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cena n.

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O teatro de revista e a valorização da


presença feminina nos palcos na década de
1920

Renata Cardoso da Silva


Doutoranda em Artes Cênicas na ECA/USP.
Professora assistente na Escola de Teatro da UFBA.
Email: renatacs@gmail.com

Resumo Abstract

O presente artigo trata da crescente valo- The present work is about the appreciation
rização da presença feminina nos palcos do of female presence in revue theather around
teatro de revista observada a partir de 1920. 1920’s. The women’s participation in public
São abordadas também a participação das spheres and the carrer of Margarida Max – one
mulheres na esfera social, e a atuação da atriz of the majors stars of early 1900 – are also con-
Margarida Max, que ficou conhecida como sidered.
uma das maiores vedetes do início do século
XX.

Palavras-chave Keywords
Teatro de Revista. Emancipação feminina. Mar- Revue Theatre. Female Emancipating. Marga-
garida Max. rida Max.
cena n. 20

Introdução nômicos e culturais mais relevantes ocorridos


ao longo do ano. Da França segue para outros
O teatro foi a grande diversão da sociedade
países da Europa, sendo rapidamente adotado
brasileira até o início do século XX. De acordo
e difundido em Portugal, e daí chega ao Brasil.
com Neyde Veneziano, mesmo não tendo sido
Mesmo chegando em terras brasileiras trazi-
levado a sério pela elite intelectual brasileira, o
do pelos portugueses, o gênero mantém ainda
teatro de revista foi “o mais expressivo e fer-
por várias décadas a estrutura francesa. Aos
vilhante gênero nas primeiras décadas desse
poucos vai conquistando o público e ganhan-
nosso ruidoso século XX” (Veneziano, 1991,
do mais e mais espaço nos palcos brasileiros,
p. 15). No Centro do Rio de Janeiro, as casas
e tomando contornos próprios. O teatro de re-
de espetáculo ficavam lotadas com apresen-
vista foi se diferenciando dos outros sistemas
tações de revistas em até três sessões diárias.
dramatúrgicos, e firmando sua estrutura e con-
Espaço de construção do ideário urbano, a
venções enquanto gênero de teatro musicado
revista era alimentada pelo cotidiano, ao mes-
específico, através das linhas mestras indica-
mo tempo em que era capaz de ditar modas e
das pela dramaturgia. Era um gênero teatral
influenciar fortemente o dia a dia dos espec-
que problematizava o cotidiano, expondo as
tadores. Guardando uma relação muito íntima
questões sociais e políticas de forma caricata
com os anseios e desejos de sua época, o gê-
e paródica, com personagens-tipo, números
nero evolui em paralelo aos eventos citadinos,
de dança e canto, esquetes e apoteoses.
tornando-se uma espécie de projeção dos
Aqui no Brasil, foram necessárias algumas
assuntos em voga no momento de sua apre-
décadas para que o gênero ganhasse força. As
sentação. Embora o foco de produção revis-
primeiras tentativas não foram bem recebidas
teira se desse no Rio de Janeiro, a atividade se
pelo público. A primeira revista apresentada no
alastrou por todo país, em capitais e interiores.
Brasil foi “As Surpresas do Sr. José da Pieda-
Gênero marcado por alto grau de improvisa-
de”, de Justiniano de Figueiredo Novaes, em
ção, a revista se apoiava no jogo estabelecido
1859. Porém, considera-se como o marco ini-
entre a plateia e os atores, com destaque para
cial do teatro de revista brasileiro o espetáculo
os cômicos e as vedetes. Entre as décadas
“O Mandarim”, de Arthur Azevedo, apresenta-
de 1920 e 1960, a cena revisteira sofre diver-
da em 1884. O próprio Arthur Azevedo já ha-
sas transformações, produzidas por diferentes
via feito algumas tentativas fracassadas com o
empresários, e influenciadas por espetáculos,
gênero no Rio de Janeiro, e foi somente após
gêneros e companhias estrangeiros.
viajar para a Europa e assistir às Revistas de
Ano francesas originais que o autor conseguiu
O teatro de revista atingir o público brasileiro, tornando-se um
no Brasil dos mais importantes comediógrafos de sua
época.
O teatro de revista surge no século XVIII,
Em um primeiro momento, a revista era es-
nos teatros de feira de Paris: é a Revista de
truturada através da figura do compadre e da
Fim de Ano, e recebe este nome por “passar
comadre, que eram articuladores do enredo,
em revista” os acontecimentos políticos, eco-
inter-relacionando os quadros, as cenas, e

