEFLURIS. Me pergunto: Até que
ponto essa transgressão às leis afeta os filhos do padrinho e os adeptos por ele comandados?
E, além disso tudo, seu envolvimento com a jovem — o que evidencia mais um caso
escandaloso com menores —me dava a impressão de que não havia comando maduro e isento
no CEFLURIS. Hoje tenho certeza absoluta de que não há.

Obviamente, a sugestão dada pelo Carlos Augusto Strazzer a respeito de se criarem normas
específicas para os adolescentes não tinha nem sido considerada, e seis meses depois, na
comunidade Céu do Mapiá, o adolescente Jambo tomava a trágica atitude de pôr fim à própria
vida. Confirmava-se, assim, a intuição e o profundo conhecimento da questão que o Strazzer
demonstrara ter. Seis meses após o suicídio do Jambo, Carlos Augusto também partiu, levado
por uma terrível doença.

Após a reunião, retornei para Penedo, decepcionada. A partir de então, com quinze anos de
idade, tendo casa para morar com dignidade, uma mãe disposta a não poupar sacrifícios para
fazer dela uma mulher resolvida, minha filha tornou-se uma peregrina. Foi acolhida por
diversas famílias de Resende, que se apiedavam dos seus relatos patéticos e mentirosos. A
maioria dessas famílias eu não conhecia. Em comum a todas as casas por onde passou: foi
expulsa por criar desavenças entre os membros da família. Os endereços dessas residências
me eram ocultados. Eu não parava de implorar às autoridades, ao Conselho do Menor. A
promotora me aconselhava esquecê-la porque, segundo ela, minha filha "não prestava". Em
vão, tentava explicar que ela tinha sido vítima de uma lavagem cerebral e que enquanto não
fosse feito um tratamento específico para resgatar sua identidade tudo seria em vão.

Eu suspeitava de que a lavagem cerebral continuava, que os daimistas persistiam no


aliciamento da Verônica. Porém, não tinha provas concretas. Ela rejeitava tudo o que poderia
vir de mim. Consegui uma psicóloga que se dispôs a tratá-la, omitindo o fato de ser eu quem
pagava o tratamento. Para que isso fosse possível, precisei de autorização da Promotoria da
Infância. Para concordai a promotora exigiu que eu fizesse um eletroencefalograma. Eu não
podia acreditar em tamanho absurdo. O exame seria feito por um neurologista a pedido e por
conta da justiça. Eu queria apenas que minha filha recebesse a ajuda de um tratamento
psicológico.

Quando o médico solicitado para fazer o exame soube da motivação, recusou-se a fazê-lo.
Teve de ser intimado judicialmente, e eu fui acompanhada por uma assistente social ao
consultório dele. Os absurdos me esmagavam. O exame foi feito, o resultado: normal. Nesse
absurdo passaram-se vários meses. Finalmente o tratamento com Verônica começou.

Nesse período, ela morava numa casa relativamente próxima à minha residência, cujo
endereço me era cuidadosamente ocultado. Para vê-la, eu precisava deixar recado com uma
assistente social que realizava a função de mediadora.

Durante esse tempo todo, de absurdos e disparates, minha cabeça corria o risco de dar um nó.
Era muita coisa em jogo: em primeiro lugar, minha filha, com quinze anos de idade,
peregrinando de casa em casa, no meio de desconhecidos, sendo rejeitada, passando
necessidade, quando tinha um lar e uma mãe provedora.

Em segundo lugar, minha religiosidade estava em crise. Tudo isso estava acontecendo porque
tinha buscado um caminho que me aproximasse de Deus. Como entender? Como aceitar? No
meu desespero, achava que tinha que encontrar uma solução dentro do próprio daime. Passei
a freqüentar igrejas e grupos do Rio e São Paulo, tentando achar uma solução através da
expansão da consciência.

Um dia, antes de ir ao Rio para um trabalho de daime, na véspera do dia de São Pedro, 28 de
junho de 1992, sabendo que a Verônica estava precisando de roupas, mandei-lhe recado pela
assistente social para passar na minha casa, no dia seguinte, e irmos juntas a Resende comprar
o que ela estivesse precisando.

Fui para o Rio e, durante o trabalho no Céu do Mar, alguém me disse que o Jambo tinha feito a
"passagem" (expressão usada pêlos daimistas para se referir à morte). Com dificuldade
consegui extrair detalhes que os daimistas se recusavam a dar. O clima de terror pairava no ar.

Disseram-me que ele tinha se jogado numa fogueira no Mapiá. O que esse menino, que eu
tinha conhecido tempos atrás em Mauá, estaria fazendo no Mapiá? O que o teria empurrado
para o fogo?

Chegando a Penedo, a Verônica apareceu em casa logo em seguida, como tinha sido
combinado. Contei-lhe a tragédia. Ela começou a rodar sobre si mesma como um pião e dizia:
"Ele não podia ter feito isso! Nós tínhamos sido nomeados responsáveis por zelar pela
'bandeira da paz', no caso eu deveria ter ido primeiro. Além do mais ele era do 'daime eterno'
e, portanto, não poderia ter se suicidado, porque a vida dele pertencia ao daime!"

O daime eterno é uma espécie de confraria dentro da seita, formada só por homens que,
através de algum ritual de passagem que desconheço, entregam a vida ao daime. Eu não
consegui acreditar no que ouvia. Esses símbolos e atitudes fascistas, "bandeira da paz",
seguem um modelo de criação corporativista do gênero juventude janista, juventude
peronista, juventude nazista, tudo o que eu tinha combatido durante a minha vida inteira. E
esse par de adolescentes inocentes tinham sido programados para serem utilizados com essa
finalidade, em nome de Deus! O Jambo tinha pago com a vida de uma vez só, e a Verônica
pagava em pequenas prestações, dia após dia. Ela chorava e eu morria de vontade de pegá-la
no colo, de lhe explicar o processo a que tinha sido submetida, mas ela não permitia sequer
que me aproximasse.

