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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

JONIS FREIRE

TESTAMENTO DO SENHOR ANTONIO DIAS


TOSTES

FREIRE​, Jonis
TESTAMENTO DO SENHOR ANTONIO DIAS TOSTES
R. IHGB, Rio de Janeiro, a.171 (446): 289-300, jan./mar. 2010

Rio de Janeiro
jan./mar. 2010
Análises e transcrições: testamento do senhor Antonio Dias Tostes

testamento do senhor Antonio Dias Tostes


Mr. Antonio Dias Tostes’s Will. Accounts of Will.
Jonis Freire 1

Resumo: Abstract:
Os testamentos são documentos de extrema The testaments made by slave masters are do-
importância para a história do Brasil Império. cuments of extreme importance for the brazilian
Atos solenes realizados como instrumentos de history. They represented solemn acts which
última vontade de muitos senhores e senhoras worked as instruments of the last will of those
escravistas, por vezes apresentam-se como uma masters, sometimes presented as an extension of
extensão do poder senhorial mesmo depois da their power after death. However, for the cap-
morte. Contudo, para os cativos estes documen- tives, the testaments often could meant the mo-
tos representavam o momento em que podiam ment when they could get, always taking advan-
obter, sempre se aproveitando de muitas estra- tage of many strategies, the so dreamed freedom
tégias, a tão sonhada liberdade e até mesmo or even some financial and/or materials goods.
alguns recursos financeiros e/ou materiais. Os The transcribed documents are examples of the
documentos transcritos são exemplos das várias various possibilities of study of this source, as
possibilidades de estudo com relação às práticas well as records of the relations between masters
testamentárias, bem como das relações entre se- and slaves.
nhores e escravos.
Palavras-chave: Testamentos, alforrias, lega- Keywords: Wills, Manumission, legacies.
dos.

*Testamento do senhor Antonio Dias Tostes. Contas de testamento,


Cx.22, Doct. 14, 1852. Arquivo Histórico Municipal Professor Altair
José Savassi (Barbacena-MG). *Testamento de seu filho homônimo
Capitão Antonio Dias Tostes, 1883. Livro 07 (1883-1889). Arquivo
Histórico de Juiz de Fora.

“Estando em meu perfeito juízo e com saúde por mercê de Deos faço
o meu testamento e deixo a meus escravos ...”: testamentos, bens e alfor-
rias legados a alguns escravos mineiros no século XIX

Durante o período em que vigorou a escravidão no Brasil, senho-


res e senhoras escravistas costumavam legar vários de seus bens quando
faziam seus testamentos de última vontade, que podiam “trazer mudan-
ças significativas na vida de um escravo, incluindo a possibilidade da
alforria”.2 Esses registros feitos estando eles diante da morte, mas em seu

1 –1Doutor em História. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Uni-


versidade Salgado de Oliveira.
2 – CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 111.

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perfeito juízo, são fontes inestimáveis para o estudo da escravidão e para


o conhecimento dos estratagemas daqueles indivíduos que, em última
instância, demonstravam quais eram suas visões de mundo, de poder, de
força com relação aos seus herdeiros, agregados e cativos estabelecendo
as instruções que deveriam ser cumpridas e respeitadas após o seu faleci-
mento. Sandra Graham sintetizou de forma exemplar as “funções” desta
prática:
“Um testamento é, antes de tudo, um documento legal que dispõe de
bens e os distribui. Para o historiador que quer recuperar a forma e o
sentido de vidas do passado, é também um documento cultural com-
plexo de grande utilidade que revela como pessoas, mesmo que não
pudessem ou não soubessem escrever sobre suas vidas, se apresenta-
vam em relação a Deus, a morte, suas famílias e seus bens.” 3

Nesse momento, muitos cativos tiveram a possibilidade e a expecta-


tiva de obter a tão sonhada liberdade, muitas vezes, proveniente de soli-
dariedades e engenhosas estratégias tecidas durante anos nas relações en-
tre senhores e escravos. Foi nesse tipo de documentação, mas não só, que
se encontravam as liberdades de alguns cativos. Nela podemos observar
também as possibilidades de bens legados a alguns indivíduos escraviza-
dos e suas famílias.

