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INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas o conceito de Saúde tem sido ampliado, para que
possamos responder a superação do paradigma biomédico os sujeitos atendidos
devem ser compreendidos em sua integralidade e como protagonistas de seus
processos de cuidado. Tais processos ocorrem através de redes, no desenho inicial do
próprio Sistema Único de Saúde foram pensadas redes formais para responder essa
demanda. No entanto, a superação ultrapassa equipamentos de Saúde formais e assim
emerge a necessidade de reinvenção das formas de cuidado, alguns agentes
(trabalhadores e/ou pesquisadores) vêm buscando espaços permeados pela prática
profissional do cuidado através de operações biopolíticas, realizando assim o “trabalho
vivo em ato” (MERHY et al, 1997;2022). Considerando nessas redes os locais onde a
produção de vida ocorre, o conceito das Redes Vivas tem sido engendrado por
pesquisadores do SUS, acionando a ideia de redes que vão além das articulações
entre as instituições formais e os estabelecimentos de saúde, e que consideram um
plano comum entre os diversos atores que as compõem.
Desde sua implementação o Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) passa por
desafios, em um país com uma dimensão geográfica continental e com grandes
desigualdades sociais e pluralidades culturais. Estes desafios encontram-se
acentuados atualmente pelo sucateamento e desmonte do SUS, bem como pela
constante perda de direitos das populações atendidas pelos equipamentos de saúde
públicos devido ao atual governo necropolítico.1
Já no final do século passado a hegemonia de modelos hierarquizados que
prestigiam o saber médico tem sido questionada. A 8ª Conferência Nacional de Saúde,
que posteriormente influencia a criação do SUS, marca o surgimento do conceito
ampliado de saúde nas linhas de cuidado no Brasil. Essa nova abordagem tem gerado

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Necropolítico: Necropolítica é um conceito desenvolvido pelo filósofo negro, historiador, teórico político
e professor universitário camaronense Achille Mbembe que, em 2003, escreveu um ensaio questionando
os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. (PONTE, 2019)

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implicações nas políticas públicas e na própria pesquisa e produção de conhecimento
em Saúde.
No âmbito das políticas públicas, o SUS - criado como um projeto que pudesse
acompanhar tal ampliação - partiu de princípios e diretrizes instaurados juntos a ele na
Carta Magna de 1988. Dentre as diretrizes e princípios do SUS estão previstas a
integralidade e intersetorialidade, e para que ambas possam ser efetivadas também é
prevista a organização dos serviços de saúde em rede. Concomitante à implementação
do sistema no território nacional discussões sobre a descentralização e
desierarquização da gestão têm sido realizadas.
Quanto à produção de conhecimento em Saúde, as ciências humanas,
especialmente as perspectivas da filosofia e das ciências sociais, têm contribuído cada
vez mais com as discussões contemporâneas sobre o cuidado. Muitas produções
propõem a discussão do trabalho na saúde como uma prática baseada em uma política
de valorização da vida, tal como o pensamento da biopolítica, a partir de autores como
Deleuze, Guattari e Espinoza. Nesse âmbito, destacam-se as produções brasileiras
que fazem uma transversalização entre áreas dos saberes, como a de Franco & Merhy
(2014) que discute o processo de trabalho em saúde tendo como conceito central o
trabalho vivo no âmbito micropolítico.
O “trabalho vivo em ato” é um conceito amplamente abordado por Merhy (1997;
2002) na área da Saúde, ele se dá quando o encontro entre o profissional de saúde e
as populações atendidas ocorre com certos graus de liberdade. Através do
engendramento de processos micropolíticos, onde ocorre a promoção de cuidado e
essa forma de efetuar o cuidado é proposta como uma tecnologia leve e relacional
(FEUERWERKER, 2014, pp.40-41). Merhy (2016) propõe o trabalho vivo em ato como
uma das formas de estar ‘fora dos muros institucionais’ e trazer o cuidado para o
campo das multiplicidades.

Os de fora das redes instituídas – como as ruas – são, nesse


sentido, lugares agenciadores, produtores de redes e conexões.
Nesses cenários, marcados por códigos específicos e plurais, a
solidariedade, as trocas, os compartilhamentos, assim como as

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disputas e desavenças, vão indicando a produção de vida
(MERHY et al, 2016, p.35).

Essa perspectiva permite pensar uma aproximação entre os conceitos de redes


rizomáticas (FRANCO, 2006) - produzidas através do plano relacional da micropolítica
-, e o de redes vivas - aquelas onde operam o trabalho das multiplicidades. Ambas
podem ser encontradas no campo da saúde, são acessadas por profissionais que
realizam uma prática inventiva e fora de modelos que se dão majoritariamente em
procedimentos padronizados.
Numa relação crítica à serialização do trabalho em saúde, Merhy (2016) acentua
a importância dos profissionais que estão em interfaces que vão além dos serviços e
seus estabelecimentos:

Quem está fora do ‘muro institucional’ da saúde (...) percebe o


quanto essa população atendida tem uma rede existencial rica, e
até mesmo que várias delas têm passagens por outros campos
como o da arte-educação, o da música, o do circo social, o do
teatro. Passam por outras conexões, além das próprias redes de
existências que cada um fabrica no encontro com um outro
qualquer (MERHY et al., 2016, p.33).

Dentre as formas de agir em saúde que permitam a inventividade convocada


pelo trabalho vivo encontram-se possibilidades de atuação da Terapia Ocupacional.
Nesse sentido, conforme aponta Galheigo (2003), os terapeutas ocupacionais atuam
concomitantemente como agentes sociais e da saúde, embasados pelos princípios da
cidadania através de sensibilizações de pessoas, grupos e comunidades. E tal interface
entre a saúde e assistência, prevista na profissão, favorece a presença do terapeuta
ocupacional em processos do cuidado através do trabalho vivo, operando a partir das
multiplicidades em que se inscrevem as populações atendidas.
O cuidado é imanente às redes onde ocorre o trabalho vivo, e a atuação do
terapeuta ocupacional pode inscrever-se nelas. Através de entrevistas com terapeutas
ocupacionais buscou-se cartografar com essa pesquisa as barreiras e porosidades dos
itinerários de cuidado das populações atendidas, trazidas por estes profissionais.

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Foram expostos alguns apontamentos sobre a noção e a presença das redes vivas no
agir profissional da Terapia Ocupacional pelo viés biopolítico do cuidado e suas
multiplicidades. Contribuindo para uma maior exploração desta temática, incentivando
a potência criadora do trabalho vivo e aproveitando a proximidade da atuação desta
categoria com o cotidiano dos sujeitos atendidos.
Com isso foram expostos alguns apontamentos sobre a presença de redes vivas
nas práticas da Terapia Ocupacional, contribuindo para uma maior exploração desta
temática, incentivando a potência criadora do trabalho vivo e incrementando a
composição de nossas redes de apoio e cuidado para além das estruturas
institucionais já conhecidas.
A abordagem da temática das redes vivas aqui proposta toca alguns pontos que
permeiam essa discussão: os processos de cuidado como eixo central do agir em
saúde, as multiplicidades das formas de se inscrever nestas redes e por fim, as redes
propriamente ditas com suas características já conhecidas, a fim de facilitar o seu
reconhecimento na prática dos terapeutas ocupacionais. Estes três aspectos citados
coexistem em distintos planos relacionais, e também se interligam e podem ser
acessados em qualquer ordem ou parte conforme suas configurações rizomáticas de
produção de conhecimento.
Os processos de cuidado constituem um eixo importante no trabalho em saúde,
onde todos os atores encontram-se evidenciados, sejam eles cuidadores ou sujeitos a
serem cuidados. Tais processos convidam os profissionais da saúde à implicação e
reconhecimento da singularidade deste outro (Ballarin, Carvalho & Ferigato, 2010,
pp.445;447). Quando se faz possível responder às demandas relacionais nos
processos de cuidado, temos a produção do trabalho vivo em ato, através de relações
micropolíticas.
No entanto, ainda que tenhamos um foco nas relações micropolíticas do trabalho
em saúde, devemos considerar que não há uma única ideia de cuidado. Podemos
pensar o imaginário do cuidado como “um conjunto de noções de cuidado que se unem
por aspectos básicos, por narrativas formativas, cuja influência perdura através dos

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tempos e por diversos temas recorrentes” (Zoboli, 2004 apud Ballarin, Carvalho &
Ferigato, 2010, p.446). Tomamos aqui o trabalho vivo na saúde como eixo norteador
das discussões dos processos de cuidado, uma vez que estamos considerando que os
trabalhadores “atuam sob linhas de força agenciadas por uma ética do cuidado”, e que
tenham suas atividades presididas por altos graus de liberdade. (FRANCO & MERHY,
2012,p.152).
Dessa forma, os processos de cuidado se dão no agir em saúde por meio de
tecnologias relacionais leves, que levam em conta uma imaterialidade (Gonçalves,
1994 apud FRANCO & MERHY, 2012,p.153) e baseiam-se nas relações micropolíticas.
A inventividade e liberdade requisitada por esse trabalho ocorre devido às
singularidades dos sujeitos a serem assistidos e seus contextos, o que leva o
profissional da saúde a traçar um plano em comum com os diversos atores tendo em
conta as multiplicidades ali envolvidas, incluindo-se como parte una deste múltiplo
(Deleuze e Guattari, 1996).
As multiplicidades engendradas dentro do próprio contexto de trabalho vivo, que
leva em conta o respeito às diferentes formas de ser e estar no mundo, tomando como
princípio a produção de vida, gera então múltiplas formas de se exercerem tais
processos. Considerando a subjetividade como produtora de realidade em saúde
(FRANCO & MERHY, 2012, p.152) valorizam-se as multiplicidades das realidades de
mundo para os atores envolvidos nestes processos. Tendo em vista o agir da Terapia
Ocupacional no cotidiano das populações por ela atendidas, pode-se considerar sua
produção de subjetividade, fazendo destas redes composições múltiplas e
heterogêneas, que tentam agenciar a criação de um plano comum.
As redes micropolíticas (FRANCO, 2006) ou aquelas onde é possível operar o
trabalho vivo em ato (MERHY et al, 2016) aqui serão denominadas como redes vivas,
são estas o cenário imanente ao engendramento do plano comum que abarca essa
multiplicidade. Essa imanência nos processos de cuidado, não questiona a existência
dessas redes, mas sim dedica-se a pensar sua composição, acesso e formas de
operação (FRANCO & MERHY, 2012, p.161).

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A proposta da rede como rizoma - conceito apropriado da botânica por Deleuze
e Guattari (1996) como modelo descritivo, fazendo alusão ao crescimento horizontal de
caules, que se ligam por diversas direções -, permite pensar nas conexões
multidirecionais e no fluxo contínuo presentes nas redes; nos processos de rupturas e
não rupturas, onde os rompimentos não significam o fim de uma rede, mas sim sua
reconfiguração; no comprometimento com a heterogeneidade dos atores componentes
dessas redes, assim como a multiplicidade baseada em um princípio de não exclusão;
e no seu caráter cartográfico (FRANCO & MERHY, 2012, p.152; FRANCO, 2006,
pp.9-10).
A característica cartográfica das redes, por sua vez, dispõe de um mecanismo
de autoanálise e autogestão, onde os fluxos multidirecionais de uma rede se
engendram em mapeamentos próprios que só podem ser analisados pelos atores que
a compõe (FRANCO, 2006, p.9). E tendo em vista a produção de subjetividade
implicada nestes processos, esse projeto de pesquisa propôs aproximar-se dessa
produção através da voz de terapeutas ocupacionais, adotando a entrevista como
procedimento para a realização de uma cartografia das multiplicidades do cuidado
através das redes.
Diante das temáticas abordadas nesta pesquisa e a vasta gama de
possibilidades e caminhos, fixamos como objetivo geral deste estudo: a exploração do
conhecimento sobre as redes vivas e a percepção da presença delas na prática dos
terapeutas ocupacionais, considerando-as propícias ao exercício do trabalho vivo,
através da valorização dos processos de cuidado em sua multiplicidade. A partir dos
enunciados produzidos por terapeutas ocupacionais nas entrevistas realizadas alguns
apontamentos foram expostos, incentivando a potência criadora do trabalho vivo e
considerando para a composição das redes de apoio e cuidado, para além das
estruturas institucionais já conhecidas.

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METODOLOGIA

O conceito de Redes Vivas é central a esta pesquisa, enfatiza a condição de


inexistência de modelos prontos que respondam a problemas estruturais e valoriza a
singularidade das composições das redes. Traz consigo uma problematização frente à
ciência moderna, pois não busca objetos de estudos ou formas qualitativas de
interpretação, procura acompanhar processos de criação de mundos e formas de
compor essas redes nos itinerários de vida das populações atendidas por esses
profissionais.

Essa perspectiva é indissociável da cartografia, considerando tratar-se de uma


forma de pesquisa com potência criadora e inventiva que possibilita tais discussões.
Assim, essa pesquisa utilizou o método cartográfico para desenvolver seu trabalho
exploratório. “Cartografar é acompanhar processos” (KASTRUP & BARROS, 2009,
p.52), a cartografia responde a essa problematização, pois não busca resultados de
objetos de estudo, ela acompanha processos que ainda estão sendo engendrados.
Diante da complexidade de composição e dos processos das Redes Vivas, cartografar
abre horizontes de novas possibilidades, e busca por um plano comum entre a
heterogeneidade e multiplicidades dos atores envolvidos (KASTRUP & PASSOS, 2013,
p.265).

O método de pesquisa-intervenção vem sendo abordado por diversos autores


junto às discussões sobre redes em saúde. Franco (2006, p.9) propõe o princípio
cartográfico das redes, apontando que essas não podem ser descritas com fotografias
ou desenhos (análises estáticas), mas sim que devem se contemplar os registros em
forma de mapeamento. Isso corresponde ao que nesta pesquisa se compreende como
uma cartografia, que a partir das enunciações dos profissionais sejam traçadas
possibilidades de um plano relacional micropolítico onde ocorrem as redes. Também
podemos destacar nesta abordagem das redes vivas a importância da cartografia como

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uma inversão do pensamento hegemônico presente na pesquisa moderna, como uma
estratégia no mapeamento dos trajetos de quem se acompanha:

Nessa direção, tivemos que fazer uma inversão no campo de


estudo. Deixamos nos guiar pelas trajetórias, pelos caminhares
dos indivíduos nas produções de si, na micropolítica dos
encontros que compõem a sua existência, e ir identificando os
lugares de territorialização e expressividade nos distintos campos
de práticas que vão se instituindo nesse caminhar. Importância
que coloca a produção da narratividade desses processos de
encontros, por parte dos que aí estão, como eixo nuclear de
organização do campo de estudo, partindo da capacidade que o
usuário como guia pode nos levar pelo seu nomadismo,
fazendo-nos perceber junto com ele os vários planos de conexões
que opera e se produz, na sua experiência da produção de si
(MERHY et al, 2014, p.39).

Para efeito deste estudo, como ponto de partida para o mapeamento optou-se
por entrevistas individuais, realizadas com três terapeutas ocupacionais. O convite a
esses profissionais foi composto através de uma amostragem por acessibilidade (GIL,
1989, p.97), tendo como critério único o de que não fossem do mesmo serviço e
atuassem ou tivessem um histórico de atuação em equipamentos públicos de saúde
pelo interesse de compor a pesquisa na relação com as políticas públicas de saúde (do
Sistema Único de Saúde). A entrevista foi realizada por pautas, que, segundo GIL
(1989, p.117), é um procedimento adequado para quando é necessária uma maior
flexibilização sem abandonar uma estruturação por tópicos estabelecidos dentro de
uma temática. Assim, foi formulado um roteiro (Anexo I) com as pautas que foram
abordadas, ordenadas de modo a guardarem relação entre si e promovendo a
condução da entrevista.

Tais pautas do roteiro de entrevista também estão de acordo com os três pontos
de discussão que se propôs trazer a essa cartografia: o cuidado, as multiplicidades e
as redes propriamente ditas. A apresentação teve como função colocar cada
entrevistado neste plano cartográfico de pesquisa convocando sua narrativa a partir do

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resgate de sua trajetória profissional. Já os tópicos que abordam o cuidado e as redes
se dão de forma mais direta, apontados como pautas da entrevista. Simultaneamente,
apostou-se no aparecimento espontâneo das multiplicidades nas falas dos
entrevistados e na própria pluralidade do conjunto dessas como material a ser
analisado.

A escolha da entrevista como dispositivo de pesquisa coloca o discurso e a fala


como os dados aqui construídos. Tedesco, Sade & Caliman (2013, pp.304-5) ressaltam
que a entrevista na cartografia não busca extrair a fala sobre as experiências, e sim a
experiência da fala construída em ato no diálogo entre o entrevistador e seus
entrevistados.

Visto que um ethos cartográfico está presente no delineamento desta pesquisa,


é válido salientar que a cartografia não analisa objetos de estudo estáticos e sim
acompanha processos e se dá como uma pesquisa-intervenção, geradora de mundo. E
essa característica se faz presente em todo o processo da pesquisa, inclusive na
estruturação da entrevista e sua análise.

Assim, a estruturação da entrevista se deu pela busca de um discurso múltiplo e


coletivo, onde não foram valorizadas dicotomias ou hegemonias pela busca de uma
realidade única. A proposta das entrevistas se deu no devir da construção de mundo ao
gerar uma nova experiência através das falas e da própria elaboração de análise das
mesmas.

Das enunciações apresentadas pelos profissionais foi de interesse dessa


pesquisa então, após as transcrições e processos de releituras, selecionar trechos
onde foram possíveis fazer apontamentos e direcionamentos que pudessem articular
com os elementos conceituais da perspectiva teórica escolhida para esse trabalho.
Destacando trechos e citações que puderam articular-se em debate com conceitos da
biopolítica, tendo como ponto de partida os três pontos de interesse estabelecidos
desde o projeto inicial da pesquisa, como já mencionado: o cuidado como eixo central
do agir em saúde, as multiplicidades e as redes propriamente ditas.

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REALIZAÇÃO DAS ENTREVISTAS

As entrevistas foram realizadas individualmente sem que houvesse


compartilhamento das respostas entre os profissionais entrevistados. Foram realizadas
em locais e datas distintas pré acordadas, com duração média de uma hora. Optou-se
por gravá-las em áudio e posteriormente transcrevê-las. Os entrevistados receberam
uma cópia da transcrição logo após a realização das entrevistas. Trechos das
transcrições são encontrados ao longo da discussão dos tópicos e as transcrições,
cada qual em sua íntegra, encontram-se anexadas ao final deste trabalho.
Foram transcritos apenas os trechos de respostas às perguntas do roteiro de
entrevista e aquelas que foram acrescidas no processo. O roteiro foi utilizado como
base para ser preenchido e complementado com as transcrições. Comentários
aleatórios, ruídos e palavras corrigidas na própria fala do entrevistado não foram
transcritos. Assim como a simplificação de respostas diretas foi realizada a fim de
facilitar o processo de transcrição, como na entrevista com K. sobre sua trajetória
profissional.
Além disso, destaca-se que para preservar a identidade dos entrevistados,
sujeitos e populações atendidas por eles, nomes de pessoas, instituições e locais por
vezes foram ocultados apenas por iniciais ou outros substitutos, a fim de manter o
anonimato, já que essa pesquisa não investiga diretamente nenhum aspecto
institucional específico.
Por fim, é válido ressaltar que todos os entrevistados assinaram uma via do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e ficaram com outra via para uso
próprio e apreciação. Estando assim, de acordo com as normas com as quais essa
pesquisa foi realizada.

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MAPEAMENTO

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ATORES DE UM PLANO COMUM

Foram convidados três terapeutas ocupacionais de diferentes áreas e serviços


para serem nossos entrevistados nesse processo cartográfico, e para efeito da análise
cada um dos participantes foi identificado por suas iniciais, sob o compromisso de
reserva indicado pelo TCLE da pesquisa. Assim, temos que D e K são terapeutas
ocupacionais da área de saúde mental mas tem uma trajetória profissional bem distinta.
D sempre trabalhou com a gestão de serviços de saúde mental e agora atua com
psicanálise. Enquanto K sempre atuou diretamente como técnica em Centros de
Atenção Psicossocial (CAPs). Já G é um terapeuta ocupacional da área de reabilitação
física, concilia atendimentos particulares de home care com o trabalho em um Centro
Especializado de Reabilitação (CER).
Optou-se por traçar um pequeno perfil de formação e atuação dos entrevistados
no início da conversa com o intuito de permitir aproximações entre a heterogeneidade
das trajetórias e a multiplicidade das falas coletadas. Mesmo não sendo o foco dessa
pesquisa, ao convidá-los para falar de seu percurso profissional e de formação, o
currículo acadêmico prevaleceu como referência na fala dos próprios profissionais,
como uma identificação da sua trajetória de vida. E aqui já cabe indicar a atenção a
uma questão profissional, que relaciona experiência a títulos e comprovações
acadêmicas.

O sujeito acaba o que é não apenas porque ele é descrito assim ou


assado por seu currículo, mas também porque ele vai se pautando pelo
seu próprio currículo, a modo de ir se vendo, se narrando, se julgando e,
com isso, montando sua trajetória segundo aquilo que ele quer ser ou
aquilo que pensa ser. (VEIGA-NETO, 2008, p.19)

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A tabela a seguir resume a apresentação onde os terapeutas ocupacionais
falam sobre a formação e atuação profissional:

Formação em Terapia
Profissional Ocupacional Outras formações Atuação profissional
Caps, Ambulatórios,
Aprimoramento em Saúde Mental
Acompanhamentos
Graduação pela Multiprofissional e formação em
D terapêuticos, cargos de
Faculdade de Medicina psicanálise, incluindo mestrado e
gestão na Rede de
da Universidade de São doutorado em andamento
Atenção Psicossocial
Paulo
Graduação em Filosofia pela Saúde Mental: Caps IJ
K
Universidade de São Paulo e Caps Adulto
Centro especializado
Residência em Terapia Ocupacional
de reabilitação, clínica
Graduação pela Hospitalar e Promoção de Saúde da
multiprofissional,
G Universidade Federal população idosa, Especialização em
atendimento de home
do Espírito Santo terapia de mãos e mestrado
care em reabilitação
interunidades
física

Com isso, foi de grande importância convocar o "Eu" terapeuta ocupacional de


cada entrevistado que surgiu a partir da retomada de suas narrativas de formação e
trajetória profissional. Uma vez que num mapeamento estes também tornam-se atores
componentes de um plano comum cartográfico.

Por vezes, os entrevistados questionaram se estavam respondendo


corretamente às perguntas propostas, ou ainda, pediam maiores elucidações das
questões. A cartografia assume que não existem pesquisas neutras, ainda assim, como
entrevistadora procurei não manipular intencionalmente a resposta dos entrevistados.
Nas elucidações e questionamentos sobre assertividade de respostas, trouxe a eles o
lugar que partia minha pesquisa cartográfica e princípios da biopolítica. Explicando que
o conhecimento é tido como rizomático, podendo ser constituído por diferentes
discursos, não havendo assim dicotomias de certo e errado, apenas diferentes pontos
de vista sobre as experiências. Disse que se necessário complementaria perguntas e
que eles poderiam ficar tranquilos em responder como melhor lhes coubesse a

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interpretação. Ao final do último tópico elucidei o conceito de trabalho vivo e redes
vivas para cada um dos entrevistados.