Fora essa tragédia, o ano de 1992 transcorreu sem grandes novidades. Sabia que minha filha
estava morando num condomínio a menos de um quilolitro de distância da minha residência,
porém não tinha acesso a ela. Para entrar em contato com ela, precisava localizar a assistente
social e contar com a boa vontade dela. Sabia que freqüentava a escola e que a família com
quem morava era de um coronel do exército. Eu suspeitava de que os daimistas de Mauá
continuavam com o processo de sedução mas não podia provar.

No final do ano, o coronel exigiu a saída imediata dela. A Verônica tinha conseguido perturbar
a ordem familiar, desacatar sua autoridade e semear a discórdia. Eu continuava tomando
daime, pedindo às forças com que a ayauhasca nos põe em contato a ajuda necessária para
restaurar nosso vínculo, trazer minha filha para casa e reparar os efeitos de tanto sofrimento.
Só tinha a fé para me agarrar.

Quando saiu da casa do coronel, arrumou outra casa, outra família, não houve nenhuma ajuda
para trazê-la de volta. Durante 1993 ela ficou com diversas famílias da cidade de Resende. Eu
sempre sabendo de longe os passos que ela dava. Cidade pequena, as pessoas gostam de dar
más notícias. Era normal ouvir: "Ontem vi sua filha bêbada, em tal boate...". Sabia que ela
trabalhava numa butique de Resende e mandava interlocutores, sem apelar.

Nesse meio tempo a comunidade daimista do Céu da Montanha passava por uma profunda
reformulação. Alex Polari, seu fundador, morava na Amazônia. O médico José Rosa tinha
assumido a direção e estava "limpando a casa". Eu o conhecia dos tempos em que o grupo de
Mauá era pequeno. Demonstrávamos simpatia mútua. Presenciei um longo e doloroso
processo através do qual ele havia se curado de um câncer no pâncreas, que o tinha levado à
beira da morte.

Tudo indicava que a limpeza que ele estava realizando na comunidade não era só física — era
espiritual e moral. Seu intuito era resolver todas as travas que tinham se originado nesses
últimos anos — a minha história não era a única, havia outros casos bem escabrosos — para
deixar o lugar em condições de receber grupos de americanos que chegariam para fazer
tratamento com ayauhasca, orientado por ele. Anteriormente, José Rosa já tinha consultório
em Boston.

No dia 3 de novembro de 1993, o Zé Rosa, como é chamado, apareceu de repente na minha


casa. Sentamos para conversar na frente de um pequeno altar com daime e fotos do mestre
Irineu. Com modos carinhosos e sinceros, passou a me relatar que no momento em que estava
começando o trabalho de finados, na noite do dia 1° de novembro, sem prévio aviso, a
Verônica tinha se apresentado a ele, vestindo a farda, dizendo que estava precisando tomar
daime.
Ele disse ter conhecimento "por alto" que havia uma história complicada a respeito, porém no
momento sentira uma voz interior dizendo: "Deixa..." Assim ele concordara que ela fizesse o
trabalho, com a condição de bater um papo no final e ouvir dela o que estava acontecendo.

Quando o trabalho acabou ela já não estava mais no salão para bater o tal papo. Seguindo sua
consciência, tinha se prontificado a vir à minha casa saber por mim o que tinha acontecido e
em que pé estavam as coisas. Relatei-lhe os fatos, e ele ficou tremendamente chocado.
Expliquei também que, segundo a Verônica havia dito às assistentes sociais e à psicóloga, ela
não estaria mais interessada em tomar

daime. Eu sabia que havia na própria comunidade pessoas interessadas em sabotar a liderança
dele, pelo seu intuito de limpar a casa. Como existia uma proibição judicial, e do padrinho
Alfredo, de a Verônica freqüentar e tomar o daime, a questão me parecia uma cilada, armada
pêlos inimigos dele, com a colaboração dela.

Disse-lhe também que admirava sua determinação de enfrentar com coragem a tarefa de
transformar a comunidade num ponto de luz, pois até agora era a escuridão que tinha
dominado, e fui bem sincera: "Como é que você vai conseguir colocar em atuação forças
curadoras num local onde se cometeram tantas injustiças, onde se originou tanto sofrimento?
Como você vai agir em relação a uma história tão truculenta como a nossa? Nos varrendo para
baixo do tapete, como uma sujeira desagradável?"

Emocionado, ele me respondeu que tinha a firme determinação de limpar nossa história —
minha e da Verônica — e se colocava à disposição. Perguntou onde eu estava tomando daime.
Respondi que com diversos grupos alternativos em São Paulo e no Rio de Janeiro, e às vezes na
Barquinha, também no Rio. Sempre com a voz embargada pela emoção, me disse: "De jeito
nenhum! Não faz sentido você viajar tantos quilômetros. Teu lugar é em Mauá! Volta! Vamos
tomar daime juntos e começar a resolver esse caso".

Foi embora, depois de me abraçar com carinho e reafirmar que, juntos e com fé, iríamos
vencer. Fiquei emocionada, mas desconfiada. No mesmo dia, perguntei para a assistente social
que história era essa de a Verônica ir a Mauá tomar daime. Não havia uma proibição judicial a
respeito? Não era função do Conselho Tutelar do Menor zelar por ela e fazer respeitar a lei?

Ela também ficou surpresa e visitou a Verônica para saber o que havia acontecido. Minha filha
negou os fatos de forma veemente. "De jeito nenhum! Jamais voltei a tomar o daime. Isso só
poderia ser produto da imaginação de uma mente doentia!", respondeu a Verônica. Percebi
que havia mais podre no reino do daime que a minha imaginação era capaz de supor. Três
semanas depois da visita do Zé Rosa, no dia 28 de novembro, recebo o telefonema de uma
senhora que dizia ser proprietária da loja onde a Verônica estava trabalhando e que a minha
filha estava mal. Segundo ela, o que a Verônica tinha era falta de mãe. Respondi que mãe ela
sempre teve, que nunca tinha me furtado a exercer essa função.

