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Como parte dos preparativos para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, que ocorreria em 1981,
foi criada no Brasil a Comissão Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Devido ao fato
de sua formação contar com integrantes das entidades de e para pessoas com deficiência, os
documentos gerados por essa comissão são lugares privilegiados para visualizar o momento histórico
em que se encontravam as discussões e as práticas relacionadas à temática da deficiência no Brasil.
Assim, através da bibliografia especializada e da análise das representações das pessoas com
deficiência e de suas instituições - tendo em vista os modelos médico e social da deficiência -, esse
trabalho pretende colaborar com a compreensão do contexto vivenciado pelas pessoas com deficiência
em um ambiente de retomada das mobilizações sociais e de aumento da visibilidade de grupos
historicamente afastados das esferas de decisão.
Palavras-chave: Ano Internacional das Pessoas Deficientes; deficiência; Revista Mensagem da APAE;
modelos teóricos da deficiência; Federação Nacional das APAEs.
1. Introdução
1 Trabalho de conclusão de curso apresentado à disciplina Estudos Monográficos II, sob a orientação
da Prof. Dra. Laura de Oliveira, como requisito para conclusão do curso de Licenciatura em História.
2 Graduando em História na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da
Na pesquisa realizada para a construção deste artigo, foi possível notar que
existem poucos trabalhos dedicados a compreender o AIPD e a CNAIPD em seu
contexto e importância, no sentido de avaliar como esse evento refletiu as disputas
entre as entidades de e para pessoas com deficiência5 e, também - o que demarca a
especificidade deste trabalho -, como a Comissão Nacional mobilizou durante o
período de suas atividades, entre 1980 e 1981, os modelos teóricos da deficiência,
interpretados aqui como formas de representações coletivas, no sentido que Chartier
(1991; 2011) atribui ao termo.
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Na bibliografia utilizada para a pesquisa, tratam dessas temáticas o artigo “A organização política das
pessoas com deficiência no Brasil e suas reivindicações no campo educacional” (AMORIM; RAFANTE;
CAIADO, 2009); a tese da Ana Maria Morales Crespo (2009) intitulada “Da invisibilidade à construção
da própria cidadania: os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas
com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes” e a dissertação de Idari Alves
Silva (2002), denominada “Construindo a cidadania: uma análise introdutória sobre o direito à
diferença”. Também é possível ver breve menção à temática na tese da Késia Pontes de Almeida
(2019): “Do assistencialismo à luta por direitos: as pessoas com deficiência e a sua atuação no
processo de construção do texto constitucional de 1988”.
6 Sem prejuízos, o termo PCD’s será utilizado como abreviação de Pessoas com Deficiência para evitar
exaustivas repetições.
Desse modo, esta pesquisa tem como finalidade, a partir da análise das fontes7
e da bibliografia especializada, compreender como os modelos médico e social,
entendidos como formas de representações coletivas, relacionam-se às práticas e
representações ligadas às pessoas com deficiência na CNAIPD e nas entidades
geridas por elas e para elas, e como isso contribui para o reconhecimento do AIPD
não só como um evento importante para tratar da gênese das entidades políticas de
pessoas com deficiência, mas também como momento privilegiado para entender as
rupturas e continuidades do modelo médico e das práticas paternalistas com o
surgimento da perspectiva social da deficiência, também mobilizada pela Comissão
Nacional.
Nesse sentido, o modelo médico, assim como o social, também deve ser
tratado tendo em vista a sua historicidade. A pesquisadora Ana Maria Morales Crespo
(2009), a partir da leitura de Eucenir Fredine Rocha (2006) e de Foucault (1979),
elenca que o processo histórico que pôs a pessoa com deficiência como objeto dos
tratamentos de reabilitação, por meio da patologização da deficiência na medicina e
7 Foram selecionadas como fontes para esta pesquisa as atas de reunião da Comissão Nacional
produzidas e fornecidas à Federação Nacional das APAES para exposição em seu periódico Revista
Mensagem da APAE; o Relatório Geral das Atividades da Comissão Nacional do Ano Internacional das
Pessoas Deficientes. Disponíveis em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me002911.pdf. Acesso em: 19 set. 2022; e as
impressões sobre a CNAIPD produzidas pela FENAPAES - também reproduzidas em seu periódico
institucional.
nas ciências sociais, assim como indica Diniz, inicia-se na segunda metade do século
XVIII, mas a conformação desse modelo dá-se no século XIX e início do XX.