São convidados terapeutas ocupacionais para comporem tal mapeamento por


estarmos investigando as subjetividades destes processos de cuidado nas redes vivas,
a partir de uma perspectiva da profissão (Terapia Ocupacional). Assim, foram
convocados atores que fazem parte deste recorte social buscando suas ressonâncias
num plano comum. Ainda que de modo coadjuvante, minhas aproximações com a
prática profissional também compôs com elementos de uma certa visão de mundo:

A aproximação proposta para possibilitar avaliação/análise em um


mundo tão rico como é o processo de trabalho, complexo e
dependente dos sujeitos reais - que, ao mesmo tempo produzem
e são produzidos - se faz por meio de uma investigação que
convoca como investigadores os próprios sujeitos do trabalho.
Isso porque somente eles poderão dar voz ao mundo em que está
imersa sua práxis produtiva; os atravessamentos e as
transversalidades que vão dando o compasso tenso do
estruturado e da Babel, que é a dos processos de trabalho em
saúde; a potência das relações entre sujeitos, seus processos de
subjetivação como produtores de novas potências do viver, na
produção dos modos de caminhar a vida (FEURWERKER, 2014,
p. 32).

Um desafio existente ao longo desta pesquisa foi compreender o protagonismo


dos sujeitos em seus processos de cuidado a partir das vozes dos profissionais de
saúde. Para compensar tal centralidade nos terapeutas ocupacionais - que acaba
sendo uma forma de compreender melhor a visão desta categoria profissional a
respeito dos temas abordados - as perguntas muitas vezes se voltaram para os
sujeitos atendidos e foram valorizadas formas de conhecimento não hierarquizadas,
que considerassem os rizomas dos saberes e dos modos de se efetuar o cuidado.

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O QUE SE ANALISA CARTOGRAFANDO?

A cartografia propõe um tipo de pesquisa onde não se busca analisar objetos


estáticos e sim acompanhar processos. Processos que ao serem acompanhados
geram movimentos, e incorrem numa pesquisa intervenção. Nas entrevistas realizadas
com os terapeutas ocupacionais não se pensou como objetivo avaliar as experiências
vivenciadas por eles, mas através da fala sobre estas gerar uma nova experiência.

A nova experiência do encontro das três formas de enunciação dos


entrevistados com a minha percepção de entrevistadora, que parte de uma perspectiva
teórica embasada pela biopolítica, gera aqui nesta pesquisa um mapeamento de pistas
do acesso das redes vivas no agir profissional da Terapia Ocupacional, possibilitando
assim tornamos-nos atores agenciadores de tais redes nos processos de cuidado.

Para Feurwerker (2014) tanto a cartografia como a produção de Deleuze e


Guattari geram uma aproximação analítica da produção concreta. No âmbito da saúde,
as cartografias do trabalho desses profissionais buscam viabilizar por meio das
relações as subjetividades que atravessam esses fluxos:

Isso se faz a partir de um trabalho cartógrafo, que busca produzir


mapas, busca seguir as linhas e as conexões, para permitir
ampliar a visibilização dos territórios existentes, procurando ao
mesmo tempo escapar deles. Os mapas que o cartógrafo rabisca
nesse caso pretendem produzir visibilidade às expressões de
ações e manifestações da subjetividade interrogada (p.31).

Por onde se começa a ler um mapa? O desafio da análise nessa pesquisa é


pensar com as entrevistas um traçado dentre tantos possíveis. Tomar a leitura do mapa
como um exercício de análise, permite pensar que essa leitura varia a depender do
referencial daquilo que se busca. Por vezes olhamos primeiro o todo e depois o ponto
de partida e chegada. A proposta desta pesquisa ao utilizar a cartografia como
metodologia e entrevistas como um recurso apresenta o mapeamento das experiências
tidas com esses três profissionais, traçando assim pontos em comum e alguns
paralelos possíveis a partir deste lugar.

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A própria organização formal desse estudo enquanto um trabalho acadêmico
acaba por trazer alguns desafios para conseguir propor um mapeamento de
conhecimentos rizomáticos, mas ainda assim, é feita aqui a tentativa de convocá-los.

A análise, assim, pode partir de um objeto com contornos


precisos, mas alcança, progressivamente, um conjunto de
múltiplas relações que lhe permite surgir como tal. Participam de
sua emergência muitos outros aspectos, que, a princípio,
trataríamos como sendo externos. O procedimento analítico vai
permitir o aparecimento das condições de emergência do objeto,
possibilitando à pesquisa comportar a heterogeneidade e a
heterogênese. (BARROS, 2013, p.375).

Desta forma, o conhecimento aqui construído e disposto a partir da assimilação


desses enunciados com conceitos da biopolítica pode ser acessado a partir de
qualquer um dos tópicos a seguir. Eles estão engendrados por diferentes camadas de
compreensão dessa rede. Além dos três tópicos principais, surgem dentro de cada um
deles desmembramentos que trazem importantes contribuições para pensar as práticas
profissionais em Terapia Ocupacional.

Fazendo uma breve aproximação daquilo que vem a seguir, os tópicos dispostos
desde o início dessa pesquisa, não trazem uma divisão em pautas colocadas como
norte, sul, leste ou oeste. Pois propõem um mapeamento dinâmico, relacional, de fluxo
e movimentos. Assim:

- o cuidado é tanto o encontro do terapeuta com o sujeito acompanhado,


quanto um movimento que pode se seguir ao longo de toda essa rede,
através dos fluxos disponíveis;
- as multiplicidades estão nos conjuntos e diferentes atores, sempre
convocadas a partir de um olhar que pode enxergar para além das
serializações; e
- as redes são este grande emaranhado de planos relacionais, com suas
características específicas, algumas já conhecidas e outras a serem
descobertas.

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CUIDADO: O EIXO CENTRAL DO AGIR EM SAÚDE

Esta pesquisa se propôs a cartografar redes vivas a partir da perspectiva da


Terapia Ocupacional, e desde o começo se apresenta também como um mapeamento
de processos de cuidado. Seja o cuidado que ocorre no encontro do terapeuta
ocupacional com sujeito/população atendida, o cuidado que o próprio sujeito encontra
através do protagonismo em diversos pontos de sua rede (trabalho, família e amigos)
ou mesmo o tipo de cuidado que redes instituídas podem oferecer. Depois das
entrevistas com os profissionais evidenciou-se que estamos aqui falando de cuidadoS,
em suas mais diversas faces. Focaremos aqui a análise do cuidado que é produtor de
vida, que faz parte do trabalho vivo em ato exercido por profissionais da Saúde.
Para Merhy (2016), o trabalho vivo é um potencializador dos processos de
cuidado, sendo uma forma de superar abordagens serializadas e institucionalizadas em
saúde. No estudo “Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua.
Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde”,
através de narrativas de cartografias dos profissionais da saúde, encontra-se o cuidado
“além dos muros institucionais”.
Retomando os elementos apresentados inicialmente, o trabalho vivo na saúde é
central neste estudo para o cuidado em seus múltiplos processos, exercido por
trabalhadores que são "agenciados por uma ética do cuidado” e que tenham graus de
liberdade em seu cenário de atuação. (FRANCO & MERHY, 2012). Assim, partimos do
pressuposto de se considerar o trabalho como uma tecnologia leve e relacional
(FEUERWERKER, 2014), que ocorre no campo da imaterialidade (Gonçalves, 1994
apud FRANCO & MERHY, 2012) e micropolítica. No entanto, devemos ter em nosso
horizonte que não há uma única ideia de cuidado, mesmo nas relações micropolíticas.
O imaginário do cuidado pode ser desenhado como um conjunto de noções unidas por

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aspectos básicos e narrativas formativas duradouras, independente da passagem do
tempo e da recorrência das temáticas (Zoboli, 2004 apud BALLARIN, CARVALHO &
FERIGATO, 2010).
A discussão e análise deste tópico irá seguir as mesmas temáticas abordadas
nas perguntas do roteiro que foram feitas aos entrevistados. São então trazidas aqui as
respostas dos entrevistados sobre itinerários de processos de cuidado, autonomia e
produção de vida, paralelos a conceitos e aproximações da literatura de referência
deste estudo.

Itinerários dos processos de cuidado

Os entrevistados foram questionados na primeira pergunta: “A partir de sua


experiência em processos de cuidado: como você descreveria os itinerários desses
processos? Que pontos você considera mais importantes?”. Em relação aos itinerários
dos processos de cuidado, os profissionais entrevistados se ativeram em um primeiro
momento aos circuitos internos ao sistema de saúde. As falas se referiram ao
encaminhamento dos usuários, K. e G. falam das experiências dos equipamentos de
saúde que trabalham:

A chegada no Caps é, geralmente, ou encaminhamento da rede


de atenção básica ou espontânea, tem muitos acolhimentos
espontâneos. Falando de itinerário, da onde a pessoa vai, depois
de chegar ao Caps como é que faz, acho que tem tanto isso da
diferenciação dos serviços, uma unidade básica, um Caps.
(Terapeuta Ocupacional K.)

Mas pensando no CER, pensando em locais mesmo, itinerários,


acho que tem isso. É um serviço especializado, onde não é uma
busca inicial das pessoas. As pessoas chegam lá pra algo que
aconteceu naquele momento, muito pontual, ou encaminhados.
(Terapeuta Ocupacional G.)

Já D. que tem um longo percurso profissional de atuação nas redes de saúde


mental convoca essa experiência para formular sua resposta:

Acho que muda tudo quando a gente pensa o cuidado ligado ao


território, que assim é esse cuidado que é em rede. [...] Mas a

23
ideia é essa: Qual é o tipo de cuidado que a pessoa precisa? Se é
um cuidado intensivo ou mais pontual, um acompanhamento que
é mais esporádico. Isso vai ser determinado a partir da
necessidade do sujeito (Terapeuta Ocupacional D.).

Essa compreensão indica uma restrição no imediato das respostas à entrevista,


que não pode ser tomada como tradutora da relação desses profissionais com os
itinerários de cuidado, mas como a resposta predominante que essa ideia convoca. A
própria ideia de temáticas recorrentes (Zoboli, 2004 apud BALLARIN, CARVALHO &
FERIGATO, 2010) que existem quanto ao cuidado dentro do imaginário da área da
saúde, é apontada por G. em uma sintetização do que a ideia geral de “itinerários de
cuidado” traz: “Eu acho que pensar em itinerário, eu penso bastante em locais que o
usuário acessa, onde tem relação de cuidado mesmo.”
Na sequência da entrevista, a extensão da compreensão dos itinerários de
cuidado aparece de modo mais evidente quando os entrevistados prosseguem suas
formulações e apontam para as ocorrências que superam a produção de cuidado
ligada diretamente aos serviços de saúde. Em relação ao reconhecimento de que a
atuação do próprio serviço vai além, K. pontua:

Eu acho que a gente consegue fazer trabalhos que não são só do


âmbito da Saúde. Acho que no Caps tem uma perspectiva de
cidadania também. Muitos voltam a estudar, muitos voltam a
trabalhar e isso com a atuação do Caps. Então não fica só numa
questão do tratamento, uma questão pontual dos grupos, acho
que tem muito a ver com todas as esferas de importância da vida
da pessoa (Terapeuta Ocupacional K.).

De outro modo, G. pontua uma compreensão de que o cuidado também é


produzido fora dos serviços de saúde:

Mas se eu for pensar em locais de cuidado, a família é imediata,


especialmente onde as pessoas buscam cuidado e sentem
cuidado mesmo. Então acho que é um itinerário meio que comum,
todas as relações familiares se a gente for pensar, mesmo
fragilizadas e tudo mais, é com quem a gente conta muito. Acho
que a comunidade também (Terapeuta Ocupacional G.).

24
Ainda em relação à possibilidade de pensar os itinerários de cuidado em redes
não circunscritas aos serviços de saúde e convergentes para a proposição das Redes
Vivas de cuidado, D. aponta:

E aí num momento que não é mais um momento de crise, é


aquele acompanhamento que vai depender do que o sujeito
necessita. Às vezes um atendimento pontual na UBS ou participar
de grupos, pensando que a rede não é só os serviços de saúde, a
rede é tudo. Às vezes a pessoa participa de uma cooperativa no
bairro, às vezes ela participa de uma atividade num CEU. Não é
só ligada à saúde, mas sim a todos os serviços, todos os
equipamentos, todos os lugares do território, privados e públicos.
Às vezes a pessoa está inserida numa escola, se for criança ou
adolescente, pode ser uma escola particular ou uma escola
pública, e tanto uma quanto outra fazem parte dessa rede. São os
lugares que o sujeito frequenta e participa (Terapeuta
Ocupacional D.).

No decorrer da formulação das respostas surge a proliferação de sentidos que


a noção de cuidado permite, mostrando outras direções trazidas pelos profissionais
entrevistados que extrapolam os interesses desse estudo, mas que valem ser
registradas, considerando a importância das conexões que a prática opera com essa
noção.
G. recorre à antropologia, explicando que há diferentes itinerários de busca de
cuidados de acordo com os perfis das populações que chegam:

Mas eu penso muito mesmo, tem uma questão em antropologia,


da busca desse usuário pelo cuidado também. E acho que isso
tem implicações e questões bem diferentes assim. Se eu for
pensar no CER da Zona Leste, lá dentro mesmo, se eu for pensar
em itinerários, vários itinerários de populações diferentes
(Terapeuta Ocupacional G.).

Depois disso, formula algumas perspectivas sobre os perfis e condutas sobre


homens, mulheres e crianças e ainda traz diferenciações do quanto as classes sociais
também influenciam nessa busca, quanto ao uso de serviços públicos e privados:

25
Eu acho que tenho uma população significativa de mulheres que
tem uma busca pelo cuidado mais prévia e acho que tem uma
rede de serviços que não responde tanto, nem tantos dispositivos.
Tenho uma população de homens que não tem tanta busca pelo
cuidado, assim, prévio. E eu tenho crianças com deficiência que
já tem um percurso muito grande de cuidado através das mães e
que estão lá por ter esgotado os outros lugares por onde eles
passaram. Pacientes particulares eu acho que tem uma relação
totalmente diferente, pela questão socioeconômica e cultural
(Terapeuta Ocupacional G.).

As enunciações que D. apresenta quanto ao questionamento sobre itinerários de


cuidado são formuladas com um pensamento de como a rede dá uma resposta à crise
de sofrimento psíquico severo:

Que a ideia é cuidar desse momento de crise. Mas em geral,


quando a gente tá pensando o cuidado, dessa forma mais ligada
ao território a gente precisa pensar numa resposta à crise sem
acionar num primeiro momento a forma clássica, tradicional. A
forma clássica e tradicional, é você internar. A gente tenta antes,
recorrer a outras medidas. E a gente deixa essa, que a gente
sabe como é, mesmo nos serviços que são diferentes do hospital
psiquiátrico, a gente evita a internação. E às vezes, evitar a
internação também é um cuidado (Terapeuta Ocupacional D.)

A experiência da profissional no trabalho da gestão de redes de saúde mental


com a perspectiva antimanicomial corrobora para ver o cuidado desta forma, que
também se cuida evitando internar. Uma vez que tal visão não é um consenso na área
da Saúde, vide o crescente número de leitos em hospitais psiquiátricos. Essa visão
caminha ao encontro da convocação das redes vivas, uma vez que o cuidado passa a
circular fora das instituições e se faz presente nos locais onde a vida acontece: a
família, a comunidade, a escola, os grupos de amigos.

Autonomia e produção de vida

Para iniciar nossa discussão sobre a autonomia nos processos de cuidado,


devemos considerar que a definição de autonomia não está dada, é um conceito que
pode gerar diferentes interpretações e implicações. Muitas vezes é tomada pelo campo

26
da saúde aproximando-se da ideia de uma disposição do sujeito na relação com os
outros, tal como nossa entrevistada K. coloca ao citar Tykanori, um grande colaborador
da luta antimanicomial: “Eu gosto da definição do Tykanori, autonomia tem a ver com
quanto mais relações de dependência você cria com pessoas, com instituições, com
locais de pertencimento. Isso que é autonomia”. Vale ressaltar que essa noção é
complexa e, à despeito de não ser trabalhada com destaque nesse estudo, ela pode
ser entendida fora da circunscrição do sujeito, numa relação de ruptura com os
sistemas de dominação capitalística que desconsideram as formas de trabalho
presentes no contexto neoliberal que nos encontramos hoje (BERARDI, 2003).
É presente também no campo da Saúde uma ideia de autonomia tida como algo
intrínseco dos sujeitos atendidos. Quando Pires (2015) aborda a dimensão política do
cuidado, fala de seu potencial disruptivo, que pode trazer aos sujeitos tanto a
emancipação para a autonomia quanto a manutenção da tutela dos cuidadores.
Podemos considerar que essa visão da autonomia como o oposto da tutela é muito
presente no campo da reabilitação psicossocial e na própria Terapia Ocupacional. O
resgate da autonomia é tido então como uma aquisição da cidadania, neste contexto
de abordagem. Essa noção que coloca a autonomia em um desenho de contraposição
à noção de tutela permeia a fala dos entrevistados:

Tem um ganho de autonomia no tratamento que depende muito


do encontro, o que esse terapeuta e esse usuário estão
entendendo o que é cuidado e o que é autonomia para poder
cuidar de si próprio. E depende muito, eu vejo muito isso, tem
profissionais que são muito protetivos (Terapeuta Ocupacional K).

Assim como para nossos entrevistados a autonomia aproxima-se também ao


acesso ao direito de poder fazer suas escolhas:

A autonomia não é só você andar sozinho, é você poder escolher


do que você quer participar, o que você quer fazer. Enfim, não é
só você conseguir se deslocar sozinho, até se responsabilizar
pelo seu desejo. "Não quero mais ir no Caps", por exemplo, é
uma autonomia. "Quero agora fazer outra coisa da minha vida”
(Terapeuta Ocupacional D).

27
O conceito de autonomia surge nesta pesquisa a partir da pergunta proposta no
roteiro de entrevista: “Pensando o encontro entre o terapeuta e o sujeito/população
atendida como surge a autonomia no processo de cuidado?”. O questionamento foi
feito com o objetivo de entender os graus de liberdade em que é exercido o trabalho do
cuidado em saúde, assim como a compreensão do protagonismo dos sujeitos
atendidos em uma relação que por vezes pode ser permeada por hierarquias devido ao
lugar do profissional da saúde nessas relações. Nesse ponto, vale também notar a
proximidade da ideia de autonomia com a de um voluntarismo, que implicaria em
reconhecer a emergência do sujeito na relação com a sua vontade particular. Seria
importante considerar a relação entre a vontade do eu e a experiência com as
singularidades como uma possibilidade crítica para pensar também a noção de
autonomia na clínica (GUATTARI & ROLNIK, 1986 ).
O nomadismo dos usuários se faz imanente às redes vivas e ao cuidado como
resultado do trabalho vivo em ato ”O (seu) usuário é um nômade pelas redes de
cuidado e um forte protagonista de sua produção” (LANCETTI, 2006 apud MERHY,
2016 p.34). A autonomia do “andar a vida” como destaca Feuerwerker (2014) na
citação a seguir, é algo que torna possível o surgimento das redes vivas tecidas no
processo de cuidado pelos próprios sujeitos atendidos:

Em primeiro lugar, ampliando a ideia do protagonismo dos


usuários na produção não somente de projetos terapêuticos, mas
na produção de múltiplas redes de conexões, em sua busca por
mais autonomia para andar a vida. Os serviços de saúde e suas
equipes são somente alguns dos pontos desta rede múltipla que
os usuários tecem de modo nômade. E geralmente nem nos
damos conta disso (FEUERWERKER, 2014, p.57).

Ainda que surjam outras percepções e desdobramentos, acredito que os


entrevistados trazem em suas falas uma visão de cuidado onde os sujeitos engendram
as escolhas e acessos dos locais das redes dos processos de cuidado com o apoio e
validação dos profissionais de saúde. O entrevistado G. traz uma importante

28
observação, que responde à visão que a hierarquia do conhecimento profissional por
vezes pode trazer: “A gente não tem como gerar autonomia no outro, a gente não tem
como gerar desejo no outro, mas a gente tem como favorecer várias coisas.” Nesta
mesma linha de raciocínio, G. também relaciona a prática profissional à produção de
vida:
E mais uma vez eu falo, eu acho que não produzo muita coisa no
outro, eu não gero vida no outro, mas acho que as relações
podem muita coisa. E acho que uma relação terapêutica pode
favorecer muita coisa. É de desejo, de querer estar ali, de
conseguir ver um sentido assim (Terapeuta Ocupacional G.).

O conceito de produção de vida está ligado mais intrinsecamente às bases


dessa pesquisa, uma vez que ao pesquisarmos Redes Vivas em Saúde entendemos
que estas incluem espaços onde há produção de vida, onde os cotidianos dos sujeitos
acompanhados ocorrem. O cuidado enquanto trabalho em saúde, foge então de um
resultado tecnicista que seria fruto de um trabalho serializado para tornar-se um
cuidado produtor de vida.
Na entrevista este conceito é abordado a partir da seguinte pergunta do roteiro:
"Considerando a noção de produção de vida associada ao cuidado, como isso aparece
na sua experiência?” Um dos entrevistados me perguntou sobre qual perspectiva do
conceito de produção de vida que eu me referia, e respondi dizendo que era a
produção de vida como um fruto do trabalho vivo em ato.
Segundo Feuerwerker (2014) o cuidado enquanto tecnologia relacional
preocupa-se também com a produção de vida dos sujeitos atendidos

A produção do cuidado implica uma ampliação da clínica,


enriquecida por novos referenciais e pela produção de tecnologias
leves, relacionais, de modo a ampliar a capacidade dos
trabalhadores de lidar com as necessidades de saúde e a
produção de vida dos usuários (p.150)

E talvez aí resida o desafio de reconhecer o trabalho em saúde a partir de uma


tecnologia leve, e assim compreender como se dá a produção de vida neste processo.

29
Uma vez que em outros espaços, fora do âmbito da saúde, o reconhecimento da
produção de vida seja mais demarcado, como coloca Merhy (2016):

Os de fora das redes instituídas – como as ruas – são, nesse


sentido, lugares agenciadores, produtores de redes e conexões.
Nesses cenários, marcados por códigos específicos e plurais, a
solidariedade, as trocas, os compartilhamentos, assim como as
disputas e desavenças, vão indicando a produção de vida ( p.35).

No entanto, nossos entrevistados reconhecem a presença da produção de vida


ao longo dos processos de cuidado e conseguem trazer indicações importantes, tal
como a colocado por G anteriormente, quanto essa trazida por D. sobre um caso
compartilhado na entrevista:

É claro que a produção de vida é uma coisa muito subjetiva, você


pode continuar com a mesma vida, de uma outra forma,
posicionado de outro jeito. Mas esse exemplo é bem marcante, a
forma como ela tá hoje, me parece que ela tá escolhendo o que
ela quer, ela tá num papel mais protagonista da sua vida. Talvez
protagonismo e produção de vida tem uma dependência, se você
não tiver um protagonismo você não produz vida. Pelo menos
considerando desejo (Terapeuta Ocupacional D.).

Enquanto para K., o protagonismo das escolhas surge através da autonomia na


narrativa de um dos usuários:

E também já tivemos vários usuários que vem pra gente e falam


"Olha, tá muito o Caps pra mim. Vir todos os dias, eu não quero.
Quero vir duas vezes por semana." Então você vai reduzindo. E
por exemplo, teve um usuário que esses dias falou pra mim "K.,
eu to trabalhando. Eu venho ao Caps quando eu conseguir, mas
pode deixar que eu venho pra tomar minha injeção e eu venho
quando conseguir. Mas tô priorizando o trabalho." E eu respondi
"Ótimo, não tem que vir porque você participa de um grupo e tem
que largar o trabalho pra vir". E ele que foi dizendo isso, não fui
eu quem fui incentivando, veio de uma iniciativa dele de "eu sei
que o tratamento é importante, mas minha prioridade é essa, não
vou deixar de fazer o tratamento, de vir ao Caps, mas não
consigo dizer uma frequência" (A folga dele muda a cada
semana) (Terapeuta Ocupacional K.).

