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Ciclo “Caminhos do

t e at r o b r a s i l e i r o ”

A revolução Nelson
Rodrigues *
João Roberto Fa r i a Professor Titular
de Literatura
Brasileira na USP.
Para Sábato Magaldi É pesquisador
do CNPq e

A
coordenador
ntes de tudo eu quero agradecer à Academia Brasileira de da coleção
Letras o convite para proferir uma palestra sobre Nelson “Dramaturgos do
Brasil”, da editora
Rodrigues, um dos dramaturgos brasileiros que mais admiro. O tí- Martins Fontes.
tulo desta palestra – “A revolução Nelson Rodrigues” – me foi pas- É autor dos
sado pelos organizadores deste evento como uma espécie de “lição seguintes livros:
José de Alencar e o
de casa”, que aceitei prazerosamente por concordar com sua ideia teatro; O teatro
central: Nelson Rodrigues foi de fato uma peça-chave no processo realista no Brasil:
de modernização do teatro brasileiro, quando escreveu suas primei- 1855-1865; O
teatro na estante e
ras peças no início da década de 1940, e, especificamente como idéias teatrais: o século
dramaturgo, revolucionou a nossa dramaturgia, como procurarei XIX no Brasil. Em
demonstrar a vocês, com uma análise da peça Vestido de noiva. 2008, publicou,
Do teatro: textos
Mas não posso começar sem antes dizer que aqui em meu lugar críticos e escritos
melhor figura faria meu professor e amigo, o Acadêmico Sábato diversos, no qual
Magaldi, que é quem mais profundamente estudou a obra dramática reuniu a produção
crítica de
Machado de Assis
sobre teatro.
* Conferência proferida em 10 de maio de 2011.

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de Nelson Rodrigues. Dedico a ele esta palestra, exprimindo assim o meu re-
conhecimento e a minha dívida para com os seus estudos críticos, que tanto
me ensinaram e ensinam.
Comecemos por algumas considerações sobre o teatro brasileiro no início
da década de 1940, momento em que o jornalista Nelson Rodrigues surge no
cenário teatral. Em termos concisos, podemos dizer que o teatro profissio-
nal ia muito bem, com o grande público satisfeito com o teatro de revista, por
um lado, e com o teatro declamado, por outro. Impressiona folhear a coleção
do Boletim da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) da década de
1930, na qual podemos acompanhar, mês a mês, o repertório apresentado
no Rio de Janeiro, São Paulo e em várias outras localidades. O predomínio
absoluto das peças brasileiras – comédias em primeiríssimo lugar – é notável,
por revelar o prestígio extraordinário dos nossos dramaturgos junto às com-
panhias teatrais e ao público. Um jornalista da Gazeta de Notícias, Astério de
Campos, fez um balanço do sucesso desse repertório entre 1931 e 1941. Vale
a pena ler o trecho transcrito no Boletim da SBAT de abril de 1941:

“Do honesto exame e cotejo entre as comédias brasileiras e comédias


estrangeiras, exibidas em nosso palco, concluímos positivamente que o pú-
blico dá o maior apreço às nossas. É insofismável o resultado estatístico,
por exemplo, no período de 1931 a 1941, isto é, nos dez anos últimos de
nosso movimento teatral. Na confrontação, a que se procedeu, rigorosa-
mente, verificou-se o seguinte: as comédias dos nossos autores, que tiveram
mais de cem representações, no Brasil, naquele período, foram as dos co-
mediógrafos, assim dispostos em ordem alfabética: Armando Gonzaga – O
hóspede do quarto n.o 2 e O maluco n.o 4; Abadie Faria Rosa – Suicídio por amor;
Ernani Fornari, que teve a Medalha de Mérito, concedida pela Associação
Brasileira de Críticos Teatrais, – Iaiá Boneca e Sinhá moça chorou...; Joracy Ca-
margo – O bobo do rei, Deus lhe pague, Anastácio e Maria Cachucha; José Vanderlei
– Compra-se um marido; Luiz Iglesias – Onde estás, felicidade?; Oduvaldo Vian-
na – Amor e feitiço; Paulo de Magalhães – O interventor, Saudade, A ditadora, O
marido n.o 5, Flor de família e Feia; Renato Vianna – Divino perfume; Raimundo

