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Psicologia em Pesquisa | UFJF | 7(2) | 266-276 | Julho-Dezembro de 2013 DOI: 10.

5327/Z1982-1247201300020015

Seção Livre

Os Equívocos do Artigo “Os Equívocos e Acertos da Campanha ‘Não à Medicalização da Vida’”

Lygia de Sousa ViégasI, III


Jason GomesII, III
Ariane Rocha Felício de OliveiraI, III
I
Universidade Federal da Bahia (Bahia), Brasil
II
Universidade Federal de São Paulo (São Paulo), Brasil
III
Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade

No mês de outubro de 2013, foi publicado no do levantamento aprofundado de vários


número 6154, volume 342 da Revista Science, artigo do conceitos neuropsicológicos relaciona-
biólogo e jornalista norte-americano John Bohannon, dos ao Transtorno do Déficit de Atenção
que desnuda de forma desconcertante a fragilidade de e Hiperatividade (TDAH). (Pimenta,
muitas publicações “científicas”, valendo-se, para tanto, 2013, p. 1)
de um experimento: ele enviou para 304 revistas cien-
tíficas renomadas espalhadas pelo mundo um artigo No entanto, situamos inúmeros equívocos no
escrito com base em... invencionices sem nenhuma sus- artigo, que pedem esclarecimento. Nesse sentido, a
tentação científica. Em palavras mais “científicas”: finalidade do presente texto é responder assertiva-
mente ao referido artigo, desfazendo tais equívocos,
um trabalho científico falso, baseado em esclarecendo aspectos fundantes do Fórum Sobre
dados falsos, obtidos de experimentos sem Medicalização da Educação e da Sociedade, bem vi-
validade científica, assinado com nomes sando dirimir as confusões criadas. Espera-se, com
falsos de pesquisadores que não existem, esta publicação, garantir a seriedade e a ética na pro-
associados a universidades que também dução e na publicação de pesquisas em torno da cha-
não existem. (Escobar, 2013, para. 1) mada medicalização da vida, tema da maior impor-
tância para ser discutido seriamente, considerando o
Pois não é que tal artigo foi publicado em 157 impacto incisivo que vem produzindo na vida de um
Revistas, escandalizando a credibilidade do meio número significativo de crianças e adolescentes no
científico na sociedade em geral? Brasil e no mundo. Nosso compromisso, portanto,
Guardadas as devidas proporções, resgatamos é com o rigor científico, fundamental para o avanço
essa experiência para questionar a publicação do arti- das ciências e para a melhoria da qualidade de vida
go “Os equívocos e acertos da campanha ‘Não à me- da população que sofre dificuldades nos processos de
dicalização da vida’” (Frias & Júlio-Costa, 2013), pois aprendizagem escolar.
este possui importantes equívocos metodológicos e
conceituais, que passaram despercebidos pelo con- Primeiras Aproximações com o Debate sobre
junto de revisores e editores desta renomada revista Medicalização da Educação no Brasil: Aspectos
científica voltada para o campo da neuropsicologia. Históricos
A importância de se realizar estes esclarecimentos se
sobreleva com a leitura do Editorial da Revista, intitulado Embora tenha ganhado notoriedade nos últi-
“Um retrato da neuropsicologia no Brasil” (Pimenta, 2013), mos cinco anos, o debate em torno da medicalização
no qual a autora explicita que tal artigo compõe o conjunto da educação não é recente no Brasil, sendo realizado
de 12 trabalhos selecionados entre os 32 textos submetidos por profissionais de diversas áreas de atuação, com
para essa edição especial, tendo como critério que esses tra- destaque para a medicina, a pedagogia e a psicolo-
balhos “mostram rumos relevantes das investigações de nos- gia. Podem-se considerar como publicações históricas
sa Neuropsicologia”. Ao abordar especificamente o artigo sobre o tema: o clássico livro “A produção do fracas-
de Frias e Júlio-Costa, a autora do Editorial define-o como so escolar: histórias de submissão e rebeldia” (Patto,
“um intrigante questionamento”, afirmando ainda que ele 1990); o artigo “A história não contada dos distúrbios
de aprendizagem” (Moysés & Collares, 1992); e o li-
constitui uma análise cuidadosa da con- vro “Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e me-
cepção do Conselho e uma crítica através dicalização” (Collares & Moysés, 1996). Tal debate,