Em 1 de abril de 1852, Marcelino Dias Tostes apresentou na cidade


de Barbacena (Província de Minas Gerais) Contas de Testamento de seu
pai, o finado tenente Antonio Dias Tostes, natural da freguesia de Santa
Rita do Ibitipoca. Junto a esta prestação de contas aparece o testamento
do tenente Tostes. 4

3 – GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade


escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 117. É importante obser-
var que muitas vezes os herdeiros não respeitaram as disposições testamentárias, o que
causou várias “brigas” nos tribunais.
4 – Contas de testamento. Cx.22, Doct. 14, 1852. Arquivo Histórico Municipal Professor
Altair José Savassi (Doravante AHMPAJS – Barbacena-MG).

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DOCUMENTO I
“Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos
e cinqüenta e dois ao primeiro dia do mês de abril do mesmo ano nesta
Nobre muito Leal Cidade de Barbacena, Minas e Comarca do Rio Parahi-
bna [?] Cartório de mim Tabelião adiante nomeado [?] Marcelino Dias
Tostes testamenteiro do fallecido seu pai Tenente Antonio Dias Tostes me
foi apresentada uma petição despachada pelo Coronel Felicianno Coelho
Duarte, Cavalheiro da ordem de Cristo official da Imperial Ordem da
Roza Juiz Municipal [?] Contas de testamentaria [?]. [...]

Eu Antonio Dias Tostes estando em meu perfeito juízo e com saú-


de por merce de Deos fasso o meu testamento. Sou natural da Fregue-
sia de Santa Rita da Ibitipoca, filho legítimo de Antonio Dias Tostes e
Maria Francisca de Jesus ambos falecidos. Fui casado com Anna Maria
do Sacramento em primeiras nupcias que faleceu, e deste meu primei-
ro matrimonio ficarão os filhos seguintes Antonio, Marcelino, Manoel,
Severino, Custodio, Mariano, Casianno, Maria Antonia cazada com Ma-
rianno Dutra, Maria da Lapa cazada com Antonio de Macedo, Gertrudes
cazada com Manoel Jose Pires, Rita cazada com Jose Antonio Henriques,
Candida casada com o Capitam Fernando, achandose os ditos meus filhos
todos cazados. Declaro que passei a segundas nupcias com Dona Guilher-
mina Selestina da Natividade, de cujo matrimonio tenho ao prezente hum
filho de nome Jose, o qual junto com ao mais asima declarados instituo
por meus legitimos herdeiros das duas partes de meus bens. Declaro que
todos os meus filhos do primeiro matrimonio [?] pagos de suas legitimas
Maternas, porque lhe fis entrega de todos os bens que lhe tocarão em
vistas de seus Formais de partilhas. Nomeio por meus testamenteiros em
primeiro lugar a meu filho Marcelino Dias Tostes, em segundo a meu
filho Severino Dias Tostes, em terceiro a meu filho Manoel Dias Tostes e
aquele que aceitar podera dispor de meus bens como bem lhe parecer em
praça [?] e terá a Vintena em premio de seu trabalho. Meu funeral será
feito a elleição de minha mulher mandando dizer missas de corpo pre-
zente por minha alma por todos os Reverendos Sacerdotes que acharem
prezentes, o meu corpo será em habito de Sam Francisco amortalhado,