Semelhante rejeição ao modelo social aparece, como informa Idari Silva (2002),
na legislação brasileira dos anos 90. O decreto 3298/99, ao qual se refere Silva, traz
em seu texto, ignorando as relações do corpo com o ambiente e o debate internacional
que considerava a existência desta relação8, que
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Crespo (2009), analisando documentos nacionais e internacionais que tratam das pessoas com
deficiência e elaboram algum nível de definição para o conceito, identifica que em 1993, a Declaração
de Maastritch já reconhecia a deficiência como uma questão coletiva, não inerente a uma
“anormalidade de estrutura ou função” como indica o Decreto de 1999. Ademais, trataram a deficiência
como uma variação comum da condição humana ou como restrição agravada por questões econômico
e sociais (ambientais) a Carta para o Terceiro Milênio, de 1999, e a Convenção Interamericana para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiência, também
de 1999 (CRESPO, 2009).
3. Os modelos teóricos da deficiência como formas de representações
coletivas
[...] foi e é um precioso apoio para que se pudessem assinalar e articular, sem
dúvida, melhor do que nos permitia a noção de mentalidade, as diversas
relações que os indivíduos ou os grupos mantêm com o mundo social: em
primeiro lugar, as operações de classificação e hierarquização que produzem
as configurações múltiplas mediante as quais se percebe e representa a
realidade; em seguida, as práticas e os signos que visam a fazer reconhecer
uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a
significar simbolicamente um status, uma categoria social, um poder; por
último, as formas institucionalizadas pelas quais uns ‘representantes’
(indivíduos singulares ou instâncias coletivas) encarnam de maneira visível,
‘presentificam’ a coerência de uma comunidade, a força de uma identidade
ou a permanência de um poder. (CHARTIER, 2011, p. 20)
Tendo em vista o que elencamos até aqui acerca dos modelos teóricos,
podemos, então, tratar das entidades que se relacionavam à questão da deficiência
no momento histórico que abordamos. Assim, didaticamente, mas considerando a
existência de disputas internas dentro destas organizações, é possível que dividamos
as entidades desse período entre aquelas criadas para pessoas com deficiência -
imbuídas de práticas predominantemente assistencialistas e relacionadas ao modelo
médico - e as de pessoas com deficiência – baseadas no modelo social, geridas por
PCD’s e que visavam à participação social e política desses na sociedade.
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Apesar de Almeida (2019) não conceituar o que são movimentos identitários, acreditamos que esses
possam ser entendidos através da elaboração conceitual da socióloga Maria da Glória Gohn, elencada
no texto de Amorim, Rafante e Caiado (2009), que define movimentos identitários como movimentos
“que lutam por direitos sociais, econômicos, políticos e, mais recentemente, culturais. São movimentos
de segmentos sociais excluídos, usualmente pertencentes às camadas populares (mas não
exclusivamente)” e, assim, “podem-se incluir, nesse formato, as lutas das mulheres, dos afro-
descendentes, dos índios, dos grupos geracionais (jovens, idosos), grupos portadores de necessidades
especiais, grupos de imigrantes sob a perspectiva de direitos, especialmente dos novos direitos
culturais construídos a partir de princípios territoriais (nacionalidade, Estado, local), e de
pertencimentos identitários coletivos (um dado grupo social, língua, raça, religião etc.)” (GOHN, 2008,
p. 439-440).
Resultado, então, desse movimento, e catalisado pela instituição do AIPD, é o
surgimento das novas entidades de pessoas com deficiência e da Coalizão Nacional
formada para conectar essas organizações.
Entretanto, essa união das entidades deu-se mediante conflitos. Nota-se que,
na sua formação,
10 As entrevistas às quais se referem as autoras, encontram-se compiladas, por Mário Cléber Martin
Lanna Júnior, no livro História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil, publicado
em 2010 pela Secretaria de Direitos Humanos e a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da
Pessoa com Deficiência. Disponível em:
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/21097_arquivo.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
É possível que essa articulação requerida por algumas entidades, como
informam as autoras, tenha relação com a influência que as entidades para pessoas
com deficiência exerciam sobre as esferas de decisão governamental. Nesse sentido,
a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) serve como exemplo de
como essa atuação política das associações era posta em prática (RAFANTE; SILVA;
CAIADO, 2019).