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A revolução Nelson Rodrigues

Magalhães Júnior – Carlota Joaquina; e Viriato Corrêa – Bombonzinho, Sansão


e A marquesa de Santos.
O que é mais importante ainda é o fato corrente: Deus lhe pague, de Jo-
racy Camargo, O interventor, de Paulo Magalhães, estreadas pela companhia
Procópio Ferreira, e Amor, de Oduvaldo Vianna pela Companhia Dulcina-
Odilon, naquele período dos dez anos, já ultrapassaram quatrocentas re-
presentações, em nosso país, por várias Companhias e elencos.
É um realce da comediurgia nacional, que não admite nenhum paralelo,
até porque, no mesmo período, enquanto alcançavam, no Brasil, vinte e
quatro comédias de autores brasileiros, mais de cem representações, apenas
uma, unicamente uma comédia estrangeira – Rosário – logrou a centena de
espetáculos”1.

Esse balanço – que não leva em conta o teatro de revista – dá uma ideia
perfeita da realidade teatral brasileira do período. Por ele sabemos quais são
os autores e as peças de maior sucesso, informações às quais podemos acres-
centar que os artistas mais aplaudidos foram Procópio Ferreira, Dulcina de
Moraes e Jaime Costa.
O crítico Henrique Oscar, lembrando as principais realizações teatrais na
virada da década de 1930 para a de 1940, observa que também faziam suces-
so, com comédias históricas sentimentais ou comédias leves e despretensiosas,
artistas como Olga e Delorges Caminha e Eva Todor, que deixou o teatro de
revista em 1940 e ingressou no teatro declamado, formando uma companhia
dramática com o marido, Luiz Iglesias2.
Essa fortaleza muito bem estruturada, o teatro profissional, parecia ina-
balável no início da década de 1940. Havia autores, peças e público – um
público popular –, em perfeita sintonia. Com rapidez, exceto pelos suces-
sos já apontados, as peças se sucediam no cartaz, ensaiadas o bastante para
os artistas conhecerem os lugares que ocupariam no palco, as características

1 Boletim da SBAT, n.o 202, abril de 1941, p. 11.


2 Cf. Dionysos, n.o 22, dezembro de 1975, p. 113.

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principais dos personagens que iriam interpretar, as deixas, e memorizarem


na medida do possível as suas falas – nas apresentações, as falhas de memória
eram socorridas pelo Ponto.
Para alguns setores mais intelectualizados, faltava ao nosso teatro profis-
sional maior rigor artístico. Sua estrutura e funcionamento vinham do século
XIX; o teatro era mais um negócio, um entretenimento do que uma arte. E
estava atrasado em relação às outras manifestações artísticas do país, que se
encontravam em acelerado processo de modernização, desde a Semana de
Arte Moderna de 1922. O teatro brasileiro ficou à margem desse processo,
ao contrário da poesia, da prosa, da pintura, da música e da escultura. E as
poucas tentativas que houve – de um Renato Vianna, de um Álvaro Moreyra
e de um Flávio de Carvalho – não frutificaram.
A insatisfação com esse estado de coisas fez surgir no Rio de Janeiro, ini-
cialmente, e depois em São Paulo e no Recife, grupos estudantis e amadores
preocupados em elevar o nível artístico dos espetáculos. O Teatro do Estu-
dante, criado por Paschoal Carlos Magno, em 1938, inaugurou o combate
ao “velho teatro”, com montagens bem cuidadas, de peças que não figuravam
no repertório das companhias dramáticas profissionais, como Romeu e Julieta,
de Shakespeare (espetáculo de estreia, dirigido por Itália Fausta), e o belo
drama de Gonçalves Dias, Leonor de Mendonça. Também em 1938 surge o grupo
amador Os Comediantes, que só consegue estrear em janeiro de 1940, com
A verdade de cada um, de Pirandello, direção de Adacto Filho e cenário de Santa
Rosa. No segundo espetáculo, o grupo apresentou Uma mulher e três palhaços, de
Marcel Achard.
Essas primeiras iniciativas não se constituíram em ameaça imediata à hege-
monia do teatro profissional. Aos poucos, porém, o público carioca foi tendo
conhecimento de uma nova forma de fazer teatro. Em 1941, impedido de vol-
tar à França por conta da guerra, um dos grandes renovadores do teatro fran-
cês, Louis Jouvet, permaneceu no Rio de Janeiro e apresentou nessa cidade e
em São Paulo, em 1941 e 1942, uma boa parte do repertório de sua compa-
nhia dramática: A escola de mulheres, Os ciúmes de Barbouillé e Le medecin malgré lui,
de Molière; Knock, de Jules Romains; Ondine, Electra, La guerre de Troie n’aura pas

