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As formas da violência e da resistência em The Underground Railroad

Daniel da Silva Santos Rosa

O objetivo deste texto é fornecer minha interpretação sobre como a obra literária The
Underground Railroad: os caminhos para a liberdade, escrito por Colson Whitehead (2017),
apropria-se em sua narrativa da dimensão mais ampla das percepções de liberdade das pessoas
negras no século XIX nos Estados Unidos. Elencando, em sua história, diferentes possibilidades –
caminhos, como encontra-se no título – para os personagens negros experenciarem a liberdade. Seja
pela interpretação dos diferentes graus de autonomia como direitos, seja, como pode ser visto por
toda a obra, pelos desejos e pequenas ações que revelam a existência de leituras cotidianas da
liberdade.
Para isso, primeiro, irei destacar como, para além da liberdade, também se reinventam as
formas de controle no contexto do livro. Assim, pretendo abordar algumas das passagens em que
são indicadas as percepções dos personagens sobre os empecilhos postos a esses projetos de
liberdade. Desse modo, principalmente através do ponto de vista da protagonista, Cora, e de Caesar
poderemos perceber as atualizações das formas de controle das pessoas negras nos espaços em que
trafegam. Salientando como, mesmo quando nascidas livres ou libertas – de forma legal ou
performando a liberdade sendo fugitivo – essas pessoas não conseguem desfrutar dos direitos, em
teoria, concedidos a elas ou conquistados por elas.
Ademais, baseado nas cenas em que Cora expressa seus desejos ou constrói reinterpretações
de sua realidade - através das falas ou de pensamentos revelados pelo narrador – buscarei desvelar
nessas construções possíveis leituras da liberdade feitas pela personagem. Ao tempo em que crio
paralelos entre a obra literária e a literatura acadêmica.
Por fim, irei destacar a forma como Undergroud Railroad representa os brancos e delineia
seus temores quanto àa liberdade dos negros e, a partir disso, tentarei fazer uma breve analogia
entre os caçadores de escravos fugitivos e a representação dos policiais militares no livro O Avesso
da pele, do autor brasileiro Jefferson Tenório.
A violência da sociedade escravista apresenta-se desde o início do livro com os traficantes
sequestrando a avó de Cora, Ajarry, ainda em África. Explicita-se também quando o relato alcança
a dimensão da família, mais precisamente a fragmentação das famílias dos escravizados; o
rompimento dos laços entre os familiares devido aà separação e venda dos indivíduos. E toma sua
forma mais conhecida com a violência física - apesar do peso que também possui a violência
psicológica - sobre os corpos negros.
Essa violência, que busca impor controle à vida dos escravos, pode se dar desde a
concepção. A formação das famílias a partir do casamento é uma possível prerrogativa do senhor de
escravos. No livro esse fenômeno toma forma na fazenda dos Randall, família à qual Cora pertence
como propriedade. Após a morte do irmão responsável pela parte norte da fazenda, James Randall,
Terrance Randall – que comandava apenas a parte sul - assume a totalidade da fazenda e determina
que passará por ele a aprovação dos casamentos, isso em vista da adequação dos casais para gerar
uma “boa cria”. A preocupação gira em torno da propriedade e da reprodução do sistema, este
dependente da existência da propriedade escrava e da manutenção das hierarquias.
Nesse sentido, as formas de opressão atravessam de tal forma a vida do escravizado que a
violência física não é necessária durante todo o tempo. A coerção pode se dar pela ameaça, pelo
controle dos aspectos básicos de sua sociabilidade e pelo domínio das consciências. A obra traz
como exemplo desse domínio a punição dos fugitivos e daqueles acusados de desobediência em
frente aos outros escravizados. A punição, a violência física, contra um escravizado ganha o
objetivo de servir como exemplo para os outros, como forma de terror psicológico, para que estes
evitassem cometer os mesmos erros. “Era você lá mesmo quando não era” (p. 55), afirma Cora
sobre esse tipo de punição.
