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Minha Vida Mudou Muito Do Acampamento A
Minha Vida Mudou Muito Do Acampamento A
1. introdução
A
memória das lutas populares pela terra agrícola, tal como inscri-
tas nas imagens do cinema brasileiro, esboça – com limites, mas
também com potências e nuances – o protagonismo das mulheres.
Caso paradigmático de Elizabeth Teixeira, militante das Ligas Campone-
sas, personagem central de Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho,
1964-1984) – cuja análise ainda tem a ganhar com abordagens feministas². E
também de Roseli Celeste Nunes da Silva, conhecida como Rose – cuja his-
tória de luta acompanhamos em Terra para Rose (1987), com desdobramen-
tos em trabalhos posteriores de Tetê Moraes: O sonho de Rose (1997-2000) e
Fruto da terra (2008), em que reencontramos não apenas personagens do
primeiro longa, mas algumas de suas imagens, tornadas arquivos da luta
dos sem-terra³.
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trilogia composta por Terra para Rose, O sonho de Rose e Fruto da terra projeta
um arco de mais de 20 anos de lutas por reforma agrária popular no Brasil.
Partindo da experiência pioneira de um grupo extenso, o primeiro filme se
ancora nos percursos e falas de algumas mulheres acampadas – Serli, Luci,
Dilma, Ema, Rita, Wanda e, especialmente, Rose. Em outubro de 1985, 1.500
famílias sem-terra acamparam na Fazenda Annoni, latifúndio improdutivo
situado na região Norte do Rio Grande do Sul, com mais de 9 mil hecta-
res e em processo moroso de desapropriação (iniciado em 1972). Buscando
acelerá-lo, os acampados realizaram diversas formas de pressão – além de
uma marcha de 28 dias até a capital gaúcha, grupos provenientes da Fa-
zenda Annoni permaneceram acampados no estacionamento do Incra e na
Assembleia Legislativa em Porto Alegre, durante alguns meses⁴. Mãe de três
filhos engajada na luta pela desapropriação, Rose marcha durante 28 dias
com companheiras e companheiros até Porto Alegre, percorrendo cerca de
450 km com um bebê de nove meses no colo (Marcos Tiaraju foi a primeira
criança a nascer no acampamento sem-terra da Fazenda Annoni). Morta
pouco tempo depois, em março de 1987, aos 33 anos, em um atropelamen-
to nunca inteiramente esclarecido⁵, Rose se tornou um símbolo da luta pela
reforma agrária no Brasil – e o filme de Tetê Moraes, finalizado após a sua
morte, participa de modo decisivo dessa construção.
Documento de fundamental importância, Terra para Rose extrai seu
percurso narrativo da movimentação dos acampados em sua luta para “ti-
rar a reforma agrária do papel” (marchas, protestos, celebrações, acampa-
mentos em Porto Alegre, resistência à polícia). As duas primeiras sequên-
cias, entre os créditos iniciais, montam planos de diferentes atos públicos,
em cujas imagens as mulheres ganham centralidade. Na primeira situação,
Rose e outras três companheiras avançam carregando juntas um pedaço de
madeira, na linha de frente de uma manifestação nos arredores da Fazenda
Annoni (FIG.1). Noutra, empunhando ramos verdes, em mais uma “cami-
nhada para plantar em paz”, um grupo de mulheres e crianças, Rose entre
elas, entoa o Hino Nacional (FIG. 2). É o mote para que o filme introduza
seu primeiro bloco – “a promessa” –, que contextualiza “o mais tradicional
problema brasileiro: a má distribuição da terra agrícola” (como nos diz a
narradora de A classe roceira, filme contemporâneo de Terra para Rose).
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Figura 1 e Figura 2 - Fotogramas do filme Terra para Rose, de Tetê Moraes, 1987. FONTE: Tetê
Moraes, Terra para Rose
Figura 3 e Figura 4 - Fotogramas do filme Terra para Rose, de Tetê Moraes, 1987. FONTE: Tetê
Moraes, Terra para Rose
planos o diálogo (um plano para cada vez que Tetê Moraes refaz a mesma
pergunta). Rose, ao contrário, sabe se valer da arena pública que a câmera
instaura em seu espaço provisório, testemunhando com firmeza:
Figura 5 e Figura 6 - Fotogramas do filme Terra para Rose, de Tetê Moraes, 1987. FONTE: Tetê
Moraes, Terra para Rose
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meu filho... a gente aprende e passa a educar dessa forma diferente que está
aprendendo agora”.