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por sua vez, vem sendo realizado em nível mundial “Manifesto do Fórum sobre Medicalização da Edu-
também há décadas, e encontra notoriedade, sobre- cação e da Sociedade” (Fórum, 2010), o qual foi lido
tudo, em dois autores consagrados: Michel Foucault publicamente ao final do evento, contando na ocasião
(1977) e Ivan Illich (1982). com a adesão de 450 participantes e 27 entidades. Vale
Apesar de tal discussão somar mais de três déca- ressaltar que, estando disponível para adesões on-line,
das no Brasil, o debate em torno da medicalização da hoje o Manifesto conta com 3.083 assinaturas.
educação foi reaquecido recentemente, pois, à revelia Como última atividade do I Seminário Interna-
de toda a polêmica em torno da educação medicalizada, cional, foi fundado o Fórum sobre medicalização da
no ano de 2007, chegou ao conhecimento de um gru- educação e da sociedade,
po de psicólogos o projeto de lei (PL) nº 0086/2006),
em trâmite na Câmara Municipal de São Paulo, que movimento social que articula entidades,
dispunha sobre a contratação de equipes terceirizadas grupos, representantes de movimentos
de especialistas para realizar o diagnóstico e o trata- sociais e pessoas físicas para enfrentar
mento da dislexia. Somou-se à preocupação desperta- conjuntamente os processos de medica-
da pelo referido projeto de lei o aumento significativo lização da vida e da política, mobilizando
de encaminhamentos de crianças e adolescentes para a sociedade e construindo propostas de
serviços de saúde por parte de suas escolas, fato desve- atuação que acolham, atendam e prote-
lado por pesquisas no campo da educação e da saúde jam aqueles que sofrem esses processos.
(Angelucci & Souza, 2010, p. 7). (Fórum, 2013)
Tal situação culminou na organização de um
coletivo de profissionais de diversas áreas, que passou Ainda no âmbito do I Seminário, destacamos
a se reunir sistematicamente, a fim de fazer o enfren- que este foi transformado em livro, intitulado “Me-
tamento político e científico do PL. Assim, diversos dicalização de crianças e adolescentes: conflitos silen-
debates foram organizados sobre o tema, tanto no ciados pela redução de questões sociais a doenças de
âmbito da Câmara dos Vereadores como em univer- indivíduos (CRP-SP & GIQE, 2011).
sidades, ampliando, assim, a compreensão crítica do Desde então, o Fórum vem se reunindo siste-
tema e produzindo efeitos na construção de estraté- maticamente, construindo uma forma democrática
gias que superassem o olhar patologizante para o fra- de organização e trabalhos. Durante os dois primeiros
casso escolar no município de São Paulo. anos, compôs a secretaria executiva do Fórum as se-
Com base nesses debates e reuniões, o coletivo guintes entidades: Conselho Regional de Psicologia de
decidiu organizar um evento internacional pautando São Paulo (CRP-SP); Conselho Regional de Psicologia
o tema. Tal evento, intitulado “A educação medicali- do Rio de Janeiro (CRP-RJ); Associação Brasileira de
zada: dislexia, TDAH e outros supostos transtornos”, Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) e o Ga-
foi realizado em novembro de 2010, e absolutamente binete do Vereador Eliseu Gabriel. Desde o início de
todas as atividades estão disponíveis on-line1. A pro- 2013, a secretaria executiva é composta pelas seguintes
gramação envolveu minicursos, oficinas, simpósios e instituições: Centro de Saúde-Escola “Samuel Barnsley
conferências, além de atividades culturais, contando Pessoa”, da Faculdade de Medicina da Universidade de
com a participação de médicos, sociólogos, psicólogos, São Paulo – CSE-FMUSP (Medicina); Sindicato dos
pedagogos e fonoaudiólogos de diversos estados brasi- Psicólogos de São Paulo – SinPsi (Psicologia); Associa-
leiros, além de estrangeiros. Destaque deve ser dado ao ção Palavra Criativa (Fonoaudiologia); e Faculdade de
sociólogo Peter Conrad, consagrado no debate sobre Educação da Universidade Federal da Bahia – FACED
medicalização e desmedicalização da vida, sendo mes- -UFBA (Educação).
mo premiado inúmeras vezes pelas contribuições no Desde sua fundação, o Fórum vem crescendo em
estudo dos problemas sociais; e Steven Strauss, neuro- representatividade tanto em âmbito nacional quanto
logista americano que combate de forma contundente internacional. Assim, para além do Fórum Nacional,
a dislexia, também recebendo prêmios pelas suas con- foram criados núcleos regionais, sempre por iniciativa
tribuições sobre o tema. e engajamento das próprias regiões. Hoje, temos os
Ao longo do I Seminário Internacional, hou- seguintes núcleos: Rio de Janeiro, Bahia, Pernambu-
ve espaço para a discussão e construção coletiva do co, Rio Grande do Norte, Sergipe, Rondônia e Acre.
No  Paraná, os núcleos Metropolitano de Curitiba,
http://medicalizacao.org.br/videos/
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Irati e Maringá; em São Paulo, os núcleos de Assis, de sete países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia,
Baixada Santista, Campinas, São José do Rio Preto, Costa Rica, México e Uruguai. É certo que, tanto
Sorocaba e Região Metropolitana de São Paulo; em quanto os anteriores, esse evento será também dis-
Minas, os núcleos Belo Horizonte, Uberlândia, Leste ponibilizado on-line e transformado em livro.
de Minas e Triângulo Mineiro. Outros núcleos estão Finalizando o histórico, há de se mencionar que,
em gestação, em diversos estados brasileiros, e todos com base nas pautas propostas pelo Fórum sobre medi-
que desejam consolidar um núcleo contam com nosso calização da educação e da sociedade, o Conselho Fede-
apoio (Fórum, 2013). ral de Psicologia (Gestão 2011–2013) assumiu o com-
Ainda para dimensionar a importância do Fó- promisso de promover uma campanha sobre o tema,
rum, criamos um site em 2011 (www.medicalizacao. a qual foi lançada publicamente em 11 de julho  de
org.br), o qual possui, desde então, 320 mil acessos, 2012, durante audiência pública da Comissão de Di-
sendo que desde o início de 2013 foram 150 mil aces- reitos Humanos da Câmara dos Deputados. Intitulada
sos (dados extraídos do relatório da locaweb). O Fórum “Não à medicalização da vida”, tal campanha produziu
também possui uma página no Facebook, que em materiais que não apenas denunciam a medicalização
menos de dois anos conta com 8.618 seguidores do da vida, mas apontam para formas de superação desse
mundo inteiro. quadro (Conselho, 2012).
Vale ainda mencionar os outros dois eventos Tal histórico, portanto, expõe os primeiros
internacionais organizados, agora tendo o Fórum equívocos do artigo de Frias & Júlio-Costa (2013).
sobre Medicalização da Educação e da Sociedade Explicitemos:
como integrante da comissão organizadora. O II 1. Ao longo do artigo, permanece uma clara con-
Seminário Internacional “A educação medicali- fusão entre: (a) a Campanha “Não à medicali-
zada: novas capturas, antigos diagnósticos na era zação da vida” do Conselho Federal de Psicolo-
dos transtornos”, realizado em 2011, contou com gia; (b) o Conselho Regional de Psicologia de
a participação de médicos, psicólogos, psicanalis- São Paulo; (c) o Fórum Sobre Medicalização da
tas, fonoaudiólogos, pedagogos, gestores públicos Educação e da Sociedade; e (d) o Seminário In-
e jornalistas de diversos estados brasileiros, além ternacional “A Educação Medicalizada”. Cha-
de estrangeiros. Destacamos, nesse segundo even- ma a atenção, nesse aspecto, que nem mesmo o
to, a presença do Forum Infancias, da Argentina, nome do evento aparece correto no artigo. As-
que desde então se tornou parceiro de trabalho e sim, o artigo afirma que o Fórum é um evento
militância do nosso Fórum. Também os vídeos des- organizado pelo CRP/SP (p. 3), demonstrando
te evento estão integralmente disponíveis on-line2, total desconhecimento do histórico apresenta-
além de ele ter sido transformado em livro (Colla- do acima, o qual, no entanto, é público e está
res, Moysés e Ribeiro, 2013). disponível on-line para interessados, o que de-
Finalmente, o III Seminário Internacional veria ser o caso dos pesquisadores que publicam
“A Educação Medicalizada: reconhecer e acolher sobre o tema.
as diferenças”, foi realizado em 2013, ampliando 2. O artigo reduz equivocadamente a organiza-
as parcerias internacionais para os seguintes países: ção do Seminário Internacional ao CRP-SP.
Argentina, Cuba, Estados Unidos, França, Portugal No entanto, basta uma consulta aos materiais
e Espanha. Merece menção a ilustre participação públicos do evento para desfazer esse equívoco.
de Joseph Knobel Freud, sobrinho neto do pai da O Seminário, chamado no artigo de Fórum, é
psicanálise. Vale ressaltar que no III Seminário In- um evento organizado pelo Fórum Sobre Me-
ternacional foi fundado o Movimento Internacional dicalização da Educação e da Sociedade, sem-
pela Despatologização da Vida, ampliando a inter- pre contando com um conjunto de instituições
nacionalização criada no mesmo ano por ocasião do parceiras e com financiamento público, deno-
IV Simposio Internacional sobre Patologización de la tando, assim, a cientificidade que sustentou
Infancia, realizado em Buenos Aires em junho de cada um dos eventos. Em sua terceira edição,
2013, sob o nome Forum Latinoamericano sobre Pa- contamos com o apoio de entidades como
tologización de la Vida, e que conta com a presença FAPESP e UNICAMP. A comissão organi-
zadora da terceira edição do evento, por sua
2
Cf. nota 1 vez, foi composta pelas seguintes entidades:

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Departamento de Pediatria da Faculdade de periódicos científicos para situar e analisar o posicio-


Ciências Médicas  da  UNICAMP, Laboratório namento crítico em relação às mesmas patologias que,
Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em segundo defende o Fórum, constituem o fenômeno da
Psicologia Escolar e Educacional da USP, UNIP, Medicalização. Ao contrário, o artigo focaliza apenas
Centro de Saúde-Escola “Samuel Barnsley Pes- folhetos produzidos para ampliar a popularização do
soa” da Faculdade de Medicina da USP, Conse- debate no meio social. Nesse sentido, a análise fica cla-
lho Regional  de Psicologia do Rio de Janeiro, ramente desigual, aspecto que não pode ser considera-
Anhanguera Educacional, Associação Brasileira do como característica de rigor científico.
de Psicologia Escolar e Educacional, Conselho Ora, sendo um movimento social, compõem os
Regional de Psicologia de São Paulo, Associa- objetivos do Fórum, declarados desde nosso Manifes-
ção Palavra Criativa, Sindicato dos Psicólogos to: ampliar a democratização do debate; estabelecer
de São Paulo, Grupo Interinstitucional Queixa mecanismos de interlocução com a sociedade civil;
Escolar. Tal constatação reforça nossa interpre- popularizar o debate, sem perder o rigor científico;
tação de que os autores não estudaram a fundo pluralizar os meios de divulgação, incluindo sites, re-
para publicar uma análise do tema, impactando des sociais, outros meios de comunicação e manifes-
na sua incorreção e superficialidade. tações artísticas em geral (Fórum, 2010).
3. Os autores citam o site (http://medicalizacao.com. Por esse motivo, desde sua fundação, o Fórum
br/) como uma referência para ser conferida em tem produzido folhetos, valendo-se de gêneros discursi-
relação à liderança do Conselho Federal de Psico- vos absolutamente diferentes do acadêmico, com a fina-
logia. No entanto, basta acessar o site, cujo endere- lidade de circular tal material nas redes sociais e na inter-
ço correto é medicalizacao.org.br, para comprovar net, para a popularização do debate, sem perder o rigor
que a afirmação do artigo é equivocada, já que ele científico. Isso significa que cada um desses folhetos se
é da responsabilidade do Fórum Sobre Medicali- origina de discussões profundas, por vezes produzidas
zação da Educação e da Sociedade. pelos mesmos autores de artigos e capítulos de livros
científicos e acadêmicos. Há de se ressaltar o esforço que
Tendo desfeito os primeiros equívocos do artigo de a produção de tais panfletos envolve, considerando o
Frias e Júlio-Costa (2013), de caráter histórico, cabe des- hábito de seus autores em ter como interlocutores seus
fazer os equívocos metodológicos, focalizando os procedi- pares acadêmicos, e a necessidade de se tornar a lingua-
mentos utilizados na construção do referido artigo. gem mais acessível, sem, com isso, simplificar as ideias
contidas em cada um desses materiais.
Questionamentos Metodológicos ao Artigo de Entre os panfletos criticados no artigo de Frias
Frias e Júlio-Costa e Júlio-Costa (2013), duas referências usadas nos cha-
mam a atenção, ambas de autores pertencentes ao Fó-
Considerando que o artigo de Frias e Júlio-Costa rum sobre medicalização da educação e da sociedade.
(2013) foi publicado em revista científica qualificada, Uma delas é o folheto do antropólogo Rui Mas-
há de se esperar que o mesmo atenda rigorosamen- sato Harayama (cujo nome veio escrito errado!), inti-
te aos critérios científicos na produção e difusão de tulado “O que é ciência, afinal?” (Harayama, 2012),
conhecimento. Tal expectativa aumenta, sobretudo, no qual o autor discorre sobre os discursos científico
com a leitura do editorial, que, conforme apresenta- e religioso. Há uma vasta literatura científica na qual
do anteriormente, aposta que o artigo “constitui uma o antropólogo se baseou para a escrita do folheto, e
análise cuidadosa”, feita por meio de “levantamento referenciada ao final dele, aspecto, no entanto, não
aprofundado” (Pimenta, 2013, p. 1). No entanto, a apresentado por Frias e Júlio-Costa em seu artigo.
leitura cuidadosa do artigo desvela que a análise não Podemos, nesse âmbito, e para não nos prolongar-
foi cuidadosa, tampouco calcada em levantamento mos no importantíssimo debate no campo das ciências
aprofundado, no caso específico das leituras relativas humanas e sociais e seu papel na justificação das desi-
à crítica da medicalização. gualdades sociais, voltar-nos à renomada filósofa brasi-
É patente que, se os autores referenciam livros leira Marilena Chaui (1997), que, ao analisar o discurso
e artigos para defender as patologias criticadas pelo ideológico presente em muitas produções ditas cien-
Fórum e pela Campanha do CFP, eles não citam um tíficas, afirma de maneira contundente, e subvertendo
único livro, capítulo de livro ou artigo publicado em a máxima marxista segundo a qual a religião é ópio do