Impõe-se, desde logo, saber-se que uma APAE é uma sociedade civil,
filantrópica, estabelecida, geralmente em um Município sobre cuja base
territorial tem jurisdição e procura atingir os seus objetivos exercendo a sua
atuação junto aos órgãos do Poder Público, tanto Federal, como Estadual, a
Municipal, assim como, procurando atingir a comunidade para motivá-la e
esclarecê-la sobre a existência da deficiência, dos meios e métodos de
combatê-la e promover a busca de novos meios, métodos e técnicas para se
alcançarem novos avanços na prevenção e recuperação do excepcional
(MENSAGEM..., 1982, p.1)
Assim, acreditamos que a análise das fontes, sem negar a afirmação de Nallin
de que “a partir do discurso científico, reelaboram-se as concepções assistencialistas
e se constrói a ideia de que o deficiente deve ser merecedor de uma técnica que lhe
é ofertada como doação” (1998 apud CRESPO, 2009, p. 39), permite inferir que as
instituições para pessoas deficientes usavam também de uma linguagem mais afetiva
e menos científica - baseada na medicina – para dar sentido à sua assistência. Desse
modo, compreendemos que as representações derivadas do modelo médico
atribuíram às instituições médicas e assistencialistas, como as APAES, um caráter de
redentores e às pessoas com deficiência a função apenas de objeto dessa assistência
prestada.
Ademais, para que as metas mais gerais dessa instituição, identificadas na
influência sobre a formulação da legislação e o angariamento de recursos para suas
atividades, fossem alcançadas, as APAES precisavam também organizar-se
internamente e manter a coesão entre as associações difusas pelo Brasil. Para
cumprir essa finalidade, foi constituída a Federação Nacional das APAES
(FENAPAES), em 1962, e, já em 1963, foi criado o periódico institucional da
Federação, a Mensagem da Apae, onde encontramos as informações expostas
anteriormente.
[...] mesmo que os discursos dos dirigentes das APAES reivindicassem a luta
por direitos das pessoas com deficiência, suas ações não avançaram nessa
direção, permanecendo no campo da filantropia, silenciando os sujeitos,
mantendo a ordem social e a sua existência institucional. (2019, p. 15)
Além disso, é preciso destacar que, ao tratarmos das APAES, falamos de uma
instituição que, apesar da especialização no atendimento de pessoas com deficiência
múltipla e intelectual, à época tratada como “retardamento mental” (BEZERRA, 2017),
se dirige em seus discursos, de forma ampla, aos chamados excepcionais. Estes
estão definidos na ementa da Lei Básica promovida pela entidade, onde se ausenta a
relação entre o indivíduo e o ambiente, como
5. O AIPD e a CNAIPD
O olhar voltado para as pessoas com deficiências, nesse contexto, teve como
impulso o fator econômico. Seria mais eficaz investir e aproveitar a mão-de-
obra dos deficientes para o mercado de trabalho, que mantê-los à base de
programas de assistência, com custos elevados de manutenção e nenhum
retorno econômico. Além de tornar a pessoa com deficiência produtiva na
sociedade capitalista, o relatório brasileiro evidencia que essa forma de
organizar o atendimento contribuía para liberar seus familiares para o
trabalho. (2009, p. 11)
Não apenas a CNAIPD foi formada sem a participação das pessoas com
deficiência entre seus membros principais – representantes de órgãos
governamentais e não governamentais -, mas também as comissões estaduais o
foram. Segundo Crespo (2009), devido à ação das entidades políticas de PCD’s, foi
formada em São Paulo a Comissão Estadual de Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento
do Ano Internacional das Pessoas Deficientes e, “ao contrário da Comissão Nacional,
a Estadual contava com a participação de líderes do movimento” (p. 137). Entretanto,
como informa Candido Pinto de Melo, ativista do Movimento pelo Direitos das Pessoas
Deficientes (MDPD), essa participação também foi resultado de luta, já que,
inicialmente, a Comissão não tinha a presença de pessoas com deficiência (MELO,
1981 apud CRESPO, 2009, p. 159).