Ela queria saber se eu estava disposta a receber minha filha. Nada neste mundo me faria mais
feliz! A ligação caiu. Meia hora mais tarde a Verônica chegava em casa aos berros:
"Mãeeeeeeeeeeeeeeee!", chorava compulsivamente. Pela primeira vez em quase três anos
pude abraçar minha filha.
Ambas choramos. Não conseguíamos falar. Deitou-se na minha á cama e dormiu
imediatamente. Eu não cabia dentro de mim. Era uma mistura muito grande de emoções com
surpresa. Agradeci às forças invisíveis, ao plano espiritual. Quando acordou, pegamos o carro,
fomos a Resende catar as coisas dela. Da mesma forma que sua identidade estava aos
pedaços, as suas coisas estavam espalhadas em diversas casas.

Ela estava estressada, esgotada, mal alimentada. Disse estar com úlcera por passar fome.

Acolhi-a com amor e coloquei uma única condição: fazermos uma terapia familiar. Ela aceitou.

Na convivência cotidiana percebi que tinha se tornado uma alcoólatra. Isto, somado às
diversas violências de que tinha sido vítima, sempre sendo tratada como intrusa nos locais
onde morara, a deixou, além de estressada, confusa. Se antes de sair de casa já tinha o hábito
de mentir, esse hábito havia se tornado uma arte.

Na butique onde trabalhava, por ser véspera de natal, o horário de trabalho acabava às dez da
noite. Estava de aviso prévio e trabalharia até o natal. Após essa data, estaria livre. Como a
maioria dos terapeutas tem férias em janeiro, a terapia familiar só começaria em fevereiro. Na
convivência com ela dava para perceber que a programação introjetada no seu inconsciente,
pela lavagem cerebral, de renegar a mãe, de faltar à verdade em nome do daime, de não ter o
direito de ser feliz e coisas semelhantes, fora um trabalho bem-feito. Quando ela se
surpreendia a si própria numa situação de prazer e descontração comigo ou consigo mesma,
sua cabeça entrava em pane.

A tensão interna que ela suportava, por um lado, me inspirava compaixão e, por outro, revolta.
Revolta contra o estelionato espiritual e contra a impunidade desse bando de delinqüentes
que não têm respeito por seus semelhantes, nem por Deus. Usam o sagrado para destruir.

Mais uma vez, a história da ayauhasca ligada ao terror, ao ódio, à submissão, ao atropelo.
Desta forma — pensava eu — só um terapeuta experiente e conhecedor do universo da
ayauhasca, como é o caso do Zé Rosa, poderia curar essas feridas. Começava o ano de 1994 e
acontecia mais um festival do daime, como acontece todos os anos nessa época.

Resolvi dar um voto de confiança ao doutor José Rosa e fiz o trabalho do dia dos Santos Reis
em Mauá, na noite de 5 de janeiro, dois anos depois daquela mesma data, quando tinha
acontecido a reunião com o padrinho Alfredo.

Diversas pessoas, que tinha conhecido em outras igrejas ou grupos de daimistas durante esses
dois anos, vieram para participar também, como forma de testemunhar a solução do caso. Foi
um voto coletivo de fé na ayauhasca e na proposta de Justiça, Paz e Harmonia.

Quando cheguei, o Zé Rosa me recebeu emocionado: "Obrigado por ter vindo", falou. O
trabalho foi bom. Pairava no ar um clima de restauração. No final conversei longamente com
Zé Rosa. Relatei-lhe que três semanas após sua visita a Verônica tinha retornado e expliquei
que ela apresentava sérios sinais de desestruturação psicológica e evidenciava dependência do
álcool.

Ele me pediu um tempo até fins de janeiro, quando estaria mais desocupado, e nos convidou a
passar o último fim de semana do mês na casa dele, para juntos, os três, estabelecermos as
bases do que seria nossa terapia. Aceitei.

Na primeira semana de janeiro, a Verônica matriculou-se numa escola de Resende para


começar as aulas em fevereiro. Escolheu um curso de inglês, outro de violão. Prometi a ela e a
mim mesma que meus esforços teriam uma só meta: reestruturá-la.

Como as aulas começariam no mês de fevereiro, ela nada tinha a fazer no mês de janeiro.
Tinha conhecido, numa rápida passagem por nossa casa, um jovem casal de amigos meus de
São Paulo, e gostado deles. Achamos que seria bom para ela passar uns dias naquela cidade.
Tinha sido convidada por eles para assistir ao Holiywood Rock, e posteriormente aproveitar o
feriado de 25 de janeiro numa ilha do litoral paulista. Adorou a idéia e preparou sua mala em
clima de alegria. Tinha uma evidente dificuldade em admitir que estava feliz.

Viajou no dia 15 de janeiro. Meus amigos a esperaram na rodoviária. Quando chegou lá.
Verônica disse a eles que essa viagem selava seu reencontro comigo. Em São Paulo, foram a
uma festa de aniversário na qual havia daimistas. A programação negativa ativou-se como num
programa de computador.

Mentiu, criou intrigas, falseou fatos, distorceu conceitos, e no fim de janeiro recebi uma carta
do

casal de amigos na qual me informavam que ela tinha desaparecido, mas que os tranqüilizara,

porque estaria bem. Soube também que o senhor Wilson Carneiro, responsável pela Colônia
5000,

comunidade daimista da cidade de Rio Branco, estava em São Paulo com uma comitiva. Na
hora

compreendi que minha filha estava sendo levada para lá.

Apelei ao doutor José Rosa, que tinha se prontificado a limpar a história. Após alguns
telefonemas,

ele descobriu que a Verônica estava, junto com a mencionada comitiva, na casa dum tal de

Glauco, famoso defensor do daime, autor de uma tira de história em quadrinhos publicada em
um

grande jornal, denominada Geraldo, e candidato a padrinho na máfia daimista, já que possui
um

ponto de daime em São Paulo, onde se faz apologia do uso de drogas, em especial da
maconha.
Após diversas tentativas frustradas de falar com o Glauco, percebi que o circo já estava
montado e

que sozinha não tinha como enfrentar tamanho corporativismo.

Ela estava com dezessete anos e, devido ao processo que ainda corria na vara de menores de
Resende, sob a responsabilidade da justiça. Comuniquei os fatos ao promotor e ainda
acrescentei que, se não fosse tomada alguma medida enquanto a Verônica ainda estava na
casa do Glauco, ela seria levada para Amazônia, para o quartel-general do daime, e dali seria
difícil tirá-la.