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povo: “a racionalidade é o novo nome da providência torno do fenômeno medicalização, para então anali-
divina. Talvez tenha chegado a hora da heresia: a ciência sar suas especificidades na vida escolar.
é o ópio do povo” (Chaui, 1997, p. 83). Frias e Júlio-Costa (2013) reconhecem a gran-
O segundo folheto apresentado por Frias e de controvérsia em relação aos diagnósticos dos cha-
Júlio-Costa foi publicado no site Aprendiz, com o nome mados transtornos da aprendizagem. Defendem, en-
“Carta a uma mãe”, tendo autoria da médica pediatra tão, que há duas posições distintas, lideradas de um
e professora Titular da UNICAMP Maria Aparecida lado pela Associação Brasileira de Déficit de Atenção
Affonso Moysés (2011). Novamente, chama a atenção (ABDA), em conjunto com a Associação Brasileira
que os autores optaram por citar um folheto, negligen- de Psiquiatria (ABP) e com a Sociedade Brasileira de
ciando o fato de que ele é de autoria de uma renomada Neuropsicologia (SBNp), e de outro pelo Conselho
médica brasileira, autora de diversos artigos científicos, Federal de Psicologia (CFP). De fato, é inegável que
livros e capítulos de livros, tanto nacionais quanto inter- existem duas vertentes absolutamente divergentes em
nacionais, tendo mesmo sido indicada ao Prêmio Jabuti relação ao debate em torno dos transtornos de apren-
pela publicação do livro A institucionalização invisível: dizagem. No entanto, não é correto afirmar que são
crianças que-não-aprendem-na-escola (2001). lideradas por entidades, já que as organizações, movi-
Seria dispensável frisar que no site do Fórum, apa- mentos sociais, instituições profissionais e acadêmicas
rentemente consultado pelos autores, há inúmeras indi- possuem independência e autonomia na condução de
cações de leituras científicas, publicadas em periódicos suas discussões.
nacionais e internacionais, que poderiam contribuir sig- Qualquer pesquisa bibliográfica séria desvela
nificativamente para uma discussão rigorosa das diferen- que o debate em torno da medicalização da educação
tes vertentes em relação à medicalização da vida. Além é amplo e diversas questões circundam o fenômeno.
disso, qualquer levantamento bibliográfico em sistemas Segundo Moysés e Collares (2010, pp. 71-72), medi-
como o SciELO ou as bases de dados de teses e disserta- calização é a “transformação de questões coletivas, de
ções, tarefa básica em pesquisas científicas sérias, aponta ordem social e política, em questões individuais, bio-
para um conjunto de publicações que analisam a medi- lógicas”. Sua face mais sombria é tornar as diferenças
calização da vida de forma aprofundada. Sem contar os ou a desigualdade em doenças, caracterizando a pato-
livros nacionais sobre o tema já citados na primeira parte logização da vida. É certo que a medicalização isenta as
deste texto, afora os livros em língua estrangeira. instâncias de poder de suas responsabilidades, embora
Nesse sentido, fica patente que o artigo de trate de problemas gerados e perpetuados em suas en-
Frias e Júlio-Costa, embora objetive realizar a crítica tranhas.
da crítica à medicalização da vida, assume essa tarefa Nesse ponto, cabe questionar duas afirma-
sem assumir o compromisso sério e responsável que ções de Frias e Júlio-Costa (2013), sendo a primeira
ela envolve, recaindo notoriamente na falta de rigor a de que a medicalização envolve um “erro técnico”
científico, ao contrapor duas visões antagônicas sobre (p. 4). Não se trata de uma questão técnica, já que as
o tema, mas apresentar com mais preciosismo a visão técnicas não são neutras, mas informadas por visões
defendida do que a criticada. de mundo, de ciência, e, nesse caso específico, de pro-
Nesse sentido, ficam ao Fórum as perguntas que cessos de aprendizagem e desenvolvimento humano.
partilhamos com os editores da Revista e agora com o O debate teórico em torno desses temas é extrema-
conjunto de leitores: qual a motivação dos autores para mente complexo e aponta para uma diversidade de
submeter um artigo construído com base em tantas con- perspectivas. No entanto, quando entramos no campo
fusões e escolhas viciadas para realizar a discussão de tema da saúde-doença, e mais especificamente das doenças
tão sério e complexo? Com base em que critérios foram neurológicas, é certo que elas não podem ser funda-
selecionados os pareceristas para avaliar esse artigo? Com mentadas de forma relativista. Doença neurológica é
base em que critérios os pareceristas o aprovaram? doença neurológica, não podendo variar em termos de
interpretação. Se há variação interpretativa, é porque
Medicalização e Ideologia não há consenso em torno do tema. O que é o caso
do TDAH e da dislexia, como veremos mais adiante.
Finalmente, é possível analisar os equívocos Antes, no entanto, cabe o questionamento em
conceituais do artigo de Frias e Júlio-Costa (2013), o torno da segunda afirmação, qual seja, que o “erro
que faremos, inicialmente, à luz de aspectos gerais em técnico” seria proposital, sendo “estratégia política de

