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O estudo da Saúde Coletiva como um campo pode ser interpretado de acordo com os
conceitos de campo e espaço social definidos por Bourdieu. O campo pode ser entendido
como uma rede de relações entre agentes e instituições dotados de um habitus comum
(sistema de disposições que orientam as práticas sociais dos agentes) e de um interesse
comum (ilusio) (BOURDIEU, 1992). Assim, corresponde a um espaço de lutas e de
transformações, cuja estrutura é resultado das disputas entre os agentes que ocupam diferentes
posições definidas pelo volume global de capital e pela sua composição (econômico,
burocrático, político, científico, cultural, etc.).
Um campo possui uma autonomia relativa a outros campos estabelecendo suas próprias regras
de consagração e exclusão de objetos e agentes. É esta autonomia que diferencia campo de
um espaço social, sendo este considerado microcosmos onde, à semelhança de campos
consolidados, agentes dotados de diferentes capitais disputam as questões específicas daquele
universo social (BOURDIEU, 2000). Porém, a inexistência de habitus específico e de uma
pequena autonomia relativa, que não permite denominá-los de campo, mas que possuem um
propósito de se constituírem como tal (VIEIRA-DA-SILVA et al., 2016).
Para os autores, uma parte fundamental da constituição do espaço da Saúde Coletiva foi a
articulação entre a produção teórica crítica e a formulação de um projeto de transformação
dos serviços de saúde relacionado com as lutas pela democratização do país. O espaço da
saúde coletiva foi assim constituído principalmente no interior do campo científico, com
grande interseção com os campos político e burocrático.
Ainda sobre a constituição da Saúde Coletiva no Brasil, os autores pontuam que há questões
em jogo no processo: 1) há uma disputa da autoridade sobre a definição legítima dos problemas
de saúde no âmbito populacional, seus determinantes e políticas adequadas para resolução, daí
constituem objetos de luta; 2) há uma disputa no interior da Saúde Coletiva entre subespaços:
epidemiologia x CSS, CSS x planejamento e gestão, epidemiologia x planejamento e gestão; 3)
há disputas entre técnicas metodológicas quantitativas e qualitativas (VIEIRA-DA-SILVA et
al., 2016).
Por outro lado, apontam que as tomadas de decisão dos agentes relacionam-se às suas
trajetórias, que, por sua vez, explicam suas disposições orientadoras dos gostos e das opções
em relação aos temas de pesquisa, às concepções de Saúde Coletiva e da Reforma Sanitária
Brasileira. No contexto da dinâmica do campo da saúde coletiva, enquanto espaço de lutas, a
especialização e divisão nas subáreas fazem parte das disputas no interior do espaço. A
constituição do campo de posições, tomadas de posição e constituição da identidade, são
trazidas: Antônio Cesar Arouca no campo político; Juan Cesar Garcia (OPAS e universidade)
no campo burocrático; Cecilia Donnângelo e Guilherme Rodrigues da Silva no campo
científico e universitário (VIEIRA-DA-SILVA et al., 2016).
Nessa discussão sobre a construção da Saúde Coletiva enquanto campo, torna-se importante
descrever as diferenças entre ela e a Saúde Pública. Sendo assim, com base na teoria do
processo de trabalho, segundo Souza (2014), a Saúde Pública apresenta as seguintes
características: identifica problemas de saúde definidos em termos de mortes, doenças, agravos
e riscos em suas ocorrências no nível da coletividade; se baseia na concepção biologista,
atuando por meio de ações isoladas da Vigilâncias epidemiológica e sanitária ou através de
programas desarticulados das demais ações, cujos trabalhadores atuam desconsiderando as
relações de poder e as dinâmicas sociais que também estruturam e são estruturadas por
cidadãos; a racionalidade do Estado é “mecanicamente” operacionalizada com base na
burocracia enquanto dispositivo de controle laboral.
Por outro lado, a Saúde Coletiva busca trabalhar as necessidades sociais de saúde, ou seja,
todas as condições requeridas, não apenas para evitar a doença e prolongar a vida, mas
também para melhorar a qualidade de vida. Ela utiliza a epidemiologia social ou crítica, as
ciências sociais, prioriza o estudo da determinação social e das desigualdades em saúde,
planejamento estratégico e comunicativo e gestão democrática. Contribuições de todos os
saberes - científicos e populares - que podem orientar a elevação da consciência sanitária e a
realização de intervenções intersetoriais sobre os determinantes estruturais da saúde (SOUZA,
2014).
Para o autor referido, as estratégias da Saúde Coletiva estão baseadas em promoção da saúde,
programas temáticos voltados para grupos específicos, políticas públicas saudáveis e demais
políticas de saúde. O trabalhador desempenha um papel abrangente e estratégico: a
responsabilidade pela direção do processo coletivo de trabalho, tanto na dimensão
epidemiológica e social de apreensão e compreensão das necessidades de saúde, quanto na
dimensão organizacional e gerencial de seleção e operação de tecnologias para o atendimento
dessas necessidades.