30
Já o entrevistado G. fala o quanto acompanhar o processo de cuidado e
produção de vida de um usuário compôs sua própria formação enquanto profissional:

Eu lembro que fui atender um paciente que pra mim era muito
difícil, e isso foi me dando uma insegurança também. E nesse
momento eu já tava contando mais com o suporte dele. E eu
lembro que um dos pacientes que tive que atender, foi um rapaz
de 19 anos na época, que era de uma região do nordeste e ele
sofreu um acidente de moto e ele ficou tetra. Ele ficou uns seis
meses sem cuidado nenhum e ele foi pra esse centro de
reabilitação e eu que ia atender. Ela (preceptora) falou "Você vai
avaliar e você vai aprender." Ele tava começando abrir uma
escara quando ele ficava sentado. E eu pensando como
estagiário que eu não tinha como fazer. Eu pensando muito no
fazer da Terapia Ocupacional. O que ele vai fazer? Ele não tinha
movimento nenhum, ele tinha um pouco de tenodese. Mas eu fui
questionar algumas coisas, aí eu montei um questionário,
pensando já que só ia fazer o questionário e não vou atender
esse cara. Eu fui fazer avaliação e eu lembro que pensei em
alguma coisinha de mão que ele podia mexer, e fiz uns
cartõezinhos que tinham a ver com a vida dele, pra ele poder
estender um pouquinho pra colocar no pregador. [...]

E eu pensei "eu preciso ir junto com esse menino, ir junto com ele
descobrir o que fazer". Eu lembro que eu sentava pra conversar
com ele, pensava algumas coisas. Aí eu lembro muito que na
minha cabeça muito fechadinha, se a gente fosse pensar na
avaliação motora eu não conseguiria escrever, mas pensando o
pouco de movimento que ele tinha tava com um pincel, os pincéis
mais grossos no bolso e aí eu falei "T. não fica frustrado, quero
ver se você consegue fazer a preensão." E ele foi e conseguiu
escrever, escreveu meu nome, fez um desenho e a partir disso
comecei a trabalhar com pincel com ele. E uma vez ele falou
assim "Nunca tinha pintado um quadro e agora to pintando um
quadro, não fazia isso". Isso começou a despertar bastante coisa
e eu comecei a pensar "O que eu posso fazer com o outro? Para
além do que eu já tenho pré estabelecido em mim" E eu lembro
muito assim, no meu TCC, eu usei isso assim. E os alunos da
graduação foram fazer entrevista com ele, e eles perguntaram
sobre a Terapia Ocupacional pra ele e foi a fala que eu usei no
meu TCC também e ele fala bem assim "Mais do que não me
mexer, não conseguir me expressar tava me matando. Com o G.
eu consegui escrever, pintar quadro"_ eu levava tablet e ele

31
conseguia tocar no teclado virtual _"Consigo me expressar e
agora eu me sinto vivo ". (Terapeuta Ocupacional G.).

O terapeuta ocupacional conta ao final dessa narrativa o quanto o encontro com


este sujeito o afetou “Eu trago muito dessa história, porque isso me diz muita coisa, até
hoje assim. Acho que mudou muita coisa em mim e vem mudando.” Tal ressonância
entre o usuário e o terapeuta ocupacional é destacado por Feuerwerker (2014), quando
o agente consumidor (paciente/sujeito/usuário) torna-se também um agente ativo deste
processo de cuidado:

Quando um trabalhador de saúde encontra-se com o usuário no


interior de um processo de trabalho dirigido à produção de atos de
cuidado, estabelece-se entre eles um espaço de interseção que
sempre existirá, em ato, em seus encontros. Portanto, no
processo de trabalho em saúde há um encontro do agente
produtor (com suas ferramentas conhecimentos, equipamentos -
e concepções) e do agente consumidor (com suas
intencionalidades, conhecimentos e concepções). Desse modo, o
agente consumidor é, em parte, objeto daquele ato produtivo, mas
também é um agente ativo, que interfere no processo
(FEUERWERKER, 2014, p.38).

Compreender que os sujeitos atendidos não encontram-se em uma posição de


passividade, ao contrário geram muitas intervenções em seus processos, é valorizar o
protagonismo. Tentando ao máximo alcançar o equilíbrio da balança hierárquica, que
por vezes, o conhecimento técnico nos coloca em evidência enquanto profissionais.
Desta forma, a rede só será viva se considerar os lugares que os próprios sujeitos
percorrem e seu protagonismo para tal.
Já a entrevistada K. apresenta a produção de vida a partir da perspectiva do
próprio serviço que atua:

Eu tenho uma perspectiva de trabalhar com o conceito do


Foucault de cuidado de si e acho que tem muito a ver com isso
assim, por que o cuidado de si tem tudo haver com produção de
vida. De como a pessoa se entende no mundo, de uma forma que
ela possa cuidar da sua vida, não nas normas que são
estabelecidas como regras de cuidado mas como cada um faz

32
uma avaliação da própria vida, o que acha que faz bem para
poder exercer esse cuidado. E acho que isso tem muito a ver com
a perspectiva do Caps de produção de vida (Terapeuta
Ocupacional K.).

Fazendo diálogo mais próximo com as referências deste estudo, nossa


entrevistada K. cita um conceito de Foucault que também é recuperado por
Feuerwerker no que tange o próprio cuidado de si dos profissionais de saúde:

Essa é uma condição indispensável para que os trabalhadores


produzam o cuidado de si mesmos, no cuidar dos outros e
coloquem em análise as suas implicações com a produção da
vida, nessa situação. E isso diz respeito a um “olhar para si”, mas
mais do que isso, significa montar e desmontar mundos,
conseguir operar movimentos de desterritorialização e
reterritorialização em relação à práxis de produção do cuidado. O
trabalhador da saúde que não faz esses movimentos, não
consegue “cuidar de si”, tende a permanecer aprisionado na
plataforma organizacional que conduz a produção do cuidado em
uma Unidade de Saúde pelas linhas do instituído, capturado
intensamente pelas lógicas hegemônicas capitaneadas pelos
modos de agir das profissões de saúde encasteladas cada uma
em si mesma (2014, p. 103-104).

A entrevistada K. também destaca que a produção de vida do Caps é anticapitalista:

Que é uma produção anticapitalista, a gente pode falar assim,


porque tem uma ideia de que a produção não é uma produção
monetária, mas é uma produção daquilo que importa pras
pessoas, de afetividade, de conexão. Então acho que essa é uma
das maiores metas da produção de cuidado do Caps, esse tipo de
ideia da vida da pessoa, quais são as importâncias, o que a
pessoa tem desejo de projetualidade. Acho que esse é um dos
objetivos (Terapeuta Ocupacional K.).

No que tange essa produção anticapitalista podemos pensar inicialmente


naquilo que Guattari define como “modos de produção capitalísticos” em “Micropolítica:
Cartografias do Desejo”:

O que caracteriza os modos de produção capitalísticos é que eles


não funcionam unicamente no registro de produção dos valores

33
de troca, valores que são da ordem do capital, das semióticas
monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam
também através de um modo de controle da subjetivação, que eu
chamaria de “cultura de equivalência” ou de “sistemas de
equivalência na esfera da cultura”. Desse ponto de vista o capital
funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de
equivalência: o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a
cultura, da sujeição subjetiva. E quando fala em sujeição subjetiva
não me refiro apenas à publicidade para a produção e consumo
de bens. É a própria essência do lucro capitalista que não se
reduz a mais valia económica: ela está também na tomada de
poder da subjetividade (GUATTARI, ano, p.15).

Desta forma, para além do registro monetário e da mais valia capitalista.


Podemos dizer que na visão de nossa entrevistada o serviço que ela atua cria formas
de valorização da subjetividade produzida que vão além das serializações impostas:

A essa máquina de produção de subjetividade eu oporia a ideia


de que é possível desenvolver modos de subjetivação singulares,
aquilo que poderíamos chamar de “processos de singularização”:
uma maneira de recusar todos esses modos de encodificação pré
estabelecidos, todos esses todos esses modos de manipulação e
telecomando, recusá-los para construir, de certa forma, modos de
sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de
produção, modos de criatividade que produzam uma subjetividade
singular. Uma singularização existencial que coincida com um
desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o
mundo no qual nos encontramos, com a instauração de
dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores
que não são nossos (GUATTARI, ano, p.16).

Assim, podemos dizer que são engendrados processos de singularização, onde


esses sujeitos passam a ter escolhas de seus desejos e modos de produção de si.
Deste modo, o protagonismo e a produção de vida são associados, como elaborou a
entrevistada D., através de movimentos em que os usuários encontram a
singularização existencial que coincide com seus desejos. E tais processos devem
ocorrer superando as instituições, considerando assim, a rede viva.

34
MULTIPLICIDADES: ATORES DE UM PLANO COMUM

A temática da multiplicidade vai ser abordada nesse estudo como um tópico em


relação à noção de redes, de modo a diferenciar-se de uma perspectiva de elementos
diversos. Assim, a multiplicidade não diz respeito a uma variação de marcos sociais
identitários, mas a uma proliferação de modos de incidência dos percursos, dos
encontros e das próprias composições das redes. “Trabalhar as multiplicidades é trazer
para o campo do cuidado as singularidades dos sujeitos (-1) e suas possibilidades (n)
existenciais, como redes vivas em produção” (MERHY, 2016, p.32).
O caráter autoanalítico proposto por Franco (2006 ) nas redes rizomáticas faz
com que estas possam também considerar-se como parte dos processos e inserções,
desta forma pela aproximação com as redes vivas podemos compreender que essas
consideram a multiplicidade de suas composições. Tal como Deleuze e Guattari (1995)
apontam sobre o uno fazer parte do múltiplo, não olhando dimensões acima, mas
considerando-se neste processo:

(...) é preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma


dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com
força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe,
sempre n-1. Somente assim que o uno faz parte do múltiplo,
estando sempre subtraído dele (DELEUZE; GUATTARI, 1995,
p.14).

Com isso, podemos compreender que as multiplicidades não são processos de


diferenciações identitárias, mas a partir daquilo que gera uma identificação poder se
considerar em um mesmo plano atores com singularidades próprias, gerando uma
heterogeneidade pela própria inclusão.
Recuperando a discussão abordada na apresentação dos entrevistados como
atores de um plano comum e o desafio de abordar as falas a partir da visão dos
profissionais de saúde, sem perder a valorização do protagonismos dos sujeitos em

35
seus processos de cuidado, a noção de multiplicidade sendo algo distinto a processos
identitários pode nos ajudar a passar por essa questão. Pois não partiremos das
nossas diferenças com os sujeitos atendidos, mas o que temos em semelhança e os
planos que compomos junto a eles.
Segundo Silva (2002), que postula afirmações pautadas na filosofia da diferença
de Gilles Deleuze:

A multiplicidade não tem nada a ver com a variedade ou a


diversidade. A multiplicidade é a capacidade que a diferença tem
de (se) multiplicar. Considerando que: A diferença não tem nada a
ver com o diferente. A redução da diferença ao diferente equivale
a uma redução da diferença à identidade. Onde a diferença não
define, aquilo que é idêntico, mas soma e multiplica aquilo que se
é semelhante, exatamente por se diferir (p.66).

A multiplicidade nesta pesquisa não trabalha com uma variação


quanti/qualitativa de vozes, mas sim a partir de uma mesma voz trazer múltiplos
aspectos a partir daquilo que lhe é semelhante, partindo assim, de um plano comum.
Considerar a subjetividade que um sujeito produz sobre processos como falar
sobre essas redes, independente de quem seja esse sujeito, profissional ou não, mas
que ele se inclua em conjunto a outros atores. Convocando para os profissionais o
caráter auto analítico das redes e o próprio cuidado de si, uma vez que ao se analisar e
se incluir em processos é possível considerar as multiplicidades.
Analisar e pensar redes assim, valorizando as multiplicidades, retira então o viés
de considerar apenas os aspectos formais e institucionais de redes, como por exemplo:
o profissional de saúde, o usuário do serviço, o equipamento de saúde. Considera-os
também, mas vai além, superando-os e entendendo que no profissional de saúde
também existe um sujeito que é afetado, que o usuário tem uma produção de vida
própria e sua rede de apoio por vezes é composta por espaços e conexões que a
formalidade não considera.
Desta forma, o mapeamento aqui gerado na experiência da entrevista destes
profissionais convoca diversos outros atores que fazem parte desse plano comum,

36
sejam eles sujeitos atendidos, seus familiares, amigos, instituições pelas quais
passaram, momentos outros deste profissional em sua formação. Ainda que os
terapeutas ocupacionais tenham sido aqui, de certa forma, os olhos do processo
vivenciado, muitos outros atores o compuseram.
Assim como esta pesquisa, que é escrita por uma terapeuta ocupacional em
formação, mas é composta por diversos atores que colaboraram com seu
mapeamento, alguns com consciência de sua participação e outros trazidos através de
um resgate subjetivo materializado através da experiência da fala. Ao me incluir e me
considerar como parte atuante desta pesquisa, assumindo minha implicação, e
considerando todos os aspectos que pude alcançar, valorizo as multiplicidades dos
processos, que são processos de cuidados que compõem as redes vivas.

37
REDES E TERAPIA OCUPACIONAL: CAMADAS, BARREIRAS E POROSIDADES

As Redes Vivas estão presentes neste estudo como tema central e assim geram
um movimento disparador de outros aspectos. No roteiro de entrevista foi reservado um
terceiro tópico com três questionamentos que auxiliaram na elaboração de um
mapeamento dos conceitos e percepções que os profissionais têm sobre redes, de
forma geral. Além disso, foram acrescentadas no momento de realização das
entrevistas algumas perguntas a partir de respostas dos entrevistados. Tais
questionamentos ajudaram a compor o mapeamento dessa cartografia.
São esboçados diálogos com as entrevistas, através de associações destas com
o referencial teórico. Ainda que para Deleuze e Guattari (1996) o conhecimento seja
tomado como algo rizomático, no que diz respeito ao acesso e estrutura, destaco que é
interessante acompanhar o quanto cada novo tópico acrescenta no mapeamento sobre
os diferentes olhares em relação às redes. E de forma geral, as perguntas colocam um
horizonte para a construção da resposta, mas não a delimitam. Entre uma questão e
outra são recuperados temas abordados anteriormente e são feitas conexões com
outras temáticas exploradas neste estudo, pois o rizoma se dá através dessa conexão
de todo o conteúdo.
No que tange os referenciais teóricos deste estudo, o texto disparador do
conceito de redes vivas foi “Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais
da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em
saúde” de Emerson Merhy (2016) que levou ao conhecimento de outra produção do
autor em colaboração com Túlio Franco (2012) “Cartografias do trabalho e cuidado em
saúde”, Franco possui também um artigo muito importante para este estudo “As redes
na micropolítica do processo de trabalho em saúde” . Tomamos aqui redes rizomáticas
e redes micropolíticas como conceitos aproximados de redes vivas, conforme as
discussões apresentadas na introdução. Além disso, é válido destacar que as redes
vivas foram abordadas através do olhar do trabalho em saúde, mais precisamente da
Terapia Ocupacional, tomando como aspecto central o cuidado.

38
A primeira questão deste tópico foi “O que são redes para você? É possível
relacioná-las com a atuação da Terapia Ocupacional?” Cada um dos entrevistados se
ateve ao questionamento de uma forma distinta, por tratar-se de uma questão
complexa. As respostas foram inicialmente construídas de acordo com aquilo que mais
se destacou da questão para cada um deles. A entrevistada K responde relacionando
diretamente a Terapia Ocupacional com as redes, sem apresentar uma definição
destas em um primeiro momento, retomando o conceito de autonomia de Tykanori,
trazido anteriormente:
Acho que sim. As redes... não é só possível relacionar com a
atuação da T.O, é um dos objetivos de uma perspectiva da T.O,
entendendo que a T.O tem a ver com autonomia. O trabalho da
T.O, em qualquer área que seja, tem a ver com a autonomia dos
sujeitos. Então para dar a autonomia para os sujeitos é preciso
fazer redes, voltando aquele conceito do Tykanori, quanto mais
dependente eu for de várias pessoas, várias instituições, quanto
mais espaços de circulação eu tenho para exercer essa
dependência, mais autônomo eu sou. Como o trabalho da T.O na
minha visão tem a ver com autonomia, acho que as redes são
fundamentais (Terapeuta Ocupacional K.).

Quando questionada sobre a identificação dessas redes no cotidiano


profissional, K. já nos apresenta algumas definições pessoais que tem sobre as redes:

Acho que tem as redes que são as oficiais, as tradicionais, dos


serviços, da escola, do trabalho. Essas redes que a gente como
Caps busca fazer como território, nos equipamentos de cultura. E
tem as redes que também são as pessoais, família, amigos,
colegas, trabalho... Acho que são essas as redes que a gente tem
identificado... igreja (Terapeuta Ocupacional K.).

Essa busca que K. nos diz que o Caps realiza responde ao convite feito por
Merhy (2016):

O convite que se faz é o de trabalhar com a diversidade de


ofertas para dentro do ‘muro do serviço’, ofertas essas
vivenciadas pelos usuários nas diferentes vivências de cidadania.
Nesse sentido, a proposta é que os trabalhadores da saúde
conheçam esse usuário cidadão nas inúmeras existências que ele

39
produz, cruza, dialoga, tenciona, olha, se afeta, cheira, brinca,
canta, dança, salta, equilibra, chora, ri, namora, reza, trabalha –
enfim, produz existências desconhecidas e/ou não incluídas nos
projetos terapêuticos institucionais (p.36).

Para Merhy (2016) o reconhecimento das redes que vão além de serviços
institucionais, que a entrevistada K coloca como ”pessoais, família, amigos, colegas,
trabalho [...] igreja” , é um reconhecimento dependente do trabalho vivo em ato:

Mapear a existência e a invenção de espaços para fora do muro,


nos quais os usuários/as também percorrem em suas trajetórias,
bem como reconhecer os ditos informais e os sentidos que são
produzidos neles, é uma boa forma de enxergar o quanto esse
mundo tem elementos em aberto, não capturados, trabalho vivo
em ato dependente e que se expressam como tensões e disputas
pelo seu sentido (MERHY, 2016, p.37).

A entrevistada D. responde ao mesmo questionamento formulando uma imagem


do que seriam as redes e como estas funcionam a partir de uma perspectiva de
cuidados de saúde mental no território. Novamente na lógica da resposta à crise e não
se atém, em um primeiro momento, a relacioná-las diretamente com a Terapia
Ocupacional:

Quando a gente pensa a ideia da rede, é pensar na rede mesmo


ou na rede de pescar, uma trama. Uma coisa que não tem uma
direção, não tem essa coisa verticalizada, tudo que tá ali tem
importância, é similar, é primeiro essa ideia. E depois de pensar
que essas conexões são variadas, não tem uma única direção,
uma trama mesmo que pode mudar a depender da necessidade
do sujeito. Pelo menos em saúde mental, quando a gente pensa
na produção de saúde, a gente pensa na possibilidade de fazer
laços sociais e você faz laços se você cria rede, tá em rede. Por
exemplo, se você tem um laço social com o seu bairro, com os
seus vizinhos, com a comunidade. Então é a rede com as
pessoas que estão ali e os equipamentos que existem naquele
território. Se a pessoa não se sente bem, um dos critérios que a
gente pensa quando a pessoa não tá bem é a precariedade dos
vínculos. Em geral, o sujeito que conhece poucas pessoas, que
pode contar com poucas pessoas. Às vezes ele mora no bairro e
não faz ideia do que acontece ali, tá numa situação mais

40
enclausurada, mesmo não estando dentro de um hospital
psiquiátrico. A gente vai avaliar a condição de vida e de saúde
pelo laço social e um outro jeito de falar sobre isso é falar em
rede. É assim, a estabilidade do sujeito, a estabilidade
psicossocial, tem a ver com a produção de laços. A gente vê isso
assim. E quando a pessoa tá mal ela começa a romper com as
pessoas, com as unidades que ela tem vínculo (Terapeuta
Ocupacional D.).

No entanto, quando questionada diretamente “E qual é a relação da Terapia


Ocupacional com as redes?” a entrevistada D. apresenta uma interessante construção,
destacando características da Terapia Ocupacional e traçando também paralelos com
outras profissões da saúde:

É parecido com os outros profissionais da saúde, talvez tenha um


acréscimo pelo fato de ser uma profissão pensada muito a partir
do cotidiano. O cotidiano é um elemento fundamental para a área
de atuação em Terapia Ocupacional, desde a formação. Quando
você vai falar em rede, em vínculo, no que o sujeito faz, como ele
faz, é falar sobre o cotidiano. E isso é um tema para T.O já visto
desde sempre, desde o primeiro ano da faculdade. Mas eu digo
que todos os profissionais que trabalham na saúde precisam ter
essa disposição para o trabalho em rede e ele não é específico da
Terapia Ocupacional. Ele também não é específico do psicólogo,
do assistente social. O trabalho em saúde mental, todo mundo vai
escutar, assim como a escuta não é só do psicólogo. E assim
como a escuta não é só do psicólogo, o cotidiano não é só da
T.O. Mas na T.O pelo fato do aluno de graduação ter isso desde o
início, quando vai entrar em um serviço como o Caps, que tem
muitas oficinas, que a ideia é pensar o cotidiano desse sujeito, o
PTS (Projeto Terapêutico Singular), isso pra T.O não é uma
novidade, pois já é visto com uma certa regularidade na
formação. Mas todo o profissional deve pensar em rede, se não,
não faz, se for de uma categoria só, não acontece. Até porque
tem serviços que nem tem T.O, tem UBS por exemplo que não
tem T.O. Como faz? Só se trabalha em rede se tem Terapia
Ocupacional? Todo mundo que tá em saúde pública, tem que
estar disponível em fazer o trabalho em redes.

O terapeuta ocupacional G. também salienta que essa não é uma especificidade


da nossa profissão e nem da saúde, mas que ainda assim, está relacionada
diretamente com a nossa atuação:

41
Acho que as redes estão totalmente relacionadas à atuação da
Terapia Ocupacional, quando eu penso em um sujeito de direitos,
um sujeito de vontades, um sujeito de interesse, um sujeito cheio
de necessidade. E isso não é só saúde que vai responder, não é
só a minha atuação que vai responder. Eu acho que a saúde, a
educação, as questões sociais. Eu acho que é isso. A gente
precisa estar integrado, se a gente quer trabalhar com um sujeito
que é integral, um sujeito inteiro, um sujeito que é múltiplo e que é
plural. Acho que não tem como dissociar, é muita relação com a
Terapia Ocupacional (Terapeuta Ocupacional G.).

G. inverte a lógica romantizada que por vezes é colocada sob a Terapia


Ocupacional, colocando que nossos caminhares ao longo da nossa formação e
atuação por vezes nos deixam com um olhar mais sensível para compreender onde há
a possibilidade de produção de vida nos processos de cuidado:

E também não é uma coisa inerente do Terapeuta Ocupacional


“Ahh o Terapeuta Ocupacional é tão bonitinho, olha o sujeito
como todo”. Eu acho que não é uma coisa inerente, acho que é
uma coisa que a gente precisa trabalhar mesmo, na formação e
na prática mesmo. Uma coisa que me ajudou muito no meu
percurso de formação é que eu consegui caminhar por vários
outros lugares: iniciação científica, grêmio estudantil... Você estar
nesses outros espaços você vai ampliando os olhares para
quando você está na sua prática mesmo. Sabendo que o sujeito
acessa outros lugares, esses lugares precisam conversar para
responder às necessidades plurais desse sujeito.