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este e sepultado no Semiterio da mesma ordem da qual sou irmão, dan-


dose no dia do meu falecimento Cem mil reis aos pobres, esmolas de
trezentos reis. Serão ditas por minha alma Cem missas de esmola de [dez
tostões?] outras Cem por alma de meus Pais e Irmãos falecidos e mais
Cem por alma de meus Escravos falecidos. Deixo a cada um dos meus
Escravos que existirem ao tempo do meu falecimento Seis mil reis, aos
que forem menores se dará a seus Pais ou Maes, pagandose a Décima
desta da minha terça, como juramento do meu testamenteiro se dará esta
verba por cumprida. Deixo mais a cada um dos Escravos que eu vendi a
Antonio Lopes Coelho de Souza Bastos e a Joaquim Lucio de Figueiredo
quatro mil reis, que serão dados a cada hum daqueles que existirem vivos
ao tempo do meu falecimento, pagandose tão bem a Décima a custa da
minha terça, com juramento de meu testamenteiro se dará por cumprida.
Deixo forros os meus Escravos Silvério pardo e sua mulher Domingas,
e meu testamenteiro lhes passará Carta de liberdade. Meu testamenteiro
mandará dizer quinhentas missas de esmola de dez tostões por almas das
pessoas com quem tive negocios, e outras quinhentas em [?] nas Igrejas
desta Cidade da mesma esmola e com a mesma aplicação. Deixo a ordem
de Sam Francisco desta Cidade duzentos mil reis. A ordem da Senhora
do Carmo Cem mil reis. A Irmandade do Santissimo Cem mil reis. A do
Senhor dos Passos Cem mil reis das quais sou Irmão. E a Casa da Miseri-
córdia desta Cidade se dará Cem mil reis. Deixo para as obras da Capela
do Juis de Fora que prezentemente se vai fazer Cem mil reis. Deixo da
minha terça a meu filho Jose do meu segundo matrimonio Coatro Contos
de reis. Todos os remanescentes da minha terça serão repartidos em igual
parte por todos os meus filhos tanto do primeiro matrimonio como do
segundo. Em esta forma tenho findo o meu testamento e pesso as Justiças
de Sua Majestade Imperial lhe de todo o rigor e pedi a Jose Moreira que
por mim o escrevesse e eu o assinei assinando tão bem o mesmo Moreira
nesta Cidade de São Joao del Rei aos 4 de maio de 1843.
Antonio Dias Tostes.
Como testemunha que escrevi a rogo

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José Moreira da Rocha.”5

Em seu testamento, o tenente Antonio Dias Tostes alforriou Silvério


pardo e sua mulher Domingas, a outros tantos cativos deixou legados em
dinheiro que deveriam ser retirados de sua terça.6

De acordo com a declaração feita por Marcelino Dias Tostes ao pro-


motor do juízo daquela cidade, todos os legados deixados por seu pai
foram cumpridos e, portanto, vinha pedir para se julgar as contas dando
conclusão ao processo. A prestação de contas efetuada por Marcelino nos
permitiu conhecer um pouco mais sobre aqueles escravos que receberam
a alforria e algum tipo de ajuda financeira. Segundo o testamenteiro, os
libertos Silvério e sua mulher Domingas gozavam de inteira liberdade.
Da mesma forma pudemos saber o número de cativos pertencentes àquele
senhor. Anexo a essa fonte havia o recibo de pagamento da renda provin-
cial. Este imposto foi pago pelo testamenteiro, e era referente à quantia
de 344$000 mil reis, que o finado deixou a seus escravos e aos que havia
vendido “sendo 44 o legado de 6$000 e a 20 o legado de 4$000 cada um
(...)”.