Nesse contexto de constituição do campo da Saúde Coletiva, a temática das Políticas de Saúde
foi desenvolvida, permeando assim, os principais subespaços, a Epidemiologia, as Ciências
Sociais e o Planejamento e Gestão (VIEIRA-DA-SILVA et al., 2020). Segundo Paim (2003),
política de saúde é a resposta social (ação ou omissão) do Estado aos problemas e
necessidades de saúde da população, contemplando, portanto, a intervenção sobre a produção,
distribuição, gestão e regulação de bens e serviços que afetam a saúde, inclusive o ambiente.
A categoria de análise política em saúde diz respeito aos artigos que investigam as relações de
poder em saúde (natureza, estrutura, relações, distribuição e lutas), bem como o processo
político em saúde e suas relações com a produção de fatos políticos. Os achados encontrados
nos dois estudos revelaram que o número de publicações cresceu significativamente a partir
dos anos 2000 e entre 2008 e 2014 com mais da metade do número de artigos. Houve
predominância de estudos sobre Política de saúde no Brasil, mais precisamente o processo de
Reforma Sanitária e construção do Sistema Único de Saúde; análise política em saúde em
uma perspectiva localizada (estudos de caso), discussão de elementos teóricos para a análise
de políticas sociais; e existência de significativo número de trabalhos que tratam das relações
entre o público e o privado.
Na categoria dos componentes dos sistemas de saúde foram incluídos os estudos que abordam
a dinâmica política em torno dos diversos elementos constitutivos do sistemas. Como
resultado, a maioria do interesse dos pesquisadores foi com a problemática da gestão do
sistema e serviços de saúde, abordada sob diversos ângulos. Outras subáreas ganharam
destaque, como: modelos de atenção à saúde, recursos humanos em saúde e ciência,
tecnologia e inovação. Além disso, foi possível notar um reduzido número de trabalhos sobre
financiamento da saúde e participação e controle social.
E, por último, a análise de políticas específicas de saúde, com estudos que tratam do conteúdo
das políticas enquanto diretrizes, planos e programas. Nessa temática, foram identificados
produções científicas nas seguintes áreas: Gestão do trabalho e da educação na saúde, com
concentração de estudos da gestão da educação na saúde; Ciência, tecnologia e insumos
estratégicos, com destaque para a Política Nacional de Assistência Farmacêutica ( fenômeno
da judicialização da saúde); Vigilância à Saúde, tendo a Política Nacional de Prevenção de
DST/HIV/AIDS e Hepatites Virais, Política Nacional de Promoção da Saúde; Gestão
Estratégica e Participativa, com estudo da Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra em detrimento de outros grupos e Saúde Indígena, com número de publicações pouco
expressivo sobre a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.
Após a leitura de ambos estudos, nota-se algumas lacunas na produção científica em políticas
de saúde, as quais referem-se ao número reduzido de publicações que abordem as questões de
poder em saúde, na perspectiva macropolítica; poucos trabalhos problematizam ou até mesmo
citam a Reforma Sanitária Brasileira; a grande maioria não explicita os referenciais teóricos
utilizados; apresentam ambiguidades na delimitação conceitual e na construção teórico-
metodológica.
Dessa forma, permite pensar sobre a contribuição enquanto pesquisador e estudante da área da
Saúde Coletiva quanto ao fato de manter viva a RSB na produção de trabalhos
acadêmicos/científicos e também refletir ou até mesmo (re)construir o referencial teórico da
pesquisa a ser desenvolvida, propondo discussões dentro do espaço da política de saúde. Com
isso, questiona-se, então, o cuidado com a vigilância epistemológica para atender os critérios
científicos e produzir conhecimento válido; a participação em eventos e realização de leituras
dentro dos principais assuntos de interesse da Saúde Coletiva; os resultados da pesquisa, se
este terá função ou subsídio para mobilização social e política em prol do
aperfeiçoamento/fortalecimento do SUS.
Outros pensamentos vão em direção a relação do tema de pesquisa com a inserção
profissional, curiosidades a respeito do que tem sido pesquisado e o que ainda precisa ser
pesquisado dentro da Saúde Coletiva e o porquê de não termos a Reforma Sanitária Brasileira
como Descritores em Ciências da Saúde (DeCS).
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. Propos sur le champ politique. Lyon: Presse Universitaire de Lyon,
2000.
SANTOS, Jairnilson Silva.; TEIXEIRA, Carmen Fontes. Produção Científica sobre Política
de Saúde no Brasil (1988-2014): contribuição ao debate sobre a Reforma Sanitária Brasileira.
In: Teixeira, C.F. (org.). Observatório de Análise Política em Saúde: abordagens, objetos e
investigações. Salvador: EDFUBA, p. 41-72, 2016.
SOUZA, Luís Eugênio Portela Fernandes de. Saúde Pública ou Saúde Coletiva? Revista
Espaço para a Saúde. Londrina, v.15, n. 4, p.07-21, out/dez 2014.