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respeitando um fio condutor. Dividia-se geral- crimes, às desgraças, à imprensa, ao teatro,


mente em três atos, um prólogo e apoteoses à cidade, ao país” (Veneziano, 2013, p. 128).
no final de cada ato, entremeado por inúme- Tratava dos assuntos cotidianos em linguagem
ros quadros. As apoteoses eram autônomas popular, teatralizada. A crítica política era feita
em relação ao enredo, e geralmente a primeira de maneira cômica, criando sátiras e paródias
apoteose era a mais importante. Esse ainda que envolviam o espectador. Assim sendo, a
era um modelo bem francês. Aos poucos, a re- força do gênero estava “nas mãos do drama-
vista vai perdendo essa estrutura e adquirindo turgo, no desempenho do cômico brasileiro e,
novos formatos. O compromisso com um fio principalmente, nas construções de efeito pa-
condutor, mesmo que tênue, foi sendo aban- ródico” (Veneziano, 2010, p. 55).
donado, e foram desaparecendo as figuras do
compadre e da comadre. As figuras femininas
A valorização
de vedetes e coristas ganham projeção na
feminina nos palcos da revista
cena. Com a primeira guerra mundial, a revis-
ta tende a se nacionalizar, estreitando os laços Veneziano (2011) e Collaço (2008a,b) apon-
com a música popular. Tania Brandão avalia tam a década de 1920 como o início de mu-
que com essa aproximação - que leva aos pal- danças significativas em relação à posição da
cos compositores, instrumentistas, intérpretes mulher no palco revisteiro. Destaca-se a valo-
e passistas - torna-se “notável o papel da re- rização da participação feminina nos espetá-
vista no universo ideológico-sentimental da ci- culos. As vedetes e coristas ganham espaço
dade” (Brandão, 2006, p. 3). em cena, mas em contraponto, perdem a rou-
Uma das principais características do teatro pa...
de revista era sua relação com a atualidade. De O teatro de revista brasileiro sofria gran-
acordo com Collaço (2008b) esse presentismo de influência dos espetáculos estrangeiros,
é o que torna o gênero tão peculiar, mas ao sobretudo, europeus. No início dos anos 1920,
mesmo tempo se torna um obstáculo ao seu o Brasil recebeu a visita de duas grandes com-
entendimento nos dias atuais. As novidades, panhias de revista: a Ba-ta-clan, francesa, em
os eventos da atualidade, os grandes eventos 1922, e a Velasco, espanhola, em 1923. Tais
sociais eram a matéria-prima da revista. O su- grupos foram responsáveis por significativa
cesso dos espetáculos se dava em parte pelo transformação nos rumos do gênero teatral.
grande poder de comunicação com a plateia Dirigida por Madame Rasimi, a trupe francesa
que os atores e as atrizes exerciam. As situa- lançou “a revista brasileira na rota, até então
ções do dia a dia eram apresentadas em lin- não experimentada, da féerie1, onde o luxo e a
guagem popular, fortalecendo o vínculo com a fantasia tornavam-se primordiais” (Veneziano,
plateia. 1991, p.43). Segundo Veneziano, “bem mais
A revista traçava um panorama do que ha- que uma companhia, a Ba-ta-clan foi um mar-
via acontecido no ano anterior em várias áreas, co que determinou uma guinada na história do
destacando os principais fatos “relativos ao dia
a dia, à moda, à política, à economia, ao trans- 1 “Termo francês que vem de fée que quer dizer ‘fada’. O
porte, aos grandes inventos, aos pequenos termo passou a designar um gênero de espetáculos mágicos
e deslumbrantes” (Faria, 2012, p. 442)

