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Universidade Federal da Bahia

Instituto de Saúde Coletiva

Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva

Disciplina: Políticas em saúde

Professores: Catharina Matos e Jairnilson Paim

Discente: Kaline Lemos

Saúde Coletiva e Política de saúde

O estudo da Saúde Coletiva como um campo pode ser interpretado de acordo com os
conceitos de campo e espaço social definidos por Bourdieu. O campo pode ser entendido
como uma rede de relações entre agentes e instituições dotados de um habitus comum
(sistema de disposições que orientam as práticas sociais dos agentes) e de um interesse
comum (ilusio) (BOURDIEU, 1992). Assim, corresponde a um espaço de lutas e de
transformações, cuja estrutura é resultado das disputas entre os agentes que ocupam diferentes
posições definidas pelo volume global de capital e pela sua composição (econômico,
burocrático, político, científico, cultural, etc.).

Um campo possui uma autonomia relativa a outros campos estabelecendo suas próprias regras
de consagração e exclusão de objetos e agentes. É esta autonomia que diferencia campo de
um espaço social, sendo este considerado microcosmos onde, à semelhança de campos
consolidados, agentes dotados de diferentes capitais disputam as questões específicas daquele
universo social (BOURDIEU, 2000). Porém, a inexistência de habitus específico e de uma
pequena autonomia relativa, que não permite denominá-los de campo, mas que possuem um
propósito de se constituírem como tal (VIEIRA-DA-SILVA et al., 2016).

O espaço da Saúde Coletiva constituiu-se historicamente como uma ruptura teórica e um


projeto de ruptura em relação às práticas e à organização dos serviços de saúde então
hegemônicas no país nos anos 1970, baseadas na Saúde Pública institucionalizada. Estava em
disputa a autoridade sobre a definição legítima dos problemas de saúde no âmbito
populacional, seus determinantes e políticas adequadas para sua resolução. Disputas também
no interior do campo/espaço encontram-se entre as dimensões política e acadêmica, entre o
quantitativo e o qualitativo e, entre teoria e prática. (VIEIRA-DA-SILVA et al., 2016).

Para os autores, uma parte fundamental da constituição do espaço da Saúde Coletiva foi a
articulação entre a produção teórica crítica e a formulação de um projeto de transformação
dos serviços de saúde relacionado com as lutas pela democratização do país. O espaço da
saúde coletiva foi assim constituído principalmente no interior do campo científico, com
grande interseção com os campos político e burocrático.

Ainda sobre a constituição da Saúde Coletiva no Brasil, os autores pontuam que há questões
em jogo no processo: 1) há uma disputa da autoridade sobre a definição legítima dos problemas
de saúde no âmbito populacional, seus determinantes e políticas adequadas para resolução, daí
constituem objetos de luta; 2) há uma disputa no interior da Saúde Coletiva entre subespaços:
epidemiologia x CSS, CSS x planejamento e gestão, epidemiologia x planejamento e gestão; 3)
há disputas entre técnicas metodológicas quantitativas e qualitativas (VIEIRA-DA-SILVA et
al., 2016).

Por outro lado, apontam que as tomadas de decisão dos agentes relacionam-se às suas
trajetórias, que, por sua vez, explicam suas disposições orientadoras dos gostos e das opções
em relação aos temas de pesquisa, às concepções de Saúde Coletiva e da Reforma Sanitária
Brasileira. No contexto da dinâmica do campo da saúde coletiva, enquanto espaço de lutas, a
especialização e divisão nas subáreas fazem parte das disputas no interior do espaço. A
constituição do campo de posições, tomadas de posição e constituição da identidade, são
trazidas: Antônio Cesar Arouca no campo político; Juan Cesar Garcia (OPAS e universidade)
no campo burocrático; Cecilia Donnângelo e Guilherme Rodrigues da Silva no campo
científico e universitário (VIEIRA-DA-SILVA et al., 2016).

Nessa discussão sobre a construção da Saúde Coletiva enquanto campo, torna-se importante
descrever as diferenças entre ela e a Saúde Pública. Sendo assim, com base na teoria do
processo de trabalho, segundo Souza (2014), a Saúde Pública apresenta as seguintes
características: identifica problemas de saúde definidos em termos de mortes, doenças, agravos
e riscos em suas ocorrências no nível da coletividade; se baseia na concepção biologista,
atuando por meio de ações isoladas da Vigilâncias epidemiológica e sanitária ou através de
programas desarticulados das demais ações, cujos trabalhadores atuam desconsiderando as
relações de poder e as dinâmicas sociais que também estruturam e são estruturadas por
cidadãos; a racionalidade do Estado é “mecanicamente” operacionalizada com base na
burocracia enquanto dispositivo de controle laboral.