Com a tradicional empáfia de que se revestem alguns cidadãos quando se tornam promotores
e juizes, o promotor me respondeu: "A senhora não precisa se preocupar, faltam duas
semanas para o carnaval, tenho certeza de que sua filha volta logo que o carnaval acabar, só
que talvez volte grávida". Esta resposta, como a do outro juiz já mencionado no início deste
relato, exprime a ética reinante em certos membros do judiciário.

No dia 8 de março, recebi pela secretária eletrônica, um recado da Verônica, informando-me


que estava em Rio Branco e que eu não precisava me preocupar, já que "uma família" tinha a
guarda dela.

Comuniquei o fato ao juiz, que disse nada poder fazer, já que poderia ser uma mentira dela e
talvez ela estivesse em outro local. Pedi auxilio a uma conselheira do CONFEN, profissional
séria e consciente, psicóloga especializada na questão do menor e em relações entre pais e
filhos, que considerou o caso gravíssimo. Segundo ela, a situação era tão grave, que cabia uma
consulta ao jurista que tinha presidido os trabalhos que culminaram com o relatório do
CONFEN de 1992.

O doutor Domingos Bernardo G. de Sá, que presidiu os trabalhos do CONFEN, recebeu-me


polidamente, porém com o mesmo ar de nojo de quem é obrigado a se deparar com seus
tapetes persas sujos com esgoto. Soube, posteriormente, que dois de seus filhos são membros
da comunidade daimista do Rio de Janeiro, o Céu do Mar.

Manifestou muita preocupação de que o caso viesse a público e, assim, o trabalho por ele
presidido fosse "por água abaixo". Aconselhou-me a procurar o psicólogo Paulo Roberto de
Sousa e Silva, responsável pelo Céu do Mar. Mais uma vez senti vontade de citar Federico
Feilini, para explicar que não sou marciana e só estava querendo que a lei fosse cumprida com
o objetivo de preservar a dignidade da minha filha, já que deve haver poucos lugares mais
indignos do que a Colônia 5000.

Sabia que do Paulo Roberto não poderia esperar nada de bom. Ele mesmo já estava envolvido
com diversos problemas por causa de menores, mulheres, daime misturado com anfetaminas,
prática de curandeirismo, entre outros. Uma liderança emergente nesse tempo no cartel
daimista de São Paulo, Leo Artese, me procurou oferecendo-se como mediador para resolver a
questão. Fiz força para acreditar na sinceridade que ele apregoava. Viajei para aquela cidade,
onde tivemos uma reunião, na casa do Leo, com o padrinho-mor de São Paulo, o antropólogo
Walter Dias. Pude apreciar mais uma vez o perfeito funcionamento da estrutura de cartel. O
Nestor Perlonguer tinha me advertido diversas vezes da periculosidade do citado padrinho, no
tempo em que eu o visitava durante sua doença em São Paulo.

A mentira, o atropelo dos sentimentos, da dignidade, são para ostaf f daimista uma tática
operacional. Ouvia o Walter me enrolando, como tinha ouvido, dois anos antes, o padrinho
Alfredo, os daimistas de Mauá e outros.

Quando vi que eu estava virando um "embrulho para presente", e que o Leo me segurava para
o Walter dar o laço na fita, aproveitei a oportunidade para mudar de assunto e perguntar ao
responsável pela seção de "embrulhos" o que ele achava a respeito dos casos de pessoas que
manifestavam surtos psicóticos e esquizofrênicos em decorrência de trabalhos com daime na
igreja sob seu comando. Obviamente, para trabalhar com a ayauhasca dessa forma é preciso
dominar com perfeição a arte do cinismo.

Voltei para casa com a certeza de que a vida da minha filha só seria salva com uma intervenção
direta e específica de Deus. Somente um poder superior poderia desfazer a grande cilada que
os daimistas nos arrumaram. Tiraram-lhe o direito de ser, de ir e vir, de ter uma moradia digna,
de estudar, de namorar, de se divertir, de ser feliz.

Verônica é uma vítima. Um joguete nas mãos de criminosos. Fizeram de uma adolescente
linda, inteligente e cheia de vida um imbunche, em nome de Deus. Cheguei em casa e resolvi
arrumar os armários. Nunca tinha mexido nas coisas dela. De repente achei um embrulho com
cartas. Muitas cartas. Datavam do período em que fora retirada da comunidade de Mauá até
pouco tempo atrás. Dois anos de correspondência assídua. Os remetentes, Alex Polari, sua
mulher Sônia Falhares, o Mota e sua mulher Cristina, a Carminha, que protagonizara a cena no
fórum de Resende, flagrada pela promotora, e mais, muitos mais.

Vale lembrar que havia uma determinação judicial específica proibindo qualquer contato deles
com ela e que fora assinada pêlos daimistas. O tema principal e constante na maioria das
cartas era a necessidade de a Verônica assumir seu papel de "mártir da doutrina". Neste ponto
é preciso explicar que o CEFLURIS vive um processo que poderia ser chamado de "reedição do
cristianismo". Segundo acreditam os daimistas, o mestre Irineu seria a reencarnação

mencionado hospital, em condições precárias, desnutrido, doente e sem nenhum tipo de


assistência médica ou psiquiátrica. A bem da verdade, deve ser dito que esse músico, depois
do surto de Rio Branco, foi submetido a diversos tratamentos dentro da medicina oficial e da
alternativa, e ainda hoje, após doze anos, precisa de auxilio terapêutico. Atualmente mora com
os pais, trabalha, toma daime nas igrejas de São Paulo. Um elemento da maior importância
nesse caso foi a determinação dos pais de percorrer o país em busca do filho, tê-lo achado e
ter conseguido encaminhá-lo. Me pergunto: se os pais não tivessem recursos ou condições, o
filho estaria vivo?