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manipulação da opinião pública”. Tal afirmação nos Žižek (1996), por outro lado, reconhece que
conduz à discussão acerca dos aspectos ideológicos transformações históricas, advindas, sobretudo, da
envolvidos na medicalização da vida, debate marxista experiência nazifascista, implicaram a necessidade de
que aqui mui resumiremos por meio das contribui- se rever o conceito de ideologia, já que “é muito fácil
ções de Chaui (1980; 1997) e Žižek (1996). mentir sob o disfarce da verdade” (p. 14). Assim, para
Segundo Chaui, ideologia é “um corpo explica- esse pensador contemporâneo, o cinismo é o modo
tivo (representações) e prático (normas, regras, precei- mais destacado da ideologia na atualidade, afirmando:
tos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja “a fórmula do cinismo já não é o clássico enunciado
função é dar aos membros de uma sociedade dividida marxista do ‘eles não sabem, mas é o que estão fa-
em classes uma explicação racional para as diferenças zendo’; agora, é ‘eles sabem muito bem o que estão
sociais, políticas e culturais” (1980, p. 115). Trata-se, fazendo, mas fazem assim mesmo’” (p. 14). Diz ele:
portanto, de ideias que contribuem para a crença de
que os homens são desiguais por natureza ou mesmo O próprio conceito de ideologia implica
por desejo próprio, pois a vida social oferece oportuni- uma espécie de ingenuidade constitutiva
dades iguais a todos. básica: o desconhecimento dos seus pres-
Uma característica fundamental do discurso supostos, de suas condições efetivas, a
ideológico é o fato de ele ser construído “sob o modo distância, a divergência entre a chamada
da afirmação, da determinação, da generalização e realidade social e nossa representação dis-
da redução das diferenças, da exterioridade face ao torcida, nossa falsa consciência dela. É por
objeto [...], trazendo a garantia da existência de uma isso que tal “consciência ingênua” pode ser
ordem, atual ou virtual”. Daí se apresentar como submetida a um processo crítico-ideológi-
neutro, “a fim de testemunhar uma verdade que es- co. A meta desse processo é levar a cons-
taria inscrita nas próprias coisas” (Chaui, 1997, p. ciência ideológica ingênua a um ponto
33). Assim, ao mesmo tempo em que se constrói de em que ela possa reconhecer suas próprias
maneira afirmativa, é essencialmente um discurso condições efetivas, a realidade social que
com temas silenciados e mesmo com contradições ela distorce e, mediante esse ato mesmo,
internas. Diz Chaui: dissolver-se. (Žižek, 1996, p. 312)

O discurso ideológico é um discurso feito Ora, se o modo dominante da ideologia é cí-


de espaços em branco, como uma frase nico, o clássico método crítico de confrontar o texto
na qual houvesse lacunas. A coerência ideológico com suas lacunas, com o que ele tem de re-
desse discurso [...] não é uma coerência primir para se organizar, para preservar sua coerência,
nem um poder obtidos malgrado as la- torna-se impossível ou inútil.
cunas, malgrado os espaços em branco, Voltando para o campo da medicalização, po-
malgrado o que fica oculto; ao contrário, demos afirmar que se trata de um fenômeno ligado à
é graças aos brancos, graças às lacunas entre ideologia, já que envolve a redução da complexidade
suas partes, que esse discurso se apresenta humana a características individuais ou biológicas, ou
como coerente. [...] O discurso ideoló- seja, a sua tradução em termos de doenças, sobretu-
gico se sustenta, justamente, porque não do quando se fala em doenças neurobiológicas que,
pode dizer até o fim aquilo que pretende no entanto, não têm comprovação científica na pró-
dizer. Se o disser, se preencher todas as la- pria medicina. Nesse sentido, questionamos a expres-
cunas, ele se autodestrói como ideologia. são “medicalização equivocada” utilizada por Frias e
(1997, p. 21-22, itálicos da autora) Júlio-Costa (2013, p. 4), a qual dá a entender que
haveria uma medicalização que não seria equivocada.
Finalmente, destaca que a ideologia é um fenô- À luz do conceito consagrado em torno da medicali-
meno involuntário e inconsciente, ou seja, o pensa- zação, fica claro que ela é, em si, uma interpretação
mento ideológico se supõe verdadeiro, como se nada equivocada das diferenças.
devesse à sua pertença histórica. Em outras palavras, Finalmente, questionamos decisivamente a supo-
“as ideias universais da ideologia não são uma inven- sição de que todos que defendem o modo medicalizado
ção arbitrária ou diabólica” (Chaui, 1997, p. 100). de compreender os processos de aprendizagem e desen-