Por outro lado, a Saúde Coletiva busca trabalhar as necessidades sociais de saúde, ou seja,
todas as condições requeridas, não apenas para evitar a doença e prolongar a vida, mas
também para melhorar a qualidade de vida. Ela utiliza a epidemiologia social ou crítica, as
ciências sociais, prioriza o estudo da determinação social e das desigualdades em saúde,
planejamento estratégico e comunicativo e gestão democrática. Contribuições de todos os
saberes - científicos e populares - que podem orientar a elevação da consciência sanitária e a
realização de intervenções intersetoriais sobre os determinantes estruturais da saúde (SOUZA,
2014).

Para o autor referido, as estratégias da Saúde Coletiva estão baseadas em promoção da saúde,
programas temáticos voltados para grupos específicos, políticas públicas saudáveis e demais
políticas de saúde. O trabalhador desempenha um papel abrangente e estratégico: a
responsabilidade pela direção do processo coletivo de trabalho, tanto na dimensão
epidemiológica e social de apreensão e compreensão das necessidades de saúde, quanto na
dimensão organizacional e gerencial de seleção e operação de tecnologias para o atendimento
dessas necessidades.

Nesse contexto de constituição do campo da Saúde Coletiva, a temática das Políticas de Saúde
foi desenvolvida, permeando assim, os principais subespaços, a Epidemiologia, as Ciências
Sociais e o Planejamento e Gestão (VIEIRA-DA-SILVA et al., 2020). Segundo Paim (2003),
política de saúde é a resposta social (ação ou omissão) do Estado aos problemas e
necessidades de saúde da população, contemplando, portanto, a intervenção sobre a produção,
distribuição, gestão e regulação de bens e serviços que afetam a saúde, inclusive o ambiente.

Política de Saúde abrange questões relativas ao poder em saúde (politics), questões


relacionadas ao estabelecimento de diretrizes, planos e programas de saúde (policy) e, ainda
pode ser uma disciplina acadêmica, com estudos a respeito do papel do Estado com a
sociedade, suas relações com políticas econômicas, sociais, economia da saúde,
financiamento, bem como formulação, condução, implementação e avaliação de políticas de
saúde (PAIM e TEIXEIRA, 2006).
Recentemente, dois estudos foram realizados com o objetivo principal de analisar as
contribuições para a construção do campo da Saúde Coletiva, particularmente na sua relação
com a Política de Saúde. O primeiro deles dos autores Santos e Teixeira (2016), o qual tem
como recorte o período de 1988-2014 e o segundo, realizado por Vieira da Silva et al (2020),
entre1996-2019, que analisa especificamente a produção da Revista Ciência & Saúde
Coletiva.

Os artigos identificados e selecionados em ambos estudos foram classificados segundo a


tipologia de áreas e subáreas temáticas, sendo três: análise política em saúde, componentes
dos sistemas de saúde e análise de políticas específicas de saúde (SANTOS E TEIXEIRA,
2006; VIEIRA-DA-SILVA et al, 2020).

A categoria de análise política em saúde diz respeito aos artigos que investigam as relações de
poder em saúde (natureza, estrutura, relações, distribuição e lutas), bem como o processo
político em saúde e suas relações com a produção de fatos políticos. Os achados encontrados
nos dois estudos revelaram que o número de publicações cresceu significativamente a partir
dos anos 2000 e entre 2008 e 2014 com mais da metade do número de artigos. Houve
predominância de estudos sobre Política de saúde no Brasil, mais precisamente o processo de
Reforma Sanitária e construção do Sistema Único de Saúde; análise política em saúde em
uma perspectiva localizada (estudos de caso), discussão de elementos teóricos para a análise
de políticas sociais; e existência de significativo número de trabalhos que tratam das relações
entre o público e o privado.

Na categoria dos componentes dos sistemas de saúde foram incluídos os estudos que abordam
a dinâmica política em torno dos diversos elementos constitutivos do sistemas. Como
resultado, a maioria do interesse dos pesquisadores foi com a problemática da gestão do
sistema e serviços de saúde, abordada sob diversos ângulos. Outras subáreas ganharam
destaque, como: modelos de atenção à saúde, recursos humanos em saúde e ciência,
tecnologia e inovação. Além disso, foi possível notar um reduzido número de trabalhos sobre
financiamento da saúde e participação e controle social.

E, por último, a análise de políticas específicas de saúde, com estudos que tratam do conteúdo
das políticas enquanto diretrizes, planos e programas. Nessa temática, foram identificados
produções científicas nas seguintes áreas: Gestão do trabalho e da educação na saúde, com
concentração de estudos da gestão da educação na saúde; Ciência, tecnologia e insumos
estratégicos, com destaque para a Política Nacional de Assistência Farmacêutica ( fenômeno
da judicialização da saúde); Vigilância à Saúde, tendo a Política Nacional de Prevenção de
DST/HIV/AIDS e Hepatites Virais, Política Nacional de Promoção da Saúde; Gestão
Estratégica e Participativa, com estudo da Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra em detrimento de outros grupos e Saúde Indígena, com número de publicações pouco
expressivo sobre a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.