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nosso Teatro de Revista” (Idem, p.44). A trupe se resolveram a modificar o systema


antigo de fazer revistas. Eram melho-
fez história, e deixou rastros que culminaram
res ou peores? Fica a opinião de cada
na criação de outras companhias com moldes um com cada qual. Do que se cogi-
semelhantes no Rio de Janeiro: a Tro-lo-ló, de ta saber é que foi M. Pinto quem pri-
meiro apresentou as revistas-feeries,
Patrocínio Filho e Jardel Jércolis (recém-che- revistas encantadas e de moldes di-
gado da Europa) e a Ra-ta-plan, dirigida por fferentes aos até então estabelecidos.
E venceu: venceu no Carlos Gomes,
Luiz de Barros (Ibidem, p.44). venceu no antigo São Pedro, venceu
De forma parecida a companhia Velasco, em São Paulo, venceu em toda a parte
onde a Companhia Margarida Max se
dirigida por Don Eulogio, influenciou os pal- apresentou e sempre para triumphar.
cos brasileiros. Segundo Laura Cascaes, “as (A Batalha, edição de 19/04/1930, pá-
gina 6. Foi mantida a grafia original3)
revistas cariocas passaram a fazer referências
desde trajes típicos espanhóis até trajes fla-
Este foi um aspecto importante de mudança
mencos” (CASCAES, 2009, p. 105). A Velasco
na produção revisteira, que nas décadas se-
retornou ao Brasil em 1925, e em 1928 dois
guintes passou a se preocupar cada vez mais
de seus integrantes se desligaram da compa-
com o acabamento e a qualidade dos cenários
nhia e fixaram residência no Rio de Janeiro.
e figurinos, com a beleza das mulheres, e em
Lou e Janot atuaram em diversas revistas, e
manter uma unidade plástica no espetáculo.
chegaram a ser contratados como bailarinos
Tal unidade se revelava também no corpo das
e coreógrafos da Companhia Margarida Max2
mulheres. Com a maior exposição do corpo, as
(Cascaes, 2009). Atingir o padrão europeu de
coristas que antes podiam ser “gorduchinhas e
qualidade plástica era uma meta para o teatro
desengonçadas” (Collaço, 2008a, p. 237) per-
de revista brasileiro.
dem espaço para mulheres com corpos escul-
Dentre as inovações trazidas pelas
turais, numa beleza padronizada. As mulheres
trupes estrangeiras, as mais impactantes di-
ganham mais espaço na cena, na medida em
zem respeito às mudanças referentes aos as-
que o apelo erótico mais explícito ganha força.
pectos visuais da cena, sobretudo o figurino
As mulheres tiravam as meias, exibiam
das vedetes e coristas. As artistas francesas
pernas e seios, e o nu feminino deixava de ser
exibiam figurinos padronizados e luxuosos, o
estático para ganhar novas dimensões e pro-
que significava uma maior organização plás-
porções na cena. Vera Collaço identifica nessa
tica do espetáculo. A propósito da estreia do
época um “recuo do pudor4” relacionado ao
espetáculo “Femina”, o jornal A Batalha pu-
corpo feminino revisteiro e aborda “como o
blicou o seguinte, na seção “Drama Comédia
afrouxamento das coerções e o fortalecimento
Revista”:
da visibilidade, exposição e do prazer propor-
A Velasco e Rasimi vieram fazer um cionado pelo corpo sexuado e sensual foram
bem, ou um mal? Por que foi só de- apropriados e retrabalhados no palco revistei-
pois da vinda ao Brasil de esses dois
elencos que os empresarios cariocas ro através de suas vedetes e girls” (COLLAÇO,

3 Disponível em http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/
2 Margarida Max foi uma das vedetes mais famosas do teatro Acesso em 02 set 2015
de revista nas décadas de 1920 e 1930. A companhia que le-
vava seu nome era um dos bem sucedidos empreendimentos 4 Expressão cunhada por Anne-Marie Sohn (Collaço, 2008b,
de Manoel Pinto. p.2)

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2008b, p. 02). A autora avalia ainda que “a diferentes tarefas domésticas.