Voltando à dialetização, é como se a montagem pusesse em conta-
to (e em confronto) dois extremos, trabalhados inclusive visualmente: os
homens no poder (expressão máxima da continuidade patriarcal) versus
a emergência das mulheres sem-terra como sujeitas políticas (expressão
mais intensa da mudança social naquele contexto)⁸. Inscritas em Terra para
Rose, que acompanha a primeira grande ocupação sem-terra organizada
pelo MST no sul do Brasil, as vivências e reflexões de Serli e Luci, mas
também de Dilma e Rose (acampadas na Assembleia Legislativa), vão ao
encontro das pesquisas de campo de autoras e autores preocupados com as
relações de gênero no seio dos movimentos sociais – do MST em específi-
co. Para Petras (1998), se a cultura camponesa brasileira, grosso modo, está
marcada por uma organização rígida do modo de vida, baseada em divisões
sexuais de papéis historicamente definidos e naturalizados, as experiências
educativas postas em movimento na luta pela terra abririam espaço para a
recriação das identidades de gênero e do papel da mulher na sociedade. Já
Sônia Schwendler (2009), em seu artigo “A participação da mulher na luta
pela terra: dilemas e conquistas”, nos diz:
tos. Caso da lida com a maternidade, uma das questões candentes no filme
– que, por sua complexidade, mereceria uma abordagem à parte.
No acampamento da Assembleia Legislativa, uma sequência costura
imagens de cuidados com as crianças em meio ao coletivo em luta, pautan-
do visualmente o tema. Rose aparece quase sempre com Marcos Tiaraju
no colo – amamentando em meio às marchas e assembleias, como fazem
outras mulheres acampadas em Porto Alegre. Digamos que a vida domés-
tica não aparece, nos acampamentos, apartada da luta política, assim como
a experiência da maternidade é figurada, no mais das vezes, em meio à
comunidade dos sem-terra em luta.
Em suas falas, muitas acampadas afirmam lutar pelos filhos – que en-
carnam em cena o futuro de uma sociedade potencialmente mais justa. Já
de volta a Ronda Alta, no auge do cerco policial à fazenda, Rose afirma que
vai permanecer ali “até o fim”: “espero que quando ele esteja grande, que
não seja em vão”. No entanto, outras mulheres sequer seguem a marcha,
justificando a permanência e espera na Fazenda Annoni por causa dos filhos
pequenos (situação que vemos em paralelo ao avanço das que caminham
até Porto Alegre). Os filhos aparecem, assim, e a um só tempo, movendo a
luta, nutrindo a resistência, mas também impedindo a livre participação de
todas as mulheres sem-terra (FIG. 7, FIG. 8 e FIG. 9).
Figura 7, 8 e 9 - Fotogramas do filme Terra para Rose, de Tetê Moraes, 1987. FONTE: Tetê Mora-
es, Terra para Rose
POÉTICAS DE PESQUISA: CARTOGRAFANDO O AUDIOVISUAL 199
Figura 10 a 15 - Fotogramas do filme Terra para Rose, de Tetê Moraes, 1987. FONTE: Tetê Mora-
es, Terra para Rose
Figuras 16, 17 e 18 - Fotogramas do filme O sonho de Rose, de Tetê Moraes, 1987. FONTE: Tetê
Moraes, O sonho de Rose
POÉTICAS DE PESQUISA: CARTOGRAFANDO O AUDIOVISUAL 203
Figuras 19, 20 e 21 - Fotogramas do filme O sonho de Rose, de Tetê Moraes, 1987. FONTE: Tetê
Moraes, O sonho de Rose
5. A memória de Rose
Propomos finalizar com uma espécie de epílogo, tratando – de ma-
neira sucinta – do papel da trilogia de Tetê Moraes na elaboração da me-
mória de Rose e de sua luta.
Além de Marcos Tiaraju, seu filho caçula (FIG.25 e FIG.26), Rose apa-
rece em cena, em Terra para Rose, ao lado de Vanisa, a primogênita, que
tinha apenas sete anos em 1986 (FIG. 27). Quando filmada novamente em
O sonho de Rose - 10 anos depois, Vanisa trabalha como empregada doméstica
para aumentar a renda da família (FIG.28), que vive de aluguel na Grande
Porto Alegre: agora casado com Vilma, José, viúvo de Rose, trabalha como
pintor, depois de ter “desistido do acampamento” sem-terra (FIG. 29 e FIG.
30).
POÉTICAS DE PESQUISA: CARTOGRAFANDO O AUDIOVISUAL 205
Figuras 25, 26 e 27 - (no alto) - Fotogramas do filme Terra para Rose, 1987. Figuras 28, 29 e 30
(abaixo) - Fotogramas do filme O sonho de Rose, 2000. FONTE: Tetê Moraes, Terra para Rose e O
sonho de Rose.
Figura 31 - Fotograma do filme O fruto da terra, de Tetê Moraes, 2008. Figura 32 – Fotograma
do filme Terra para Rose, de Tetê Moraes, 1987. FONTE: Tetê Moraes, Terra para Rose e O fruto da
terra.