Talvez essa romantização exista pela atuação da Terapia Ocupacional


considerar elementos que vão além dos saberes profissionais, para nossa própria
atuação pautada em tecnologias relacionais são considerados os saberes de vida, as
ocupações que são significativas para os sujeitos e outros aspectos sensíveis que nem
sempre são acessados na Saúde. Estamos muito próximos do cotidiano de vida dos
sujeitos atendidos, como salientou a entrevistada D, pois o cotidiano e as ocupações
humanas são nossos objetos de estudo e atuação. E responder ao princípio de
integralidade proposto no SUS precisamos acessar essas camadas onde a vida

42
propriamente dita acontece, compreender a produção de subjetividade e singularidade
de cada sujeito.
Muitas vezes existe uma gangorra da hierarquia que tende sempre a colocar os
profissionais em evidência e ignorar os saberes de vida das pessoas que
acompanhamos. E assim, o trabalho vivo em ato se perde, pois dispensamos partes de
importância subjetiva nos processos de cuidado. E não que os terapeutas ocupacionais
sejam mais habilitados que outras categorias profissionais, mas por usarmos
elementos do cotidiano como parte da nossa própria atuação e isso ser algo presente
em nosso processo de formação acabamos desenvolvendo um olhar mais sensível a
conhecimentos vivos e assim tendemos a manter essa balança em maior equilíbrio.
Não que por vezes, esse processo se perca e muitos terapeutas ocupacionais atuem
de formas enrijecidas e serializadas.
Busca-se assim, através de redes vivas, trazer uma maior simetria ao encontro
dos profissionais com os sujeitos atendidos, como provoca Merhy (2009) sobre as
redes de cuidado pautadas em lógicas de saberes profissionais:

De forma muito frequente, o mundo da rede de cuidados é


pautado pela ideia de uma forte centralidade nas suas próprias
lógicas de saberes, tomando o outro que chega a este mundo – o
usuário – como seu objeto de ação, como alguém desprovido de
conhecimentos, experiências. Nesse encontro só há espaço para
reafirmar o já sabido, o saber que eu porto em relação ao outro, a
maneira que o profissional da saúde considera ser a ‘correta’,
discursando para aquele que nada sabe sobre qual é o modo
‘mais saudável, a melhor forma de viver’. Esse encontro,
assimétrico, e sua assimetria não provêm do fato de não incluir a
diferença, mas de transformar as diferenças em desigualdades de
saber e de formas de vidas, onde há uma propriedade exclusiva
de certo saber de alguns em relação aos outros (MERHY, 2009,
p.32).

E quanto a própria discussão de redes G. menciona a integralidade e como as


redes nos dão a base para respondê-la:

43
Eu acho que se a gente for pensar em redes na questão de
arranjos organizativos de serviços de saúde que tem uma questão
de apoio técnico, gestão, para que funcione de forma a responder
a integralidade do sujeito... [...] E por mais que eu faça qualquer
tipo de crítica, a rede eu acho que é o que a gente tem de melhor
na saúde, que a gente pode aperfeiçoar a partir delas. Mas
quando a gente pensa realmente em rede, a gente pensa na
integralidade. A gente pensa num sujeito que é plural, num sujeito
que não tem só demanda de saúde, hoje ele tem demanda de
saúde, amanhã ele tem demanda social. Acho que N demandas e
N momentos de vida. Se eu pensar em rede eu penso nisso, a
articulação entre esses dispositivos que podem ser acessados por
esse sujeito, mas que esses dispositivos também se conversem,
sejam realmente integrados (Terapeuta Ocupacional G.).

E G. conclui seu raciocínio assimilando a Terapia Ocupacional com a


integralidade:
Acho que a Terapia Ocupacional não tem como pensar no sujeito
sem pensar integralidade, equidade, nos desejos, nos itinerários,
nos percursos que ele faz. Eu acho que rede tem tudo a ver com
Terapia Ocupacional (Terapeuta Ocupacional G.).

A integralidade enquanto um princípio que responde ao conceito ampliado de


saúde remete também às redes que consideram operações micropolíticas que vão
além do institucional. Ainda que o próprio conceito do biopolítico social trazido pela
integralidade seja superado em alguns aspectos pelas discussões da biopolítica, no
que se remete a redes vivas podemos considerar que elas operam por formas de
saúde que pensam neste todo ou todo(s) possíveis dos sujeitos atendidos.
Agora, na segunda pergunta, há um convite aos entrevistados para nos
contarem um pouco sobre a atuação nas redes a partir do lugar de profissionais da
saúde: “Como você acessa essas redes no seu trabalho? Qual sua contribuição no
delineamento delas?”.
A entrevistada D. fala da sua relação com as redes em dois momentos de sua
trajetória profissional: quando esteve mais próxima do SUS e hoje, que atua na clínica
privada:

44
Hoje eu tô mais distante, assim, da rede. Quer dizer, no
consultório, em qualquer trabalho que você faz na clínica você
pensa na perspectiva da rede. Mas assim, quando eu tava
trabalhando no Caps, ou supervisionando os serviços como o
Caps, esse pensamento de discutir a rede era o tempo todo.
Por exemplo, você está lidando com um caso que vem
encaminhado de um serviço tal e às vezes é um caso que não
consegue chegar e você precisa fazer um atendimento
compartilhado. Até esse usuário aceitar vir pro Caps você faz um
atendimento lá. Então o trabalho em rede é uma necessidade
mais frequente (Terapeuta Ocupacional D.).

K. sintetiza a ideia de rede para pensar em como os profissionais contribuem


neste delineamento, a partir da influência que exercem pelo seu vínculo terapêutico:

Acho que a ideia da rede é aquela que apoia o usuário. E sim,


tem momentos que a gente influencia para que o usuário não se
relacione mais com uma rede, e isso no sentido por exemplo de
uma redução de danos, de usuários que estão numa dependência
de substância. Temos isso também das redes nocivas, redes
nocivas para o usuário numa ideia de ampliação da perspectiva.
Ou relacionamentos abusivos, acho que tem também uma ideia
desse tipo de conscientização no envolvimento com algumas
redes. Acho que a ideia da rede, a contribuição do Caps ou do
profissional que trabalha no Caps nas redes seria essa da
autonomia, na minha perspectiva (Terapeuta Ocupacional K.).

A entrevistada continua a elaboração da resposta com um reconhecimento das


cristalizações das atuações dos profissionais de saúde, levando o trabalho muito mais
para dentro dos muros institucionais. Recuperando a referência de K. do cuidado de si,
podemos reconhecer que este momento de uma auto análise é uma forma de
exercê-lo:
Mas em alguns momentos eu acho que sim, a gente acaba se
cristalizando de uma forma que o trabalho fica muito mais dentro
da instituição. Então isso diminui as possibilidades de saída das
pessoas ou o próprio engessamento dos trabalhadores, são
impedidos de fazer mais visitas por exemplo por causa de algum
engessamento da instituição, isso também impede um pouco da
circulação. Acho que nesse sentido, assim, também tem muito de
fazer as coisas dentro do Caps e fica difícil de propiciar esse tipo

45
de contratualidade dos usuários assim (Terapeuta Ocupacional
K.).

Já o entrevistado G. inicia a resposta dessa pergunta trazendo o próprio


conceito central deste estudo, o qual ele possui já um conhecimento pŕevio, ainda que
não pretendia se aprofundar naquele momento:

Como eu te falei, eu acho que é isso. Eu não vou entrar nas redes
vivas não, mas eu acho que as redes vivas tem uma questão de
ser fragmentadas, elas não são perfeitas, elas também quebram.
Mas elas tem um movimento maior para se refazer [...] (Terapeuta
Ocupacional G.)

Tal afirmação de G, está de acordo com o que é trazido por Merhy (2013a)
quando refere uma das características das redes vivas:

Entretanto, as redes vivas são fragmentárias e em acontecimento,


hipertextuais, ou seja, às vezes são circunstanciais, montam e
desmontam, e às vezes elas se tornam mais estáveis, mas
comportam-se mais como lógicas de redes digitais, que podem
emergir em qualquer ponto sem ter que obedecer um
ordenamento lógico das redes analógicas, como um hipertexto.
Assim, uma rede institucionalizada como analógica – como a
noção de rede primária e secundária de cuidado –, pode ser
disparadora, mas ela vai se encontrar e ser atravessada por
inúmeras outras redes, de outros tipos não analógicos (MERHY,
2013a apud MERHY, 2016, p.35).

O entrevistado G. aproxima-se mais da discussão colocando em pauta sua


experiência enquanto um profissional da atenção secundária em saúde:

Na minha prática profissional, se for pensar no CER, eu não vejo


outra forma de trabalhar se não for em redes, a gente precisa
muito trabalhar em redes. Ainda mais se for na Zona Leste de
São Paulo, que é um lugar mais de periferia e tem a questão das
vulnerabilidades. Então não tem outra forma de se trabalhar se
não for em redes, mas nem sempre a gente consegue isso. A
gente tenta mesmo entre os dispositivos da saúde, só da saúde, e
às vezes a gente não consegue se conversar e é uma busca

46
cotidiana. A gente tem uma reunião que chamamos de reunião de
rede. A gente tem fóruns intersetoriais onde junta todo mundo da
reabilitação para tentar conversar, tentar entender o que o serviço
oferece pro sujeito. A gente tem às vezes o matriciamento,
discussão de caso, a gente coloca. Tenta chamar a UBS, atenção
básica e especializada, a escola, a família. Tenta se envolver, só
que não é algo fácil, não é algo que está posto, ainda é frágil. Às
vezes ainda tem "aquele pessoal do CAPS" e "aquele pessoal do
CER" não é uma coisa que tem um movimento de se juntar, mas
a gente precisa fazer esse movimento, por que não há outra
forma de se responder às necessidades do sujeito para se
trabalhar em rede. A gente recebe muitos usuários que tão no
CER mas que também tão no CAPS. Usuários que tão no CER,
estiveram na UBS e precisam voltar para a UBS, mas quando
eles tão no CER as vezes eles elegem como local principal de
cuidado. E quando tiver alta do CER, sabe? "Ahh não tenho mais
nada a ver com isso porque ele vai ter alta" Então a gente precisa
estar conversando o tempo todo, articulando e pensando em
ações mesmo, que vão responder às necessidades múltiplas
desses sujeitos. Então não existe outra forma de se trabalhar. É
difícil, tem que melhorar ainda, mas a gente tá no cotidiano e é o
que se tem para se trabalhar ainda (Terapeuta Ocupacional G.).

Franco (2006) considera que há uma radicalização quando se está dentro de uma
organização trabalhando com redes micropolíticas nos processos de trabalho em saúde. Usa
da mesma figura que Deleuze e Guattari apropriaram da botânica na obra Mil Platôs Vol.1, o
rizoma, para descrever as conexões rizomáticas das redes no que tange a produção de vida:

Os autores se utilizam dessa figura da botânica para se referir a


sistemas abertos de conexão que transitam no meio social
através de agenciamentos diversos, isto é, produzindo novas
formações relacionais sobre as quais vai-se construindo o socius,
o meio social onde cada um está inserido. Nessa perspectiva, a
produção da vida se dá sem que haja um eixo estruturado sobre o
qual se organiza. Ela se produz a partir de múltiplas conexões e
fluxos construídos em processos, que criam linhas de contato
entre agentes sociais que são a fonte de produção da realidade
(FRANCO, 2006, p.1).

O terceiro questionamento: “Como são vistas as redes dos sujeitos atendidos


por você? De que modo elas são mapeadas?” foi colocado no roteiro de entrevistas na

47
intenção de motivar estes terapeutas ocupacionais a exporem uma visão mais
panorâmica dessas redes.
A entrevistada D. pensa em um aspecto mais territorial das redes, o que em sua
experiência com gestão e assessoria de serviços de saúde mental em toda a região
metropolitana da cidade de São Paulo ganha bastante importância para ela, no que
trata da composição das redes:

A depender do território, você vai numa região muito periférica,


por exemplo a região do extremo sul, diferente da zona leste. Ali
por exemplo: Bairro P, Bairro S e Bairro G. E Bairro P.
corresponde a um quarto do território de São Paulo e às vezes
pra ela chegar ao serviço são 15 km e são 15 km sem transporte.
Entende? E isso inviabiliza. É diferente de você estar num
território que você tem um serviço a dois quarteirões da sua casa,
você tem um centro da juventude, você tem os movimentos
sociais, centro cultural. A gente vê por exemplo, no bairro T
(bairro da Zona Leste), eles não tem tantos equipamentos de
Saúde, na verdade eles não tem quase nada, mas eles tem uma
rede de movimentos sociais e serviços culturais tão forte que isso
de algum modo supre a Saúde. E eles não se sentem tão
desamparados e tem muita coisa ali criada pela própria
população, a região ali da Leste é uma região bem politizada que
participa de muitos movimentos sociais, têm essas
características. Mais juntas, e quando elas tem transporte que
viabiliza o deslocamento. A gente vai num território que o
transporte é mais precário, mais difícil, as pessoas ficam isoladas.
Até a forma que o transporte tá organizado vai viabilizar ou não o
laço social delas, o acesso ao serviço (Terapeuta Ocupacional
D.).

Considerar aspectos territoriais, sejam eles físicos, geográficos de acessos


sociais é compreender também o quanto as redes são processuais e não temos um
controle e acesso no delineamento delas:

Neste sentido, é um processo vivo, inclusive porque a própria


conexão entre as redes hipertextuais (digitais), existenciais e
institucionais, que ocorrem sem que tenhamos controle absoluto
sobre elas – não deixa de ser uma questão para as apostas em
um território de cuidado específico. Esse é um ponto que precisa
ser levado em consideração. (MERHY, 2016, p.35).

48
Feurwerker (2014) pontua que um importante exercício de autoanálise para o
setor da Saúde é problematizar o pŕoprio posicionamento dos trabalhadores de saúde
em relação aos usuários. Para Franco (2006) as redes possuem um caráter
autoanalítico, tanto para o micro quanto o macro. E a discussão sobre a relação entre
os sujeitos e territórios, trazida pela terapeuta ocupacional D., contempla o que Merhy
(2004) coloca como um mapeamento:

Mapear territórios e desterritorializações, que se interrogam,


interrogando os sujeitos em suas várias formas de existência é a
sua intenção, permitindo-nos analisar estas relações de muitas
maneiras. Por exemplo, sob a ótica das situações de potências
que identificamos em cada recorte, o jogo de governabilidade em
que estamos. A identificação de situações problemas ou positivas
que mapeamos em cada situação. As disputas e tensões que as
operam. Os modos como os sujeitos se encontram e se validam.
As suas implicações em ato, consigo e com os outros (p.35).

Já G. considera os equipamentos de saúde como integrantes de uma rede


formal, mas também fala sobre aspectos informais da rede que possuem importância
para os sujeitos atendidos:

Eu tento ouvir e acessar o sujeito para saber o que ele elege


como seus locais de cuidado assim, locais de cuidado e locais de
interesse. Porque às vezes eu penso muito na rede formal, e às
vezes tem a questão da rede informal, aquilo que é importante pra
ele. Tanto que eu penso, vamos chamar a família para esse
espaço, vamos chamar o fulano da igreja que dá suporte pra esse
espaço. A gente pode contar com o vizinho, será? A gente deve
acessar o sujeito, pra entender assim. Mas é como eu falei, às
vezes a UBS a gente tenta acessar, a UBS tem as reuniões de
rede, reunião intersetorial onde vai os serviços de reabilitação.
Minimamente a gente num primeiro momento através de
entrevista saber por onde aquele sujeito já passou, por onde ele
está passando no momento. O que ele acessa, o que é de
interesse dele, o que ele pensa em acessar depois pra tentar ter
esse contato com os dispositivos da rede, tanto formais quanto os
informais. Eu acho que é isso, acessar a rede nesse sentido. E
quando é família, e está próximo da família, a gente chama a
família pra conversar (Terapeuta Ocupacional G.).

49
Aproximando-se mais da camada de relações interpessoais das redes, K. fala
sobre redes nocivas e como usuários que ela acompanha tecem relações que podem
ser benéficas ou não para seus processos e como ela procurar intervir nestes casos:

Nossa! Essa pergunta é difícil, porque depende. Eu tive usuário


que tava num relacionamento abusivo com uma mulher, abusivo
num sentido que ela se utilizava muito dos recursos dele e
acabava sendo opressora com um alguém que tava mais frágil.
Então neste momento a rede dele vista por mim, era de que essa
pessoa não tava contribuindo muito para o processo terapêutico
dele. Mas depende… mas tem outras redes que são super
importantes para as pessoas. Por exemplo a igreja [...] vamos
conversar com o pastor porque fulano não quer tomar medicação
e o pastor foi super parceiro, ajudou nessa conscientização sobre
a medicação. Eu to falando da individualidade de cada pessoa,
então, se fala um pouco disso do distanciamento das redes. Aí
que eu penso um tanto nessa questão das redes nocivas também
(Terapeuta Ocupacional K.).

Ainda que os profissionais reconheçam deterem conhecimento para


compreender aspectos dos acessos às redes, seja nas relações pessoais ou
equipamentos de saúde, buscam compreender o ponto de vista dos sujeitos sobre
essas relações. Desta forma as intervenções nos processos terapêuticos são feitas
através de ações emancipatórias e não imposições.
Como coloca Foucault (1977) em seu famoso prefácio “Introdução à uma vida
não fascista” para o livro de Deleuze e Guattari “O Anti-Édipo: Capitalismo e
Esquizofrenia”, que podemos transpor para as práticas em Saúde “Faça crescer a
ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do
que por subdivisão e hierarquização piramidal” (p.3) Rompendo assim, com as próprias
barreiras da hierarquia técnica que se transpõe entre os profissionais e sujeitos
atendidos.

50
PISTAS CARTOGRAFADAS

Retomando os pontos acessados pela nossa cartografia, através da experiência


construída com as enunciações dos terapeutas ocupacionais entrevistados e os
diálogos com os referenciais biopolíticos, pudemos destacar três tópicos principais: o
cuidado como eixo central do trabalho em saúde, a multiplicidade presente nas redes e
as características das redes vivas propriamente ditas.
Pelo próprio princípio cartográfico desta pesquisa é importante reafirmar que não
existe aqui um objeto ou produto final do estudo, buscamos acompanhar processos e
com isso mapear possíveis pistas de acessos para as redes vivas encontradas nos
processos de cuidado. Assim como não há também um modelo pronto que responda a
maneira correta de se realizar este acesso, o que temos aqui são formulações que
instigam a própria potência criativa do profissional no encontro com o sujeito atendido.
Assim como o conhecimento é rizomático e pode ser acessado em qualquer
parte deste estudo, este, enquanto uma cartografia, deve ser lido como um mapa, de
maneira dinâmica e não estática. Desta forma, este tópico não “conclui” os processos,
mas os elucida de modo de aumentar a escala deste mapa e evidenciar os principais
pontos que passamos ao longo deste trajeto. Pois esse foi um exercício de
experimentar a ciência de um lugar que o interesse principal não foi produzir respostas,
mas passar pelo problema, considerando aquilo que emergiu deste movimento.
De início, o estudo se propôs a investigar um tema com interface em Saúde -
redes vivas - relacionando-o com uma categoria profissional específica - terapia
ocupacional - e deste encontro começaram a surgir diversas outras ramificações, que
foram convocando cada vez mais os sujeitos atendidos por esses profissionais para
este plano comum a que nos referimos.
Em parte, tornou-se inicialmente desafiador falar sobre o protagonismo dos
sujeitos enquanto essa experiência era contada do ponto de vista dos profissionais. No

51
entanto, quando compreendemos que este exercício foi realizado utilizando-se da
multiplicidade e auto análise, compreendemos que os profissionais incluiram-se nesses
processos e validaram esse protagonismo das populações por eles atendidas. A partir
disto, surgiu uma primeira pista, que a rede torna-se viva quando nos incluímos nela,
não pelas diferenciações, mas pelas similaridades e com isso buscamos diminuir a
hierarquia dos saberes profissionais e valorizar tudo aquilo que é significativo e
produtor de vida para os sujeitos atendidos.
Todos os profissionais de Saúde são aptos a fazerem esse acesso, no entanto,
ao que parece, para Terapia Ocupacional essa prática se faz mais presente. Já na
introdução deste estudo tínhamos indicado: “E tal interface entre a saúde e assistência,
prevista na profissão, favorece a presença do terapeuta ocupacional em processos do
cuidado através do trabalho vivo, operando a partir das multiplicidades em que se
inscrevem as populações atendidas.” Com o relato dos entrevistados, vamos
elaborando uma segunda pista, que é através da proximidade que a Terapia
Ocupacional tem com as ocupações e cotidiano das pessoas que conseguimos
acessar com maior facilidade espaços subjetivos significativos na vida dos sujeitos, que
por vezes não são acessados pelos equipamentos formais.
Com isso, reitera-se aqui a importância da contribuição profissional em serviços
que busquem realizar processos de cuidado em saúde integrais, pois temos muito a
colaborar com as equipes multiprofissionais e com o próprio exercício de estabelecer
redes para além das instituídas formalmente. O cotidiano não é algo exclusivo da
Terapia Ocupacional, porém essa categoria tem recursos e habilidades explorados
durante toda a formação para acessá-los e incluí-los nos processos de cuidado das
populações atendidas.
Ainda assim, são necessários altos graus de liberdade para a atuação
profissional dentro dos equipamentos de saúde, para que possa ser realizado o
trabalho vivo em ato. Redes vivas só acontecem com trabalho vivo, que é um
potencializador dos processos de cuidado em suas multiplicidades, uma vez que não
há uma única ideia de cuidado.

52
Quando abordamos a ideia de itinerários de cuidado em um primeiro momento
fomos remetidos às redes formais de saúde, no entanto também foram convocados e
acessados espaços subjetivos informais como parte desse mapeamento. E a ideia é
exatamente essa, de inverter as lógicas que estão impostas e compreender esses
processos em suas multiplicidades.
Foram trazidas também, de forma rica, pelos relatos dos entrevistados,
associações com os territórios em que se circunscrevem as redes, sejam as
articulações político-sociais ou as próprias dimensões geográfico-físicas. Assim como,
abordamos também a interface da Saúde com outras áreas e a importância na
composição dessas redes. As redes vivas ultrapassam os contornos da área da Saúde,
e reconhecem que o cuidado e a vida acontecem em vários âmbitos.
O conceito de autonomia não está dado de início, porém compreendemos que
surge em uma tentativa de explorar aspectos da emancipação dos sujeitos em seus
processos de cuidado, romper com as tutelas. Desta forma, encontra-se
intrinsecamente ligado ao protagonismo dos sujeitos que acessam redes de cuidado
com nomadismo. Sendo assim, apontaram para a noção de autonomia do ‘andar a
vida’, e não como dependência de um sistema relacional neoliberal.
Temos então a pista de que tanto os sujeitos atendidos quanto os trabalhadores
da saúde precisam de graus de liberdade para de fato poderem acessar as redes vivas.
O protagonismo e a produção de vida estão associados, uma vez que só se produz
vida quando há um desejo, com processos de individuação que buscam romper com as
armadilhas capitalísticas da produção de desejo.
Há um reconhecimento de que o profissional não é um agente gerador de
autonomia, produtor de vida ou de saúde, mas que através de um vínculo terapêutico
ele auxilia o sujeito a construir seu processo de cuidado. E nessa relação, ele também
afeta-se com ações dos sujeitos atendidos, fazendo assim, parte desse mesmo plano.
Uma vez que é no campo relacional e micropolítico que a vida ocorre e assim, as redes
vivas se circunscrevem.