A divisão sexual do trabalho estaria
apropriação, por parte destas artistas, de seu
então profundamente relacionada com
próprio corpo para o prazer e a sensualidade, as representações sociais vinculadas
servia de reverberação máxima ao que se per- a mulheres e homens, no sentido de
que o trabalho constitui a própria iden-
cebia no corpo social” (Collaço, 2008b, p. 02). tidade masculina, enquanto as mulhe-
Em relação a essa dicotomia entre o corpo tea- res estão como que “provisórias” no
mundo do trabalho, reforçando a va-
tral e o corpo social, considera que estando no lorização diferenciada entre homens e
palco, expondo-se à visibilidade, as vedetes e mulheres, e hierarquizando os gêne-
ros. (Tedeschi, 2012, p. 30)
girls fazem avançar a fronteira do pudor mais
rapidamente que no social, ganhando, dessa
Os papéis sociais geralmente atribuídos às
maneira,
mulheres estavam relacionados à maternidade
espaço e autonomia para tomar conta e à domesticidade, demarcando assim os es-
de seu corpo, para mostrar seu corpo, paços sociais reservados às mulheres, como
para achar uma brecha dentro da so-
ciedade encabeçada por homens que comenta Tedeschi (2012):
a circundava, brecha essa ao se assu-
mir como “objeto de desejo” (...) Ela se a fim de garantir sua permanência no
assume como uma mulher irresistível e espaço privado do lar, passam a ser
encantadora, além do desenvolvimen- construídas as representações sobre
to do seu papel como atriz, e toma as características e capacidades es-
conta da revista de maneira arreba- pecificamente femininas, entre elas, a
tadora, não apenas lado-a-lado com relação de afeto com a criança, o amor
os grandes atores cômicos, mas indo inato da mãe, o sentimento materno,
além, ocupando mais e mais espaços unindo todas as mulheres em torno
no palco. (Collaço; Santolin, 2009, p. dessa única função. É assim que as
07) características biológicas – a materni-
dade inscrita no corpo feminino – pas-
sam a assumir um significado social
Tedeschi alerta para o fato de que “a história (p. 18).
do corpo feminino é contada pelo olhar mas-
culino, estabelecendo, através dos discursos,
uma ‘natureza feminina’, voltada unicamente Emancipação feminina
para a maternidade e a reprodução” (2012, p. e espaços de sociabilidade
15). O autor afirma que a subordinação femini- No início do século XX ainda eram reserva-
na tem sido legitimada através do emprego de das à mulher as atividades domésticas e fami-
argumentos extraídos da natureza, da religião, liares. A Primeira Guerra Mundial, entretanto,
do político. acaba impulsionando transformações eco-
nômicas e sociais que tornaram as fronteiras
O imaginário social naturalizou a divi-
são do trabalho, explicando-a como entre o feminino e o masculino menos preci-
decorrente das características biológi- sas. As mulheres ampliam seus espaços de
cas de cada sexo. (...) Tanto homens
como mulheres foram convencidos sociabilidade, convivência e participação ativa
de que aos primeiros cabia prover a na vida econômica e política da sociedade e
existência natural da família e, às se-
ocupam espaços antes prioritariamente mas-
gundas, “devido à sua natureza”, ge-
rar filhos, cuidá-los ao longo da vida culinos.
e encarregar-se ao mesmo tempo das Assim, as mulheres buscaram “entrar na es-