Nesse sentido, a formação das Comissões pode ser considerada como uma
prática paternalista, ainda que em subcomissões ou em um segundo momento essas
comissões adotassem práticas mais coerentes com o modelo social, revendo a
participação daqueles que antes estavam apenas como objeto da sua ação e reflexão.
11Este nome surge nas atas das reuniões, mas na dissertação de Idari Alves Silva (2002), a entidade
aparece como Associação dos Deficientes Físicos do Estado do Rio de Janeiro (ADEFERJ) (p. 42).
a mais aconselhável. Leu a seguir o teor do pedido feito pela Coalizão e
colocou-o em discussão. (MENSAGEM, 1981, p. 49)
A reunião cessa com o acordo feito, com consenso, de que Blanco integrasse
a Comissão como consultor, mas, para que pudesse ter poder de voto, fariam o pedido
de aditamento ao decreto presidencial para a inclusão desse como representante de
sua entidade. Esse aditamento ocorreu em 3 de dezembro do corrente ano, com o
decreto n. 86.692 (BRASIL, 1981), acrescentando, ao artigo 2º do decreto que instituiu
a comissão, o inciso X, que admitia na CNAIPD “um representante da Coalizão
Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes”.
Por fim, podemos elencar que a presença do Dr. Justino Alves Pereira na
CNAIPD desde o começo de suas atividades também não teve para a FENAPAES o
efeito desejado pela instituição. No texto intitulado “Reflexão sobre o Relatório da
Comissão Nacional para o Ano das Pessoas Deficientes”, publicado no ano seguinte
ao AIPD, a revista institucional da FENAPAES destaca o desapontamento com a
CNAIPD. O autor do texto, que afirma ter participado da Comissão Municipal do Rio
de Janeiro, que teria realizado um “trabalhado meticuloso e digno de ser levado a
sério”, diz ter sido “envolvido por uma onde de frustração” ao ler o Relatório da
CNAIPD (MENSAGEM..., 1982, p. 18).
6. Considerações Finais
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A relação entre a FENAPAES e a ditadura brasileira (1964-1985) foi objeto de estudo no artigo “A
Federação Nacional das APAES no contexto da Ditadura Civil-Militar no Brasil: construção da
hegemonia no campo da educação” (RAFANTE; SILVA; CAIADO, 2019), que denotou a íntima relação
entre a instituição e o governo militar vista, por exemplo, na presença de militares na presidência da
Federação e na concessão de títulos de sócios-beneméritos a presidentes da Ditadura.
da Federação ao adentrar a Comissão Nacional. Nesse sentido, a revista Mensagem
da APAE foi fundamental para observar as expectativas e o posicionamento interno
das APAEs quanto às atividades da Comissão.
Por fim, a leitura das atas foi importante para dimensionar a participação das
pessoas com deficiência na Comissão, sendo possível perceber que a crítica da
Coalizão Nacional tinha por base a formação da CNAIPD sem representantes dessa
organização, mas isso não necessariamente implicou na ausência de PCD’s em
subcomissões ou no papel de consultor da Comissão.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Késia Pontes de. Do assistencialismo à luta por direitos: as pessoas com
deficiência e sua atuação no processo de construção do texto constitucional de 1988.
Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
2019.
BEZERRA, Giovani Ferreira. A Federação Nacional das Apaes e seu periódico (1963-
1973): estratégias, mensagens e representações dos apeanos em (re)vista. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da
Grande Dourados, Dourados, 2017.
JÚNIOR, Lanna; MARTINS, Mário Cléber (Comp.). História do Movimento Político das
Pessoas com Deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos.
Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010.
LUCA, Tania Regina. Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos.
In: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 111-
154.
SILVA, Idari Alves. Construindo a cidadania: uma análise introdutória sobre o direito à
diferença. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, 2002.
LISTA DE FONTES
MENSAGEM da Apae. APAE de São Paulo cria projeto para Centro Residencial. Ano
7, n. 20, abr.-jun., 1980.