53
A própria característica auto analítica das redes faz com que as multiplicidades
estejam inscritas nelas, os profissionais de saúde que desejam acessar as redes vivas
como cenários para as suas práticas em Saúde, devem considerar-se no mesmo plano
comum destas redes. Não pela diferenciação, mas por incluir-se neste multiplo. E para
tal a produção de subjetividade dos sujeitos atendidos deve ser validada nesses
processos, assim como seu protagonismo nas escolhas.
Como salientado anteriormente as redes vivas existem, fora do campo da
Saúde, porém cabe a nós, enquanto profissionais destes equipamentos, por vezes
acessá-las e validá-las nos processos de cuidado formais, para que possamos
construir novas lógicas de cuidado dentro das próprias instituições.
E para além das pistas, as características propriamente ditas das redes vivas
(além daquelas já dadas na bibliografia deste estudo, por Franco e Merhy), as trago
como as barreiras e porosidades no acesso das redes por terapeutas ocupacionais e
profissionais de Saúde, de forma geral.
No que tange às barreiras podemos compreender que todos os processos de
serialização, burocratização e outros, que nos tiram o espaço para graus de liberdade e
inventividade de nossas práticas, agem como obstáculos no acesso das mesmas e na
própria realização do trabalho vivo. E atrapalham também a própria articulação entre
serviços formais de Saúde, que encontram poucos espaços para se colocarem em
redes e realizar encaminhamentos efetivos.
Assim como é marcante em nosso país que as próprias características
sócio-demográficas dos territórios atendidos em muito afetam nossa acessibilidade às
redes vivas, tanto quanto a própŕia acessibilidade dos sujeitos aos equipamentos de
saúde. E isso encontra-se cada vez mais marcado nos processos de perda de direitos
das populações atendidas e no próprio sucateamento do Sistema Único de Saúde.
Ainda assim, o obstáculo de acesso, pode se encontrar em nós mesmos,
quando não refletimos sobre nossas práticas em Saúde e agimos pautados nas
hierarquias dos saberemos profissionais e tendemos a reproduzir aspectos da lógica

54
biomédica, tomando o todo como se já estivesse dado dentro do nosso campo de
saber.
Ainda assim, convocamos também neste estudo nossa potência inventiva para
refletir sobre caminhos e fluxos que facilitem os acessos às redes vivas, que aqui
chamamos de porosidades. Muitas vezes, para que as porosidades possam ser
percorridas precisamos superar barreiras ou encontrar formas de desviar das mesmas.
A afetividade convocada pelo sujeito neste processo, na relação de um
terapeuta que também inclui-se neste plano relacional, é um potente poro a ser
explorado. E nela encontramos a Terapia Ocupacional em sua proximidade com o
cotidiano, fazeres e territórios das populações atendidas dentro da própria prática
profissional, como um facilitador potencial desses acessos.
No entanto, para que isso seja explorado, precisamos validar esses saberes e
essa produção de subjetividade, através do reconhecimento do protagonismo dos
sujeitos. Assim como, compreender a importância de fazer parcerias com
equipamentos e outros pontos da rede que estão fora do circuito formal da Saúde,
incluindo outros âmbitos em que a vida acontece, como na Educação, Cultura,
Religiosidade, etc. E somente assim, é possível, como maior poro deste caminho
buscar sempre uma prática que almeja responder ao princípio da integralidade.
Estes conceitos de barreiras e porosidades não tem a intenção de gerar uma
ideia dicotômica, mas sim considerar a dinâmica entre pontos de acesso às redes. Uma
vez que ao derrubar barreiras construímos novas porosidades, mas circular por
porosidades pode vir a espremer outros pontos e gerar novas barreiras. Fazendo-nos
compreender mais uma pista, de que as redes vivas além de fragmentárias são
dinâmicas e elas se criam e recriam a todo o tempo.
Redes vivas, para além da saúde, são aquelas onde a vida acontece, em
encontros, conflitos, caos e alegria. Não cabe a nós como profissionais criá-las, mas
sim estarmos aptos a produzir práticas de saúde onde seja possível acessá-las e
compreendê-las como espaços por onde o cuidado também circula, para além da
nossa atuação. Ao fim deste estudo, reconhecemos linhas que fortalecem a

55
compreensão e explicitação de práticas em saúde não fascistas, que respeitem o
protagonismo dos sujeitos e a multiplicidades de formas de habitar as redes e os
processos de cuidado.

56
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando esse estudo foi iniciado, escolhi uma temática que esbarrava em uma
série de questões que eram do meu interesse. Foi escolhido um contexto para
realizá-lo, porém foi ficando evidente o quanto a utilização do método cartográfico era
imprescindível para tal. Assim como a escolha de referenciais biopolíticos foi se
colocando como um enorme desafio, visto que produções de autores como Deleuze,
Guattari, Foucault, Espinosa e tantos outros levam a um processo de compreensão e
apreciação que abrem portas, escancaram janelas e pesquisadoras inexperientes
como eu enfrentam dificuldades em encontrar contornos para a pesquisa.
A realização desta pesquisa só foi possível graças àqueles que realizaram esse
exercício do diálogo com a biopolítica antes de mim, incluindo os autores que eu utilizei
neste estudo como Laura Feuerwerker, Túlio Franco, Roberta Romagnoli e tantos
outros. O encontro presencial com Emerson Merhy na roda de conversa “Trabalho vivo,
micropolíticas e novas afetabilidades na Universidade” no Seminário de 20 anos do
PACTO, em setembro de 2018, me instigou a me aproximar desta temática. Assim
como toda essa base teórica, só pode ser trazida para a experiência da escrita e real
compreensão pela orientação da minha docente Erika Inforsato, a qual eu tive
importantes discussões e colaborações ao longo desses três longos anos.
Tive a sorte de ótimos encontros no que se refere experiência realizada a partir
das entrevistas. Onde três terapeutas ocupacionais de diferentes áreas trouxeram
importantes contribuições para esse estudo, falando de um lugar muito mais horizontal
na hierarquia profissional. Ainda que não houvesse esse filtro inicial na seleção da
pesquisa, estes terapeutas são profissionais que buscam sempre considerar os sujeitos
atendidos em sua complexidade e singularidade, e isso reverberou muitos movimentos
dentro deste mapeamento.

57
De um interesse até um tanto quanto passional pela biopolítica e redes vivas,
esse estudo me trouxe com sua finalização importantes reflexões sobre a atuação
enquanto terapeuta ocupacional, a construção de redes e a participação em equipes
multidisciplinares. Acredito que dentro de alguns anos, talvez, eu o ache pouco
estruturado no que diz respeito à técnica da escrita e pesquisa, porém, desejo que ele
sempre sopre para mim a minha atual inocência das possibilidades que temos de
enfrentar serializações nos processos de trabalho em Saúde e buscar sempre espaços
onde a existência dos diferentes modos de ser e estar no mundo sejam possíveis.

58
Bibliografia

1. BALLARIN, M.L.G.S.; FERIGATO, S.H.; CARVALHO, F. Os diferentes sentidos


do cuidado: considerações sobre a atenção em saúde mental. O Mundo da
Saúde, v.34, n.4, p.444-50, 2010.
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qualitativa, cartografia e saúde: conexões. Interface (Botucatu), Botucatu , v.
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10. FRANCO, T.B.; MERHY, E.E. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde.
Revista Tempus - Actas de Saúde Coletiva, v.6, n. 12, p. 151-63, 2012.
11. GIL, C. A. (1989). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo, Atlas.

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12. GALHEIGO, S. M. O social: idas e vindas de um campo de ação em terapia
ocupacional. In: PÁDUA, E. M. M.; MAGALHÃES, L. V. Terapia Ocupacional:
teoria e prática. São Paulo: Papirus, 2003. p. 29-48
13. 9 GUATTARI, F. e ROLNIK, S., Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis,
Vozes, 4a ed. 1996 [1986]; p.68
14. LANCETTI, A. Clínica Peripatética. São Paulo: Hucitec, 2006.
15. KASTRUP, B. & BARROS, L.P. Cartografar é acompanhar processos, in Pistas
do Método da Cartografia. Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade.
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16. KASTRUP, Virgínia e PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum.
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18. MERHY, EE. Saúde: Cartografias do Trabalho Vivo. São Paulo: Hucitec; 2002.
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processo de trabalho. São Paulo: Editora Hucitec, 2004, v. 1, p. 21-45.
20. MERHY, E. E. Conferência sobre Redes: Uma conversa sobre a produção das
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<http://saudemicropolítica.blogspot.com.br/2013/11/emerson-elias-merhy-encontr
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21. MERHY, E. E. et al. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais
da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento
em saúde. In: MERHY, E. E. et al. Avaliação compartilhada do cuidado em
saúde: surpreendendo o instituído nas redes, Livro 1, 1. ed. - Rio de Janeiro :
Hexis, 2016. p. 31-42

60
22. PIRES R.G.M. Politicidade do cuidado e avaliação em saúde: instrumentalizando
o resgate da autonomia de sujeitos no âmbito de programas e políticas de
saúde. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2005(Supl 1):571-81.
23. PONTE O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil,
25/09/2019. Disponível em:
<https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-n
o-brasil/> Acessado em 10 de dezembro de 2021
24. ROMAGNOLI, Roberta Carvalho. A cartografia e a relação pesquisa e vida.
Psicol. Soc. [online]. 2009, vol.21, n.2, pp.166-173.
25. TEDESCO, Silvia Helena; SADE, Christian; CALIMAN, Luciana Vieira. A
entrevista na pesquisa cartográfica: a experiência do dizer. Fractal, Rev. Psicol.,
Rio de Janeiro , v. 25, n. 2, p. 299-322, Aug. 2013 .
26. VEIGA-NETO, A. O currículo e seus três adversários: os funcionários da
verdade, os técnicos do desejo, o fascismo. Texto apresentado no V Colóquio
Michel Foucault, na Unicamp, nov. 2008.
27. ZOBOLI ELCP. A redescoberta da ética do cuidado: o foco e a ênfase nas
relações. Rev Esc Enferm USP. 2004;38(1):21-7.

61
ANEXO I

Roteiro para a realização da entrevista

1. Apresentação
● Breve história da formação do entrevistado
● Trajetória de atuação, incluindo o serviço que está atualmente inserido
2. Processos de cuidado e produção de vida

● A partir de sua experiência em processos de cuidado: como você


descreveria os itinerários desses processos? Que pontos você considera
mais importantes?
● Pensando o encontro entre o terapeuta e o sujeito/população atendida
como surge a autonomia no processo de cuidado?
● Considerando a noção de produção de vida associada ao cuidado como
isso aparece na sua experiência?
3. Redes

● O que são redes para você? É possível relacioná-las com a atuação da


Terapia Ocupacional? Como você as identifica em seu cotidiano
profissional?
● Como você acessa essas redes no seu trabalho? Qual sua contribuição
no delineamento delas?
● Como são vistas as redes dos sujeitos atendidos por você? De que modo
elas são mapeadas?
4. Comentários finais
● Você teria outras considerações a fazer em relação ao tema “Redes
Vivas e Terapia Ocupacional: Cartografando as multiplicidades do
cuidado”?

62
ANEXO II

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

Você está convidado (a) a participar da pesquisa intitulada “Redes Vivas e


Terapia Ocupacional: Cartografando as multiplicidades do cuidado”, desenvolvida por
Ana Luiza Aguiar Bean Augusto graduanda em Terapia Ocupacional pelo
Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo. O estudo é orientado pela Profa. Dra. Erika
Alvarez Inforsato.

O projeto dessa pesquisa, aponta para pensar que diante dos desafios
enfrentados pelos profissionais da saúde na relação com o Sistema Único de Saúde,
acentuados atualmente pelo seu sucateamento e desmonte, bem como pela constante
perda de direitos das populações atendidas pelos serviços de saúde, emerge um
pedido de reinvenção das formas de cuidado. Alguns agentes (trabalhadores e/ou
pesquisadores) vem buscando saídas através do agir profissional em operações
biopolíticas, com o trabalho vivo em ato. Nesse âmbito, o conceito das Redes Vivas
tem sido engendrado, redes que vão além das articulações entre as instituições, que
consideram o protagonismo dos indivíduos nos processos de cuidado e a criação de
um plano comum entre os diversos atores que as compõem.
Assim, a atuação do terapeuta ocupacional é convocada a fazer-se através
dessas redes, uma vez que o cuidado é imanente a elas. Através de narrativas de
terapeutas ocupacionais busca-se cartografar com esse projeto de pesquisa as
barreiras e porosidades dos itinerários de cuidado das populações atendidas, sob a
perspectiva destes profissionais.
Alguns apontamentos serão expostos, entorno à presença da noção de redes
vivas no agir profissional da Terapia Ocupacional, contribuindo para uma maior
exploração desta temática, incentivando a potência criadora do trabalho vivo e
incrementando a composição das redes de apoio e cuidado, para além das estruturas
institucionais já conhecidas.
Serão adotadas as referências do método da cartografia, de modo a configurar a
pesquisa como exploratória. E o exercício cartográfico deve se dar, no sentido de
corroborar com o reconhecimento da importância da noção de redes no trabalho da
Terapia Ocupacional no campo da saúde. Para tanto, será adotado como procedimento
principal a realização de entrevistas individuais, com três terapeutas ocupacionais. O
convite a esses profissionais será composto através de uma amostragem por

63
acessibilidade, tendo como critério inicial o de que não pertençam ao quadro de
trabalhadores de uma mesma instituição e/ou serviço. A entrevista será por pautas,
permitindo uma maior flexibilização, sem abandonar a estruturação por tópicos
estabelecidos dentro da temática da pesquisa, com ênfase nas questões relacionadas
aos processos de cuidado, à multiplicidade dos modos de existir, e às redes presentes
no agir de cada profissional. Desse modo, na perspectiva das Redes Vivas, a pesquisa
deve contribuir para o incremento da profissão.
As entrevistas serão transcritas pela aluna pesquisadora para análise, conforme
as orientações do método cartográfico. As respostas coletadas serão agrupadas por
categorias pré-estabelecidas no referencial deste trabalho, conforme acima
apresentadas. Também serão consideradas para efeito de estudo, aquelas categorias
emergentes das próprias entrevistas. Os dados coletados serão articulados à literatura
de referência na Terapia Ocupacional e na Redes Vivas em saúde, para encontrar
pontos de coincidência, ressonância e digressão ao já estudado. Essas entrevistas
serão articuladas à literatura de referência em Terapia Ocupacional e redes vivas, sob a
perspectiva da biopolítica, para encontrar pontos de coincidência, ressonância e
digressão ao já estudado.

Sua participação ocorrerá por meio de uma entrevista individual com tópicos de
discussão apresentados previamente ao encontro. Esta será pré-agendada e a
entrevistadora se responsabilizará por propor e deslocar-se até local de fácil acesso
para o encontro, zelando para que haja condições de reserva e registro adequado da
entrevista, que tem tempo estimado em 50 minutos. A entrevista será gravada em
áudio, e transcrita pela estudante pesquisadora. Os riscos da participação são baixos.
Há a possibilidade de, ao longo do encontro, surgirem momentos de hesitações e
desconfortos, a depender das implicações que a temática da situação atual da saúde
no país pode suscitar em caráter pessoal. Para assegurar o sigilo, oferecemos a
transcrição de sua fala para que possa revisá-la dentro do prazo de 20 dias, pontuando
trechos que considerar que não devem ser referidos diretamente no texto final da
pesquisa. Sua participação é facultativa. A qualquer momento, você poderá desistir de
participar e retirar seu consentimento; sua recusa, desistência ou retirada de
consentimento não lhe acarretará prejuízos. Caso queira conhecer os resultados
parciais da pesquisa, pode contatar a pesquisadora a qualquer momento. Se o Sra (Sr.)
autorizar a realização dessa pesquisa, asseguro que o material e as informações
construídas serão utilizados de modo a preservar sua identidade e trabalhada apenas
para fins de estudo e eventual divulgação em meios acadêmicos. Contando com sua
autorização, peço-lhe que assine duas vias desse documento, para que uma delas
fique com o Sra. (Sr.) e a outra com a orientadora e estudante-pesquisadora. Em caso
de dúvidas e outras questões relacionadas à pesquisa, seguem as formas de contato:

64
Orientadora responsável: Profa. Dra. Erika Alvarez Inforsato

Email: erikainforsato@usp.br

Estudante-pesquisadora: Ana Luiza Aguiar Bean Augusto

Email: ana.bean@fm.usp.br

Depto. Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina -


USP Rua Cipotânea, 51, Cidade Universitária – São Paulo – SP – CEP: 05360-000

Fone: (11) 3091-7457

Se você tiver alguma consideração ou dúvida sobre a ética da pesquisa, entre em


contato com o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da FMUSP (Av. Dr. Arnaldo, 455 –
Instituto Oscar Freire – 2º andar – tel.: 3061-8004, fax: 3061-8004 – email:
cep.fm@usp.br).

“Estou ciente sobre o que li ou foi lido a mim acerca da pesquisa Inscrições da Terapia
Ocupacional no campo da educação: reflexões sobre um passado, presente e futuro,
bem como compreendo seus objetivos, benefícios, riscos e esclarecimentos
permanentes. Desse modo, autorizo minha participação neste estudo e sei que posso
me desvincular da pesquisa a qualquer momento, sem perdas ou prejuízos”.

____________________________ Data ___/___/___

Assinatura do (a) participante

___________________________ Data ___/___/___

Assinatura da estudante-pesquisadora

____________________________ Data ___/___/___

Assinatura da orientadora

65
ANEXO III

Transcrição das Entrevistas

Entrevista 1

Segue neste documento a cópia da transcrição realizada a partir do áudio da entrevista


feita no dia 10 de dezembro de 2019. Optou-se por transcrever apenas os trechos de resposta
às perguntas do roteiro de entrevista, e este foi utilizado como base a ser preenchido e
complementado com as transcrições. Comentários, ruídos e palavras corrigidas na própria fala
do entrevistado não foram transcritos.
Além disso, destaca-se que para preservar a identidade da própria entrevistada, sujeitos
e populações atendidas por ele nomes de pessoas e locais por vezes foram ocultados apenas
por iniciais ou outros substitutos a fim de manter o anonimato.

Entrevista
1. Apresentação
● Breve história da formação do entrevistado
● Trajetória de atuação, incluindo o serviço que está atualmente inserido

Graduação em Terapia Ocupacional FMUsp 2010


Graduação em Filosofia FFLCH Usp 2018
Caps IJ Bairro S (zona sul) 2010 à 2013
Caps Bairro I (zona oeste) Adulto III 2013
2. Processos de cuidado e produção de vida

● A partir de sua experiência em processos de cuidado: como você


descreveria os itinerários desses processos? Que pontos você considera
mais importantes?
A chegada no Caps é geralmente ou encaminhamento da rede de atenção básica ou
espontânea, tem muitos acolhimentos espontâneos. Falando de itinerário, da onde a pessoa
vai, depois de chegar ao Caps como é que faz, acho que tem tanto isso da diferenciação dos
serviços, uma unidade básica, um Caps.
Para além do institucional, no encontro entre o terapeuta e sujeito atendido.
Eu acho que a gente consegue fazer trabalhos que não são só do âmbito da saúde.
Acho que no Caps tem uma perspectiva de cidadania também. Muitos voltam a estudar, muitos
voltam a trabalhar e isso com a atuação do Caps. Então não fica só numa questão do

66
tratamento, uma questão pontual dos grupos, acho que tem muito haver com todas as esferas
de importância da vida da pessoa.

● Pensando o encontro entre o terapeuta e o sujeito/população atendida


como surge a autonomia no processo de cuidado?
Olha sinceramente eu acho que pode surgir a partir da perspectiva do terapeuta e pode
surgir a partir da perspectiva do usuário. Eu acho que tem processos em que dependendo da
experiência de como o profissional leva o cuidado. Pode ser uma coisa muito totalizadora, que
então é dependente do terapeuta. Isso eu acho que também em experiências, não minhas,
mas que eu ouço de profissionais que atendem no particular, de uma criação de dependência
do terapeuta. E eu acho que tem terapeutas/têm profissionais que visam sempre essa
autonomia do cuidado no sentido de que não precisa necessariamente ser dependente o resto
da vida de um Caps, que dá pra ficar bem de outras formas.
E também já tivemos vários usuários que vem pra gente e falam "Olha, tá muito o Caps
pra mim. Vir todos os dias eu não quero. Quero vir duas vezes por semana." Então você vai
reduzindo. E por exemplo, teve um usuário que esses dias falou pra mim "K., eu to trabalhando.
Eu vou vir ao Caps quando eu conseguir, mas pode deixar que eu venho pra tomar minha
injeção e eu venho quando conseguir. Mas to priorizando o trabalho." E eu respondi "Ótimo,
não tem que vir porque você participa de um grupo e tem que largar o trabalho pra vir". E ele
que foi dizendo isso, não fui eu quem fui incentivando, veio de uma iniciativa dele de "eu sei
que o tratamento é importante, mas minha prioridade é essa, não vou deixar de fazer o
tratamento, de vir ao Caps, mas não consigo dizer uma frequência" (A folga dele muda a cada
semana). Tem um ganho de autonomia no tratamento que depende muito do encontro, o que
esse terapeuta e esse usuário estão entendendo o que é cuidado e o que é autonomia para
poder cuidar de si próprio. E depende muito, eu vejo muito isso, tem profissionais que são
muito protetivos.

E você como profissional qual seria sua definição de autonomia?


Eu gosto da definição do Tykanori, autonomia tem haver com quanto mais relações de
dependência você cria com pessoas, com instituições, com locais de pertencimento. Isso que é
autonomia.
● Considerando a noção de produção de vida associada ao cuidado como
isso aparece na sua experiência?

67
Eu tenho uma perspectiva de trabalhar com o conceito do Foucault de cuidado de si e
acho que tem muito haver com isso assim, por que o cuidado de si tem tudo haver com
produção de vida. De como a pessoa se entende no mundo, de uma forma que ela possa
cuidar da sua vida, não nas normas que são estabelecidas como regras de cuidado mas como
cada um faz uma avaliação da própria vida, o que acha que faz bem para poder exercer esse
cuidado. E acho que isso tem muito haver com a perspectiva do Caps de produção de vida.
Que é uma produção anticapitalista, a gente pode falar assim, porque tem uma ideia de que a
produção não é uma produção monetária, mas é uma produção daquilo que importa pras
pessoas, de afetividade, de conexão. Então acho que essa é uma das maiores metas da
produção de cuidado do caps, esse tipo de ideia da vida da pessoa, quais são as importâncias,
o que a pessoa tem desejo de projetualidade. Acho que esse é um dos objetivos.
3. Redes

● O que são redes para você? É possível relacioná-las com a atuação da


Terapia Ocupacional?
Acho que sim. As redes não é só possível relacionar com a atuação da T.O, é um dos
objetivos de uma perspectiva da T.O, entendendo que a T.O tem haver com autonomia. O
trabalho da T.O em qualquer área que seja tem haver com a autonomia dos sujeitos. Então
para dar a autonomia para os sujeitos é preciso fazer redes, voltando a aquele conceito do
Tykanori, quanto mais dependente eu for de várias pessoas, várias instituições, quanto mais
espaços de circulação eu tenho para exercer essa dependência, mais autônomo eu sou. Como
o trabalho da T.O na minha visão tem haver com autonomia, acho que as redes são
fundamentais.
Como você as identifica em seu cotidiano profissional?
Acho que tem as redes que são as oficiais, as tradicionais, dos serviços, da escola, do
trabalho. Essas redes que a gente como Caps busca fazer como território nos equipamentos de
cultura. E tem as redes que também são as pessoais, família, amigos, colegas, trabalho... Acho
que são essas as redes que a gente tem identificado, igreja. E isso a gente tem visto que tem
sido importante também a gente fazer rede com a igreja, principalmente em casos que a
pessoa não queira tomar medicação e por uma visão mesmo religiosa, o quanto ter essa
parceria é importante.