Ainda sobre os padrões morais e éticos citados pelo documento, cabe ressaltar que o atual
líder da seita, Alfredo Gregório —na época da visita do CONFEN, seu pai, o padrinho Sebastião,
liderava o CEFLURIS — é casado e mora maritalmente com três mulheres na mesma casa,
sendo duas delas irmãs, e tem filhos com as três. É bom salientar que a doutrina pregada pêlos
daimistas exige, inclusive, castidade aos seus adeptos.

9) Findas as cerimônias, todos de uma maneira aparentemente normal e ordeira voltam aos
seus lares. Os seguidores das seitas parecem ser pessoastran qüilas e felizes. Muitosatribuem
reorganizações familiares, retorno dointeresse pelo trabalho, encontro consigo próprio e com
Deus, através da religião e do chá.

Em relação ao item 9 deve ser colocado que os seguidores da seita não são tão ordeiros nem
tão felizes. A ayauhasca traz para a consciência do indivíduo conteúdos das camadas mais
obscuras do inconsciente, que precisam ser elaborados cuidadosamente. Quando isto não
acontece, algumas pessoas tomam-se vulneráveis e, após os trabalhos, apresentam sintomas
preocupantes. Acompanhei casos de pessoas que abandonaram suas responsabilidades,
deixaram de cumprir suas obrigações familiares, saíram dos seus empregos, desestruturaram
suas vidas, achando que tudo isso fazia parte do "mundo da ilusão".

A respeito desse assunto, em carta enviada ao padrinho Alfredo Gregório em 5 de julho de


1992, o psiquiatra Carlos Renault, membro da seita e responsável pela igreja "Virgem da Luz",
no Rio de Janeiro, afirma:

"Na Virgem da Luz, temos atendido a pessoas que se afastaram da igreja do Rio de Janeiro —
Céu do Mar, comandada pelo Paulo Roberto Sousa e Silva — porque não davam conta de
assimilar o processo de conhecimento da nossa santa doutrina e se beneficiar com o trabalho.
Ficavam confusas, nebulosas na mente, e suas experiências com o daime eram relatos de
grande devaneio e desvarios de pensamento. Saiam do daime e procuravam a mim e a Eliane
(esposa do autor da carta e também terapeuta) no consultório, com a seguinte queixa: Tenho
medo de enlouquecer, não estou entendendo mais nada!'

Os casos que hoje vemos de suicídios dentro de nossa irmandade e de desequilibrados


crônicos são de pessoas que não tiveram acesso à alternativa de um tratamento de apoio. Não
podemos deixá-las à mercê do seu próprio desequilíbrio, do seu caos interno, com as forças
negativas rondando, impelindo-as para o pior.

Algumas delas dizem: 'Quero seguir, tomar daime, morar na comunidade do Mapiá e não
quero fazer tratamento psicoterápico, pois não preciso'. Mas em muitos casos o eu interno
sumiu, eclipsou-se, está perdido, e a pessoa não se dá conta. Ela fala sem eixo, sem essência,
sem discernimento".

É bom relembrar que os argumentos acima são colocados por um psiquiatra daimista, membro
do CEFLURIS. 12) Entre as seitas só uma parece ter usado outra droga (Cannabis sativa,
maconha) que não é o chá dentro da procura religiosa. Por acordo de cavalheiros, na época,
com autoridades multares e policiais, que aparentemente está sendo seguido, esta prática foi
abandonada.

Já em relação ao item 12 deve ser acrescentado que, além da maconha, que continua sendo
usada, segundo depoimento dado à tevê de Rio Branco, em novembro de 1994, por um
integrante da Colônia 5000, foi constatada a presença de anfetaminas no daime que é vendido
na Europa. Como na composição original da bebida tais substâncias não existem, fica evidente
que o daime é assim balizado, ou seja, misturado (revista Der Spiegel, outubro de 1994).

Outra prática empregada na referida colônia é a utilização da "mescla", cigarros feitos de


maconha e pasta-base de cocaína. 13) Antigamente o cipó e a chacrona só eram encontrados
na mata virgem. Algumas seitastêm procurado cultivar essas plantas com relativo sucesso.
Ressalta-se no entanto que a preparação

do chá é bastante difícil e prolongada, envolvendo toda uma "tecnologia" que provém de
datas imemoriais, realizada dentro de um determinado ritual. Da forma como é preparado,
nos parece difícil que uma quantidade muito maior que a necessária nos cultos seja factível de
preparo. Ou seja, parece difícil a preparação do chá em quantidades a serem utilizadas com
abuso, de uma forma não-ritual, dentro da sociedade geral.

No que toca ao item 13 só posso definir este parecer como ingenuidade dos conselheiros.
Atualmente cada "feitio" de daime no Céu do Mapiá produz acima de mil litros. Acrescente-se
que há diversos "feitios" ao ano naquela localidade e que cada igreja faz seus próprios
preparos. O preço médio do litro de daime é de trinta a trinta e cinco dólares. A matéria-prima
é fornecida de graça pela floresta e os trabalhadores são os membros da seita, obviamente
não remunerados. Poucas atividades devem ser tão lucrativas quanto esta.

Em maio de 1995, o IBAMA apreendeu um caminhão com 1.200 litros de daime que vinha de
Rio Branco para abastecer as igrejas do sul do pais. Motivo da apreensão: devido à falta do
cipó na comunidade Céu do Mapiá, os daimistas invadiram uma reserva indígena, atrás da
matéria-prima para preparar o chá e, nesse intuito, desmaiaram uma grande área de mata
nativa. Os índios fizeram a denúncia e o Instituto de Meio Ambiente a acolheu.

17) Em casos isolados encontramos adultos, jovens provenientes de cidades grandes de outros
estados do Brasil, que, à procura de um caminho de vida, parecem ter encontrado essas
religiões. Parecem, no entanto, estar bem integrados consigo próprios e com o trabalho que
estão realizando.

