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ARAUJO, I.S. e MADEIRA, W.

Estratégias discursivas e (des)colonização da enunciação: as


Conferências de Saúde como campos de batalha. Em: SACRAMENTO, I. Mediações
comunicativas da saúde. Rio de Janeiro: Multifoco, 2017, pp 165-190.

Estratégias discursivas e (des)colonização da enunciação:


as Conferências de Saúde como campos de batalha

Inesita Soares de Araujo


Doutora em Comunicação e Cultura, pesquisadora do Laboratório de Comunicação e Saúde e
professora do PPGICS – Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde
(Icict/Fundação Oswaldo Cruz).
Wilma Madeira da Silva
Doutora em Ciências, consultora de projetos do Hospital Sírio-Libanês e do Instituto Síntese de Saúde e
Trabalho, docente do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sirio-Libanês, da Faculdade de Medicina
do ABC e do Centro Universitário de Volta Redonda.

1. Primeira aproximação
No Brasil, as Conferências Nacionais de Saúde e de Saúde Indígena, no Brasil,
são espaços tidos como democráticos, que possibilitam que os interesses de todos
sejam ouvidos, considerados e respeitados e, por consequência, possam influir nas
políticas públicas do setor. São elas verdadeiros ícones de um modo de fazer política
que consagra o modelo 'de baixo para cima', de valorização das 'bases'. A partir dos
resultados de duas pesquisas realizadas em tempos e circunstâncias distintas – a XII
Conferência Nacional de Saúde e a III Conferência Nacional de Saúde Indígena –
buscamos problematizar essa certeza, questionando tanto sua estrutura, tomada
como discurso, quanto sua realização, que em momentos significativos parecem não
levar tão em conta lógicas, processos locais, conhecimentos específicos e formas de
expressão das parcelas da população convocadas a participar e a legitimar o evento e
seus resultados.
Tendo a Análise Social de Discursos como ambiente teórico-metodológico e
como cenário as duas Conferências estudadas, examinamos estratégias de
manutenção da ordem vigente e de resistência, caracterizando-se um embate entre
forças com diferentes e desiguais capitais simbólicos (Bourdieu, 1989). As percepções
que emergem da análise são postas em diálogo com alguns elementos conceituais do
debate sobre a descolonização do poder/saber, com ênfase nas sociologias das
ausências e emergências (Santos, 2002, 2010a, 2010b), particularmente no sentido de
avaliar se a premissa teórica de que as mudanças sociais podem ser propiciadas ou

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favorecidas pelas práticas, estratégias e embates discursivos (Fairclough, 2001) pode
ser ratificada quando se observa uma luta entre forças desiguais.
O texto está estruturado em partes correspondentes a contextos pertinentes
ao nosso objetivo, em camadas superpostas, para fins de exposição, mas sempre em
articulação. Contexto é tudo aquilo que propicia a emergência de um texto (Pinto,
1999) e pode ser considerado equivalente a condições de produção (Verón, 1980)
conceito caro à teoria dos discursos. Condições de produção são elementos
extratextuais, mas não extradiscursivos, na medida em que os discursos,
compreendidos como prática, englobam suas condições produtivas. Só há discursos
situados e a relação dos discursos com a situação em que ele ocorre é constitutiva dos
efeitos de sentido que produz. É a essas situações e embates discursivos delas
decorrentes que nos dedicamos a seguir.

2. Contextos da nossa escrita

2.1 Lugares de fala


O lugar do qual se observa e analisa um fragmento da realidade define em larga
medida o que se vê, como se vê e como se relata. Ou seja, lugares de fala são
condições de produção textual.
Nossos lugares estão definidos primeiramente pelo pertencimento a
instituições do campo da Saúde Coletiva, porém em instâncias atravessadas pelo
campo da Comunicação Social. Além disto, são marcados por escolhas políticas sobre
como atuar profissionalmente neste campo. Pertencemos a coletivos que se somam às
forças centrífugas do campo da Saúde Coletiva, no sentido do fortalecimento de um
sistema de saúde público, universal, integral e com equidade, acreditando que só com
descentralização e genuína participação social e política este será alcançado,
contribuindo assim para a luta contra as desigualdades e iniquidades sociais. Essa
atuação se dá pela pesquisa, pelo ensino e pela ação técnica e política.
Nossos lugares tambem estão definidos pela nossa formação, que se dá nos
campos da Comunicação e da Saúde.

2.2 Pesquisas em releitura

Nossas reflexões articulam e tomam como ponto de partida resultados de duas


pesquisas realizadas em condições e momentos distintos que, revisitadas e observadas

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por um prisma comum, nos permitem fazer coincidir as conclusões específicas e
ampliar seu espectro, quando observadas de uma certa distância temporal e em
conversação com outro espectro conceitual.
Uma das pesquisas foi vinculada a uma tese de doutoramento (Araujo, 2002)
que teve como objetivo propor um modelo de comunicação para políticas públicas.
Para nossos fins atuais, serão mobilizadas somente análises e conclusões resultantes
da participação em uma Conferência Nacional de Saúde Indígena, com o intento de
registrar as estratégias discursivas indígenas e não indígenas, no âmbito da elaboração
dos conceitos de 'centro e periferia discursivos' e 'lugar de interlocução'.
A outra pesquisa, finalizada em 2008, recebeu o nome de "Fala, Conselheiro!
Análise dos discursos e estratégias de comunicação na XII Conferência Nacional de
Saúde"1 (Araujo e Madeira, 2008). Nossos objetivos foram mapear as redes de
interesses que se fizeram representar na XII CNS, identificar as estratégias de
comunicação dos delegados e experimentar a utilização combinada de dois métodos
de análise discursiva: o Discurso do Sujeito Coletivo e a Análise Social de Discursos.
Tendo em vista nossos objetivos atuais, enfocaremos apenas os resultados dos
procedimentos da pesquisa nas sessões plenárias.