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● Como você acessa essas redes no seu trabalho? Qual sua contribuição no
delineamento delas?
Acho que a ideia da rede é aquela que apoia o usuário. E sim, tem momentos que a
gente influencia para que o usuário não se relacione mais com uma rede, e isso no sentido por
exemplo de uma redução de danos, de usuários que estão numa dependência de substância.
Temos isso também das redes nocivas, redes nocivas para o usuário numa ideia de ampliação
da perspectiva. Ou relacionamentos abusivos, acho que tem também uma ideia desse tipo de
conscientização no envolvimento com algumas redes. Acho que a ideia da rede, a contribuição
do Caps ou do profissional que trabalha no Caps nas redes seria essa da autonomia, na minha
perspectiva.
Mas em alguns momentos eu acho que sim, a gente acaba se cristalizando de uma
forma que o trabalho fica muito mais dentro da instituição. Então isso diminui as possibilidades
de saída das pessoas ou a próprio o engessamento dos trabalhadores que faz, são pedidos de
fazer mais visitas por exemplo por causa de algum engessamento da instituição, isso também
impede um pouco da circulação. Acho que nesse sentido assim, e também tem muito de fazer
as coisas dentro do Caps e fica difícil de propiciar esse tipo de contratualidade dos usuários
assim.
● Como são vistas as redes dos sujeitos atendidos por você? De que modo
elas são mapeadas?
Nossa! Essa pergunta é difícil, porque depende. Eu tive usuário que tava num
relacionamento abusivo com uma mulher, abusivo num sentido que ela se utilizava muito dos
recursos dele e acabava sendo opressora com um alguém que tava mais frágil. Então neste
momento a rede dele vista por mim, era de que essa pessoa não tava contribuindo muito para
o processo terapêutico dele. Mas depende, mas tem outras redes que são super importantes
para as pessoas. Por exemplo a igreja, teve usuário, não meu referenciado, mas que eu
acompanhei que é isso vamos conversar com o pastor porque fulano não quer tomar
medicação e o pastor foi super parceiro, ajudou nessa conscientização sobre a medicação. Eu
to falando da individualidade de cada pessoa, então, se fala um pouco disso do distanciamento
das redes. Aí que eu penso um tanto nessa questão das redes nocivas também.

Sobre o Rede Rua


A gente tem uma reunião que é mensal com alguns serviços que fazem essa atenção
as pessoas de rua: o Caps AD, o consultório na rua, o albergue, serviço de abordagem.´[...]

69
Que é um núcleo com alguns profissionais do Caps do Bairro I que a gente faz diretamente as
visitas e esse matriciamento, de certa forma também é um matriciamento e um trabalho de rede
entre os serviços.

Como você diria que enxerga as redes desses sujeitos que estão nessa situação de rua?
Então, tem de tudo. Tem tanto pessoas que ficam muito isoladas, principalmente porque
a gente atende especificamente as pessoas com alguma questão de saúde mental. Porque o
consultório na rua, a ideia, é atender todas as pessoas que estão na rua naquele território. E a
gente não, a gente vai atender só aqueles que têm demanda de saúde mental. Alguns, por
exemplo, viviam isolados. Acho que a maioria, sem rede, sem o que a gente pode chamar de
rede ou com uma rede muito precária de uma pessoa ou duas. Acho que a maioria dos nossos
usuários, assim que a gente acabou levando pro acolhimento integral (depois de muito tempo)
ir para albergue.
O Seu L. era um usuário que ficava no MCB (instituição cultural), ele era um cara que foi
pra Caps um tempo e agora tá na residência terapêutica. O que pra nós é um vitória sem
tamanho, porque não seria uma prioridade. Mas ele se encaixa nos perfis da residência, que
são pessoas em situação de rua, que não são prioridade. A prioridade são pessoas que saem
dos hospitais. A rede dele era muito precária, as pessoas do museu tentavam ajudar um tanto,
mas ele tinha pouco contato e não permitia muito, não conseguia se relacionar com essas
pessoas.
Mas por exemplo, tinha uma outra usuária, que tinha uma rede super legal com o
pessoal do posto que ficava próximo de onde ela ficava. Um funcionário chegou a levar ela pra
casa pra jantar com a família dele, eram bem amigos. Agora ela tá numa outra situação
também, ela acabou indo pro Caps ficando um tempo e agora está numa pensão. Ela ficou em
CTA por algum tempo, alguns meses e agora ela tá conseguindo com o benefício ter a própria
pensão. A rede dela aumentou no Caps.
Mas eu acho que tem sim, as pessoas conseguem se virar de algum jeito. Mas o que eu
percebo pelo menos.... Tem outro usuário, que quando ele tava na rua, ele tava numa praça
uma das moradoras dava alimento pra ele e ajudava. Ela é amiga dele até hoje. E hoje ele tá
numa casa, ele trabalha e tá super bem. Mas ela continua vendo ele semanalmente e é uma
rede que você vê que durou, são seis anos que isso aconteceu, mais até ainda.
Acho que tem, mas que são redes assim, muito pequenininhas. A Y. mesmo, tinha uma
senhora que ela era a única pessoa com quem ela conversava minimamente, as outras

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pessoas ela não conversava. Então acho que tem uma dificuldade das pessoas que tem uma
questão de saúde mental e estão nas ruas, principalmente São Paulo que é um cidade
completamente hostil para quem está na rua. Vemos pela questão da limpeza urbana, que isso
acontecia com muita frequência. E também a própria relação da população com as pessoas
que estão na rua, de uma hostilidade que essas pessoas vão se isolando cada vez mais. Mas a
gente vê pessoas que conseguem um lugar pra tomar banho, um alimento. Então não é que
não existe uma formação de rede, mas na minha visão parece um pouco mais difícil. Até
mesmo porque essa questão da saúde mental gera mais preconceito.
Existe sim rede. Teve uma senhora que a população a expulsou do lugar, tacou fogo na
barraca dela. Mas é porque ela também, na produção delirante dela, acabou sendo agressiva
com outras pessoas, colocaram ela pra fora e puseram fogo nas coisas dela. Mas ela era uma
pessoa que tinha um restaurante fixo e todos os dias ela consegue marmita. Então assim,
existem dificuldades, mas há uma criação de redes pequenas.
Sobre os usuários que estão em acolhimento integral
Olha, é muito difícil. A questão por exemplo das pessoas em situação de rua, que a
gente abrigou lá. Que ficaram mais de um ano lá, porque a gente não conseguiu resposta da
assistência ou uma resposta depois de um ano. A Y. é uma pessoa que ficou um ano no Caps,
ela já não tinha mais nenhuma demanda de saúde mental, ela já tava super bem. E ela foi
ficando em acolhimento porque ela não tinha pra onde ir. Então essa coisa da rede da
assistência com a saúde, isso é muito complicado. Acho que tem uma precariedade de
serviços de moradia por exemplo, mesmo ILPI que são pra idosos, como os albergues. A
região que a gente atua não tem albergue feminino por exemplo, então se a gente tiver que
encaminhar uma mulher, ela vai pra longe, ou vai pra outro território. Que foi o caso de algumas
pessoas que foram pra bairro L (bairro vizinho porém em outro território). Mas em Bairro P,
Bairro I e Bairro B (bairros do território em questão) não tem um albergue feminino. E tá
precarizada a assistência, fica difícil. Já é difícil pra quem não tem questões de saúde mental, e
muito mais difícil pra quem tem. A gente encontra muitas dificuldades mesmo, assim do pós.
Porque assim, muitas pessoas estavam em crise na rua, tava bem mal e aí a gente se vê tendo
que fazer uma assistência que é mais integral.
Então de levar na UBS, levar no Caps, ficar em acolhimento integral e aí não tem o pós.
Essa questão da rede, para esse tipo de atenção que seria o ideal, o ideal é isso assim que
não fiquem nos hospitais psiquiátricos. Mas que possam ficar um tempo no CAPS, ficar bem e
aí ser encaminhado para um lugar de moradia, isso é o ideal. Mas essa outra parte não tá

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acontecendo com agilidade. E aí a gente acabou bancando isso enquanto equipe, das pessoas
ficarem e a gente conseguir pressionar o bastante pra pessoa poder ir pra algum lugar digno. A
gente não vai simplesmente falar "a gente te acolheu e agora você vai voltar pra rua".
[...] Tem casos que a pessoa fala, eu vou voltar pra rua. Mas por ex. o L., ele é um cara assim
que não tinha como ele voltar pra rua. Ele estava muito vulnerável pra ir pras ruas. Ele falava
assim que não queria, quer dizer, não falava assim. Mas a Y. falava "eu não quero voltar pra
rua". Então é uma escolha da equipe de bancar isso, mas é uma escolha árdua para nós por
que o acolhimento ficava com pessoas que estão em situação de moradia lá. Mas acho que a
gente teve muitos casos de sucesso, que deu pra poder dizer nesse termo mesmo, da gente
bancar. Como eu te falei, teve um usuário que tava numa praça, muito mal, totalmente
desorganizado, ficou seis meses no acolhimento integral. Depois ele foi pra um albergue, do
albergue ele foi pra uma pensão e agora ele tá morando numa casa, tá trabalhando. É um cara
que conseguiu o que ele queria, ele falava que tem os passos: o primeiro passo é o hospital,
depois o Caps, depois isso e depois aquilo. E o lugar onde ele queria chegar é de estar numa
casa trabalhando e é onde ele tá agora, com apoio nosso porquê ele ficou seis meses no Caps.
A Y. foi possível ela ir pra um albergue, um local de moradia que ela se sentiu bem, porque ela
ficou um ano no Caps.
Como é para pessoas que tem uma moradia fixa vai pro acolhimento integral?
Cada caso é um caso, cada caso é analisado com sua particularidade. Não dá pra falar
que entrou em acolhimento integral e vai ficar tantos dias aqui, porque né? Cada momento é
um momento. E em alguns momentos dessa crise, talvez a pessoa precise não ver a família, e
isso assim é acordado, as vezes não. Não que seja uma decisão da equipe, mas pode ser uma
indicação por ex "Senhora mãe do fulano pode visitá-lo mas talvez não todos os dias ficar 5
horas aqui com ele". Em alguns momentos tem então esse questionamento de qual é a ideia
terapêutica do acolhimento, tem uma função do acolhimento também de tirar o usuário da cena
de conflito. E qual é a mediação possível com a família? Com os amigos, com o
relacionamento... Tem vezes que as pessoas falam "Não quero que fulano entre aqui, não
quero ver essa pessoa" e aí gente tem que mediar isso, e dizer que "Ok, você não quer, então
a gente vai dizer pra ele que você não quer ou você diz".[...] Compreendendo qual que é a
função terapêutica por que acho que tem momentos que vai ser necessário mesmo uma
intervenção da equipe e em outros momentos pensar juntos com o usuário e a família o que
vai ser mais indicado pra esse estreitamento da rede. Não acho de todo um ruim, nada é de

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todo ruim, analisando terapeuticamente o sentido disso. Que não seja algo arbitrário, que não
seja algo imposto.
Por exemplo, já teve momentos que o cara que era marido da moça em acolhimento
veio ameaçar a equipe. E a gente falou que não vai entrar, que não tem como essa pessoa
entrar aqui pra vir ameaçar a equipe "Se ele vier a gente vai chamar a polícia". Em alguns
momentos a gente vai ter que se posicionar desse jeito.

4. Comentários finais
● Você teria outras considerações a fazer em relação ao tema “Redes Vivas
e Terapia Ocupacional: Cartografando as multiplicidades do cuidado”?
A noção de autonomia que o Tykanori trás é muito importante pra pensar, por que existe
um senso comum sobre autonomia de que é quem faz as coisas sozinho né? E acho que é
justamente o contrário, que é a ideia de rede também, se a gente pode contar com mais
pessoas, contar com mais serviços. E ele fez uma roda de conversa com a gente sobre RAPS
lá no CAPS e ele fala disso assim "Se os serviços estão fortes, e a relação entre os serviços
estão fortes, melhor pro usuário, maior vantagem pro usuário".

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Entrevista 2

Segue neste documento a cópia da transcrição realizada a partir do áudio da entrevista


feita no dia XX . Optou-se aqui por transcrever apenas os trechos de resposta as perguntas do
roteiro de entrevista, e este foi utilizado como base a ser preenchido e complementado com as
transcrições. Comentários, ruídos e palavras corrigidas na própria fala do entrevistado não
foram transcritos.
Além disso, destaca-se que para preservar a identidade do próprio entrevistado, sujeitos
e populações atendidas por ele nomes de pessoas e locais por vezes foram ocultados apenas
por iniciais ou outros substitutos a fim de manter o anonimato.

Entrevista
1. Apresentação
● Breve história da formação do entrevistado
Me formei na Federal do Espírito Santo, não sabia o que era T.O na verdade, tinha
interesse em psicologia e pensava um pouco em fisioterapia.[...] Na fisioterapia eu pensava nas
questões de movimento, mas sentia falta de estar mais próximo do paciente na minha cabeça,
eu não conhecia bem, eu tava na sétima série vamos dizer. Pensava muito na psicologia mas
eu sentia falta do movimento na psicologia. Comecei a fazer psicologia na verdade, em uma
instituição particular e os professores ficaram falando pra eu tentar federal, que era o meu
sonho. Mas aí quando eu fui pra Federal tentar eu descobri a Terapia Ocupacional, lendo sobre
e me chamou muita atenção. E eu quis conversar com a coordenadora do curso entender um
pouco melhor o que era Terapia Ocupacional. E eu vi que era aquilo que eu queria assim, sobre
a noção do ser humano das atividades, do contexto social e mental, olhar muito maior sobre o
sujeito, não que as outras profissões não tenham, mas naquele momento foi o que me chamou
a atenção mesmo e aí decidir trilhar esse caminho. Eu e uma amiga, a P., conhecíamos o que
era a Terapia Ocupacional os outros foram descobrindo mais no meio do caminho assim. [...]
Comecei na Federal, fiz o curso, fiz bastante coisas durante a formação e acho que isso me
ajudou muito.Ampliar meu olhar sobre o ser humano, sobre minhas práticas e sobre mim
mesmo.
Me formei em metade de 2015 e já saí pro campo de trabalho. Em Vitória (ES) tem
poucos terapeutas ocupacionais, poucos espaços, mas eu saí já trabalhando na prefeitura no
centro de convivência e numa clínica particular com equoterapia, deram uma sala pra eu
trabalhar. Eu estava bem pra um recém formado, mas eu sentia falta da especialização, foi um
grande passo. Pensei muito "Vou, não vou" e foi quando eu decidi prestar residência aqui na
Usp, saúde do adulto e do idoso, que era o que eu queria, atenção hospitalar mas também

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pensando em promoção de saúde dessa população. Muito relutante eu vim a São Paulo, tentei
a residência, achei que não passaria mas passei. Então é isso, fiz a graduação no Espírito
Santo, fiz a residência aqui na Usp, fiz alguns cursos, mas aí eu fiz a pós em Terapia de mão e
hoje eu tô finalizando o mestrado interunidades. Isso é um pouco da minha formação.
● Trajetória de atuação, incluindo o serviço que está atualmente inserido
Quando eu terminei a residência já comecei a trabalhar no Centro de Reabilitação da
Prefeitura que é gerido pela SM (nome ocultado), que é uma O.S e também faço atendimentos
domiciliares. E eu atendo numa clínica que é como se fosse um hospital de transição, eu faço
atendimento particular lá. Mas é um hospital de transição, os pacientes que recebem alta mas
não estão tão bem pra ir pra casa e ficam nesse limbo, ficam nesse lugar de transição. Em
2018 eu comecei no CER e estou até hoje, faço atendimento nessa clínica e faço atendimentos
domiciliares na parte mais da reabilitação física e reabilitação cognitiva.

2. Processos de cuidado e produção de vida

● A partir de sua experiência em processos de cuidado: como você descreveria os


itinerários desses processos? Que pontos você considera mais importantes?
Eu acho que pensar em itinerário, eu penso bastante em locais que o usuário acessa,
onde tem relação de cuidado mesmo. Mas eu penso muito mesmo, tem uma questão em
antropologia, da busca desse usuário pelo cuidado também. E acho que isso tem implicações e
questões bem diferentes assim. Se eu for pensar no CER da Zona Leste, lá dentro mesmo, se
eu for pensar em itinerários, vários itinerários de populações diferentes. Eu acho que tenho
uma população significativa de mulheres que tem uma busca pelo cuidado mais prévia e acho
que tem uma rede de serviços que não responde tando, nem tantos dispositivos. Tenho uma
população de homens que não tem tanta busca pelo cuidado, assim prévio. E eu tenho
crianças com deficiência que já tem um percurso muito grande de cuidado através das mães e
que estão lá por ter esgotado os outros lugares por onde eles passaram. Pacientes particulares
eu acho que tem uma relação totalmente diferente, pela questão socioeconômica e cultural.
Mas pensando no CER, pensando em locais mesmo, itinerários, acho que tem isso. É um
serviço especializado, onde não é uma busca inicial das pessoas. As pessoas chegam lá pra
algo que aconteceu naquele momento, muito pontual, ou encaminhados.
Mas se eu for pensar em locais de cuidado, a família é imediata, especialmente onde as
pessoas buscam cuidado e sentem cuidado mesmo. Então acho que é um itinerário meio que

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comum, todas as relações familiares se a gente for pensar, mesmo fragilizadas e tudo mais, é
com quem a gente conta muito. Acho que a comunidade também.Lá eu vejo muito a questão
com o ACS, os agentes comunitários de saúde, acho que nesse itinerário todo, nesse caminho
todo, os ACS são bem marcantes, acho que é com quem a gente mais conta com todas as
fragilidades da rede, tudo que a gente que for pensar é isso. Se for pensar nas crianças, eu vou
pensar em APAE, todos os lugares que essas pessoas procuram pelo cuidado, mas que as
vezes pela questão da rede e de burocracia mostra-se esgotado para eles. E acho que o
próprio CER faz parte hoje do itinerário, não como uma primeira busca da pessoa assim,
depois que ela tá lá é um lugar que ela busca o cuidado. Tanto que a gente pensa que não seja
o fim lá assim, que ele entenda a importância da UBS. As vezes tem um marco mais importante
pra eles a relação com o ACS do que propriamente estar dentro da UBS, é algo bem
significativo. Pra muitos tem a questão da igreja, o apoio da igreja onde frequentam. Acho que
a comunidade, não pensando na questão formal do território, mas a relação mesmo com
vizinhos. Pra muitos também a questão do CRAS, CAPS, população que eu atendo, como é
um CER de reabilitação física e intelectual.
Você acha que a escola para as crianças entra nessa rede de cuidados?
Eu acho que a escola entra. Mas eu acho que muitas vezes, em muitos casos a escola
começa a fazer parte do itinerário depois que elas estão no processo de reabilitação, ou Caps
ou CER. Tem toda uma fragilidade. Muitas mães têm medo de colocar a criança na escola, por
achar que ela não está preparada para isso ainda, achar que a criança não está preparada
para a escola. Mas é super importante, a gente vê de tanto que a gente fica tentando estimular
os pais. Quando essa criança volta ou quando a gente recebe ela maiorzinha mesmo, a gente
vê como a escola é super importante e o quanto os pais se apoiam. Em muitos casos das
crianças com deficiência os pais levam as crianças e ficam o tempo todo com elas.
● Pensando o encontro entre o terapeuta e o sujeito/população atendida
como surge a autonomia no processo de cuidado?
Eu acho que é, realmente, a forma que o terapeuta. A forma que se dá o encontro
mesmo, o que ele vai trazer de potência, for pensar se é alegria ou tristeza, se é vontade de
estar ali. Quando você valoriza mesmo a história de vida do paciente, as capacidades,
potencialidades, quando você traça junto com ele um projeto terapêutico que realmente faz
sentido pra ele, que diz algo pra ele. Quando ele compreende, vai compreendendo também,
que não é uma coisa tão fácil de primeira, mas quando você consegue favorecer que ele
compreenda as reais necessidades dele. Estar atento e ouvir as reais necessidades dele,

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escutar mesmo. Por que as vezes a demanda que a gente identifica não é a necessidade real
que ele tem. Tem outras coisas para serem trabalhadas. Então quando você vai dando espaço
para o sujeito, quando você vai deixando ele ser um sujeito. Quando você vai favorecendo,
acho que a gente como terapeuta pode fazer isso. Você tá muito num lugar de saber, o usuario
te vê como aquele que tá no lugar do saber, que sabe como curá-lo. E realmente a gente busca
procurando uma resposta, a gente tem algo para oferecer, mas muito mais algo para construir
com ele. Então quando você valoriza realmente a história de vida do sujeito, o que ele trás, a
escuta o que ele quer, vai gerando. A gente não tem como gerar autonomia no outro, a gente
não tem como gerar desejo no outro, mas a gente tem como favorecer várias coisas. [...] E não
é que eu vou deixar de ser ativo, mas que ele queira estar ativo e possa de ser ativo. E isso
tudo vem com escuta, com dialogo, com relação, com repensar o processo quantas vezes for
necessário. Com pensar com ele, mostrar os ganhos, ver se ele consegue compreender os
ganhos ou quem não tá ganhando também. É mais por esse lado, ele precisa compreender
esse processo ele compreendendo ele pode gerir junto com você "Eu sou o terapeuta, eu sei o
que você precisa e vou e faça." Mas o que ele quer? O que ele precisa? O que ele está
achando daquele processo? Ouvir é sempre, a escuta. A gente entra nessa coisa da escuta
qualificada, mas realmente, desenvolver essa escuta qualificada, essa relação.