Item 17: Aqui a falha foi não ter entrevistado os familiares dessas pessoas nos seus locais de
origem. Assim, os conselheiros teriam encontrado famílias destruídas, crianças cujos pais as
abandonaram, casamentos desfeitos, pais inconformados... Teriam sido informados dos
empregos e dos estudos que essas pessoas largaram por considerá-los parte do mundo da
ilusão. Também saberiam que muitas dessas pessoas venderam seus bens e entregaram o
dinheiro

obtido pela venda ao CEFLURIS. 35) Levantamento de atividades de órgãos públicos Há


inúmeras ações desenvolvidas, deforma dispersa, pela administração pública, em geral, no
curso de décadas, relativas ao uso da ayauhasca no Brasil, que jamais resultaram entretanto
em efetivo esclarecimento da questão. Foram ações isoladas, portanto sem maiores

encadeamentos entre os diversos órgãos públicos, e, normalmente, fruto da estranheza


causada a autoridades locais, quando estas tomavam conhecimento de que grupos de pessoas
faziam uso de bebida desconhecida, capaz de alterar o estado de consciência do indivíduo que
a tomasse. Em todas estas oportunidades, entretanto, ao que parece, os problemas/oram
satisfatoriamente esclarecidos e, assim, superados. O âmbito deste relatório não comporta
exame mais profundo destas ações espalhadas, o que constituiria matéria para um trabalho
histórico.

No item 35 há outra grande falha: quando a justiça entrou no caso da minha filha, os juizes, os
promotores e os assistentes sociais não tinham a menor idéia do que era a bebida, da
existência do relatório do CONFEN, de que havia uma regulamentação a respeito. Fui chamada
de "maluca" por promotores de justiça, precisei providenciar material informativo para provar
que não era delírio meu.

E mais: quando o CONFEN se reuniu em maio de 1995 para estudar o caso da minha filha, tive
a oportunidade de conversar com diversos conselheiros. Eles, após terem dado seu parecer,
admitiram que não tiveram material para consultar, além daquele fornecido pela seita e
obviamente tendencioso.

O grande absurdo reside no fato de que "órgãos e autoridades competentes" liberaram a


utilização de uma substância muito poderosa e não programaram o que e como deveria ser
feito, caso houvesse vítimas ou prejudicados.

Numa comparação, pode-se-ia dizer que os órgãos que liberaram o uso de remédios contendo
talidomida tiveram também a responsabilidade de encaminhar para tratamento as pessoas
vitimadas pelo uso dessa substância.

No entanto, ouvi diversas vezes familiares de pessoas "engolidas" pelo CEFLURIS reclamando
por não terem sabido a quem ou onde recorrer.

O item 36 detalha a prisão em flagrante de um rapaz chamado Eder Cândido Silva em


setembro de 1981, na época com 22 anos de idade, que portava uma mochila cheia de
maconha. O referido rapaz morava na Colônia 5000, sede da seita CEFLURIS em Rio Branco. No
dia seguinte, a polícia dirigiu-se ao local, onde apreendeu pés, sementes e folhas de maconha.

37) O fato sob exame tem suma importância posto que não pôde o grupo de trabalho apurar,
ao menos até o momento, um único registro, objetivamente comprovado, que levasse à
demonstração inequívoca de prejuízos sociais causados, realmente, pelo uso que vem sendo
feito, ate esta parte, da ayauhasca. Reitere-se que o objeto do exame do Grupo do Trabalho
(do

CONFEN) é a ayauhasca, não a maconha, a cocaína ou qualquer outra droga e somente


problemas causados especificamente pelo uso da beberagem ora objeto de análise é que,
evidentemente, poderão ser considerados. Aqui caberia destacar a opinião do médico e
professor de psiquiatria da UCLA School of Medicine, dr. Charles Stephen Grob, a respeito da já
mencionada matéria da revista Der Spiegel denunciando a presença de anfetaminas no daime
distribuído na Alemanha pelo CEFLURIS.

Disse o ilustre cientista: "Se a mistura de plantas amazônicas denominada ayauhasca for
adulterada com o acréscimo de substâncias como as anfetaminas, existe o perigo de uma
interação letal. A planta básica da ayauhasca, o Banisteriopsiscaapi, contém alcalóides que,
combinados com anfetaminas, causam graves reações de hipertensão, que podem ameaçar a
vida de indivíduos vulneráveis".

40) Foi possível, num lapso de dois anos partir de 30 de julho de 1985, fazer uma avaliação
serena e mais segura das conseqüências do uso da ayauhasca (sic). Não há qualquer registro,
objetivamente comprovado, demonstrativo, inequivocamente, de prejuízos sociais causado
pelo uso que vem sendo feito da ayauhasca.

Os itens 37 a 40 tratam da inexistência de "prejuízos sociais". Caso os relatos contidos neste


livro não possam ser enquadrados como "prejuízos sociais", estão à disposição dos senhores
conselheiros os casos que não foram incluídos para evitar redundâncias e repetições
cansativas. O item 43 enfatiza os termos dos itens 4 e 9 a respeito dos padrões morais e éticos
dos membros das seitas e sua aparência de pessoas tranqüilas.

A ingenuidade dos membros do CONFEN confunde-se com um conto de fadas. Poder-se-ia dar
o desconto de que, na época, muitos desses fatos não eram evidentes. E após terem se
tomado públicos?

Eu mesma, quando soube que minha filha estava na Colônia 5000, nas mãos de assassinos e
pessoas sem escrúpulos, procurei o jurista Domingos Bernardo de Sá, que presidiu o trabalho
do CONFEN e assinou o relatório. Expus a ele o que a comissão não tinha visto. O jurista
manifestou preocupação pelo fato de que a divulgação desses escândalos poderia anular o
trabalho por ele e outros realizado. Mas não manifestou a mínima preocupação a respeito de
casos como o do Jambo ou o da Verônica. É importante acrescentar que dois filhos do dr.
Domingos Bernardo fazem parte do CEFLURIS.

CONCLUSÃO

Como foi colocado no prólogo, o objetivo deste, livro é a denúncia. Esta denúncia abrange
duas questões: uma, o uso de substâncias alucinógenas; a outra, o crescimento descontrolado
das seitas.

Ao longo do livro pretendi mostrar que os dois assuntos, embora no caso específico do
CEFLURIS funcionem juntos —o uso da bebida e a estrutura sectária —, em determinado
momento se bifurcam.