Dessa fonte, então, se depreende que a posse do tenente Tostes con-


tava com 44 cativos quando da prestação de contas de seu testamento, e
que foram agraciados cada um com a quantia de 6$000. E ainda que no
período de supressão do tráfico de escravos oriundos do continente afri-
cano e do consequente aumento no preço dos cativos, esse proprietário se
valeu da venda de parte de sua mão de obra escrava, possibilitando-lhe

5 – Testamento anexo nas Contas de testamentaria. Cx.22, Doct. 14, 1852. AHMPAJS
(Barbacena-MG)
6 – Segundo Carlos Bacellar havia o Monte-mor que era “(...) o total bruto dos bens
possuídos por um casal, ou por um indivíduo solteiro ou viúvo, levantado pelo inventário.
Deste total, eram descontadas as dívidas e as custas do inventário, e obtinha-se o monte-
mor líquido. Sobre este era efetuada a meação dos bens, a cada cônjuge cabendo 50% do
patrimônio. A seguir, a parte de cada cônjuge era dividida em três terços de igual valor:
dois terços para serem repartidos, sob a forma de legítimas, entre os herdeiros arrolados
no inventário, e um terço, ou a ‘terça’, para ser livremente legada pelo testador, de acordo
com seu testamento escrito ou recomendações verbais”. BACELLAR, Carlos de Almeida
Prado. Família, herança e poder em São Paulo: 1765-1855. Estudos Cedhal, n. 7. São
Paulo, Cedhal, 1991, p. 59.

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auferir lucro nestas transações comerciais feitas, ao que parece, com ape-
nas outros dois indivíduos.

Mas o que levou o tenente Tostes, maior possuidor de cativos na


primeira metade do século XIX em Juiz de Fora, àquela atitude “filan-
trópica” com seus escravos e com os que havia vendido? Uma primeira
hipótese que pode ser considerada reside na peculiaridade encontrada no
testamento de última vontade. Além de ser um documento oficial, pos-
suía características bastante singulares com relação às disposições de um
indivíduo que se encontrava, ou pelo menos se sentia, à beira da morte e
queria então se “livrar” de todos os seus pecados com o intuito de “partir”
deste mundo com sua consciência limpa, garantindo seu lugar no céu.
Foi nesse momento que os indivíduos daquela época procuraram obter a
salvação de suas almas. Para tanto, reconheciam filhos concebidos fora
do casamento; dívidas com terceiros; distribuíam missas em favor de sua
alma, dos entes que já se foram, e até mesmo de seus escravos falecidos.
Talvez, a distribuição de tais legados pecuniários aos 64 cativos tenha
sido uma forma encontrada por Antonio Dias Tostes para aliviar sua cons-
ciência e ao mesmo tempo buscar junto à “Justiça Divina” o perdão e a
salvação de sua alma.

Porém, outras considerações podem ser levantadas como, por exem-


plo, a de que pode ter havido algum laço afetivo existente entre o proprie-
tário e os cativos. Todavia, esta hipótese é mais difícil de ser comprovada.
Uma suposição que cremos não cabe aqui, é a de que aquele senhor havia
deixado legados a seus cativos por não possuir herdeiros necessários. Em
seu estudo sobre a comunidade do Cafundó, localizada em Sorocaba (SP),
Robert Slenes, Carlos Vogt e Peter Fry perceberam, por meio da análise
de documentos cartoriais, “vários casos na região de doações de liberdade
e terra a escravos nos testamentos de senhores que faleceram sem cônjuge
ou filhos”.7 Segundo Kátia Lorena, “(...) o que distinguia os senhores que
alforriavam um maior número de escravos e faziam doações dos seus pa-

7 – VOGT, Carlos, FRY, Peter e SLENES, Robert. Cafundó: a África no Brasil: lingua-
gem e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 47.

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res era o fato de não possuírem herdeiros forçados”.8 No caso de Antonio


Dias Tostes, aliás, o que não lhe faltava eram herdeiros. De acordo com
seu testamento, eram doze do primeiro enlace matrimonial e mais um do
segundo, todos com igual parte nos remanescentes de sua terça.

O que chama a atenção no testamento é a distribuição de certa quan-


tia em dinheiro aos escravos que o tenente Tostes havia vendido aos se-
nhores Souza Bastos e Joaquim de Figueiredo. De qualquer forma, os
legados dados àqueles cativos lhes possibilitaram a obtenção de um pecú-
lio, que poderia até mesmo ajudar na compra de sua alforria ou de algum
familiar.