● Considerando a noção de produção de vida associada ao cuidado como


isso aparece na sua experiência?
Quando eu fui começar o meu primeiro estágio, eu fui para um centro de reabilitação, lá
no Espírito Santo ainda. Aí tem uma terapeuta, que hoje é uma grande grande amiga, mas
acho que ela não tava preparada para receber um estagiário assim. Quando eu cheguei ela
disse "Não quero sombra atrás de mim",não foi degradante comigo mas tinha essas reações
assim. E tinha os pacientes que eu ia atender e essa relação mudou depois, a gente é muito
amigo assim. Mas eu lembro que fui atender um paciente que pra mim era muito difícil, e isso
foi me dando uma segurança também. E nesse momento eu já tava contando mais com o
suporte dela. E eu lembro que um dos pacientes que tive que atender, foi um rapaz de 19 anos
na época, que era de uma região do nordeste e ele sofreu um acidente de moto e ele ficou
tetra. Ele ficou uns seis meses sem cuidado nenhum e ele foi pra esse centro de reabilitação e
eu que ia atender. Ela falou "Você vai avaliar e você vai aprender." Ele tava começando abrir
uma escara quando ele ficava sentado. E eu pensando como estagiário que não tinha como
fazer. Eu pensando muito no fazer da Terapia Ocupacional. O que ele vai fazer? Ele não tinha

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movimento nenhum ele tinha um pouco de tenodese. Mas eu fui questionar algumas coisas, aí
eu montei um questionário, pensando já que só ia fazer o questionário e não vou atender esse
cara. Eu fui fazer avaliação e eu lembro que pensei em alguma coisinha de mão que ele podia
mexer, e fiz uns cartõezinhos que tinham haver com a vida dele, pra ele poder estender um
pouquinho pra colocar no pregador. E eu lembro que ele era músico, a questão religiosa era
importante pra ele, perguntei sobre a questão sexual pra ele e ele disse que tava tudo bem e
eu pensando "Não tá tudo bem, tá bem difícil". E eu lembro que quando eu falei, quando eu
perguntei sobre o pai dele, ele me falou que o pai dele era a pessoa mais importante da vida
dele. E quando ele deu entrada na UTI o pai dele foi assassinado, e ele tava morando com a
mãe que era praticamente uma estranha pra ele, ele não a conhecia. E eu pensei "eu preciso ir
junto com esse menino, ir junto com ele descobrir o que fazer". Eu lembro que eu sentava pra
conversar com ele, pensava algumas coisas. Aí eu lembro muito que na minha cabeça muito
fechadinha, se a gente fosse pensar na avaliação motora eu não conseguiria escrever, mas
pensando o pouco de movimento que ele tinha tava com um pincel, os pincéis mais grossos no
bolso e aí eu falei "T. não fica frustrado, quero ver se você consegue fazer a preensão." E ele
foi e conseguiu escrever, escreveu meu nome, fez um desenho e a partir disso comecei a
trabalhar com pincel com ele. E uma vez ele falou assim "Nunca tinha pintado um quadro e
agora to pintando um quadro, não fazia isso". Isso começou a despertar bastante coisa e eu
comecei a pensar "O que eu posso fazer com o outro? Para além do que eu já tenho pré
estabelecido em mim" E eu lembro muito assim, no meu TCC, eu usei isso assim. E os alunos
da graduação foram fazer entrevista com ele, e eles perguntaram sobre a Terapia Ocupacional
pra ele e foi a fala que eu usei no meu TCC também e ele fala bem assim "Mais do que não me
mexer, não conseguir me expressar tava me matando, com o G. eu consegui escrever, pintar
quadro" _ eu levava tablet e ele conseguia tocar no teclado virtual _"Consigo me expressar e
agora eu me sinto vivo ". Eu trago muito dessa história, porque isso me diz muita coisa, até
hoje assim. Acho que mudou muita coisa em mim e vem mudando. [...] E mais uma vez eu falo,
eu acho que não produzo muita coisa no outro, eu não gero vida no outro, mas acho que as
relações podem muita coisa. E acho que uma relação terapêutica pode favorecer muita coisa.
É de desejo, de querer estar ali, de conseguir ver um sentido assim. E acho que isso se aplica
em todas as áreas assim, se a gente for pensar na reabilitação física mesmo. As vezes a gente
como terapeuta fala pra pessoa "Vamo lá, você tem que conseguir!" Mas como você se via
naquela situação pensa, se fosse eu não iria conseguir, não iria querer fazer nada.

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Mas qual é a relação que se estabelece, que se cria junto com o sujeito e faz ele querer
ir adiante. Eu acho que isso é sobre relação mesmo, de buscar junto com o sujeito um sentido
de pertencimento. Um sentido de querer fazer algo. Pensar em produção de vida associado ao
cuidado é isso. Que tipo de cuidado você oferece, que relação você estabelece, que faz ele
querer ir adiante, que faz ele querer algo. Que você junto com ele pode favorecer esse querer e
esse construir. Acho que é construção, é muito disso. É de relação, ouvir o outro. Do que se
produz ali junto, de todos os afetos e afeições que vão nascendo de desejo de pertencimento.
De repensar a história de vida, de repensar possibilidades. De repensar novas possibilidades
ou de possibilitar que se faça antigas, mesmo sendo de outro jeito. E acho que é sempre isso,
pensar repertório do sujeito, o que importa pra ele. E as vezes coisas que parecem ser muito
simples, não são. E a relação descortina muita coisa, trás muita coisa. Acho que é um pouco
disso pensar em produção de vida ligada ao cuidado. Um cuidado que favorece questões de
sentido, de pertencimento de desejo, é um pouco disso.
3. Redes

● O que são redes para você? É possível relacioná-las com a atuação da


Terapia Ocupacional? Como você as identifica em seu cotidiano
profissional?
Eu acho que se a gente for pensar em redes na questão de arranjos organizativos de
serviços de saúde que tem uma questão de apoio técnico, gestão, pra que funcione de forma a
responder a integralidade do sujeito. Acho que é um pouco disso, dessa questão padronizada
assim. Eu acho que tem muitos problemas nas questões das redes se a gente for pensar, tanto
que a questão das redes vivas vem responder um pouco a questão das redes, de como elas
surgem assim. Mas eu acho que pra qualquer problema que tem, trabalhar em rede é a melhor
opção que a gente tem. Um avanço muito grande temos que valorizar isso. Sempre realmente
buscar aperfeiçoar e melhorar. E por mais que eu faça qualquer tipo de crítica a rede eu acho
que é o que a gente tem de melhor na saúde, que a gente pode aperfeiçoar a partir delas. Mas
quando a gente pensa realmente em rede, a gente pensa integralidade. A gente pensa num
sujeito que é plural, num sujeito que não tem só demanda de saúde, hoje ele tem demanda de
saúde amanhã ele tem demanda social. Acho que N’s demandas e N’s momentos de vida. Se
eu pensar em rede eu penso nisso, a articulação entre esses dispositivos que podem ser
acessados por esse sujeito, mas que esses dispositivos também se conversem sejam
realmente integrados.

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Acho que a Terapia Ocupacional não tem como pensar no sujeito sem pensar
integralidade, equidade, nos desejos, nos itinerários, nos percursos que ele faz. Eu acho que
rede tem tudo haver com Terapia Ocupacional. E também não é uma coisa inerente do
Terapeuta Ocupacional “Ahh o Terapeuta Ocupacional é tão bonitinho, olha o sujeito como
todo”. Eu acho que não é uma coisa inerente, acho que é uma coisa que a gente precisa
trabalhar mesmo, na formação e na prática mesmo. Uma coisa que me ajudou muito no meu
percurso de formação é que eu consegui caminhar por vários outros lugares: iniciação
científica, grêmio estudantil. Você estar nesses outros espaços você vai ampliando os olhares
para quando você está na sua prática mesmo. Sabendo que o sujeito acessa outros lugares, e
esses lugares precisam conversar para responder as necessidades plurais desse sujeito. Acho
que redes está totalmente relacionada a atuação da Terapia Ocupacional, quando eu penso em
um sujeito de direitos, um sujeito de vontades, um sujeito de interesse, um sujeito cheio de
necessidade. E isso não é só saúde que vai responder, não é só a minha atuação que vai
responder. Eu acho que a saúde, a educação, as questões sociais. Eu acho que é isso. A gente
precisa estar integrado, se a gente quer trabalhar com um sujeito que é integral, um sujeito
inteiro, um sujeito que é múltiplo e que é plural. Acho que não tem como dissociar, é muita
relação com a Terapia Ocupacional.

● Como você acessa essas redes no seu trabalho? Qual sua contribuição no
delineamento delas?
Como eu te falei, eu acho que é isso. Eu não vou entrar nas redes vivas não, mas eu
acho que as redes vivas tem uma questão de ser fragmentadas, elas não são perfeitas, elas
também quebram. Mas elas tem um movimento maior para se refazer, hoje pensando em
redes. Se a gente for pensar só nessas redes, nessa forma mais conceitual que a gente tem,
elas tem questão de ser fragmentadas. Na minha prática profissional se for pensar no CER, eu
não vejo outra forma de trabalhar se não for em redes, a gente precisa muito trabalhar em
redes. Ainda mais se for na Zona Leste de São Paulo, que é um lugar mais de periferia e tem a
questão de vulnerabilidades. Então não tem outra forma de se trabalhar se não for em redes,
mas nem sempre a gente consegue isso. A gente tenta mesmo entre os dispositivos da saúde,
só da saúde, e as vezes a gente não consegue se conversar e é uma busca cotidiana. A gente
tem reunião que chamamos de reunião de rede. A gente tem fóruns intersetoriais onde junta
todo mundo da reabilitação para tentar conversar, tentar entender o que o serviço oferece pro
sujeito. A gente tem as vezes o matriciamento, discussão de caso, a gente coloca. Tenta

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chamar a UBS, atenção básica e especializada, a escola, a família. Tenta envolver, só que não
é algo fácil, não é algo que tá posto, ainda é frágil. As vezes ainda tem "aquele pessoal do
CAPS" e "aquele pessoal do CER" não é uma coisa que tem um movimento de se juntar, mas a
gente precisa fazer esse movimento, por que não há outra forma de se responder as
necessidades do sujeito para se trabalhar em rede. A gente recebe muitos usuários que tão no
CER mas que também tão no CAPS. Usuários que tão no CER, estiveram na UBS e precisam
voltar para a UBS, mas quando eles tão no CER as vezes eles elegem como local principal de
cuidado. E quando tiver alta do CER sabe? "Ahh não tenho mais nada haver com isso porque
ele vai ter alta" Então a gente precisa estar conversando o tempo todo, articulando e pensando
em ações mesmo que vão responder as necessidades múltiplas desses sujeitos. Então não
existe outra forma de se trabalhar, é difícil, tem que melhorar ainda, mas a gente tá no cotidiano
e é o que se tem para se trabalhar ainda.
● Como são vistas as redes dos sujeitos atendidos por você? De que modo
elas são mapeadas?
Eu tento ouvir e acessar o sujeito para saber o que ele elege como seus locais de
cuidado assim, locais de cuidado e locais de interesse. Porque as vezes eu penso muito na
rede formal, e as vezes tem a questão da rede informal aquilo que é importante pra ele. Tanto
que eu penso, vamos chamar a família pra esse espaço, vamos chamar o fulano da igreja que
dá suporte pra esse espaço. A gente pode contar com o vizinho será? A gente deve acessar o
sujeito, pra entender assim. Mas é como eu falei, as vezes a UBS a gente tenta acessar, a UBS
tem as reuniões de rede, reunião intersetorial onde vai os serviços de reabilitação.
Minimamente a gente num primeiro momento através de entrevista saber por onde aquele
sujeito já passou, por onde ele está passando no momento. O que ele acessa, o que é de
interesse dele, o que ele pensa em acessar depois pra tentar ter esse contato com os
dispositivos da rede, tanto formais quanto os informais. Eu acho que é isso, acessar a rede
nesse sentido. E quando é família e está próximo da família a gente chama a família pra
conversar. Conversa só com UBS, quando é o serviço domiciliar tem essas reuniões já
pactuadas que são as reuniões de rede, é uma das formas de acessar. Agora as outras é
quando vai surgindo essa necessidade junto ao usuário e é tentar estar próximo.

E você acha que você como T.O aponta lugares dessa rede que o sujeito não contasse
como espaços de cuidado?

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Sim, Eu tento muito é conhecer o território, tentar conhecer alguns dispositivos perto
desse sujeito. Mostrando pra ele, Fábrica de Cultura, Serviço de Convivência, estimulo sempre
ao lazer. Sempre que eu posso falo pro usuário, até cinema, sair com a família. Sabe, como eu
to num CER é um serviço especializado. Uma resposta urgente pra algo que ele teve naquele
momento. Ele teve um AVC, naquele momento ele quer muito voltar a andar e voltar a segurar
as coisas e ter função da mão por exemplo. Mas no meio dessa angústia toda a gente tenta
mostrar que a vida não é só estar ali dentro do ciclo, há várias outras coisas. Então é favorecer
com que ele consiga, indo na UBS e nos outros espaços. Favorecer pela questão da técnica da
reabilitação que ele consiga acessar os outros espaços que ele já acessava antes. E tentar
mostrar outras possibilidades mesmo pra ele, outras questões que ele nem conhecia.
Com crianças a mesma coisas, as vezes a mãe tem uma recusa muito grande de
pensar em colocar o filho na escola, então a gente tenta realmente, mostrar as outras crianças
que tão na escola, fazer reunião de pais, fazer grupo com os pais e um contar da experiência
pro outro. Acho que é dessa forma assim.
Até assim hoje, a minha questão da pesquisa de mestrado é sobre o processo de alta
do CER. Então to estudando muito, a coisa mais gritante que a gente tem muito problema é dar
alta do CER, do serviço de reabilitação. Do hospital você tá curado e por isso teve alta. Agora
do CER as vezes você tem alta com sequelas, com algumas coisas ainda assim. Então a gente
tem um nó na alta, só que o grande nó da alta pro profissional é não conhecer tanto os
dispositivos que tem lá. Pra onde eu vou mandar esse sujeito agora? Talvez não seja mais o
momento o dele estar no CER agora, mas quais os outros espaços onde ele vai acessar, onde
ele vai estar? Eu acho que pro sujeito também. As vezes ele pensa isso "Não vou estar aqui,
que nesse momento é o meu local de cuidado. Mas quais os outros espaços que eu vou
acessar?". Então assim, eu já penso muito em mapear o território e mostrar pra ele ao longo do
percurso. Mostrar "Você conhece tal lugar? Tem tal dispositivo. No CEU tem a piscina lá você já
foi? No CEU tem a tal oficina." Tento mostrar, mas tenho pensar junto com a equipe como a
gente pode fazer isso de forma mais efetiva.
Meu mestrado tem tentado um pouco responder isso, de como a gente entrega isso de
forma mais prática pra ele mesmo. E talvez, uma das ideias que pode surgir com o mestrado é
mapear de forma mais efetiva os dispositivos e apresentar pros sujeitos de forma clara. E tem
muitos profissionais também que não tem tanta noção de rede e que nem conhecem os
dispositivos que tem lá no território, e mais que os dispositivos formais que a gente tem. Pensar
também nos dispositivos informais e locais que podem gerar potência para esse sujeito.

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Ir além dos dispositivos de saúde né?

Sim. Sociais, culturais, isso que a gente tenta assim. Junto com a escola, eventos
culturais que acontecem, descobrir coisas que acontecem, as vezes são coisas mais pontuais
que também que tem. E as vezes fora do território mesmo. Tem pacientes crônicos que tão em
processo de reabilitação e a gente fala "Em tal lugar tem jogo de bocha para crianças e
cadeirantes" E nem é mais na Zona Leste é em outro lugar mas essa mãe tem condição de
acessar esses outros espaços, que é um sair um pouco. O território é de uma importância
gigante, mas tem coisas que acontecem fora do território e que também podem ser acessadas
por esse sujeito e que trazem muitos benefícios.[...] E a gente vê, tem tentado falar e discutir
isso com a equipe, muito mais que o problema da alta é que o sujeito saiba que possa acessar
outros lugares. A gente tá numa luta grande para poder trabalhar com esse sujeito. Tem uma
criança mesmo, que a gente tá sofrendo com a alta dela, e ela começou a fazer bocha em
outro lugar e tá quase não indo mais no CER. Tá indo bem esporadicamente porque a mãe
percebe o quanto ela tá se desenvolvendo lá. Eu acho que isso é muito importante, trabalhar
isso com o sujeito e mostrar as possibilidades que ele tem para acessar.

E você entende muito de redes pela questão da alta estar relacionada a elas?

Depende.Acho que inclusive a formação em Terapia Ocupacional vem me trazendo


isso, de entender esse sujeito, que é plural, que é multi. Eu to lá tentando ganhar movimento da
mão dele, só que não é só isso que ele quer e que esse sujeito precisa. Ele acessa vários
outros locais, o que ele é me diz muito. Se ele é músico, se ele é adolescente que frequenta tal
lugar, se é um estudante. Então já me faz pensar nisso. Acessar outros lugares e precisa voltar
a acessar. Ou esse sujeito não acessa quase nada, o que a gente pode apresentar pra ele?
Quando a gente pensa isso assim, não se tem outra forma de trabalhar. A Terapia Ocupacional
me trás muito isso assim, me trazia muito isso. Sempre que o paciente tá em processo de
terapia já pensar que ele é muito mais do que esse processo de terapia, tem outras N’s
relações. Se a gente for pensar no produzir vida, são muito importantes.
Mas aí quando eu venho para a residência isso me chamou muita atenção. Eu fiz a
residência ali no HU, e muitos usuários elegiam o Hospital Universitário como o local principal
de cuidado. Não que isso seja errado ou ruim, simplesmente pensar que se ali for o lugar da

83
busca de cuidado existem outros lugares para responder a isso. E é assim, mostrar isso pro
sujeito. E eu começava a pensar muito Se ele acha que esse é lugar de cuidado dele, e vai
chegar um momento que o HU não vai conseguir responder a esse cuidado. E vai chegar o
momento em que ele terá alta. Qual o vínculo que ele tem com a UBS? Se ele não tem vínculo,
como vai ser esse cuidado longitudinal dele. Isso começou a me preocupar muito e desde a
residência eu comecei a estudar isso.
Lá a gente tem um serviço chamado GAMA e que a gente foi desenvolvendo mais isso,
a gente sentava e tinha aperfeiçoado. Paciente teve alta, durante um ano acompanhar esse
sujeito, ligar pra ele, com um mês de alta, com três meses de alta, com seis meses de alta e
com um ano para saber como ele tá, se tá indo na UBS, se tá indo em outros lugares, se tá
buscando possibilidades de lazer. E a partir desse GAMA eu começo a estudar um pouco
disso, da noção dos profissionais do hospital sobre a questão da rede. Hospital geralmente é o
lugar da contra referência, é o lugar que vai te reencaminhar, na linguagem chula, te devolver
pra sua UBS. Mas a gente tinha muitos pacientes que não tinham, devolver pra onde? Se não
tinha vinculação desse lugar. E eu quis entender um pouco da percepção do profissional desse
hospital, se o paciente chega lá, se é um médico, como ele pode entender que um terapeuta
ocupacional pode ajudar esse paciente? Começar a fazer as pontes lá dentro mesmo desse
hospital. E para a gente pensar E agora que esse paciente vai ter alta? Vai ter alta ele
possivelmente não vai ter necessidades que o hospital precise responder, mas ele tem outras
necessidades, ele tem N’s possibilidades. E o que a gente possibilita para esse sujeito sabe?
Como que a gente mostra pra ele que ele pode estar acessando os lugares, que ele precisa
estar vinculado a UBS que é muito importante pra ele, ir para além dos espaços de cuidado em
Saúde. O que ele tem pra acessar ali na comunidade e outros espaços? Acho que é isso que a
Terapia Ocupacional vem me trazendo muito, tanto que eu to pensando bastante em redes na
conclusão do mestrado assim.

Sobre o grupo de bebês que vocês tem no CER. O que você das redes desses pequenos
sujeitos? O que é o motivador do SUS ficar nessa busca tão ativa?

Existe a política sobre o cuidado desse bebê. Então todo bebê que nasce com alto risco
precisa ser acompanhado, o ideal seria se fosse bebês de risco acompanhados pela UBS
sempre acompanhando. Se é alto risco a gente pensa em síndrome de down, paralisia
cerebral. Ser acompanhado num CER para estimulação precoce, estimulação a tempo nessas

84
questões assim. Então existe um cuidado muito grande, para que esse bebê tenha esse
cuidado, pensando na vulnerabilidade do bebê. As vezes são famílias bem carentes ou
crianças que são abrigadas, famílias que nem tem condição de levar o bebê até o Centro de
Reabilitação. Então a gente tem esse cuidado. A ideia é que esse bebê já saia do hospital com
encaminhamento para avaliação especializada no serviço de saúde, no CER, ou se a UBS
identifica que essa criança tem alto risco ou se por exemplo, nasceu prematuro, baixo peso e a
mãe é adolescente, usuária de drogas. Coisas que podem trazer atraso para o
desenvolvimento dessa criança, a gente encaminha direto pro CER.
E a gente tenta o tempo todo estar em conversa UBS e CER. Eu acho que a gente tenta
realmente conversar bastante, a gente tem muito cuidado, a gente tenta acertar isso. E lá no
meu território, acho que é uma rede com crianças com uma questão bem frágil assim. A gente
vê muitas crianças, muitos bebês que tem o cuidado descontinuado e isso é algo que nos
preocupa muito. E a gente tenta fazer esse movimento mesmo, de ligar, mandar e-mail, tentar
essa busca ativa. Aciona os grandes parceiros, aciona o ACS, o ACS tenta buscar, a gente
tenta conversar com a família e se tiver alta a gente tentar fazer reunião e sinalizar de alguma
forma que teve alta por abandono. A gente precisa buscar esse bebê, o CER ir muito junto com
a UBS para isso, e as vezes a UBS junto com o CRAS. É isso, precisa de muita atenção,
precisa de uma rede muito articulada. A gente tenta se articular e nem sempre é efetivo,
acontece muita alta por abandono. A gente tenta ir atrás todo o momento, nesse movimento de
e-mail UBS, tentar ligar pra família, ver o que precisa realmente, aciona serviço social da UBS,
serviço social do CER. As vezes são questões sociais, mas não é só isso, a gente tenta lutar
contra isso: "Você tem três faltas e agora não vai poder vir mais", a gente tenta lutar contra
isso. E tem os outros locais também que podem ser acessados, as APAEs.
Essa redes são vulneráveis?
Muitas vezes só mães, muitas vezes só avó. As vezes a avó assume esse cuidado. A
gente recebe bebê que não tem documento da criança, não tem histórico do parto. Lá no meu
território, pensando na Zona Leste, mais pro extremo, são bebês que tem uma rede muito
vulnerável. Que a mãe já não fez o pré o natal abandonou o pré natal, que os pais perderam a
guarda, que vem de serviços que a gente chama de SAI e tão abrigados. Grande parte mães
que estão lá sozinhas, que precisaram parar de trabalhar para estar lá. Não tem como exigir
muito, pois ela precisou parar de trabalhar e não tem mais aquela renda assim. A gente tentar
acessar várias coisas. Criança que tem necessidade de tomar um leite tal. Como essa mãe vai
comprar o leite? São realmente condições bem vulneráveis assim.