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fera pública”, a partir do estudo, da atuação anos vinte há uma justaposição de melindro-
profissional em carreiras antes masculinas, da sa e mãe-esposa/dona de casa, consideran-
constituição de organizações feministas, e do do que as novas modas e o novo padrão de
consumo (Besse apud Bonadio, 2007, p. 38). feminilidade adotados por estas mulheres se
Bonadio comenta que essa transformação da configurariam como um exemplo de pseu-
mulher em agente consumidor permite que doemancipação: “as mulheres passavam a ter
ela se aproxime do espaço público. E esclare- uma aparência mais jovem, podiam sair sozi-
ce que o ato de sair de casa para fazer com- nhas para as compras e fazer passeios pela
pras, ainda que para o abastecimento do lar, cidade, mas continuavam se preocupando em
teve maior desenvolvimento entre as mulheres manter o casamento e principalmente a honra
após a Primeira Guerra Mundial, com as novas e a moral da mulher casada” (Ibidem, 2007, p.
estruturas de comércio - como as feiras livres 196). Ou seja, mudaram as roupas, os cabelos,
nos bairros. Logo a atividade passou a ser ta- e os hábitos, mas a base da feminilidade con-
refa diária, e se aliou ao lazer e à individualida- tinuava a mesma.
de feminina (Bonadio, 2007). Parece-me que a mulher deseja sua eman-
A autora afirma que em meados da década cipação, quer sustentar tal aparência, porém
de 1920, com a expansão das lojas de depar- ainda não encontra meios de fazê-lo em sua
tamentos, a confecção de roupas prontas ad- totalidade, desvencilhando-se das amarras se-
quire novo status, e os produtos de vestuário culares da sociedade androcêntrica. Segundo
ganham a liderança entre os itens de consumo Bonadio, “no caso brasileiro, o movimento da
feminino. Bonadio associa essa valorização à nova feminilidade se achava muito mais dire-
vontade da mulher da época de “adequar-se cionado à moda e aos costumes cotidianos
à modernidade, à paisagem urbana, exibindo do que à liberação sexual ou às preocupações
as últimas novidades da moda como capital político-trabalhistas” (2007, p.135). Andrade
simbólico” (Bonadio, 2007, p. 40). Ao investi- afirma que
gar a seção de moda da Revista Feminina e
os anúncios do Mappin Stores, a pesquisado- a mulher passou a ser integrada (vo-
tando e até chegando a ocupar lugar
ra conclui que ambos visam a comercializar de destaque em determinados em-
novas imagens para a mulher e promover o preendimentos desenvolvidos no es-
paço público, como o teatro) quan-
consumo como modo de vida – mais do que o do não se colocou como diferença,
vestuário ou artigos de beleza, o que as lojas quando não trouxe consigo o desejo
de projetar um universo próprio de in-
vendem é o modo de vida da melindrosa, por teresses e questões, como as resul-
exemplo. E comenta: “a moda feminina trans- tantes de pertencer ao sexo feminino
numa sociedade de estrutura patriar-
mite aos outros a identidade de uma mulher, calista (Andarade, 2008, p. 17).
ou de um grupo de mulheres, ou aquela com a
qual a consumidora em questão se identifica, Desse modo, a mudança no comportamento
identidade não necessariamente ligada ao pa- ocorre ainda de maneira pouco profunda, sem
pel que a sociedade lhe reserva” (Idem, 2007, a compreensão das singularidades femininas.
p. 193). Nesse sentido, verifica que na imagem A autora avalia que quando as mulheres co-
das mulheres das camadas altas e médias dos meçaram a se autorrepresentar, “percebemos

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o quanto as imagens do feminino divulgadas linear e uniforme subsistência feminina, pro-


pela cultura, construídas a partir de oposições porcionada pelo casamento, aos espaços e
binárias, isto é, a partir de contraposições a modelos permitidos através do imaginário do
um conceito de masculino, também por sua circo, do teatro e do cinema.
vez, cerceador, aprisionaram comportamen- Brandão (2012) assinala que a aproximação
tos” (Andarade, 2008, p. 21). entre atrizes e prostitutas no Brasil contami-
nou o contorno da profissão, principalmente
nos segmentos em que o corpo da atriz era
Ser mulher e artista veículo importante para a comunicação com a
Se a inserção da mulher no mercado de tra- plateia (como acaba se configurando o teatro
balho era complicada, mais dificuldade ainda de revista). Para a autora, essa aproximação é
encontravam aquelas que desejavam seguir compreensível na medida em que as atrizes e
carreiras artísticas. Mesmo as atrizes famosas os atores
e aclamadas pelo público sofriam preconcei-
tos e rejeição em suas vidas cotidianas por erigiram o seu espaço de expressão
como espaço de representação e via-
causa de suas escolhas profissionais. Abraçar bilizaram a sua sobrevivência e a so-
o mundo do teatro poderia ser uma possibili- brevivência de sua arte como realida-
de autônoma, (...) e o fizeram com o
dade de emancipar-se, e ascender socialmen- uso público de seus corpos, vitrines
te fora do casamento (para o que as mulheres para a exposição do jogo sensorial
e ideal contemporâneo, em uma co-
encontravam diversos obstáculos), no entanto, municação direta, pessoa a pessoa,
transgressora, mediada pela carne
em razão do forte preconceito que (Brandão, 2012, p. 456).
rondava então a profissão de atriz,
considerada até mesmo, em determi-
nados casos, uma variante do exercí- Nesse sentido, era natural que os atores e
cio da prostituição, isso só seria, em atrizes se projetassem como “o polo humano
geral, permitido às que já faziam parte
daquele mundo por meio dos laços fa- capaz de irradiar as sensações importantes
miliares ou às que tinham origem es- para a vida social de seu tempo. E o teatro da
trangeira e que, por estarem afastadas
dos núcleos repressivos originais, em
época passou a se construir ao redor de ve-
busca de melhores condições de vida, detes, monstros sagrados, seres especiais aos
viam com menos desconfiança esse quais se atribuía um valor espetacular” (idem,
tipo de manifestação artística (Anda-
rade, 2008, p. 12). p. 457).
A imagem da vedete se estabelecia, assim,
Virgínia M. S. Maisano Namur, ao tratar da a partir dessa duplicidade de valores. Uma mu-
história de Dercy Gonçalves, avalia que a atriz lher que, na sociedade patriarcal, não serviria
assumiu sua marginalização ao desistir de um para ser esposa e mãe, mas que era identifi-
casamento que por um lado lhe proporciona- cada – sobretudo pelo imaginário masculino –
ria crédito social, mas por outro lhe renderia como uma mulher “distante do cotidiano, com
um cotidiano turbulento, por conta de precon- truques e sensualidades, com personalidade”
ceitos, ciúmes e desconfianças (Namur apud (Collaço; Santolin, 2009, p. 6).
Andarade, 2008, p. 82). A autora contrapõe a Veneziano (2011) afirma que por volta de