Alguns anos mais tarde foi feito o testamento do capitão Antonio
Dias Tostes, homônimo de seu pai e também do avô, casado com Dona
Rita de Cássia Tostes de cujo consórcio não teve filhos. Este caso aproxi-
ma-se mais das constatações feitas por Lorena com relação à distribuição
de legados. Distribuiu vários legados entre seus sobrinhos e amigos, in-
clusive escravos. O capitão deixou forros sem condição alguma os escra-
vos Rofino e Philomena, Perciliana, Alexandrina e Matheus, Vicente e
Maria Antonia e também a Zeferino, aos quais, segundo a última vontade
do testador, sua esposa e testamenteira deveria logo que ele falecesse pas-
sar as cartas de manumissão.9 Duas de suas escravas, Maria e Francisca,
ganhariam a liberdade com a condição de servir a sua mulher enquanto
fosse viva, e após sua morte ficavam livres. Ainda segundo o capitão Tos-
tes, os escravos Manoel Pedro e Venâncio também seriam libertos. Como
não existiram, expressas no documento, outras considerações além das
que diziam que “também serão libertos”, pensamos que se tratava de uma
alforria incondicional.

8 – ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de Contas – Bahia século XIX.
Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2006, p. 218. (Dissertação de Mestrado em
História).
9 – Testamento do capitão Antonio Dias Tostes. Livro 07 (1883-1889). Arquivo Histó-
rico de Juiz de Fora. Esse senhor foi descrito no Almanack Administrativo, Civil e Indus-
trial de Minas Gerais, para o ano de 1870, como capitalista e fazendeiro.

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Este proprietário deixou ainda para alguns de seus escravos bens que
poderiam ajudá-los na sua nova condição de liberto, provendo-lhes de
algum pecúlio. Ao escravo Rofino, forro sem condição, além da sonhada
liberdade coube uma besta vermelha e um cavalo russo. A Oscar, filho de
Perciliana, que também deveria ser liberto após sua morte, Tostes foi ain-
da mais generoso, legando ao dito um burro de sela e quinhentos mil-réis
em dinheiro, que deveriam servir para a compra de uma apólice na qual
o mesmo teria direito após emancipar-se. Em caso de morte do menor, a
mesma deveria beneficiar Perciliana, mãe do dito Oscar. A carta de liber-
dade de Oscar, filho de Perciliana parda, de mais ou menos nove anos, foi
lavrada em sete de novembro de 1879.10

As doações feitas a escravos em Sorocaba, semelhante às legadas


por Antonio Dias Tostes, pai e filho, levaram os autores do livro Cafundó
a analisar mais detidamente esse aspecto das relações entre senhores e
escravos. Para os pesquisadores, num primeiro momento, essas doações
pareceram ser um paradoxo, já que a propriedade da terra por parte dos
senhores brancos deveria ser um dos elos fundamentais na perpetuação
do sistema baseado na mão de obra escrava. Desta forma, as doações
“representariam a negação das premissas de um sistema desse tipo. Mais
concretamente, elas pareciam ressuscitar a imagem do ‘bom’ senhor ou
a ‘branda’ escravidão brasileira de uma historiografia mais antiga”.11 To-
davia, Slenes, Vogt e Fry concluem que esse paradoxo podia ser apenas
aparente e que as doações feitas pelos senhores para seus escravos eram
portadoras de uma lógica, e a solução para essa contradição era resolvida
“com explicações centradas no caráter ou nos caprichos dos senhores. As
doações expressariam a bondade de alguns fazendeiros, que contrastaria

10 – Escrituras de Compra e Venda. AHCJF. Legados de terras, escravos, animais e outros


também já foram encontrados por outros pesquisadores como, por exemplo, no já referido
estudo de SLENES, VOGT & FRY, op. cit., 1996. No caso de Juiz de Fora esse aspecto
foi muito bem analisado por Elione Guimarães. GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos
viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-emancipação: família, trabalho, terra
e conflito (Juiz de Fora – MG, 1828-1928). São Paulo: Annablume; Juiz de Fora: Funalfa
Edições, 2006.
11 – VOGT, FRY, & SLENES. Op. cit., p. 67.