Um dos artigos discute o processo da Reforma Sanitária Brasileira e sua permanência na


conjuntura atual. Santos e Teixeira (2006) utilizam Paim (2013) para trazer a ideia de que não
existe prazo de validade, a RSB é um processo que não terminou, assim permanece viva na
Agenda Estratégica para a Saúde, nos cidadãos formados pelo Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde, na movimentação de milhares de participantes dos Congressos da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva e dos conselhos e conferências de saúde. Acrescentando como
evidência para a vitalidade da RSB, os grupos de pesquisa em saúde coletiva, como o
observatório do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, bem como a formação de sanitaristas e
os cursos de pós-graduação nas áreas que constituem espaços da saúde coletiva.

Após a leitura de ambos estudos, nota-se algumas lacunas na produção científica em políticas
de saúde, as quais referem-se ao número reduzido de publicações que abordem as questões de
poder em saúde, na perspectiva macropolítica; poucos trabalhos problematizam ou até mesmo
citam a Reforma Sanitária Brasileira; a grande maioria não explicita os referenciais teóricos
utilizados; apresentam ambiguidades na delimitação conceitual e na construção teórico-
metodológica.

Dessa forma, permite pensar sobre a contribuição enquanto pesquisador e estudante da área da
Saúde Coletiva quanto ao fato de manter viva a RSB na produção de trabalhos
acadêmicos/científicos e também refletir ou até mesmo (re)construir o referencial teórico da
pesquisa a ser desenvolvida, propondo discussões dentro do espaço da política de saúde. Com
isso, questiona-se, então, o cuidado com a vigilância epistemológica para atender os critérios
científicos e produzir conhecimento válido; a participação em eventos e realização de leituras
dentro dos principais assuntos de interesse da Saúde Coletiva; os resultados da pesquisa, se
este terá função ou subsídio para mobilização social e política em prol do
aperfeiçoamento/fortalecimento do SUS.
Outros pensamentos vão em direção a relação do tema de pesquisa com a inserção
profissional, curiosidades a respeito do que tem sido pesquisado e o que ainda precisa ser
pesquisado dentro da Saúde Coletiva e o porquê de não termos a Reforma Sanitária Brasileira
como Descritores em Ciências da Saúde (DeCS).

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. Lisboa:


Editorial Presença, 1992.

BOURDIEU, Pierre. Propos sur le champ politique. Lyon: Presse Universitaire de Lyon,
2000.

PAIM, Jairnilson Silva. Políticas de saúde no Brasil: epidemiologia e saúde. In:


ROUQUAYROL, Maria Zélia; ALMEIDA FILHO, Naomar de. Epidemiologia & Saúde.
6.ed. Rio de Janeiro: MEDSI, p. 587-603, 2003.

PAIM, Jairnilson Silva; TEIXEIRA, Carmen Fontes. Política, planejamento e gestão em


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89102006000400011>.

SANTOS, Jairnilson Silva.; TEIXEIRA, Carmen Fontes. Produção Científica sobre Política
de Saúde no Brasil (1988-2014): contribuição ao debate sobre a Reforma Sanitária Brasileira.
In: Teixeira, C.F. (org.). Observatório de Análise Política em Saúde: abordagens, objetos e
investigações. Salvador: EDFUBA, p. 41-72, 2016.

SOUZA, Luís Eugênio Portela Fernandes de. Saúde Pública ou Saúde Coletiva? Revista
Espaço para a Saúde. Londrina, v.15, n. 4, p.07-21, out/dez 2014.

VIEIRA-DA-SILVA, Lígia Maria; CHAVES, Sônia Cristina Lima Chaves; ESPERIDIÃO,


Monique Azevedo; BARROS, Sônia Garrido; SOUZA, Jamacy Costa Souza. Análise sócio-
histórica das políticas de saúde: algumas questões metodológicas da abordagem
bourdieusiana. In: TEIXEIRA, Carmen Fontes. Observatório de análise política em saúde:
abordagens, objetos e investigações [online]. Salvador: EDUFBA, 2016, pp. 15-40. ISBN
978-85-232-2021-1. https://doi.org/10.7476/9788523220211.0002.

VIEIRA-DA-SILVA, Ligia Maria; ESPERIDIÃO, Monique Azevedo; SILVEIRA, Anne


Soares; PAIM, Jairnilson Silva. A construção do campo da Saúde Coletiva e as políticas de
saúde - Contribuições da Revista Ciência & Saúde Coletiva. Ciência & Saúde Coletiva
[online]. v. 25, n. 12, p. 4669-4680, 2020. [Acessado 12 Junho 2021] Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/1413-812320202512.21912020>. Epub 04 Dez 2020. ISSN 1678-
4561. https://doi.org/10.1590/1413-812320202512.21912020.

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