2.3 As conferências
A participação social é um dos princípios organizativos do SUS - Sistema Único
de Saúde. Desde a década de 90, fazer com que cidadãos construam e participem de
processos de formulação de políticas públicas foi reconhecido como um desejável
modelo da gestão pública local contemporânea (Milani, 2008). Entre os mecanismos
que visam garantir que essa participação social ocorra, estão os conselhos de saúde e
as conferências de saúde, estruturados desde o município até o nível nacional. Os
conselhos são organizações de atuação permanente e as conferências realizam-se a
cada quatro anos. Ao final de um longo processo que se inicia nas bases locais –
conferências regionais e municipais debatem temas, elaboram documentos e elegem
representantes – um grande número de delegados se reúne em Brasília e durante
alguns dias discute e delibera sobre temas relacionados à saúde no país, cuja pauta
1
Promovida pelo DCS/CICT/Fundação Oswaldo Cruz (hoje LACES/ICICT/Fiocruz) e pelo GT Comunicação
e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Apoio financeiro do CNPq. Coordenação
geral de Inesita S. Araujo e coordenação da pesquisa de campo de Wilma Madeira da Silva.

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também foi objeto de debate prévio.
As Conferências Nacionais de Saúde (CNS)
As CNS são realizadas no Brasil desde 1937. No entanto, ocorriam em
irregulares intervalos de tempo. Em 1986, a VIII Conferência aconteceu no calor dos
debates sobre a Reforma Sanitária, transformando-se num marco histórico da
mudança da Saúde no país. Foram consagrados os princípios que na constituição de
1988 se tornariam os diretrizes estruturantes do SUS. A participação social era um
deles.
Em 1990, a Lei n.o 8.142, que dispõe sobre a participação da comunidade na
gestão do SUS, estabeleceu periodicidade de quatro anos para as CNS, determinando
também outros pontos que até hoje regem essa instância propositiva e deliberativa. As
CNS foram instituídas como instâncias colegiadas, compostas por representantes de
diferentes segmentos sociais: movimentos organizados, gestores da saúde,
prestadores de serviço e entidades não governamentais ligadas ao campo da saúde. A
missão das CNS passou a ser "Avaliar e propor diretrizes para a formulação da política
de saúde nos níveis municipais, estaduais e nacional" (CNS, 2011). A composição das
CNS segue o mesmo critério que rege os Conselhos de Saúde; assim, 50% dos seus
participantes devem ser representantes dos usuários do SUS e a outra metade divide-
se entre gestores, prestadores de serviço e trabalhadores da saúde.
Em 2003, ocorreu a XII CNS, cenário da nossa pesquisa, com o tema " Saúde:
um direito de todos e um dever do Estado. A saúde que temos, o SUS que queremos",
precedida por 27 conferências estaduais e mais de 3 mil municipais. Quatro mil
participantes debateram em 135 grupos de trabalho, resultando 723 diretrizes, além
de 90 moções (CONASS, 2011).
As Conferências Nacionais de Saúde Indígena
A VIII CNS produziu muitas consequências, entre elas o surgimento de uma
Conferência específica sobre a Saúde Indígena. A primeira chamou-se "I Conferência
Nacional de Proteção à Saúde do Índio" e ocorreu em novembro de 1986, sem a
presença dos índios. Entre as decisões sobre a saúde das populações indígenas, estava
a participação das mesmas na formulação da política de saúde que lhes diz respeito.
A partir de então, os eventos foram denominados Conferências Nacionais de
Saúde Indígena (CNSI). Sua realização foi sempre dificultosa e sem periodicidade

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regular. Assim, a segunda ocorreu em 1993, a terceira em 2001, a quarta em 2006 e a
quinta e última em 2013.
A composição dos participantes das CNSI é paritária, metade é formada por
delegados dos povos indígenas e metade de participantes não indígenas, entre
gestores, técnicos, assessores, trabalhadores da área da saúde, antropólogos,
pesquisadores, estudantes de pós-graduação e observadores. A III CNSI - Construindo e
avaliando o Sistema de Saúde Indígena, ocorrida em Luziânia, Goiás, de 14 a 18 de
maio de 2001, com aproximadamente mil participantes, foi nosso campo de estudos.
As CNS e CNSI são importantes espaços de participação cidadã nas políticas de
saúde no país. A participação é, por qualquer prisma que se observe, seu valor
máximo, o que nos levou à indagação sobre suas efetivas condições de concretização.

3. Contextos teórico e metodológico

3.1 Os conceitos que organizam as ideias


Duas perspectivas teóricas articuladas organizam nossas reflexões e permitem
problematizar as Conferências de Saúde como espaço de genuína participação. Uma
localiza-se nos estudos sobre pós-colonialismo e outra nos estudos discursivos. Apesar
de emanarem de distintas tradições, é possível estabelecer uma conversação entre
elas no sentido de identificar e problematizar como as situações institucionais e as
relações sociais podem ser lugares e momentos da instituição de relações de poder,
tanto no sentido da ratificação da ordem vigente como de contestação dessa ordem.
Embora os estudos pós-coloniais tenham vários expoentes, tomamos como
ponto de partida e principal referência Boaventura de Sousa Santos, que nos propõe a
prática das sociologias das ausências e das emergências (Santos, 2002, 2010a). A
primeira procura responder à pergunta: o que ou quem foi silenciado ou ignorado? O
que ou quem está ausente das políticas, dos documentos? A segunda investiga as
"alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas" (Santos, 2010a,
p.118). Uma fala do que foi suprimido, do que falta; outra, do que resiste, do que
clama. A sociologia das ausências move-se no campo das experiências sociais, a
sociologia das emergências no campo das expectativas sociais.
É pelas sociologias de Santos que podemos compreender melhor suas ideias de
'linha abissal' 'espistemologias do sul' (Santos, 2010a,2010b). Ele propõe uma