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com a maldade de outros (...), ou até com a maldade dos mesmos fazen-
deiros em tempos anteriores”.12

Um aspecto interessante apontado pelos autores diz respeito ao nú-


mero de alforrias legadas pelos testadores com ou sem herdeiros necessá-
rios. Para os estudiosos:

“Quase como um corolário – já que se trata de outra doação de pro-


priedade – a concessão de alforria tende a ser mais generosa entre os
herdeiros sem cônjuge e filhos do que entre os que têm esses herdei-
ros. Aqueles, quando conferem a liberdade, beneficiam mais escravos,
em média, do que estes (6,2 por testamento contra 2,3 para todos os
tipos de alforria). Os testadores sem cônjuge e filhos também são mais
dispostos do que os outros a dar a liberdade (depois de sua morte) sem
condições, isto é, sem exigências de serviços e pagamentos posterio-
res a herdeiros ou legatários, ou de outras restrições sobre o compor-
tamento futuro do liberto.” 13

Situações como a dos cativos dos Dias Tostes (pai e filho) permitem
vislumbrar, assim como argumentaram Slenes, Vogt e Fry, que a alforria
estabelecia uma hierarquia entre os escravos. Isso pode demonstrar, para
além das “preferências senhoriais”, maiores possibilidades de alguns cati-
vos conseguirem “seduzir” seus senhores, por meio de estratégias muitas
vezes díspares, conseguindo locomover-se taticamente com o objetivo de
alcançar sua tão sonhada liberdade.14

DOCUMENTO II
“Testamento com que falleceu Antonio Dias Tostes estando doente
de cama mas em seu perfeito juizo temendo a morte a que todos estamos
sugeitos faço meu testamento e ultima vontade pela maneira seguinte. Em
nome de Deos amem. Declaro que sou Catolico Romano em cuja fé tento
viver e depois morrer. Declaro que meus Paes são falecidos; e que sou

12 – Ibidem, p. 67.
13 – Ibidem, p. 82.
14 – Ibidem.

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Cazado com D. Rita de Cassia Tostes de cujo consorcio não tivemos filho
algum. Nomeio para meus testamenteiros em primeiro lugar a minha dita
mulher e em segundo lugar a meo sobrinho Bernardo Marianno Halfeld,
deixo para contas em juízo dois anos. Deixo a meus sobrinho dito Bernar-
do Mariano Halfeld em recompença dos serviços que me tem prestado na
minha enfermidade doze contos de reis e mais a importancia de um cre-
dito que [endividamento?] me deve. Deixo a Maria Thereza uma morada
de caza com tres alqueires de terras na grama que forão de Andre Cortez
e mais os escravos Andreza e Adão [?] [?] atendendo acoidado que tem
tido no meu tratamento. Deixo forro sem condição alguma os escravos
Rofino e Fhilomena, Perciliana, Alexandrina e Matheus, Vicente e Maria
Antonia e Zeferino aos quaes minha testamenteira passará logo que eu
falleça carta de liberdade . Deixo a Oscar filho da Perciliana um burro de
sella. As minhas escravas Maria e Francisca servirão a minha mulher em
quanto for viva e por sua morte ficarão livres. O meu enterro será feito
como entender minha mulher e mais mandara dizer vinte missas por mi-
nha alma. Tambem serão libertos os escravos Manoel Pedro e Venancio.
Deixo para Igreja de São Sebastião nesta cidade do Juiz de Fora trezentos
mil reis para suas obras. Deixo mais a Maria Thereza trez vacas paridas
uma caroça com um burro. Deixo mais ao dito Oscar filho da Perciliana
quinhentos mil reis em dinheiro que sera entregue a meo segundo testa-
menteiro para comprar e averbar em nome delle uma Apolice da qual ter
direito quando emancipar-se, e se falecer antes passara sua mae. Deixo a
meu escravo Rofino a quem libertei uma besta vermelha e o cavalo russo.
Declaro que instituo minha herdeira a minha mulher do resto de minha
meação e descontadas as deixas que fiz e alforrias. E por esta forma dou
por findo meo testamento que por elle revogo o anterior, e vai por mim
assignado e escripto por Francisco Deonizio Fortes Bustamante. Fazenda
da Tapera dezeceis de setembro de mil oitocentos oitenta e três. Antonio
Dias Tostes. Que este vi assinar Francisco Dionizio Fortes Bustamante.
Auto de Approvação. Anno do Nascimento de Nosso senhor Jesus Chris-
to de mil oitocentos e oitenta e trez aos dezeceis dias do mez de Setembro
do dito anno nesta Fazenda da Tapera Districto da Cidade do Juiz de
Fora onde eu Tabellião fui vindo a chamado ahy perante mim compareceo