POÉTICAS DE PESQUISA: CARTOGRAFANDO O AUDIOVISUAL 207
notas
¹ Citamos no título uma fala de Rose, mulher sem-terra que protagoniza Terra para
Rose (Tetê Moraes, 1987). Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no Gru-
po de Pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas (UFMG), em fevereiro de
2021, e no Grupo de Trabalho Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXX Encontro
Anual da Compós (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 27 a 30 de julho de
2021). Agradecemos a todas e todos os participantes do Poéticas Femininas e do GT
na Compós, em especial a Roberta Veiga, Carla Italiano e Lila Foster, pelas leituras
atentas, sugestões importantes e comentários instigantes. Agradecimentos especiais,
ainda, à Mostra Lona, Cinemas e Territórios, e a Aiano Bemfica, Ewerton Belico e
Vinícius Andrade, pela leitura e discussão do texto ainda em esboço.
² Elizabeth assumiu a liderança dos camponeses na cidade de Sapé (PB) após o assas-
sinato de seu marido, João Pedro Teixeira, presidente da Associação de Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas, em 1962. “Diziam: ‘como você vai continuar a luta de João
Pedro com tanto homem que pode fazer isso?’, mas eu continuei. Quando eu era pre-
sa, os policiais falavam que eu não devia fazer isso, que eu ia ser presa por conta de
ter assumido o papel do meu marido. Eu passava dois, três dias de prisão, depois vol-
tava e dava continuidade à luta do campo”. Tendo participado das filmagens de Cabra
marcado para morrer, interrompidas pelo golpe militar, Elizabeth consegue fugir da
repressão na Paraíba, refugiando-se em São Rafael (RN), onde vive clandestinamente
com Carlos, um de seus 11 filhos, durante 17 anos - até ser reencontrada e novamente
filmada por Eduardo Coutinho em 1981. Ver “Elizabeth Teixeira e Margarida Alves
traduzem luta feminina por direitos no campo”. https://g1.globo.com/pb/paraiba/
noticia/elizabeth-teixeira-e-margarida-alves-traduzem-luta-feminina-por-direitos-
-no-campo.ghtml
⁴ Em outubro de 1986, dois mil homens da brigada militar do Rio Grande do Sul cer-
caram a fazenda, para impedir que os acampados cultivassem a terra (“o confronto é
incorporado ao dia a dia”, como nos diz a narração de Terra para Rose). Em novembro
do mesmo ano, dias antes das eleições para o governo do estado (e para a Constituin-
te), a posse da Fazenda Annoni é emitida ao Incra, o proprietário indenizado e “os
sem-terra podem finalmente plantar”.
Segundo a narração de Terra para Rose, “a empresa alegou defeito nos freios, mas a
perícia, feita por funcionários da Ford de São Paulo, não encontrou qualquer defeito
nos três sistemas de freio”.
⁸ Para a historiadora Gerda Lerner, “as diferenças de classes foram, em seu início,
expressas e constituídas em termos de relações patriarcais” (que lhes antecedem),
não sendo a classe, portanto, um “construto separado do gênero” (2019, p. 351). No
patriarcado, a hierarquia de classe seria “reconstituída na família por meio da do-
minação sexual”. Subordinação doméstica afrouxada pela luta sem-terra, tal como
aquela vivida pelas mulheres do campo nos acampamentos do MST, que parecem
colocar em jogo outros vínculos e exigências comunitárias.
⁹ O apoio de setores progressistas da Igreja Católica foi decisivo para que os sem-ter-
ra se organizassem e se mantivessem em luta nos anos 1980. Os primeiros acampa-
mentos no Rio Grande do Sul, antes mesmo da fundação do MST, tiveram apoio da
Comissão Pastoral da Terra. Nos atos e manifestações dos sem-terra registrados em
Terra para Rose, a presença da igreja e da religiosidade são abundantes e marcantes.
“Romaria conquistadora da terra prometida” é o nome dado pelos acampados da
Annoni à marcha pela desapropriação que fizeram em 1986 até Porto Alegre, como
se lê em uma das faixas erguidas pelos caminhantes.
REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Renata. (Re)politizando o conceito de gênero: a participação política
das mulheres no MST. Mediações, Londrina, v. 14, n.2, 2009.
SCOTT, Joan. Gender and the Politics of History. Nova York: Columbia University Press,
1988.
SIGAUD, Lygia. A engrenagem das ocupações de terra. IN: Fernandes, B.M; Medei-
ros, L.S; e Paulilo, M.I. (orgs.) Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e con-
quistas, v.2. A diversidade das formas das lutas no campo. São Paulo: Editora Unesp,
2009.
STEDILE, J. P.; FERNANDES, B. M. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra
no Brasil. 3.ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.
Entrevista com Tetê Moraes (Mostra Lona – Cinema e Territórios). Com a participa-
ção de Cláudia Mesquita e Gabriel Araújo. 11/06/2020. Disponível em https://www.
youtube.com/watch?v=HHbO6AqTLmc&ab_channel=MovimentodeLutanosBair-
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