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cartografia cujo elemento central é uma linha que separa Norte e Sul, vistos não
estritamente em sua dimensão geográfica, mas como representações de um
saber/poder e um saber dominantes e saberes/poderes subalternos. Norte e Sul
encontram-se, então, disseminados por toda parte em todos os níveis das relações
sociais.
O exercício da dominação provém e fortalece o que ele identifica como
hegemonia de cinco lógicas estruturantes das relações humanas, que incidem sobre os
saberes, as temporalidades, os reconhecimentos, as escalas e as produtividades. Às
lógicas, vistas como monoculturas, Sousa faz corresponder ecologias, que conceitua
como "prática de agregação da diversidade pela promoção de interações sustentáveis
entre entidades parciais e heterogêneas". (Santos, 2010a, p.105)
Apesar de serem próprias das sociedades modernas, essas lógicas têm suas
raízes nas sociedades coloniais, que produziram grandes epistemicídios, apagando
todas as formas de saber que não fossem as formas das classes sociais dominantes.
Santos nos adverte que o termo pós-colonial faz supor a superação das múltiplas
formas de manifestação do colonialismo. No seu entender, concepções e práticas
coloniais continuam vivas e ativas em nosso meio e por meio das lógicas hegemônicas,
permeiam o mundo científico-acadêmico, o campo político e o social. Suas ecologias
são uma proposta teórico-política, no sentido em que visam 'descolonizar' as práticas
institucionais, permitindo a emergência de uma multiplicidade de formas de estar no
mundo, particularmente de saberes, resultantes de formas de produção de
conhecimento tão legítimas quanto as legitimadas pelas Ciências. Esses saberes
operariam em articulação produtiva com os científicos, constituindo-se uma 'ecologia
dos saberes'. As epistemologias do Sul dizem respeito a essas formas de
conhecimento.
"Epistemologias do Sul enquanto procedimentos para reconhecer e validar o
conhecimento produzido ou a produzir por aqueles que têm sofrido
sistematicamente as injustiças, a opressão, a dominação, a exclusão causadas
pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado. É um conhecimento
que assenta, como tal, na perspetiva de um ecologia de saberes, que supere
muitas das clivagens que têm vindo a ser instigadas pela modernidade".(CES,
2014)

Para aprofundar a compreensão da ideia da linha abissal, nos apropriamos do

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modo pelo qual Santos fala do tema da desigualdade e da exclusão. Por sua ótica (que
expomos desde o início de forma resumida e simplificada), a igualdade, a liberdade e a
cidadania são valores "reconhecidos como princípios emancipatórios da vida social"
(Santos, 2010a, p.279). Por isto, a desigualdade e a exclusão têm que ser vistas como
exceções, são desvios ilegítimos de uma sociedade. As políticas públicas encontram aí
um lugar que as justifica e teoricamente visam a eliminação ou redução das
desigualdades. Nas sociedades coloniais, a desigualdade e a exclusão funcionavam
como princípios de regulação, sua finalidade era manter as pessoas em seus lugares
desiguais. Nas sociedades modernas, essa prática persiste, vigorando um discurso
sobre os 'limites'. A desigualdade é tolerada, até quando os desiguais ultrapassam os
limites demarcados pelos 'iguais': aí se aplica a exclusão, com penalidades que vão do
silenciamento à exclusão da vida, em casos mais drásticos. O limite de tolerância varia
de acordo com a natureza da desigualdade, com os ventos políticos e tem sido objeto
permanente de disputa.2
A perspectiva teórica pós-colonial é potencializada e potencializa alguns
elementos da perspectiva discursiva que também tratam do direito à voz, indissociável
do direito à saúde (Cardoso e Araujo, 2009). Mais que o direito à voz, trata-se do
potencial transformador da prática discursiva. Este é o ponto de vista de Norman
Fairclough (2001), que defende que, se as relações de poder estão conformadas nos
discursos, mudar a ordem linguística produz mudanças nas relações de poder. No
entanto, Fairclough sabe que nas estruturas institucionais concretas há regras que se
naturalizam e constituem condições de produção da prática discursiva. Sua ênfase na
materialidade institucional, com seu poder de impor regras e processos de
naturalização dos discursos dominantes se opõe à crença na existência de um livre
jogo de ideias, bem como fundamenta e acentua nossa perspectiva de que as
periferias discursivas estão em posição francamente desfavorável na disputa por
melhores lugares de interlocução (Araujo, 2004).
A metáfora da língua como arena dos embates sociais, dos conflitos e dos
acordos (Bakhtin, 1992) ilumina nosso objeto de análise. As conferências de saúde,

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Os fundamentos e desdobramentos dessa perspectiva podem ser encontrados em várias textos de
Boaventura Santos, particularmente em "A Crítica da razão indolente" e em "A gramática do tempo"
(2010a e b).

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como veremos adiante, são eventos regidos pela palavra. Nela, centro e periferia
discursivos (Araujo, 2004) se defrontam e se confrontam e os dispositivos de
enunciação são objeto de investimento das hegemonias de toda ordem, mas também
de estratégias de resistência.
Entre as muitas estratégias produzidas nos embates entre forças sociais
centrípetas (pela ordem vigente) e centrífugas (a favor da mudança), chamamos
atenção para duas recorrentes no campo da Saúde: a democratização simulada e o
hibridismo como resistência e estratégia de reinscrição discursiva e social. A
democratização simulada emerge da observação de Fairclough sobre "a redução de
marcadores explícitos de hierarquia e assimetria de poder entre pessoas com poder
institucional desigual" (2001, p.129). Essa redução é concedida por parcelas dos
núcleos centrais que, por diferentes razões, estabelecem alianças com os núcleos
periféricos que, assim como os dispositivos que delas decorrem, são fatores de
mediação no trânsito da periferia para o centro de poder discursivo (Araujo, 2004).
Para Fairclough, a redução desses marcadores - um bom exemplo é conceder
aos núcleos periféricos o acesso a tipos de discurso de prestígio, como ocupar lugar de
palestrante em mesas de autoridade, como ocorre com as lideranças indígenas ou de
movimentos populares - teria o efeito de encobrir outras assimetrias de poder,
tornando-as mais eficazes, por sua invisibilidade. Mas é Fairclough mesmo que alerta
para o alto risco da democratização simulada quando com propósitos estratégicos, por
"ser uma concessão ao poder de forças democratizantes tanto quanto um movimento
para combatê-lo" (2001,p.271). Diríamos que mesmo quando genuinamente bem
intencionados, esses processos não conseguem encobrir seu caráter estratégico,
tornando-se em si mesmo um campo de lutas, como diz Fairclough, mas também
fazendo emergir ou acirrando antagonismos prévios. Os eventos estudados, embora
não possam ser de considerados sob a égide desse conceito, por diversos dispositivos e
pela reação que despertam acabam produzindo esse efeito.
O hibridismo, pela perspectiva crítica e pós-colonialista de Bhabha, permite
compreender estratégias de trânsito entre posições discursivas de centro e periferia.
Frequentemente essas estratégias produzem práticas que recebem o rótulo de
ambigüidade, adesismo ou falta de confiabilidade. Bhabha as vê como de resistência às
dominações. Em muitas situações, núcleos periféricos são obrigados a clandestinizar

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seu discurso e operar no campo discursivo do Outro de maior poder, construindo sua
identidade social e política no campo de força e categorias do interlocutor de maior
capital simbólico. Essa abordagem pode ser extrapolada para outros níveis discursivos,
não linguísticos, como o formato de eventos.
Retomando a premissa de Fairclough sobre a mudança social pela via
discursiva, podemos convocar Orlandi (1993) para nos falar da força do interdito que,
na sua negação da palavra, traz em si o silenciado: inter-dito, o dito nas entrelinhas.
Em alguns cenários, como o que estudamos, o interdito, como processo de
silenciamento, é uma estratégia de consequências imprevisíveis, uma vez que opera
sobre uma rede de remissões a uma história vivida de repressões e subalternidades,
cujos atores estão buscando recontar, em busca de uma reinscrição na cena social
(Bhabha, 1998). O interdito, neste sentido, poderia trazer em si o germe da mudança
que Fairclough anuncia, embora para haver mudanças na ordem societária outras
condições associadas sejam necessárias.