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Análises e transcrições: testamento do senhor Antonio Dias Tostes

como testador Antonio Dias Tostes que se acha de Cama mais em seu jui-
zo perfeito o qual reconheceo pelo próprio de que trato e dou fé, por elle
testador em prezencia das cinco testemunhas abaixo nomiadas e assigna-
das me foi entregue de suas para minhas mãos este papel fexado dizendo
ser seu solene testamento e etterna vontade; e o mesmo que a seu rogo
eu Tabellião havia escripto e elle assignado pedindo me que o recebesse
e aprovasse para surtir os efeitos da lei dizendo mais o testador presente
as mesmas testemunhas que o dava por bem firme e valiozo porque tinha
sido feito de sua espontania vontade e que por elle revogava um outro
anterior que só queria tivesse este vigor e que fosse aberto e comprido
depois do seo falecimento; e recebido por mim Tabellião o dito papel re-
conhecendo ser o testamento que eu havia escripto o numerei e rubriquei
com o apelido Fortes, e o aprovo e [?] por mim aprovado quanto devo e
posso e em razão do meu officio sou obrigado visto haver o testador no
meu entender e das testemunhas se achar em seu perfeito juizo segundo as
respostas que deo as perguntas que lhe fiz que tudo dou fé e estiverão pre-
zente a todo este acto as testemunhas João Pedro Ribeiro Mendes, Doutor
Francisco Soares Corrêa, Honório de Miranda Ribeiro, Julio Augusto da
Silva Dias, Antonio Pinto Pereira que assignão com o testador e depois
de lido por mim Francisco Dionizio Fortes Bustamante Tabellião que es-
crevi e assigno [?] publica e razo. Francisco Dionizio Fortes Bustamante.
Antonio Dias Tostes. Em testemunho da verdade estava o signal publico.
João Pedro Ribeiro Mendes, Doutor Francisco Simões Corrêa Honório
Ribeiro de Miranda, Julio Augusto da Silva Dias, Antonio Pinto Pereira.
Testamento de Antonio Dias Tostes feito e aprovado pelo segundo Ta-
bellião abaixo assignado, digo de Antonio Dias Tostes Cazado morador
nos suburbios da Cidade do Juiz de Fora, feito e aprovado pelo segundo
Tabellião abaixo assignado, lacrado e cuzido com o meo pingo de lacre
vermelho e o meo pontos de linha preta por banda em dezeceis de setem-
bro de mil oitocentos e oitenta e trez. [...]”15

15 – Testamento do capitão Antonio Dias Tostes. Livro 07 (1883-1889). Arquivo Históri-


co de Juiz de Fora.

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Jonis Freire

Artigo apresentado em fevereiro /2010. Aprovado para publicação


em março /2010.

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