As punições físicas e a coerção dada pela violência psicológica contra os escravizados são
assim dispostas devido à a visão desses corpos como propriedade de um senhor. Luciana da Cruz
Brito (2016), através do estudo das relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil, conclui que
diferentemente do que ocorre no Brasil, onde a escravidão durante o Império pode ser entendida
como um “mal necessário”;, no sul dos EUA, onde estaria situada a fictícia fazenda dos Randall, a
escravidão é uma instituição inerente à própria identidade sulista. Na obra, podemos destacar como
exemplo dessa visão da propriedade escrava como aspecto fundamental da sociedade quando
Terrance Randall, em visita à parte sul da fazenda – no tempo em que seu irmão ainda era
responsável pela propriedade – desagrada-se com a atitude de Cora de defender uma criança
escravizada da violência do senhor do lado norte e agride-a no lugar dessaaquela. Ao irmão James
Randall não desagradou apenas que Cora tivesse sido gravemente ferida, talvez isso nem importasse
se tivesse sido ele mesmo a agredi-la devido ao sinal de desobediência. O que importa e o incomoda
mais é o fato de o irmão ter tocado sua propriedade sem que tivesse sua permissão. A defesa da
propriedade aí aparece como um aspecto central da identidade desses indivíduos e, como
propriedade, o escravizado deveria ser tocado apenas com a anuência de seu dono.
Ademais, encontro um outro exemplo da defesa desse direito à propriedade escrava no
momento que Cora e Caesar – escravizado que foge com Cora da fazenda dos Randall e com ela
toma a ferrovia subterrânea – percebem terem sido registrados como propriedade do Estado em seus
documentos falsos. Não eram precisamente livres, mas propriedade de um Estado que permitia a
eles o exercício de suas liberdades. Porém, permaneciam como propriedades de outrem. E, sendo
propriedades do Estado, parece-me que isso significava, acima de tudo, a defesa estatal do direito à
propriedade. Os escravos não tinham sido apenas libertos, mas, comprados e postos em situação de
homens livres, indicando talvez que os antigos donos tivessem direitos legítimos de posse sobre
esses indivíduos.
Era objetivo da sociedade escravista que essa violência adentrasse as consciências das
pessoas negras, escravizadas ou não, e, segundo a narrativa de The Underground Railroad, esse
objetivo é, ao menos em parte, bem sucedido e os personagens que sentem esse impacto dão
indicativos de seus efeitos. Seja através das formas já relatadas de controle sobre os escravizados,
seja pelas violências cotidianas direcionadas aos negros livres ou libertos.
As formas de violência eram atualizadas, modificadas para que funcionassem para além das
fazendas, para que funcionassem contra esses negros que não eram mais escravizados. A entrada
diferente para pessoas de cor ao lado do museu. O projeto de esterilização das mulheres negras. O
cerceamento das opções de trabalho para pessoas de cor. A sociedade se modelava para que os
negros compusessem o seu estrato social mais inferior e as consciências, apesar de também se
rebelaram, sofriam com essa construção branca da sociedade. Caesar identifica a ansiedade dos
homens na fábrica, incialmente temerosos de cometerem erros e sofrerem violentas consequências
por estes. Para Cora, as fazendas viviam dentro desses homens, as consciências tinham sido
violentadas pela escravidão.
Apesar disso, mesmo essas formas de controle não foram capazes de esgotar a agência
histórica dos personagens negros. Como foi dito, as consciências também se rebelam. Assim, no
livro e fora dele, as pessoas negras sempre inventaram sua liberdade por outros trajetos. O caminho
das possibilidades de autonomia em situações de opressão foi uma possibilidade. A fuga das
fazendas, uma outra.
Quando ainda habitava a fazenda dos Randall, Cora defendia um pequeno pedaço de terra
que tinha como seu, uma horta da qual podia tirar produtos para complementar sua alimentação. O
momento em que ela cultivava sua horta, diz o narrador, era quando ela se sentia, ao menos por um
curto período tempo, como dona de si. Essa prática, segundo Eugene D. Genovese (apud. FONER,
1983), era comum nos Estados Unidos e permitia que os escravizados vissem nesse pequeno pedaço
de terra como um direito seu, não como concessão ou privilégio. Isso, podemos interpretar,
pensando em Cora, como uma inspiração à liberdade encontrada nessa possibilidade limitada de
autonomia dentro da fazenda.
A fuga de Cora e Caesar é um elemento mais explícito da busca desses escravos pela
liberdade. Entretanto, essa não é alcançada apenas na saída da fazenda. Por exemplo, quando Cora
pergunta ao caçador de escravos, Ridgway, o porquê do cocheiro dele, uma criança negra alforriada
pelo caçador, não ir embora já que esta era livre, esse responde que um negro não é livre mesmo
quando alforriado e que aquela criança já sabia disso. As oportunidades para os negros estavam
cerceadas e ainda viviam atormentados pelo medo de serem reescravizados, o que não era
impossível.