3.2 Os caminhos percorridos


As condições metodológicas de produção da nossa análise ocorreram em dois
momentos distintos e assim serão apresentados.
A XII Conferência Nacional de Saúde
Nossa participação na Conferência se deu na categoria de ‘observador’,
previamente acordada com o Conselho Nacional de Saúde, não envolvendo ações de
falas ou intervenções propositadas, mas contatos para entrevistas, com um roteiro
estruturado que permitisse identificar o perfil dos autores, suas falas e intenções.
Foram adotados dois instrumentos de registro de campo: gravações de falas
oficiais e de entrevistas e registro fotográfico das comunicações visuais identificadas -
cartazes, camisetas, botons e outras vestimentas que indicassem a disposição de
anunciar, defender ou refutar uma ideia em debate.
As falas de palestrantes e de delegados que ocuparam o microfone, se dirigindo
à mesa e ao plenário foram gravadas em material audiovisual. As entrevistas com estes
delegados, após o uso do microfone e as enquetes com participantes da sessão para
gravar a repercussão das falas foram gravadas em audio. Após aplicados critérios de
validação, consolidamos o seguinte corpus de análise:

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i. Falas dos palestrantes em quatro mesas3, num total 20 registros. Essas falas
foram tratadas como condições de produção discursiva, uma vez que são
desencadeadoras das falas dos delegados, que desenvolvem suas estratégias
enunciativas em relação ao que foi dito e por quem foi dito.
ii. Falas dos delegados que pediram palavra nessas mesas, num total de 66
registros, que permitiram identificar os dispositivos de enunciação de construção da
identidade e da legitimidade.
iii. Falas em entrevistas concedidas por estes delegados, num total de 58
registros. Além de confirmarem os dispositivos, permitiram precisar melhor as
vinculações institucionais e as de representação dos delegados, a origem das
demandas apresentadas e os interesses representados.
iv. Falas dos participantes das enquetes nas saídas das sessões plenárias, num
total de 33 registros. O objetivo era avaliar o impacto da fala dos delegados no
microfone e ampliar o conhecimento sobre as redes de interesses;
v. Materiais de comunicação coletados e fotografados, totalizando 497
registros: 200 impressos (jornais, folders, livros, livretos, panfletos, cartas abertas etc.);
19 camisetas, 62 bottons, 9 faixas, 16 convocações para reuniões listadas e 191 fotos.
Esse material permitiu desenhar um cenário de investimento na comunicação como
estratégia de visibilidade.
Para nosso objetivo específico, aportaremos apenas as observações que
puderam ser feitas nas sessões plenárias.

A III Conferência Nacional de Saúde Indígena


Nossa participação na Conferência como 'observador' nos deixou em total
liberdade para conversar com os delegados, técnicos, gestores e assistir a vários
eventos. Como momentos coletivos, foram privilegiadas sessões plenárias e reuniões
de grupos temáticos específicos.
O principal instrumento de registro foi um caderno de campo. Não optamos por
registro fotográfico para preservar a privacidade e sobretudo o direito de imagem dos

3
As q u a t r o m e s a s f o r a m e s c o l h i d a s , n u m t o t a l d e d e z , c o n f o r m e a f i n i d a d e t e m á t i c a c o m o s
i n t e r e s s e s d a p e s q u i s a : D i r e i t o à S a ú d e ( t e m a m a i s u n i v e r s a l ) , F i n a n c i a m e n t o d a Sa ú d e
(tema mais polêmico), Controle Social e Gestão Participativa (diretamente relacionado aos
conselhos de saúde) e Comunicação e Informaç ão (domínio disciplinar da pesquisa).

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participantes, mesmo porque os muitos que queriam ser fotografados, o eram por
seus parentes, cabendo-lhes o direito sobre aquele registro. Também não gravamos as
entrevistas e conversas informais, feitas tão somente com participantes da metade
não indígena. A intenção foi que se sentissem mais à vontade para falar de temas
muitas vezes conflituosos, tanto pessoal quanto institucionalmente.
Estavam ali representantes de praticamente todos os povos indígenas do país
que, somados a uma imensa pluralidade de atores sociais não índios interessados na
saúde indígena por diversas razões, tornaram a Conferência um espaço privilegiado de
observação dos embates pelo direito de influir sobre a condução das políticas públicas
de saúde.
As sessões plenárias foram conduzidas pelo coordenador geral do evento,
figura máxima do órgão que no momento era responsável pela saúde indígena no país,
inclusive pelo repasse de recursos. Tinham uma estrutura igual à de todos os eventos
desse tipo, em geral uma fala inicial emanando da coordenação, pautando a sessão e
apresentando alguma modalidade de subsídios (documentos, relatórios etc.), em
seguida abertura do debate, com votações a cada vez que o tema o exigisse. As falas
do plenário deviam ser organizadas por inscrição e moderadas pelo coordenador em
sua duração. Algumas vezes, as sessões foram iniciadas com a apresentação de
palestrantes organizados numa mesa, cujo teor era depois objeto de comentários e
debate pelo plenário.
Os lugares no plenário eram ocupados de forma predeterminada. Os delegados
yanomami, necessitando de tradução, ficavam separados, os delegados de outras
etnias tendiam a se agrupar, mas também ocupavam uma área definida, assim como
outros participantes.
A reunião ocorreu num centro de treinamento nos arredores da cidade de
Luziânia, distante de Brasília. Deste modo a participação integral ficou garantida, com
a hospedagem e todas as refeições oferecidas dentro do próprio centro. Essas
condições também ampliaram as oportunidades de conversa e observação.
A exemplo da XII CNS, traremos para análise apenas o que foi colhido nas
sessões plenárias. Mas, antes de iniciarmos, gostaríamos de dizer que nosso texto não
quer ser um libelo acusatório contra as Conferências de Saúde nem aos seus
organizadores e coordenadores. Pelo contrário, reconhecendo seu alto potencial como

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promotor de cidadania, o intuito é de contribuir para seu aperfeiçoamento, por meio
de reflexão sobre uma face de sua dimensão discursiva.