Houve duas denúncias: uma sobre o caso da minha filha, Verônica, e a outra sobre o caso do
Jambo. Foram encaminhadas ao CONFEN. Esse órgão estudou — essa é sua alçada — a
questão relativa à bebida. Não foram considerados os pontos que dizem respeito ao
aliciamento sectário.

No mundo inteiro as sociedades criam mecanismos para se auto-administrar. O tema das


seitas e seu crescente poderio têm sido objeto de estudo e avaliação em muitos países. Hoje
em dia existem terapias específicas para reestruturar a consciência das pessoas que
participaram de seitas. As constantes matérias em jornais do mundo inteiro sobre abusos
cometidos pelas seitas (vide o caso recente da seita japonesa Verdade Suprema), por si só, já
deveriam representar uma tomada de consciência por parte da sociedade brasileira.
Na Inglaterra as pessoas que acompanham o fenômeno do crescimento das seitas se
denominam cult watchers, e algumas das organizações anti-sectárias mais conhecidas naquele
país são: Ca-talyst, Fair, Cristina Rescue, entre outras.

Essas organizações fornecem auxílio terapêutico tanto aos adeptos como aos seus familiares.
Em alguns casos vão mais longe: dispõem de serviço de seqüestro da pessoa que se encontra
dentro da seita, para sua posterior reestruturação, processo que recebe também o nome de
"assessoramento para o abandono". Quando se colocam tais questões em debate, surge logo o
argumento da liberdade de culto. Mas antes da liberdade de culto existe o direito à vida e a
garantia, na Constituição, de que é dever do Estado zelar pela integridade dos cidadãos. No
momento em que a policia no Japão encontra gás venenoso na sede de uma seita, não se
questiona a liberdade de culto.

Os casos expostos neste livro merecem uma avaliação especial porque junto à temática das
seitas temos a utilização imprópria de um potente alterador da mente, o que torna o perigo
ainda maior. Para compreender a problemática do CEFLURIS, torna-se fundamental uma
reflexão profunda sobre a necessidade das pessoas de transcender os limites dos seus egos e
as fronteiras que delimitam os caminhos pêlos quais se busca essa transcendência.

Durante estes últimos quatro anos nos quais tenho lutado para salvar a vida da minha filha,
tropecei com todo tipo de incoerência e erros conceituais. Foram esses erros que me
impeliram a escrever, entre eles: "A senhora ia beber essa porra para ficar doidona", "Não se
pode cercear a liberdade de culto garantida pela Constituição", "A atitude do juiz de Rio
Branco em não cumprir a carta precatória foi descortês" ...

Em relação à ayauhasca, ela não pode ser colocada como ré. Ela não é boa nem ruim. Há
milênios vem sendo utilizada Tanto para curar como para fazer o mal. O fato de que existem
terapeutas e grupos sérios utilizando-a para realizar curas e reestruturar pessoas que se
fragmentaram através do uso de tóxicos, ou como conseqüência de outros sofrimentos, não
devolve a vida àqueles que a perderam pelo mau uso da ayauhasca.

A inexistência de problemas na União do Vegetal ou na Barquinha demonstra que seu uso


correio é viável. O que aproxima essas duas organizações é, sem dúvida, a semelhança dos
seus princípios éticos. Nenhuma delas faz comércio da bebida, nem a mistura com outras
substâncias. Ambas exercem controle moral sobre seus integrantes e as duas evitam
publicidade, escândalos e atitudes fanáticas.

O desconhecimento da matéria demonstrado pelas autoridades e pêlos membros do Conselho


Federal designado para administrar a situação sugere que o uso da ayauhasca deveria ser
controlado por aqueles que provaram que sabem utilizá-la. Existe um órgão semelhante nos
EUA que controla o uso religioso do peyote.

Quando os organismos oficiais aprovam uma substância para ser utilizada como medicamento,
essa atitude sugere abranger também suas possíveis conseqüências negativas. No caso da
talidomida, as pessoas vitimadas por essa substância souberam a quem recorrer em busca de
auxílio e ressarcimento. O mesmo não acontece com a liberação da ayauhasca. Os familiares
das pessoas que se desintegraram pelo uso delituoso da bebida não souberam a quem
recorrer, e ainda mais: como eu, foram ameaçados pêlos integrantes do CEFLURIS.

As lideranças sectárias pseudo-religiosas constituem cada vez mais uma preocupação em


muitos países. Dia após dia surgem casos de desequilibrados que conseguem induzir, em nome
de Deus e das escrituras sagradas, pessoas a um fim trágico.

Tenho participado, nos últimos anos, de alguns debates sobre o assunto com autoridades,
formadores de opinião e pessoas interessadas nesta problemática. A questão é ambígua.
Muitas vezes, chegou-se à mesma conclusão: na atual conjuntura, o Brasil só tomará
conhecimento desse problema quando acontecer alguma grande tragédia, como a da Guiana
ou, mais recentemente, a do Japão.

Ao mesmo tempo, cada vez mais linhas terapêuticas no mundo inteiro pesquisam o fenômeno
da consciência expandida como caminho para a cura. Também foi dito que para expandir a
consciência não é necessário beber ayuahasca ou qualquer outra substância.

Muitos terapeutas —como Stanilav Groff, que começou utilizando o LSD com seus pacientes —
hoje trabalham com outros elemento, como técnicas de respiração, para conseguir os mesmos
resultados obtidos com as substâncias psicoativas.

Assim como a prática da hipnose foi regulamentada, acredito que não deve demorar a criação
de um código de ética que controle a beberagem da ayuahasca, que tanto pode levar as
pessoas à cura quanto à morte.