85
Entrevista 3

Segue neste documento a cópia da transcrição realizada a partir do áudio da entrevista


feita no dia 2 de dezembro de 2019. Optou-se aqui por transcrever apenas os trechos de
resposta as perguntas do roteiro de entrevista, e este foi utilizado como base a ser preenchido
e complementado com as transcrições. Comentários, ruídos e palavras corrigidas na própria
fala do entrevistado não foram transcritos.
Além disso, destaca-se que para preservar a identidade da própria entrevistada, sujeitos
e populações atendidas por ele nomes de pessoas, instituições e locais por vezes foram
ocultados apenas por iniciais ou outros, substitutos a fim de manter o anonimato. Seguem com
legendas ao final do texto naqueles que se fizeram necessárias descrições para melhor
compreensão do conteúdo.
Entrevista
1. Apresentação
● Breve história da formação do entrevistado
● Trajetória de atuação, incluindo o serviço que está atualmente inserido

Antes da graduação eu fiz uma formação em dança que começou na adolescência e foi
até depois da graduação, de modo que eu trabalhei com dança e outras técnicas corporais
também na Terapia Ocupacional. Entrei em 1993 na graduação, fiz a graduação já com um
interesse voltado para saúde mental e finalizando a graduação eu fiz o aprimoramento no Caps
Itpv, que se chamava aprimoramento em saúde mental multiprofissional. Que na época tinha
um convênio com a F. [1], esse aprimoramento durou dois anos.
Assim que terminei esse aprimoramento fui fazer minha formação em psicanálise e
[2]
comecei no instituto S.S , com os curso de formação mais introdutórios. Terminando minha
formação lá, eu ingressei em grupos de estudos, que não inseridos em nenhuma escola e nem
uma instituição de formação. Mas assim que eu entrei nos grupos de estudos, passou um
tempo e eu já ingressei em outra instituição (estudos lacanianos) . Então hoje, eu dou aula
também no S.S, um curso de formação de psicanálise, um curso de expansão cultural que se
chama "Introdução a teoria clínica das psicoses, uma abordagem psicanalítica" que é um curso
destinado a quem está atendendo, ou instituição ou em consultório, casos mais graves, em
especial psicose, esse curso está na 12º edição e eu estou como docente faz uns 8 anos.
No CAPS também aconteceu isso, parecido com o S.S, fiz minha formação lá e depois
virei professora. No Caps também, fiz o aprimoramento lá e terminando o aprimoramento já

86
continuei com um contrato inicialmente pontual e depois com a chegada da O.S eu fui
contratada pela SPDE. No Caps meu aprimoramento começou em 1998 e terminou em 2000.
Fiquei lá, assim com vários tipos tipos de contrato até 2013.
Antes de voltar a trabalhar no Caps, quer dizer eu tava lá num contrato menor, eu
trabalhei numa enfermaria psiquiátrica de curta permanência, que era um serviço coordenado
pela U.[3] pelo Hospital P.[4], ligado à ideia da enfermaria de crise, dentro ainda dos serviços
substitutivos da reforma. Então era só crise, a gente trabalhava com pacientes a curto tempo e
depois encaminhava para rede. E era uma rede bem complicada, porque ficava numa região
periférica. Apesar de ser outro município, apesar de ser outra cidade, Município A, ficava numa
região que os serviços eram muito precários, escassos assim. Cobria Município A, Município B,
Município C, Município D[5]. Eram territórios grandes e populosos, mas com uma rede difícil.
Então o Hospital é referência para essas áreas, principalmente A e B.
Trabalhei lá durante seis anos. Trabalhei também no CRIA da U.[3], que é um Centro de
referência da infância e da adolescência, que é uma espécie de ambulatório de atendimento à
infância. E eu trabalhava lá em vários programas: trabalhava no programa de psicoses, que é
de crianças psicóticas ou com autismo, adolescentes em crise e também no que eles
chamavam de ambulatório mesmo, que eram crianças com quadros mais leves, atrasos
escolar, fiquei uns três ou quatro anos lá.
Então corria em paralelo minha formação em psicanálise e junto trabalhando nesses
serviços e sempre serviços mais para o atendimento de casos graves. No Caps eu coordenei o
programa de aprimoramento multiprofissional, eu fui aprimoranda e depois que eu entrei no
contrato da SPDE eu fui coordenadora do aprimoramento. Então eu cuidava da formação que
era destinada para T.O, psicólogo, assistente social e enfermeiro. Também um pouco dos
estágios, tinham estágios que variam a cada ano, tinha estágio da psicologia da P.[6], da
enfermagem da Usp. Então sempre foi um lugar que tinha uma parceria muito grande com as
universidades. Depois começou o programa de residência, que era ligado à U.[3], tinham os
aprimorandos ligados a F. [1] e tinha também a Residência Multi ligada à U.[3], era um lugar com
muitos estudantes. Apesar do aprimorando e residente já serem formados, mas também era
uma formação. Era com contrato de bolsa, também tinha que fazer monografia, formação
teórica. Então eu dava supervisão e coordenava, cuidava da parte teórica que era pensar um
bloco de aulas que desse respaldo para a formação que eles viveriam lá, aulas sobre: grupos,
sobre análise institucional, sobre clínica das psicoses, reforma psiquiátrica, um pouco do que
vocês tem na faculdade mas de uma forma mais pensada pro serviços assim.

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No Caps além do atendimento ligado mais a clínica, eu também coordenei uma oficina
de dança durante uns 10 anos, que era em parceria com a secretária da cultura. A gente fez
algumas apresentações, participou de eventos como o festival de dança do Sesc, alguns
eventos culturais. Era um grupo destinado aos usuários do Caps, mas não só, então as vezes
tinha frequentadores que vinham de outros serviços e frequentadores que não estavam ligados
a nenhum equipamento de saúde mental. Então a ideia era ser um grupo heterogêneo.
Ainda com relação a minha formação, em 2009 eu ingressei no mestrado lá na FE[7]
com uma pesquisa voltada para a arte e psicanálise. Terminei o mestrado em 2012 e em 2016
ingressei no doutorado. Então agora to caminhando pro final do Doutorado, também minha
pesquisa é de algum modo uma continuidade uma continuidade do mestrado, nessa interface
entre arte e psicanálise. Eu estudo um pouco a questão relacionada a estética da clínica, se há
e como que é. O referencial é Freud e Lacan.
No consultório eu to desde 2001, bom assim eu já to há bastante tempo no consultório.
Um pouco antes de atender no consultório, eu trabalhava bastante como Acompanhante
Terapêutica, de casos mais graves também, psicóticos. Acho que no consultório a clientela
costuma ser menos grave. Quando eu fui fazendo um trabalho no consultório eu tive a
oportunidade de atender casos,que no A.T geralmente a autonomia está mais prejudicada e o
comprometimento funcional é maior. Hoje atendo graves também, mas é bem menor, atendo
mais como psicanalista como T.O.
Hoje o que eu faço também é dar bastante supervisão para A.T's, grupos de supervisão
de estudo, de pessoas que querem estudar psicanálise, questões relacionadas ao atendimento
clínico, mais voltada para a instituição ou consultório. Tem muita gente que tá começando um
consultório e quer uma supervisão, ou as vezes a pessoa tá numa instituição mesmo, que a
maioria é uma instituição ligada a saúde mental, mais Caps mesmo, mas tem outras ONGs
também que lidam com crianças em situação de abandono, vulnerabilidade social. Então
também tem as questões relacionadas a saúde mental de um jeito mais amplo assim. E desde
que eu me formei eu fiquei muito voltada para o trabalho institucional na saúde pública, todos
esses serviços tão na saúde pública.
Então assim que eu fui saindo das instituições, eu fui chamada para ser supervisora
institucional de alguns equipamentos. Então eu supervisionei o Caps Infantil Bairro A e Bairro B
[8], Caps IJ do Bairro C e Caps Adulto do bairro D [9]., além de outros Caps fora de São Paulo. O
contrato de supervisão você vai e combina com a O.S ou com quem está custeando o

88
supervisor, aí são supervisões pontuais. Em geral você vai duas vezes ao mês, quinzenal no
geral. Então eu dei bastante supervisão para rede.
E desde 2015, eu estou ligada a um projeto [..], saúde mental paulistana, que é
formação para rede de saúde mental da cidade. Num primeiro momento eu fiquei num módulo
que se chama Redes de Atenção Psicossocial, é um projeto que é do Ministério e da
Secretária da Saúde, em parceria com quatro Universidades que é a P[6] (infância), a
U[10](psicologia social), F.C[11] e U[3]. Então no primeiro momento eu fiquei ligada a formação em
redes, e logo em seguida eu já entrei no projeto de atenção psicossocial em situações de crise
e ao suicídio. E eu to nessa formação e sou responsável pela Leste, que se chama Leste 2,
como a Zona Leste é muito grande eu to em (quatro grandes bairros da zona Leste). To desde
2005 dando essa formação, que em primeiro momento foi pra equipe técnica e agora é uma
especialização para profissionais do ensino médio. O pessoal que tá ali na lida, as vezes até
mais que a equipe técnica, mas que não tem essa formação voltada para saúde mental. Antes
os outros módulos foram destinados aos gerentes de serviços e aos profissionais técnicos e
agora é uma formação voltada aos profissionais de Ensino Médio.
2. Processos de cuidado e produção de vida

● A partir de sua experiência em processos de cuidado: como você


descreveria os itinerários desses processos? Que pontos você considera
mais importantes?
Bom, a ideia... Acho que muda tudo quando a gente pensa o cuidado ligado ao
território, que assim é esse cuidado que é em rede. Que a pessoa pode tá num serviço como
um Caps, na UBS, a depender da necessidade que ela tem no momento. Se ela tá numa
situação que demanda um cuidado intensivo, ela tem que ir para um serviço especializado, que
é o Caps. Se ela tá em crise é o Caps, se o Caps avalia que ela necessita de uma retaguarda
maior pode até pensar num Caps III, se tiver no território ou pensar numa internação nesse
modelo, que é uma internação de curta permanência. Que a ideia é cuidar desse momento de
crise. Mas em geral, quando a gente tá pensando o cuidado, dessa forma mais ligada ao
território a gente precisa pensar numa resposta à crise sem acionar num primeiro momento a
forma clássica, tradicional. A forma clássica e tradicional, é você internar. A gente tenta antes,
recorrer a outras medidas. E a gente deixa essa, que a gente sabe como é, mesmo nos
serviços que são diferentes do hospital psiquiátrico, a gente evita a internação. E as vezes,
evitar a internação também é um cuidado. Porque de algum modo o paciente que tá em crise,

89
tá em risco, que tá numa situação, ele pode estar num momento mais agressivo. Ele
raramente vai concordar ou procurar espontaneamente uma internação, é sempre um momento
mais violento. Então a gente tenta encontrar outras formas, as vezes acionando família, pois
esse usuário tá muito sem vínculos. E as vezes a crise é uma oportunidade de resgate dessa
família, pois no momento da crise os familiares se sensibilizam, aceitam a estar mais próximos.
E aí você vai tentando, a comunidade, a família, os amigos, os serviços, se é um paciente que
tá num serviço como um Caps, se ele já é tratado, acompanhado pelo Caps isso facilita.
E aí num momento que não é mais um momento de crise, é aquele acompanhamento
que vai depender do que o sujeito necessita. As vezes um atendimento pontual na UBS ou
participar de grupos, pensando que a rede não é só os serviços de saúde, a rede é tudo. As
vezes a pessoa participa de uma cooperativa no bairro, as vezes ela participa de uma atividade
num céu. Não é só ligada a saúde, mas sim a todos os serviços, todos os equipamentos, todos
os lugares do território, privados e públicos. As vezes a pessoa está inserida numa escola, se
for criança ou adolescente, pode ser uma escola particular ou uma escola pública, e tanto uma
quanto outra fazem parte dessa rede. São os lugares que o sujeito frequenta e participa. Então
a ideia de evitar uma internação tem haver também com o que a rede cuide dessa crise. Que
em geral as pessoas não estão muito preparadas para cuidar disso, as vezes até os Caps se
sentem sem retaguarda para cuidar de uma crise.
Mas a ideia é essa: Qual é o tipo de cuidado que a pessoa precisa? Se é um cuidado
intensivo ou mais pontual, um acompanhamento que é mais esporádico. Isso vai ser
determinado a partir da necessidade do sujeito.
Você acredita que há formas singulares de cuidado?
Ahh sim. Cada caso é um caso até porque a pessoa, o modo dela estabelecer as
relações, é muito particular. Um usuário do Caps, tem aquele paciente que vai todo dia que
conhece todo mundo, não sai de lá, participa de tudo aquilo. E tem paciente que vai
pontualmente, para alguma consulta, as vezes para algum grupo e olhe lá. E tem paciente que
não vai de jeito nenhum, tem que fazer uma busca ativa. Pra esse que nunca vai, o projeto
terapêutico vai ser um jeito, vai ser pensado como ele pode estar mais presente. Para aquele
que tá todo dia, é pensar como ele tá menos, como ele pode usar a cidade. Aquele que só tá
no Caps, se ele tá instável e só participa dos serviços de saúde é pensar que ele pode
participar de outras coisas da cidade. Nesses dois exemplos que são bem diferentes, o
investimento é o oposto: um você vai chamar mais e o outro você vai mostrar que tem coisas
para além do serviço de saúde.

90
● Pensando o encontro entre o terapeuta e o sujeito/população atendida
como surge a autonomia no processo de cuidado?
De novo, cada caso é um caso. Tem usuários dos serviços, se a gente tá pensando num
Caps, que tem uma autonomia importante: mora sozinho, cuida da sua medicação, trabalham,
cuidam da sua vida de uma forma autônoma até porque nem tem família por perto. E tem
outros pacientes que são mais tutelados, e essa tutela varia muito e as vezes nem é decorrente
da gravidade. Tem casos bem graves que são mais autônomos e tem pessoas que tem mais
condições de ter autonomia e as vezes não tem. As vezes porque o serviço não estimula isso,
as vezes a família tem dificuldade de delegar coisas para esse sujeito fazer ou se
responsabilizar. Mas em geral, os pacientes do Caps, eles costumam em todos os espaços,
pensar na questão da autonomia. A autonomia não é só você andar sozinho, é você poder
escolher o que você quer participar, o que você quer fazer. Enfim, não é só você conseguir se
deslocar sozinho, até se responsabilizar pelo seu desejo. "Não quero mais ir no Caps", por
exemplo, é uma autonomia. "Quero agora fazer outra coisa da minha vida"...
● Considerando a noção de produção de vida associada ao cuidado como
isso aparece na sua experiência?
Eu acho que é bem variável. Por exemplo, tem uma paciente que eu atendo no
consultório, que ela tem uma ótima formação, se formou numa faculdade super legal e tinha
ótimas condições para ter um trabalho legal e tal, mas ela não conseguiu se inserir no mercado
de trabalho. Ela teve uma série de problemas pessoais e ela acabou trabalhando com o pai,
trabalhou com o pai durante muitos anos. E isso de um lado dava uma estabilidade para ela,
ela tava lá e era um lugar que ela não era muito exigida, não era um trabalho muito difícil, o
chefe dela era o pai. É como se ela tivesse em uma situação muito protegida de trabalho, isso
trazia uma insatisfação muito grande. As vezes ela se considerava filha, as vezes ela se
considerava empregada. Não conseguia reivindicar um melhor salário, porque ela achava que
tava numa condição muito especial, ela só tava lá porque ela era filha dele, ela tinha essa
impressão e tal. E aí isso foi um trabalho terapêutico de pensar que ela poderia ter um outro
trabalho, ela poderia batalhar por um outro tipo de trabalho. Essa situação se por um lado trazia
estabilidade financeira, também tava deixando ela com essa consequência de se sentir pouco
profissional, porque dava a impressão que se ela fizesse uma besteira ela não seria demitida.
Ela ganhava mal e ela também trabalhava menos porque ela não achava que ganhava o justo.
E aí o trabalho foi ela conseguir ela conseguir ter a iniciativa e a coragem de largar essa
situação aparentemente confortável e estável para conquistar um outro trabalho. Isso levou que

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ela mudasse de cidade, fosse morar sozinha, porque ela morava com a família. Então isso
produziu nela uma mudança radical de vida, que era mudar de cidade, mudar de trabalho, era
entrar de verdade no mercado de trabalho. E isso pra ela assim, ela se sentiu exigida. Até nas
exigências que poderiam causar uma instabilidade emocional, e ela poder entrar em crise, isso
não aconteceu. Ela ficou mais vigorosa pro trabalho. Ela ficou mais interessada pro trabalho.
Essa situação que ela tava com a família, era muito tutelada, ela estava estagnada.
Eu entendo esse exemplo como produção de vida, e é isso: hoje ela vê sentido no que
ela faz. Ela tem medo de perder o trabalho, isso é importante pra ela, ela se sente necessária.
Então ela conquistou realmente outro patamar com muito custo, com muito medo, medo de ser
demitida. Medo de não dar certo e ela não poder voltar ela pra situação anterior e o pai não
aceitar. E isso foi, ela ter uma trabalho que ela não tinha nenhum interesse, que ela ia forçada e
hoje ela tem um trabalho que ela gosta e tá muito engajada. E isso ampliou, que ela pudesse
mobilizar as relações dela, porque ela tava num lugar que ela só se relacionava com o pai e
outro funcionário. E hoje ela tá numa empresa que ela ampliou as relações de amizade, foi
morar com outras pessoas numa república. Ela tem uma outra vida, uma vida que ela produziu.
É claro que a produção de vida é uma coisa muito subjetiva, você pode continuar com a
mesma vida, de uma outra forma, posicionado de outro jeito. Mas esse exemplo é bem
marcante, a forma como ela tá hoje, me parece que ela tá escolhendo o que ela quer, ela tá
num papel mais protagonista da sua vida. Talvez protagonismo e produção de vida tem uma
dependência, se você não tiver um protagonismo você não produz vida. Pelo menos
considerando desejo.

3. Redes

● O que são redes para você? É possível relacioná-las com a atuação da


Terapia Ocupacional? Como você as identifica em seu cotidiano
profissional?
Quando a gente pensa a ideia da rede é pensar na rede mesmo, ou a rede de pescar,
uma trama. Uma coisa que não tem uma direção, não tem essa coisa verticalizada, tudo que tá
ali tem importância, é similar, é primeiro essa ideia. E depois de pensar que essas conexões
são variadas, não tem uma única direção, uma trama mesmo que pode mudar a depender da
necessidade do sujeito. Pelo menos em saúde mental quando a gente pensa na produção de
saúde, a gente pensa na possibilidade de fazer laços sociais e você faz laços se você cria rede,

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tá em rede. Por exemplo, se você tem um laço social com o seu bairro, com os seus vizinhos,
com a comunidade. Então é a rede com as pessoas que tão ali e os equipamentos que existem
naquele território. Se a pessoa não se sente bem, um dos critérios que a gente pensa quando a
pessoa não tá bem é a precariedade dos vínculos. Em geral o sujeito que conhece poucas
pessoas, que pode contar com poucas pessoas. As vezes ele mora no bairro e não faz ideia do
que acontece ali, tá numa situação mais enclausurada mesmo não estando dentro de um
hospital psiquiátrico. A gente vai avaliar a condição de vida e de saúde pelo laço social e um
outro jeito de falar sobre isso é falar em rede. É isso assim, a estabilidade do sujeito, a
estabilidade psicossocial, tem haver com a produção de laços. A gente vê isso assim. E
quando a pessoa tá mal ela começou a romper com as pessoas, com as unidades que ela tem
vínculo.
E qual é a relação da Terapia Ocupacional com as redes?
É parecido com os outros profissionais da saúde, talvez tenha um acréscimo pelo fato
de ser uma profissão pensada muito a partir do cotidiano. O cotidiano é um elemento
fundamental para área de atuação em terapia ocupacional, desde a formação. Quando você vai
falar em rede, em vínculo, no que o sujeito faz, como ele faz, é falar sobre o cotidiano. E isso é
um tema para T.O já visto desde sempre, desde o primeiro ano da faculdade. Mas eu digo que
todos os profissionais que trabalham na saúde precisam ter essa disposição para o trabalho em
rede e ele não é específico da Terapia Ocupacional. Ele também não é específico do psicólogo,
do assistente social. O trabalho em saúde mental, todo mundo vai escutar, assim como a
escuta não é só do psicólogo. E assim como a escuta não é só do psicólogo, o cotidiano não é
só da T.O. Mas na T.O pelo fato do aluno de graduação ter isso desde o início, quando vai
entrar em um serviço como o Caps, que tem muitas oficinas, que a ideia é pensar o cotidiano
desse sujeito, o PTS (Projeto Terapêutico Singular), isso pra T.O não é uma novidade, pois já é
visto com uma certa regularidade na formação. Mas todo o profissional deve pensar em rede,
se não, não faz, se for de uma categoria só não acontece. Até porque tem serviços que nem
tem T.O, tem UBS por exemplo que não tem T.O. Como faz? Só se trabalha em rede se tem
Terapia Ocupacional? Todo mundo que tá em saúde pública, tem que estar disponível em fazer
o trabalho em redes.

● Como você acessa essas redes no seu trabalho? Qual sua contribuição no
delineamento delas?

93
Hoje eu tô mais distante assim da rede. Quer dizer, no consultório, em qualquer trabalho
que você faz na clínica você pensa na perspectiva da rede. Mas assim, quando eu tava
trabalhando no Caps, ou supervisionando os serviços como o Caps, esse pensamento de
discutir a rede era o tempo todo. Por exemplo, você tá lá lidando com um caso que vem
encaminhado de um serviço tal e as vezes é um caso que não consegue chegar e você precisa
fazer um atendimento compartilhado. Até esse usuário aceitar vir pro Caps você faz um
atendimento lá. Então o trabalho em rede é uma necessidade mais frequente. Como eu te
disse no consultório a clientela, tem os casos graves, e as vezes tem situações de chegar um
caso para atender no consultório que se beneficia muito mais na instituição. Mas mesmo assim,
as vezes a pessoa tem preconceito, não quer ser atendida pelo SUS ou acha que não vai ser
atendida direito. E você precisa criar um trabalho que logo mais precisa cativar as pessoas e as
vezes o caso é tão grave que você imagina na instituição. As vezes o trabalho no consultório é
um trabalho para você motivar essa família e esse sujeito para a instituição. As vezes atender
criança, seja no consultório ou na instituição, sem fazer um trabalho em rede com a escola...
Não tem como atender criança sem atender os pais e a escola, fica muito fragmentado você
fazer um trabalho só com o indivíduo. O trabalho em rede tá pra qualquer profissional que
atende nessa perspectiva mas na instituição isso tá mais concreto, tá acontecendo toda hora e
é uma exigência do trabalho. Um caso grave você não consegue atender sozinho, as vezes
um caso grave você precisa atender em dupla ou entre serviços, compartilhando o caso com
serviços diferentes.
Uma coisa que o próprio Jean Oury fala do Caps, quer dizer lá nem tem Caps, mas que
esses serviços abertos como Caps. Ele fala que os usuários são os pacientes e os familiares, é
quem usa. Não é só o usuário e o familiar como a gente costuma dizer, mas os usuários seriam
todo mundo, os amigos, a vizinhança. Teria que ser um serviço bem aberto que pudesse
acolher a comunidade, um serviço de base comunitária. Bom, to falando do Caps, mas o
trabalho em rede, qualquer tipo de trabalho você precisa pensar na rede. Acho que o
atendimento de crianças deixa isso bem claro.

● Como são vistas as redes dos sujeitos atendidos por você? De que modo
elas são mapeadas?
A depender do território, se você vai numa região muito periférica, por exemplo a região
do extremo sul, diferente da zona leste. Ali por exemplo: Bairro P, Bairro S e Bairro G. E Bairro
P. corresponde a um quarto do território de São Paulo e as vezes pra ela chegar ao serviço são

94
15km e são 15km sem transporte. Entende? E isso inviabiliza. É diferente de você estar num
território que você tem um serviço a dois quarteirões da sua casa, você tem um centro da
juventude, você tem os movimentos sociais, centro cultural. A gente vê por exemplo, em no
bairro T (bairro da Zona Leste), eles não tem tantos equipamentos de saúde, na verdade eles
não tem quase nada, mas eles tem uma rede de movimentos sociais e serviços culturais tão
forte que isso de algum modo supre a saúde. E eles não se sentem tão desamparados e tem
muita coisa ali criada pela própria população, a região ali da Leste é uma região bem politizada
que participa de muitos movimentos sociais têm essas características. Mas juntas e quando
elas tem transporte que viabiliza o deslocamento. A gente vai num território que o transporte é
mais precário, mais difícil, as pessoas ficam isoladas. Até a forma que o transporte tá
organizado vai viabilizar ou não o laço social delas, o acesso ao serviço. Se você tem que levar
seu filho no Caps IJ e demora 4 horas para chegar a pé, você vai entender se a pessoa não for
levar. Tem que entender né. Não dá pra dizer que a pessoa não tá considerando a importância,
é inviável você ter que sustentar um atendimento com essa precariedade toda. Aí você vai ver,
não é só a questão da saúde, as pessoas estão desarticuladas mesmo. A gente considera
tudo, até mesmo as Igrejas e as vezes nem isso tem, ficam num lugar de muito desamparo. A
depender do território, que você vê alguns mais organizados e outros mais hostis. A depender
de como tá organizado o território, você vai ter mais facilidade ou mais dificuldade de fazer sua
rede.
[1] Grande agência de fomento de pesquisas.
[2] Instituto com enfoque nos estudos de psicanálise.
[3] Universidade pública Estadual.
[4] Hospital público vínculo a Universidade Estadual citada em [3].
[5] Municípios adjacentes da zona oeste da grande São Paulo, citados em ordem de
maior populosidade.
[6] Universidade particular de grande porte.
[7] Faculdade de Educação de uma grande universidade pública.
[8] Bairros da zona sul do município de São Paulo.
[9] Bairros da zona leste do município de São Paulo.
[10] Universidade pública estadual da referida faculdade no item 7.
[11] Grande instituição de pesquisa e estudo em saúde.

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