4. Contextos da (des)colonização da enunciação


Passamos a observar as Conferências como cenários de uma batalha pelo poder
simbólico (Bourdieu, 1989), pelo poder de fazer ver seu ponto de vista como mais
qualificado, portanto capaz de produzir melhores resultados se incorporado nas
políticas públicas de saúde. Essa batalha ocorre entre forças de desiguais capitais
simbólicos. Igualadas em princípio politicamente pelo projeto democrático do qual
deriva esse tipo de evento, se vêem desequalizadas pelo lugar de fala social
diferenciado que historicamente ocupam, marcado por práticas políticas e
institucionais centrípetas cristalizadas, que reverberam tanto na formatação como na
condução das conferências.
Não nos é possível fazer convergir para este texto todas as evidências desse
embate, com suas diferentes manifestações em cada uma das conferências estudadas.
Optamos por destacar algumas estratégias enunciativas ilustrativas, procurando
contrapor as de colonização com as correspondentes de descolonização. Em outros
termos, do exercício do poder, pelo controle da enunciação e o de resistência, por um
outro ordenamento e uma melhor distribuição do poder simbólico.
De um modo geral, o que trazemos emana de dois lugares de observação, no
contexto das estratégias de colonização e descolonização: a estrutura, ordenamento e
condução das conferências como discurso; e a palavra como objeto de disputa, como
lugar do exercício de poder e de resistência. As Conferências são eventos regidos por
palavras: regimento, programação, relatórios, moções e uma parafernália de
instrumentos ordenadores da interlocução que ali se verifica. Não são definidos nem
produzidos por todos os participantes, mas são naturalizados e aceitos como parte
constitutiva desse cerimonial. Mas outros textos, não escritos, nos chamaram atenção:
o formato das conferências, sua estrutura, ordenamento e condução, que também
conformam e gestionam o direito de falar, a autoridade no falar e assim os lugares de
interlocução, que determinam a cota de poder de cada um no ato da comunicação.
As normas disciplinadoras do direito de falar, definidas nos regimentos, foram o
ponto mais nevrálgico do embate. Por sua natureza, determinam quem, quando, onde

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e o que deve ser falado, operando como camisas de força sobre a enunciação. Por
outro lado, os regimentos têm uma nomenclatura específica, não acessível para todos
os participantes (na III CNSI, para a metade indígena). Podemos, pois, dizer que
originalmente temos uma estrutura pouco favorável ao exercício da participação.
As consequências se mostraram com diferentes graus de intensidade nos
eventos estudados, uma vez que os delegados da XII CNS eram mais experientes
nesses processos e dominavam melhor a língua comum. Mesmo assim, a discrepância
das condições do exercício do direito à fala eram tão abissais que foram ali objeto de
franca contestação.
Na XII CNS, as sessões plenárias tinham uma estrutura comum, que previa um
tempo inicial de falas mais extensas de pessoas consideradas autoridades no assunto
em pauta, seja por sua posição institucional (do governo federal e gestores do SUS),
predominantes, seja pelo seu campo específico de militância ou estudo (tidos como
representantes da sociedade organizada). Essas mesas acolhiam em torno de seis a
oito convidados, cada um falando de 15 a 20 minutos, de modo que o somatório de
suas falas chegava a duas horas.
No contraponto, uma vez aberta a palavra ao plenário, cada delegado tinha 3
minutos para expor seu ponto de vista, pergunta ou manifestação. Se esse tempo
fosse ultrapassado, o som do microfone seria cortado. É fácil supor que o tempo não
seria suficiente para quem estava incumbido de representa interesses muitas vezes de
mais de um segmento social e que deveria voltar com algo concreto a dizer, também
fácil imaginar que a flagrante desigualdade de direitos provocaria reações.
No âmago das reações pudemos identificar estratégias de afirmação de
identidade (lugar de fala) e de legitimidade (lugar de interlocução), ambos construídas
discursivamente pelo dispositivo de enunciação e muitas vezes de forma indissociável.
Privilegiaremos as estratégias de legitimidade por sua maior aproximação com os
objetivos deste texto.
A principal operação discursiva de construção da legitimidade foi tentar reduzir
as dessimetrias nas condições do exercício do poder simbólico, instituindo um lugar de
interlocução equivalente ao da mesa. A estratégia que mais nos chamou atenção foi a
de desqualificar os membros da mesa, por meio da desqualificação da sua fala e
acentuar sua própria legitimidade pelo conhecimento da realidade. Os dispositivos

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incluiram operadores de redução da desigualdade de lugares:
- pela seqüência de cumprimentos, como dispositivo de qualificação /
desqualificação / equalização: primeiro plenário, depois mesa, mesmo em situações
diferenciadas, p.ex. na mesa em que o ministro da saúde compareceu;
- pelo modo de nomeação: chamar os membros da mesa de você, de
companheiro, só pelo primeiro nome, visando a criação de uma horizontalidade. Já
quando se tratava de desqualificação, havia outros operadores, como a ironia, p.ex.,
anteceder o nome com o epíteto 'senhor' ou 'senhora', em enunciados que
expressavam antagonismo de posições;
- pela evidenciação da superioridade de conhecimentos, em que o principal
operador lingüístico foram os conectivos adversativos: “o senhor falou sobre isto, mas
não sabe sobre o que de fato está ocorrendo”; “a informação que o senhor deu foi tal,
no entanto a realidade é outra”. Assim, enunciando sua própria competência, os
delegados não só se mostravam 'à altura da mesa' (“eu também poderia estar aí”),
como buscavam convencer o plenário da legitimidade e relevância dos seus pleitos.
A estratégia de começar a fala citando a fala do Outro, principalmente o Outro
antagonista, é um modo de dissolver a estrutura de autoridade naquela relação.
Quando alguém em situação de desequilíbrio na correlação de forças opera com o
código do outro, dissolve a base de autoridade em que se apoia aquela relação
discursiva e instaura-se outra relação de poder, que lhe atribui mais legitimidade.
(BHABHA, 1998) No caso dos delegados, essa legitimidade é reivindicada com base no
saber maior sobre a realidade, mas também por saber falar e entender o código do
outro, que ocupa posição de mais poder simbólico.
Esse mecanismo intervém no lugar de interlocução dos participantes, tanto
delegados como palestrantes, que se modificam com as estratégias. Embora estejamos
nos referindo às estratégias dos delegados, é preciso considerar que os dispositivos de
enunciação da mesa são parte deste fenômeno: em todas as quatro mesas, apenas
uma palestrante se apresentou como 'companheira'. O dispositivo dos palestrantes
não era de horizontalidade, certamente, mas de ratificação da autoridade que aquela
posição e seu lugar de fala lhes conferiam.
Chamar o palestrante de companheiro mas cumprimentar os companheiros do
plenário primeiro, dizer “eu sei mais que você; você está aí, com todos os privilégios,