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volvimento o façam propositadamente, embora não trações diretas das suas relações recíprocas no trans-
descartemos a existência de pessoas mal-intencionadas torno” (p. 64).
nesse contexto. Saber separar esses dois conjuntos é fun- Tal reconhecimento também comparece em
damental, pois obviamente a estratégia de enfrentamen- Frias e Júlio-Costa, embora de maneira relativizada,
to de seus discursos e práticas não é a mesma. Se os que quando os autores afirmam (Frias & Júlio-Costa,
aderem à ideologia devem ter suas ideias confrontadas de 2013, p. 9, destaques nossos):
forma consistente, essa estratégia é absolutamente inefi-
caz no caso daqueles que não agem por ideologia, mas Na verdade, o que se encontra pontual-
movidos pelo que Žižek chama de cinismo. mente na literatura não são questiona-
mentos sobre a existência do TDAH, mas
A Medicalização Comparece à Escola sim a necessidade de melhorar os critérios
diagnósticos (Beljan, Reuter, Ganas &
Finalmente, é possível adentrar especificamente Hoover, 2012), de identificar biomarca-
na temática da medicalização da vida escolar, cuja gra- dores (Beljan et al., 2012) e de utilizar ra-
vidade deu origem à fundação do Fórum sobre medi- cionalmente a medicação (Valdizán-Usón
calização da educação e da sociedade e à organização et  al., 2013), verificando seus efeitos a
da Campanha do Conselho Federal de Psicologia, esta curto e longo prazos (Pastura & Mattos,
última foco do artigo de Frias e Júlio-Costa (2013). 2004) e a necessidade de uma abordagem
No contexto específico da vida escolar, a medi- biopsicossocial no que se refere ao TDAH.
calização envolve a invenção de doenças que, embora (Richards, 2012)
estejam popularizadas, são frágeis em termos de racio-
nalidade médica, pois não há comprovação científica de Mas consideramos uma fonte inequívoca da
que sejam problemas orgânicos. São supostas doenças polêmica em torno do tema a própria bula do me-
que atingem tanto professores quanto alunos, reduzidos dicamento mais recomendado para o tratamento
a corpos biológicos disfuncionais, o que afronta a notó- do TDAH, a qual afirma, literalmente, que “A etio-
ria piora da qualidade da escola oferecida. logia específica dessa síndrome é desconhecida e não
Focalizando especificamente os alunos, é certo que há teste diagnóstico específico” (Ritalina, Indicações
sobram problemas no uso da língua escrita, bem como da Ritalina, para. 2). E ainda que “Os sinais neuroló-
comportamentos indisciplinados. Nesse contexto, tem gicos não-localizáveis (fracos), a deficiência de apren-
sido reforçada a ideia de que tais problemas são decorrên- dizado e EEG anormal podem ou não estar presentes
cia de doenças neurológicas de origem genética: a dislexia e um diagnóstico de disfunção do sistema nervoso
e a hiperatividade. Sem comprovação científica, estamos central pode ou não ser assegurado”(Ritalina, Indica-
diante de “doenças da moda”, que silenciam sobre a com- ções da Ritalina, para. 1).
plexidade envolvida no processo de desenvolvimento e O mesmo pode ser dito em relação à dislexia: não
aprendizagem, e sua inter-relação com a escolarização. há consenso de que erros na escrita sejam sinais de uma
Analisando especificamente o TDAH, destacamos doença neurológica (Guarinello et  al., 2006; Rubino,
que embora ele seja definido como “um transtorno 2010; Massi & Santana, 2011). Segundo Massi (2007),
neurobiológico, de causas genéticas” (Associação Bra- as questões próprias do processo de aquisição da escrita
sileira de Défict de Atenção, O que é o TDAH?, para. são equivocadamente transformadas em sintomas de um
1) pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção, quadro nosológico chamado dislexia. O que no processo
diversos autores que sustentam essa afirmação reco- de medicalização é tomado como sintoma patológico,
nhecem que ainda não há comprovação inequívoca para Massi, Berberian e Carvalho (2012) são sinais da
para ela. É o caso, por exemplo, de Rohde3 e Halpern ação do sujeito na construção de conhecimento e refle-
(2004), que afirmam: “Apesar da importância das tem não uma doença, mas suas estratégias e hipóteses
funções dos dois sistemas atencionais na neurobiolo- estabelecidas no decorrer do processo de alfabetização.
gia do TDAH, ainda são muito escassas as demons- Nesse sentido, diferentemente do que afirmam
Frias e Júlio-Costa (2013), não é consensual que
3
Vale ressaltar que o próprio Rohde declara ser conferencista ou “deve haver uma busca de diagnósticos bem realiza-
consultor das seguintes companhias farmacêuticas: Bristol-Myers dos”, mas, posto que ainda não há os “critérios cien-
Squibb, Eli-Lilly, Janssen-Cilag e Novartis, situação que caracteriza
conflito de interesses. tíficos bem estabelecidos e transparentes”, que tornas-

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sem não apenas o diagnóstico mas a própria categoria dicalização da vida produziram uma verdadeira epide-
nosológica inequívocos. mia de diagnósticos e tratamentos.
Sintetizam de forma profunda, por meio do Finalmente, não poderíamos deixar de questio-
recurso à história dessas duas supostas doenças, o ca- nar as afirmações de Frias e Júlio-Costa (2013) que
pítulo da pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés questionam as críticas em torno da estigmatização das
e da pedagoga Cecília Collares intitulado “Dislexia crianças e adolescentes diagnosticados no contexto es-
e TDAH: uma análise a partir da ciência médica” colar. Segundo eles, “O que a campanha trata como
(2010). Para uma crítica específica do TDAH, reco- estigmatizante pode ter um efeito exatamente inverso,
mendamos o livro organizado pelo neurologista argen- ou seja, o diagnóstico auxilia na reconstrução do self
tino León Benasayag intitulado “ADDH. Niños con do indivíduo com o transtorno” (p. 8). Ou ainda:
déficit de atención e hiperactividad: uma patología de
mercado?” (2011). No âmbito da dislexia, recomenda- Não se trata de rotular ou reduzir, mas sim
mos o livro da fonoaudióloga Giselle Massi, intitulado de expandir as possibilidades de desenvol-
“A dislexia em questão” (2007) e o livro do neurologis- vimento, uma vez que o diagnóstico favo-
ta americano Steven Strauss, intitulado “The linguisti- rece o planejamento de intervenções. Nes-
cs, neurology, and politics of phonics” (2005). te sentido, é função do profissional (seja
Nesse ponto, há de se questionar a comparação ele médico, psicólogo, fonoaudiólogo etc.)
temerária feita no artigo de Frias e Júlio-Costa (2013) fazer um aconselhamento psicológico, ex-
entre os transtornos que questionamos e algumas pondo para a família e para a criança não
doenças comprovadas por meio de exames físicos. apenas os déficits, mas também as poten-
Deficiência auditiva, hipertensão, diabetes, entre ou- cialidades do paciente, a fim auxiliar no
tras, são condições físicas, biológicas do ser humano; direcionamento da sua aprendizagem e
existem exames que conseguem apontá-las claramen- da sua rotina. (Frias & Júlio-Costa, 2013,
te. O mesmo não acontece com os supostos transtor- p. 8, destaque nosso).
nos de aprendizagem, pois para a constatação deles
há apenas suposições a serem comprovadas, mesmo É com base nessa argumentação que defendem
que apoiadas em exames de imagens com modernos que o “diagnóstico precoce” é “necessário”, pois per-
equipamentos. mite “o tratamento adequado por meio de reabilitação
Nesse sentido, o que o Fórum propõe é uma cognitiva, intervenções escolares e apoio aos pacientes
discussão bem fundamentada acerca da fragilidade e seus familiares”, reduzindo suas “limitações”, me-
em torno de tais supostos transtornos, não apenas em lhorando a “qualidade de vida dele e de sua família”, e
relação a como são feitos seus diagnósticos e sugeri- permitindo sua “inclusão social” (Frias & Júlio-Costa,
dos os tratamentos, mas substancialmente à etiologia 2013, p. 9).
mesma desses transtornos. Nosso objetivo, portanto, Para nós seria suficiente apontar a contradição
é apontar que o que é posto como verdade inquestio- de tais afirmações pelo simples fato de que a criança ou
nável é, em realidade, um grande campo para discus- adolescente, que na escola devem ser vistos e tratados
são, uma vez que envolve aspectos políticos, sociais, como alunos, são chamados pela alcunha de “pacien-
ideológicos e culturais. te”, estigma de doente que certamente os acompanha
Sustenta a urgência desse debate o reconheci- e acompanhará na vida escolar. Sobram referências de
mento de que tem se tornado cada vez mais comum, pesquisas no campo da educação que denunciam o
no cenário escolar, crianças e adolescentes serem diag- quanto o diagnóstico caminha na contramão da inclu-
nosticados, a despeito da enorme polêmica em torno são escolar, uma vez que serve muito mais para marcar
do tema. Para Frias e Júlio-Costa, tal aumento “pode a criança diferente do que a tratar como igual. Merece
simplesmente refletir o aumento ao acesso a diagnósti- menção o livro já citado de Maria Aparecida Moysés,
co e tratamento de um problema que realmente estava A institucionalização invisível: crianças que não-apren-
prejudicando os usuários” (p. 8), chegando mesmo a dem-na-escola (2001), cuja relevância para a educação
afirmar que ainda há muitas outras crianças a serem rendeu a indicação ao prêmio Jabuti.
diagnosticadas e tratadas. Discordamos veementemen- Concluímos, pois, que construir uma percepção
te dessas afirmações, apostando, com Welch, Schwartz de si mesmo como portador de transtorno é construir
& Woloshin (2007), que os exageros em torno da me- uma percepção de si marcada pelo rótulo. Deixa de ser