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1920 o teatro de revista era a maior diversão está o gato? De Geysa Bôscoli e Luiz Iglésias,
do brasileiro, e a vedete, a principal atração. e Guerra ao mosquito, de Marques Porto e
E enumera, entre as exigências para as can- Luiz Peixoto.
didatas ao posto privilegiado, os seguintes Em Comidas, meu santo! De Marques Por-
requisitos: boas cantoras, com requebrados e to e Ary Pavão, Margarida Max desempenhava
gingados, corpos que valorizassem figurinos seis personagens: Estrella, O Beijo, Radioma-
bem cuidados, decotes generosos e pernas nia, Alexandrina (mulata), Louca e Comidas.
bem torneadas à mostra. E ressalta o brilho, à Sobre sua atuação, escreveu Mário Nunes no
época, de Margarida Max. Jornal do Brasil:

A Sra. Margarida Max faz nada me-


Margarida Max, nos de seis papeis e nem um só de-
sagradou. O “Beijo” e “Radiomania”
uma estrela com múltiplas faces são dous números de canto, e não só
a sai voz se comporta bem como sua
Margarida D’Alexandre Tocatelli (1902 – physionomia interpreta, com malícia, o
1956) nasceu em São Paulo capital. Filha de sentida da letra. Alexandrina, a mulata,
está nas suas cordas, o que não acon-
italianos, foi criada em Franca, onde era co- tecerá com a Louca, em que evidencia
nhecida por Margarida do Max, nome de um qualidades de actriz dramática dignas
de applauso. Pôde, com o especta-
noivo com quem rompeu ao ir embora da cida- culo de hontem vangloriar-se a Sra.
de acompanhando uma companhia de teatro Margarida Max de haver subido mais
um degrao da escada que a vae levan-
mambembe. Egressa da comédia, chegando do a uma justa popularidade (Jornal
ao Rio de Janeiro rapidamente triunfou no tea- do Brasil, 05/06/19255. O parágrafo foi
transcrito mantendo a grafia vigente à
tro de revista.
época).
Alcançou o posto de vedete por reunir di-
versas qualidades: era dotada de belíssima
Muito querida pelo público e pela crítica, a
voz, viera da comédia, tinha uma beleza sedu-
atriz reinou nos palcos cariocas entre as déca-
tora, agia com desembaraço e simpatia ante
das de 1920 e 1930, sendo famosa por seu ca-
a plateia, usava o duplo sentido de forma ma-
risma e pelo profissionalismo com que exercia
liciosa em cena. Tornou-se uma das maiores
nas diversas funções que exercia. Sua carreira,
vedetes das revistas cariocas das décadas de
contudo, não foi longa. Morreu jovem, com 54
1920 e 1930. Lançou canções que tomaram o
anos, em 1956, já afastada dos palcos.
país, estreitando os laços com a música popu-
Além de vedete, atriz e cantora, foi tam-
lar brasileira.
bém empresária, à frente de sua própria com-
Sua estreia nas revistas foi em 1920, com
panhia – a Companhia de Revistas Modernas
Pé de Anjo, de Carlos Bitencourt e Cardoso de
Margarida Max, produzida pela empresa Pin-
Menezes. Mas sua estreia como estrela acon-
to & Neves – obtendo sucesso em um meio
teceu em 1924, com À La Garçonne, de Mar-
de trabalho prioritariamente masculino. Ainda
ques Porto e Afonso de Carvalho, revista que
que não tenha sido a primeira atriz brasileira
atingiu enorme êxito. A crítica apontou Marga-
rida Max como a melhor atriz do ano. Desta-
cam-se ainda sua atuação nas revistas Onde 5 Disponível em http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/
Acesso em 30 mai 2015