14
mas eu sei mais que você porque conheço a realidade, estou aqui representando
milhares de pessoas”, tudo isto promove uma alteração na relação de poder que inicial
e arbitrariamente é desfavorável aos delegados.
O fato de ter vindo das bases, representando um grupo por delegação, mas
sobretudo por conhecer a realidade, coloca o delegado simbolicamente num patamar
superior ao da mesa. A fala da mesa seria abstrata, descontextualizada, sem
compromisso com a realidade. Em contrapartida, o delegado 'sabe' da realidade.
“Você não falou disto aqui, porque você não conhece a realidade. Isto é que precisa
ser tratado”. Também ocorreram falas mais agressivas, como “você não sabe de nada!
Você tem interesses outros!”, pelas quais os delegados desqualificavam a mesa para
poder qualificar sua própria fala.
Os dispositivos podem ser percebidos como fruto de antagonismo com os
gestores. Muitas falas aportavam denúncias contra eles, os principais ataques às mesas
foram aos gestores, ou ao Ministério Público, identificado com gestores por 'conchavo'
e o plenário sempre aplaudia essas referências desabonadoras. No entanto, se em suas
falas os delegados frequentemente acionavam uma rede de remissões baseada numa
história de descrenças, desilusões, fazendo recurso a uma memória discursiva que é
francamente desfavorável aos governantes e aos gestores, a atualização dessa
memória no presente é uma forma de reação à desigualdade a que são submetidos
pelo dispositivo mais amplo da conferência. Toda resistência só pode ser entendida em
relação ao poder que lhe deu origem (Foucault, 1982).
Essa afirmação nos remete à III CNSI, na qual as formas de resistência se
multiplicaram como resposta à violência discursiva do silenciamento. Ali, no entanto, à
memória recente da relação com as instituições gestoras da saúde indígena, se somava
a memória coletiva das violências sofridas ao longo dos tempos, desde a chegada dos
portugueses ao Brasil. Naquele momento ainda se ouvia os ecos das celebrações dos
500 anos de descobrimento, que fizeram circular um discurso sobre a reparação das
injustiças cometidas contra as populações indígenas, apropriado pelas lideranças
indígenas de forma estratégica em suas reivindicações (Araujo, 2002).
Na III CNSI, sua composição paritária contrapunha dois grupos que na prática
social ocupam lugares de interlocução bem distintos e desiguais: de um lado,
representantes do Estado, núcleos centrais no cenário discursivo da saúde indígena.

15
De outro, delegados indígenas, representantes das várias etnias. Na Conferência,
teoricamente, seus lugares seriam equivalentes em termos de poder. Mas, a
coordenação coube ao ocupante do cargo máximo federal dos assuntos indígenas.
Outro elemento, não lingüístico, funcionava sutilmente no controle da fala: a
disposição dos lugares no auditório. O espaço estava pré-ordenado, correspondendo
os lugares físicos aos lugares de fala que cada um podia ocupar – convidados, técnicos
e assessores, delegados organizados por etnia e a mesa principal, onde se alternavam
palestrantes e autoridades. Embora operacional e certamente bem intencionada, essa
arrumação constituía-se em um elemento coercitivo e atribuía sentidos às falas, além
de que a segmentação dificultava a interlocução e a articulação interétnica. Assim, o
disciplinamento da interlocução começava pelo nível físico.
Um segundo nível se conformava pelas regras definidas por regimento,
habituais nas conferências, que o coordenador buscava cumprir rigorosamente. A fala
dos delegados devia ocorrer em momentos específicos, mediante inscrição e ter curta
duração, em contraposição ao tempo de fala dos convidados às mesas.
Um terceiro nível também se conformou no embate verificado em geral entre o
coordenador e delegados, pelejas em torno do direito de falar versus as limitações
impostas pelo regimento.
Todas as regras e predefinições, feitas pela metade não indígena da
conferência, operam como uma camisa de força na palavra. E há formas verbais e não
verbais de recusar essa camisa de força. Antes de nos dedicarmos às verbais,
mencionamos como exemplo uma não verbal, exemplar desse tipo de dispositivo. Os
Mura são índios remanescentes de uma tribo guerreira que foi quase exterminada
pelos portugueses, que moveram uma verdadeira guerra santa contra eles 4. Os Mura
se vestem como jovens modernos da periferia, oculos espelhados, cabelos com corte
ousado, grandes relógios e na conferência sua forma de protestar contra a limitação da
palavra era ficando em pé nas cadeiras, cantando e fazendo algazarra, resistindo assim
ao silenciamento.
Queremos, porém, centrar atenção no dispositivo da tomada da palavra como

4
A tribo foi quase exterminada pelos portugueses. Os pouco sobreviventes se misturaram com os
caboclos ribeirinhos e se pensou que haviam sido extintos. Hoje eles cresceram em número,
reassumiram sua identidade étnica, habitam a periferia de Manaus e são politizados.