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uma criança e passa a ser um hiperativo, ou desatento; (Ritalina, Precauções da Ritalina, para. 1,
ou disléxico... A partir de então, seus aprendizados e destaques e acréscimo nossos)
atitudes deixam de ser vistos por si e pelos que entor-
nam como “normais”. E não seria isso um estigma? A lista de reações adversas é grande e envolve todo
o organismo. Chama atenção a estratégia recomendada
Medicalização e a Indústria Farmacêutica na bula para “minimizar tais complicações”: “períodos
sem o medicamento, especialmente durante os finais de
Outro aspecto questionável no artigo de semana e nas férias escolares” (Ritalina, Precauções da Ri-
Frias e Júlio-Costa (2013) envolve a defesa do uso talina, para. 1, destaques nossos). Por fim, a bula deixa
do tratamento medicamentoso para o TDAH. Se- claro, em letras garrafais, que o medicamento “PODE
gundo afirmam, de maneira embasada, “não há CAUSAR DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA”
como negar que qualquer medicamento possua (Ritalina, Superdosagem da Ritalina, para. 3).
efeitos colaterais, de maneira que seu uso indis- Assim, chamamos a atenção para uma reflexão
criminado pode ser letal, em especial para crian- que consideramos fundamental: por que está sendo
ças e idosos”. No entanto, prosseguem afirmando, comercializado um medicamento antes mesmo de
novamente com base em autores, que “antes de comprovações técnicas básicas serem elucidadas?
um medicamento ser disponibilizado no mercado Finalizando esta parte, reiteramos nossa plena
para os consumidores, existem fases de testagem discordância em torno da afirmação de que “no Brasil,
(farmacovigilância) que asseguram sua eficácia e apenas os mais ricos têm acesso a esses serviços. A falta de
efeitos em longo prazo”, bem como que “o metil- reconhecimento oficial impede a ajuda a essas crianças
fenidato é considerado uma das medicações mais duplamente prejudicadas, pelo transtorno e pela falta de
eficazes na área da Psiquiatria” (p. 9). tratamento” (Frias & Júlio-Costa, 2013, p. 9).
Curiosamente, não é o que lemos na própria bula Tal discordância apoia-se nas pesquisas que de-
da Ritalina, metilfenidato, na qual encontramos que o nunciam o aumento de projetos de lei que visam inserir
medicamento é “um estimulante do sistema nervoso programas de diagnóstico e tratamento de crianças e
central” (Ritalina, Ritalina, para. 1). Seu mecanismo de adolescentes em idade escolar na rede pública de en-
ação no homem ainda não foi completamente elucidado, sino. Embora mascarados de direito, sabemos que tais
mas presumivelmente ele exerce seu efeito estimulante projetos nascem da negação, aí sim, de um direito fun-
ativando o sistema de excitação do tronco cerebral e o damental: o direito à escolarização de qualidade (Souza
córtex. O mecanismo pelo qual ele produz seus efeitos e Oliveira, 2013). Mas também encontra sustentação
psíquicos e comportamentais em crianças “não está no belo artigo da jornalista Eliane Brum, intitulado
claramente estabelecido, nem há evidência conclusiva “O doping dos pobres” (2013), que, ao denunciar a
que demonstre como esses efeitos se relacionam com ampliação do consumo de medicamentos psiquiátricos
a condição do sistema nervoso central.” (Ritalina, entre os pobres no Brasil, questiona:
Farmacodinâmica, para. 1)
Na bula, ainda encontramos a afirmação cate- Não há nada mais doentio e aniquila-
górica de que o remédio “não deve ser utilizado em dor do que o sentimento de impotência.
crianças com menos de seis anos de idade, uma vez E, quando a questão é esta, tomar remé-
que a segurança e a eficácia nesse grupo etário não dios como se sua dor não fosse legítima,
foram estabelecidas” (Ritalina, Advertências da Rita- não tivesse causas reais que precisam ser
lina, para. 1). Além disso, afirma que escutadas e transformadas, é acentuar o
abismo da impotência. É o contrário de
embora não tenha sido ainda confirma- saúde. (Brum, 2013, p. 45)
da uma relação causal, tem sido relatada
(sic) uma moderada redução no ganho de Mas para que não restem dúvidas quanto à
peso e um ligeiro retardo no crescimento pertinência de nossa preocupação, o tema povoou re-
com o uso prolongado de estimulantes em centemente o site da própria Associação Brasileira de
crianças. Isso é normalmente acompa- Psiquiatria, com a publicação, em fevereiro de 2013,
nhado por uma retomada do crescimento do texto “Cresce uso abusivo de metilfenidato”.
quando o medicamento é descontinuado.