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à frente de uma empresa, o feito é digno de danças das sociabilidades e práticas culturais
reconhecimento e registro. A modernidade era cariocas, bem como às transformações relati-
uma característica atribuída à estrela inclusi- vas aos papel feminino na sociedade” (2009,
ve pelos periódicos da época, como pode ser p. 24).
observado na edição de dezembro de 1929 do
jornal A Batalha:

Num momento em que ninguém acre-


ditava, Margarida Max organizou uma Referências
companhia de revistas das melhores
que o Rio já teve. Com o seu encanto ANDRADE, Ana Lúcia Vieira de; CARVALHO,
irresistível de vedetta cheia de moder-
nidade e savoir-faire foi a animadora Ana Maria de Bulhões (org.). A mulher e o tea-
brilhante do conjuncto que nos deu al- tro brasileiro do século XX. São Paulo: Aderal-
gumas revistas optimas no Carlos Go-
mes. (A Batalha6, 24/12/1929, p. 6 – foi do & Rothschild; Brasília, DF: CAPES, 2008.
mantida a grafia original)
BONADIO, Maria Cláudia. Moda e sociabili-
Mais um exemplo da personalidade van- dade: mulheres e consumo na São Paulo dos
guardista da atriz pode ser verificado na edi- anos 1920. São Paulo: Editora Senac São Pau-
ção de 21 de dezembro de 1929 do jornal A lo, 2007.
Batalha, na qual aparece publicada uma lista
com o nome de todas as mulheres do Rio de BRANDÃO, Tania. A cidade do teatro e o teatro
Janeiro que tinham permissão para dirigir à da cidade: imagens do Rio de Janeiro no teatro
época. Eram ao todo 122 “representantes do de revista dos anos 1920. Usos do Passado
sexo frágil” (A BATALHA, 21/12/1929, p. 02), e – XII Encontro Regional de História – ANPUH-
entre elas estava Margarida Max. Em fevereiro RJ, 2006.
de 1930, a estrela é apontada como a artista
que maiores vencimentos teve até a data, no BRANDÃO, Tania. Os grandes astros. In FARIA,
Brasil. A vedete bate o recorde dos ordenados João Roberto (org.) História do teatro brasilei-
teatrais, ultrapassando a marca anteriormente ro, volume I: das origens ao teatro profissional
conquistada por Leopoldo Fróes, então con- da primeira metade do século XX. São Paulo:
siderado um dos melhores atores do país (A Perspectiva: Edições SESCSP, 2012, p. 455-
Batalha, 14/02/1930). Margarida Max obteve 477.
sucesso tanto no teatro de revista quanto no
teatro declamado, era adorada pelo público e CASCAES, Laura Silvana Ribeiro. Queria bor-
saudada pela imprensa. Sobre o desempenho dar teu nome: a Dança no Teatro de Revista.
das funções de atriz e empresária, Laura Cas- Florianópolis, 2009. Dissertação de Mestrado
caes assinala que a artista “muito contribuiu – UDESC.
para projetar o imaginário da modernidade
em relação às modificações cênicas, às mu- COLLAÇO, Vera Regina Martins. As aparên-
cias mutantes de um corpo que se desnuda.
6 Disponível em http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/ Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cê-
Acesso em 02 set 2015

195 Cardoso // O teatro de revista e a valorização da presença feminina nos palcos na década de 1920
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196 Cardoso // O teatro de revista e a valorização da presença feminina nos palcos na década de 1920

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