16
estratégia de resistência. Muitas etnias não têm prática de normatizar a fala deste
modo, em espaços coletivos e os delegados se estendiam muito nas falas, além de
tentar intervenções 'fora de hora'. O que poderia ser explicado pela falta de prática
com o disciplinamento da fala, podemos entender como forma de resistência. A rígida
ordem de uma sessão plenária condiciona as chances e modifica os termos da
participação individual e nesse contexto pode ser entendida como uma violência
simbólica.
A leitura do regimento, para aprovação, foi pontuada por expressões de
desconfiança e protestos quanto ao autoritarismo do documento, feito sem a
participação deles, exemplificadas no grito de uma liderança indígena (literalmente,
uma tomada da palavra): “Temos que propor, não discutir o que vocês propõem. Vocês
já propuseram, agora é nossa vez”. Pressupondo-se a leitura prévia do documento
pelos delegados, estava prevista aprovação sumária. Houve forte pressão para sua
leitura em plenário, cuja consecução foi objetada por uma liderança, pela sua rapidez:
por ser um texto com termos de pouco domínio pelos presentes, não permitia
compreender, pensar e votar conscientemente. Conseguiu ampliar os dois minutos de
debate para cada proposta para “até que a plenária seja esclarecida”.
Entre os índios o falar é extremamente valorizado, principalmente se a fala
ocorrer nos espaços não indígenas. Falar significa se fazer presente pelo ato político da
enunciação. O falar carreia capital simbólico junto aos parentes e às organizações
indígenas. Não só os delegados foram muitas vezes ao palco para falar como
simularam essa fala, antes ou no intervalo das sessões, para tirar fotos. Nesse
contexto, limitar ou silenciar a palavra era visivelmente percebido como violência,
gerando protestos. Num dado momento, diante do excessivo prolongamento da
sessão, o coordenador tentou limitar o número de inscrições, cortando as falas cujo
teor repetisse anteriores. Apesar de ser um procedimento corrente neste tipo de
evento,a reação foi clamorosa e eficaz, ficando patente que falar, para os delegados
índios, não era um mero ato de expor um pensamento, mas parte das estratégias
políticas e discursivas nas quais acrescentar não soma, mas serve para perturbar o
cálculo de poder e saber, produzindo outros espaços de significação subalterna
(BHABHA, 1998, p. 228).
Uma das sessões de palestras foi palco de um episódio exemplar da disputa em

17
torno das regras e da palavra. Aberta a palavra ao plenário, muitos se inscreveram e
ficou evidente que não seriam sucintos em suas perguntas e um dos palestrantes, que
ocupava um alto cargo federal, anunciou que precisava sair, alegando um
compromisso em Brasília. A reação foi imediata e indignada, com insultos à pessoa
dele. O coordenador propôs que se antecipasse as respostas às perguntas dirigidas a
ele até o momento, quebrando a regra das respostas após todas as perguntas à mesa.
Após uma negociação tensa e sucessivas votações, a proposta foi aceita. Incontinenti,
os dois delegados inscritos para falar no momento da interrupção subiram no palco e
'autorizaram' a fala do palestrante: "você vai falar porque eu, que estou na vez de
falar, estou permitindo". Assim, legitimaram a decisão, num ato de recusa à condição
subalterna diante da autoridade, numa estratégia de descolonização. Como diria
Bhabha (1998), produziram seu momento histórico de enunciação.
Na sessão de aprovação do relatório um delegado gritou ao microfone: “A
gente luta desde a comunidade, depois a conferência regional, a gente chega aqui e é
ele a autoridade, domina e faz o que quer. Não adianta nada. A gente aprova o que ele
quer, sem entender o que está aprovando”. A revolta desse delegado e o conjunto das
estratégias dos delegados da III CNSI podem ser vistas através das lentes de Fairclough
(2001), quando fala em democratização simulada. O percurso indígena até a
Conferência, desde a aldeia até ali, é muito compartilhado. Sem ter a clareza teórica, o
delegado teve a percepção política de que as estratégias discursivas denunciavam a
contradição entre o discurso e a prática efetiva do exercício democrático, entre um
processo que oscila entre as intenções democráticas e as práticas autoritárias,
conformando-se claramente uma estratégia de manutenção das condições de
colonização. O desepero contido em seu grito vinha da impotência em mudar aquela
situação.
Podemos retomar aqui o conceito de democratização simulada, observável em
ambas as Conferências, mas com bastante nitidez na III CNSI. Ao identificar as regras
discursivas e seu uso estratégico como forma de poder, os delegados das Conferências
estavam também percebendo o caráter contraditório dessa estratégia de 'dar com
uma mão e tomar com outra' , buscando reverter a situação a seu favor e atravessar a
linha abissal. Posicionando-se contra as regras, mobilizando contraestratégias que
evocam uma condição enunciatória particular, os delegados desafiaram as fronteiras

18
do discurso, buscando modificar seus termos e estabelecer uma negociação discursiva.
O episódio ocorrido na sessão de palestras permite retomar um ponto tratado
na análise da XII CNS, como estratégia de resistência às dominações, acentuando sua
importância e identificando-o com o conceito de hibridismo e reafirmando sua
premissa nos termos de Bhabha:
[O hibridismo] não é um terceiro termo que resolve a tensão ente duas
culturas (...) em um jogo dialético de “reconhecimento”, mas sim um
deslocamento de símbolo a signo, (que) cria uma crise para qualquer conceito
de autoridade baseado em um sistema de reconhecimento (op.cit:165).
Vem daí seu poder político de resistência. Quando um grupo discriminado por
uma classificação que o inferioriza perante os demais (como com os índios, os loucos,
os ciganos) se apropria dos signos da cultura dominante, impossibilita essa
estigmatização. De um modo geral, os índios vêm realizando esse deslocamento, que
desequilibra as relações dominantes de poder, porque dissolve a diferenciação na qual
se apóiam os sistemas de autoridade. Podemos, porém, ampliar o arco de abrangência
conceitual para incluir as Conferências de um modo geral, entendendo que os
delegados falaram do lugar e com os códigos estabelecidos para eles, para
questionarem esse lugar e as regras de sua demarcação.
É por este mecanismo que, mesmo sem consciência plena disto, recusam o
controle social como um discurso aprisionado por uma moldura que enfraquece seu
caráter emancipador e tentam reinventar esse conceito, buscando uma reinscrição
dentro dos espaços tradicionais de poder, mas em outras bases de negociação ou de
enfrentamento.