GLOSSÁRIO Ácido Lisérgico: Substância descoberta em 1943 pelo dr. Albert Hofmann, cujo
princípio ativo assemelha-se à psilocibina. Aldous Huxiey: Escritor e pesquisador inglês, autor
de diversas pesquisas com mescalina e LSD. Escreveu diversos livros sobre o tema: Moksha, A
Ilha, As Portas da Percepção, entre outros. Alma-grupo: Conceito espiritualista, segundo o qual
grupos de seres humanos representam falanges ou grupos do mundo espiritual. Alto Santo:
Localidade próxima à cidade de Rio Branco (AC), onde diversas seitas que utilizam o daime nos
seus rituais têm sede. Alucinógeno: Substância extraída de plantas ou produzida
artificialmente, cujo uso provoca expansão da consciência. Araucano: Referente às tribos de
nativos araucanos, oriundos do sul do Chile e da Argentina. Arquétipo: Segundo o psiquiatra
suíço Cari Gustav Jung, padrão psíquico humano localizado no inconsciente coletivo Auto-
hemoterapia: Tratamento que objetiva corrigir deficiências imunológicas a partir de injeções
do sangue do próprio paciente. Ayauhasca: Bebida obtida a partir do cozimento do cipó jagube
e da folha rainha, de efeito alucinógeno, utilizada com fins religiosos por diversas seitas na
região amazônica. Bad trip: Expressão utilizada por usuários de substâncias alucinógenas
quando a experiência — a viagem — é difícil ou desagradável. Bailar/bailado: Nome dado às
danças e/ou movimentos ritmados no ritual do santo daime. Barato: Termo utilizado por
usuários de substâncias alteradoras da consciência para definir o efeito conseguido.
Barquinha: Nome de uma das seitas da cidade de Rio Branco que utiliza o santo daime em seus
rituais. Benzedura: Ação de benzer. Caapi: Um dos muitos nomes do cipó (jagube) com que se
prepara a bebida denominada ayauhasca. Cabeça feita: Gíria utilizada para definir o estado
mental da pessoa que utilizou uma substância com o objetivo de expandir sua consciência.
Cannabis sativa: Nome científico que define a planta conhecida vulgarmente no Brasil como
maconha. Canto iniciátíco: Cânticos utilizados pelas religiões nas cerimônias de iniciação e nos
rituais. Carma: Segundo as doutrinas espiritualistas e as religiões orientais, trata-se do ciclo das
reencarnações em função da lei de causa e,1, efeito. Casa da estrela: Local nas comunidades
daimistas onde se realizam os trabalhos de cura. CEFLURIS: Nome de uma das organizações
religiosas que fazem uso do santo daime, denunciada neste livro. A sigla é formada pelas
palavras Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra. Céu da Montanha:
Nome da comunidade daimista localizada em Visconde de Mauá (RJ). Céu do Mapiá: Nome da
comunidade daimista localizada no igarapé Mapiá (AM). Céu do Mar: Nome da comunidade
daimista localizada na estrada das Canoas, no Rio de Janeiro. Chakra: Ponto do corpo — ao
todo, são sete — onde se cruzam os canais por onde circula a energia vital. Chamada: Cânticos
utilizados na União do Vegetal durante os trabalhos com ayauhasca. Cimora: Um dos nomes
como é conhecida no Equador a bebida alucinógena obtida a partir do cozimento de um cacto
denominado "huaichuma". Cochinada: Sujeira feita por porcos. Nome utilizado pêlos xamãs
peruanos para definir trabalhos espirituais que objetivam o mal. Colônia 5000: Nome da
comunidade daimista situada a poucos quilômetros da cidade de Rio Branco. Comando: Nome
genérico utilizado para definir o indivíduo ou o grupo de pessoas que têm a responsabilidade
de comandar os trabalhos no ritual do santo daime. Comungar: Na União do Vegetal, nome
dado ao ato de beber a ayauhasca. Concentração: Ritual realizado nas igrejas daimistas, no
qual as pessoas permanecem em silêncio. Não há cantos nem bailados. Curador: Pessoa que
possui o dom de realizar curas espirituais.

Curandeiro: Alguém que realiza curas sem capacitação acadêmica.

Druidas: Sacerdotes com características xamânicas das antigas religiões da Irlanda e da Grã-

Bretanha. Endorfïnas: Substâncias produzidas pelo nosso sistema endócrino cuja descarga na
corrente sanguínea produz uma expansão da consciência muito semelhante à que se obtém
com o uso das substâncias já mencionadas. Essênios: Sociedade secreta anterior ao
nascimento de Cristo que preservou o cristianismo primitivo. Fanerotimico: Termo utilizado
pêlos pesquisadores de substâncias expansoras da consciência, que depois cedeu lugar a
"psicodélico". Feitio: Cerimônia de preparo dá ayauhasca. Ícaro: Cânticos iniciáticos utilizados
pêlos xamãs peruanos durante os rituais. Iniciação: Ritual religioso que marca um novo grau no
processo de desenvolvimento espiritual. LSD/LSD23: Nomes dados ao ácido lisérgico. Mantra:
Som ritualístico cuja enunciação põe em ação influências espirituais. Maracá:Instrumento
musical semelhante a um chocalho, utilizado por xamãs e também nos rituais do santo
daime..., Mescalina: Principio ativo de algumas plantas alucinógenas.

Miração: Alucinação provocada pela ingestão da ayauhasca.

Passagem, fazer a: expressão utilizada para se referir à morte.

Point: Ponto de encontro.

Psicoativo: Substância com o poder de alterar a mente.

Psicodélico: Substância cuja ingestão provoca delírio ou alucinações.


Puxador(a): No ritual, pessoa que comanda e inicia o canto.

Quarto caminho, escola do: Nome da escola filosófica que segue os ensinamentos de G.I.
Gurdieff. Saniase: Nas religiões orientais, discípulo adiantado.

Sanpedrito: Nome da bebida obtida pelo cozimento do cacto São Pedro.

Seitas: "Movimentos totalitários caraterizados pela adscrição de pessoas dependentes das


ideias

de um líder, que podem se apresentar como entidade religiosa, cultural, cientifica ou grupo
terapêutico; que utilizam técnicas de controle mental e persuasão coercitiva com o objetivo de
que os adeptos dependam da dinâmica do grupo e percam sua estrutura de pensamento
individual em favor das formas de pensamento do grupo". Esta definição foi dada pela Jonhson
Foundations Winspread Conference Center, na conferência realizada em 1985 em Raci-ne,
EUA.

Teologia da libertação: Conceitos filosóficos e religiosos elaborados por frei Leonardo Boff.
Yagê:nome utilizado por algumas comunidades indígenas para se referir ao cipó (jagube) com
que é preparada a ayauhasca

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