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Criticar a medicalização implica promover no- agora pode ser percorrida e ampliada por outros pro-
vas formas de cuidado. fissionais, dando continuidade à consolidação de ca-
Um último equívoco do artigo de Frias e Jú- minhos outros que possam de fato acolher e enfrentar
lio-Costa (2013) merece ser criticado: a suposição de as dificuldades, mas apoiados no respeito às diferen-
que, ao criticarmos a medicalização da vida, seriamos ças. Sem concebê-las como doença.
contrários ao acolhimento das pessoas que sofrem es-
ses processos. Referências
Basta uma pesquisa séria nas produções do Fó-
rum para desvelar que temos não apenas aprofundado Angelucci, C. B., & Souza, B.P. (2010). Apresentação.
a crítica contundente dos processos de medicalização In CRP-SP, & GIQE (Orgs.). Medicalização de
da vida em todas as suas esferas, mas também apresen- crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela
tado propostas concretas de acolhimento das diferen- redução de questões sociais a doenças de indivíduos
ças e cuidado das pessoas que sofrem esses processos, (pp. 7-13). São Paulo: Casa do Psicólogo.
baseadas em concepções de ser humano e de sociedade Associação Brasileira de Psiquiatria. (2013). Cresce
que rompem com a lógica patologizante, o que reporta uso abusivo de metilfenidato. Acesso em 17 de
à dimensão teórico-metodológica. outubro, 2013, em http://www.abp.org.br/portal/
Merece destaque o Grupo de Trabalho Educação archive/11649
& Saúde, composto por pesquisadores e profissionais Associação Brasileira do Déficit de Atenção (s.d.). O
com experiência no acolhimento de crianças e adoles- que é o TDAH. Acesso em 17 de outubro de 2013,
centes que sofrem com o processo de medicalização. Ca-
em http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/o-que-
racterizando-se por ser interdisciplinar, multiprofissional
e-o-tdah.html
e multicêntrico4, o detido trabalho do GT resultou na
Benasayag, L. (2011). ADDH. Niños com déficit
elaboração de um rico documento, intitulado “Reco-
de atención e hiperactividad: Una patología de
mendações de práticas não medicalizantes para profis-
mercado? Buenos Aires: Ed. Noveduc.
sionais e serviços de saúde e educação”, uma de nossas
Berberian, A. P., Massi, G. A. A. (2000). Dislexia: uma
produções coletivas mais relevantes (Fórum, 2012).
Tal documento está integralmente disponível discussão conceitual. Tuiutí (UTPR), Curitiba, 20,
no site do Fórum, tendo tido 4.809 acessos desde sua 109-116.
publicação em 2012. Além disso, em 2013 foi pu- Bohannon, J. (2013). Who’s Afraid of Peer Review?
blicada sua versão impressa, contando com o finan- Science, 342(6154), 60-65. Acesso em 17 de
ciamento da Faculdade de Educação da USP e do outubro, 2013, em http://www.sciencemag.org/
Centro de Saúde-Escola “Samuel Barnsley Pessoa” da content/342/6154/60.full
Faculdade de Medicina da USP. Assim, o Fórum con- Brum, E. (2013). O doping dos pobres. In A menina
seguiu garantir uma tiragem de mil exemplares, todos quebrada (pp.39-46). Porto Alegre: Arquipélago
para distribuição gratuita. Editorial.
O pioneirismo e relevância desse importante Chaui, M. S. (1980). O que é ideologia. São Paulo:
instrumental teórico-prático representam um passo Editora Brasiliense.
significativo no enfrentamento da patologização de Chaui, M. S. (1997). Cultura e democracia. São Paulo:
crianças e adolescentes com dificuldades escolares. Cortez.
Apostamos que esse não é um passo qualquer. É um Collares, C. A. L., & Moysés, M. A. A. (1996).
passo fundamental, pois abre uma nova trilha, que Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e
medicalização. São Paulo: Cortez.
Compuseram o GT: profissionais de antropologia, fonoaudiologia,
4

medicina, pedagogia e psicologia, das seguintes instituições, todas Collares, C. A. L., Moysés, M. A. A, & Ribeiro,
renomadas: Associação Palavra Criativa/IFONO, Centro de Saúde M. (Orgs.). (2013). Novas Capturas, Antigos
Escola “Samuel Barnsley Pessoa” da Faculdade de Medicina da USP, Diagnósticos na Era dos Transtornos. São Paulo:
Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UNI-
CAMP, Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Psi- Mercado Letras.
cologia da UNESP Campus Assis, Grupo Interinstitucional Queixa Conselho Federal de Psicologia. (2012). Campanha
Escolar, Instituto Sedes Sapientiae, Laboratório Interinstitucional de “Não à medicalização da vida”. Acesso em 17 de
Estudos e Pesquisa em Psicologia Escolar e Educacional, Rede Hu-
maniza-SUS, Serviço de Psicologia do Hospital do Servidor Público outubro, 2013, em http://site.cfp.org.br/cfp-
Municipal e União de Mulheres do Município de São Paulo. lanca-campanha-nao-a-medicalizacao-da-vida/

Viégas, L. S., Gomes, J. & Oliveira, A. R. F. 275


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