5. Recontextualizações
Voltando à ideia de que só podemos entender a resistência em relação ao
poder que lhe dá origem, podemos perceber que a reação observada é fruto de um
modo de operar que por um lado recusa a diferença cultural e histórica, por outro
insiste numa prática cristalizada de privilegiamento das hierarquias incabíveis num
discurso de igualdade, que confirma e acentua a linha abissal que separa Norte e Sul.
Nas Conferências, até se chegar à aprovação do relatório, passa-se por sessões
plenárias, debate de temas específicos nos grupos, sistematização dos resultados e
produção do documento final pelo grupo de relatores que finalmente volta à
assembléia para aprovação. Como cada conferência é teoricamente a instância

19
máxima de definição das políticas de saúde, pode-se dizer que as condições estruturais
de controle democrático das políticas estão dadas. Mas a Saúde é um grande território
de lutas entre forças centrífugas e centrípetas da sociedade, por isto as Conferências
são também um campo de batalhas entre essas forças. Se as forças centrípetas do
campo da saúde lutam para transformar o controle em uma 'participação consentida',
facilitadora da implantação dos programas oficiais, as estratégias de resistência se
presentificam de diversas formas.
Certamente as forças são desiguais. A 'tomada da palava', que por vezes tem
que ser transgressora, dando literalidade à expressão, é uma estratégia possível num
evento regido por palavras. A desqualificação do oponente, um dispositivo possível de
resistência. As vozes periféricas ainda não desenvolveram códigos verbais que possam
disputar simbolicamente com os códigos dominantes, até mesmo porque os códigos
dominantes, por muitas estratégias e efeitos de sentido, não se apresentam como
oponentes (nem se sabem ou se sentem como oponentes, em sua maioria).
Por outro lado, as Conferências não inauguram o embate discursivo que neleas
se verifica, apenas acentuam. A fala dos delegados, particularmente na XII CNS,
apresentavam-se como verdadeiros micro-universos discursivos da saúde, tanto pela
quantidade de temas mobilizados, como pelos múltiplos interesses envolvidos e em
concorrência. Os dispositivos centrípetos de enunciação, que operam no sentido da
consolidação das hegemonias estão presentes no cotidiano das instâncias do controle
social, assim como os centrífugos que resistem e propugnam por uma mudança no
cenário político e social.
Iniciamos este texto questionando a premissa de que mudanças sociais podem
decorrer de práticas contrahegemônicas discursivas. Fairclough (2001) afirma que sim,
sua hipótese é de que quando interlocutores inovam em seus dispositivos,
combinando convenções e códigos em eventos discursivos , eles "desarticulam ordens
de discursos existentes e rearticulam novas ordens discursivas” (p. 129). A observação
das duas Conferências de Saúde não nos permite chegar a uma conclusão sobre o
tema, para isto seria necessário um horizonte de pesquisa bem mais amplo, para
acompanhar no desdobramentos da prática efetiva do controle social os efeitos dos
dispositivos de resistência sobre a linha abissal que separa Norte e Sul mesmo em
espaços permeados em grande parte por um pensamento e uma prática

20
descolonizadora.
Nossa hipótese, porém, é de que a mudança é lenta e sofre os influxos da
oscilação política da sociedade como um todo. Os embates discursivos ocorrem em
todos os níveis, podemos dizer que vivemos tempos de exacerbação das disputas pelo
poder no e pelos discursos. O centro amplifica seus dispositivos, as periferias lutam
para se fazerem ouvir. A linha abissal é porosa, absorve a complexidade das relações
sociais e das disputas de poder.
As Conferências de Saúde, por sua natureza de reunião de múltiplos e
divergentes interesses, exacerbam essa complexidade e nos permitem perceber a
contradição entre o princípio universal do direito à voz e sua forma de efetivação, que
por um regulamento fica restrito a alguns, ou distribuído de forma desequilibrada.
Assim, espelham e particularizam a contradição mais ampla que se observa nas
sociedades modernas, entre os princípios da emancipação, que apontam para a
igualdade e a inclusão e os princípios da regulação, que fazem a gestão da
desigualdade e exclusão (Santos, 2010b)
Os dispositivos centrais de enunciação observados nas Conferências, tanto os
verbais como os não verbais, podem ser observados por esse prisma, eles são formas
de regulação da diferença e da desigualdade, assim como os dispositivos periféricos
são de resistência. Estes são desiguais, mas integrados pelo princípio da regulação pela
desigualdade; são, porém, obrigados a se manterem dentro de um limite aceitável,
confirmando o que Santos alude, quando fala na existência de um discurso sobre os
limites como próprio do sistema (2010a). Quando ousa transpor esses limites, é sujeito
aos dispositivos de exclusão, por exemplo, cortando-se o som do microfone,
silenciando-se a voz porque não é hora de falar, porque não está dentro das normas.
Santos afirma que o que é considerado como tolerável varia "de acordo com as
lutas políticas e a capacidade do Estado e das Mídas para trivializar as desigualdades"
(pag.283). A trivialização é, certamente, da ordem dos discursos, como também o é a
naturalização das práticas, por sua repetição acrítica. A desigualdade, além de ser
estrutural na nossa sociedade, é incorporada como diferença pelo discurso
'democrático' tanto midiático quanto das instituições.
Ficamos, então, com a questão em aberto. Talvez fazer recurso ao conceito que
preside a Sociologia das Emergências, que Santos vai buscar em Ernst Bloch: ainda não.

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(2010a, p. 116). Necessitamos de mais trabalhos que possam promover uma
desconstrução crítica do que está naturalizado discursivamente como prática
democrática em nossas instituições. Necessitamos de lentes mais poderosas que
mostrem o quanto o que parece transgressão pode ser recusa a dispositivos de
manutenção das desigualdades. O "ainda não" é uma proteção contra uma indevida
apropriação naturalisante da afirmação de Santos (2010a, p.118), ao falar que a
discrepância entre experiência (do âmbito das ausências) e expectativa (do âmbito das
emergências) é constitutiva da modernidade ocidental.

Post-scriptum
Em 2015 ocorreu a XV CNS com o tema “Saúde pública de qualidade para
cuidar bem das pessoas: direito do povo brasileiro”. Diferentemente de outras
conferências, a XV CNS propôs e acolheu a composição e os resultados de Conferências
Livres realizadas no decorrer de suas etapas. Essa mudança em seu formato tradicional
indica um reconhecimento de necessidade de mudanças estruturais, com possibilidade
de mais abertura e maior flexibilidade nas formas de composição e participação.
Segundo o site do Conselho Nacional de Saúde, a cada nova Conferência tem
sido observado um aumento importante da participação da sociedade civil. Em tese,
isto aumenta a garantia da definição de políticas de saúde cada vez mais democráticas.

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