Assim, as ações que abrem possibilidades aos negros dentro daquela sociedade racista
podem ser lidas como busca pela autonomia. Cora desejava ler e fazer o seu trabalho como
desejava. Ela estava buscando ser livre.
Caesar parece compreender plenamente esse sentido da liberdade. Para ele, não ler era
sinônimo de escravidão. Tendo sido criado no norte do país e dentro de um círculo que se entendia
por progressista quanto àa questão do negro, a sua condição de escravo era diferente da imposta
pelo sul escravista a Cora. Aprendeu a ler enquanto ainda estava no norte e deixar de ler após ser
vendido para uma fazenda ao sul era ter ainda mais degenerada a sua condição como escravizado.
Poder ler era um elemento próximo da liberdade que ele desejava manter.
De forma ainda mais sutil na narrativa, podemos elencar a relação de Cora com as roupas e a
interpretação dessas como um dos símbolos da liberdade. Em mais de um momento essa relação
surge. Quando se encontrava na Carolina do Sul, ainda sob o disfarce de Bessie, Cora comprara na
segunda semana nesse estado um vestido azul, este que por conta do algodão macio – diferente
daqueles feitos para negros, como percebe - lhe causava arrepios. Em outro momento, a relação
entre a roupa e a liberdade surge novamente. Dessa vez, desejando que Caesar tivesse sobrevivido à
investida dos brancos contra a casa que dava acesso à ferrovia subterrânea na Carolina do Sul, Cora
o imaginou livre, vestindo sapatos e um terno novo.
A atualização das formas de repressão racial e as formas dos negros de encontrarem
caminhos para a liberdade são impactantes nesse livro. Mas, outra dimensão da questão racial
também tem destaque nele: a branquitude. Esta surge como um fenômeno que perpassa a vida dos
brancos desde a infância. Quando as cenas da praça pública são executadas, crianças estão presentes
assistindo o enforcamento dos negros e participam do apedrejamento dos brancos que negam um
ideal de supremacia branca para a nação. Outro aspecto desse fenômeno aparece no livro através
dos caçadores de escravizados fugidos, esses trabalham sob a premissa da suspeição generalizada,
todo negro então era suspeito de ser um fugitivo até que se provasse o contrário.
A consciência dos brancos assim é constituída para ver o negro como um ser degradado e
perigoso. Esse não é um fenômeno particular e limitado aos Estados Unidos ou ao século XIX.
Tomando o sul do Brasil como palco da história, O avesso da pele, conta, através de um narrador-
personagem, a história de um homem negro – pai do narrador – em contato com um sistema
estruturalmente racista até o momento de sua morte.
Os capítulos finais da obra de Jefferson Tenório se dedicam ao policial militar que mata o
pai do narrador. Nesse sentido, descrevem o modo como o policial branco convive com a ameaça
dos negros em seus sonhos. Em seus pesadelos homens negros invadem sua casa e põem em risco
sua segurança. A branquitude construída socialmente transforma o negro em uma constante perigo
para ele. Assim, tal como ocorrem com os caçadores de escravos fugidos em The Underground
Railroad, as abordagens pressupõem os corpos negros como suspeitos. A forma última desse
fenômeno se materializa no assassinato do protagonista por esse policial. Ao não responder aà
abordagem com obediência, os policiais reagem e o personagem tem seu corpo alvejado cravejado
de balas.
As formas de violências se reinventam e possuem continuidades e rupturas ao longo do
tempo, mas assim também são as formas de resistência. The Underground Railroad expõe
possibilidades de liberdade para os personagens em um determinado local e período delineados com
uma boa fundamentação histórica. Os condicionamentos dessa liberdade são expostos e isso nos
permitiu identificar e debater as brechas em que se encontram os caminhos da liberdade nessa
narrativa.
Excelente texto! Autoral, criativo, denso...
Nota: 10,0

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITO, Luciana da Cruz. O crime da miscigenação: a mistura de raças no Brasil escravista e a
ameaça à pureza racial nos Estados Unidos pós-abolição. In: Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 36, n. 72, p. 107-130, 2017.
FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988.
WHITEHEAD, Colson. The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade. Rio de Janeiro:
Harper Collins, 2017.

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