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A revolução Nelson Rodrigues

pieu e Judith, de Jean Giraudoux; L’annonce faite à Marie, de Paul Claudel, e várias
outras peças. O que se deve salientar é que Jouvet imprimia a seus espetáculos
uma marca pessoal, a do diretor que se encarregava de harmonizar os elemen-
tos todos da montagem: texto, interpretação, cenografia, figurinos, música,
iluminação. A importância de sua estada entre nós não pode ser minimizada.
Aos brasileiros acostumados ao trabalho técnico do ensaiador, ele revelava o
trabalho artístico do encenador moderno. Como escreveu um estudioso do
assunto, Walter Lima Torres, “a maior contribuição da passagem de Jouvet foi
a possibilidade de seu trabalho, esta forma nova de pensar e apresentar a cena,
poder ter sido assimilada pelos artistas da prática teatral do período”3.
De fato, sabe-se que Jouvet manteve contato com o grupo Os Comedian-
tes. Como afirma a pesquisadora Tania Brandão, “o diretor francês teria re-
comendado aos líderes do grupo que valorizassem a literatura nacional, para
pensar em obter um teatro de qualidade. E a busca de um autor nacional teria
se tornado uma obsessão, ao mesmo tempo em que o grupo era juridicamente
organizado”4.
No mesmo ano de 1941, a guerra faz desembarcar no Brasil o encenador
polonês Ziembinski, que trazia em sua bagagem uma boa experiência com o
teatro moderno europeu. No final do ano ele já estava colaborando com o
grupo Os Comediantes.
A conjunção de fatores não poderia ser melhor para os jovens empenhados
em criar um teatro de qualidade artística, em termos modernos. Na tempo-
rada de 1943, entre os espetáculos apresentados pelo grupo Os Comedian-
tes, o destaque ficou com Vestido de noiva, a segunda peça escrita por Nelson
Rodrigues, que, sob a direção de Ziembinski e com cenários de Santa Rosa,
maravilhou a plateia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, na noite de 28
de dezembro.

3 Torres, Walter Lima. “A turnê do Teatro Louis Jouvet no Rio de Janeiro e São Paulo”. In: O Percevejo,
n.o 10/11, 2001/2002, p. 130.
4 Brandão, Tania. Uma empresa e seus segredos: Companhia Maria Della Costa. São Paulo: Perspectiva, 2009,

p. 87.

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Os historiadores do nosso teatro, com poucas exceções, consideram o es-


petáculo um marco da modernidade teatral, que teria enfim chegado ao nosso
país. A partir desse momento, não se podia mais ignorar ou negar a impor-
tância do diretor ou encenador. Ziembinski – como antes Jouvet – havia
mostrado que todo o espetáculo fora feito sob sua orientação. A iluminação,
os recursos sonoros, as inflexões dos artistas, a construção dos cenários, tudo
fora harmonizado pela sua visão artística.
A repercussão do espetáculo junto aos críticos teatrais não foi muito gran-
de, porque não era costume dar atenção aos espetáculos feitos por amadores.
Mas os elogios vieram até mesmo dos críticos ligados ao “velho teatro”, como
Lopes Gonçalves e Raimundo Magalhães Júnior.
Reconhecido o mérito do encenador Ziembinski, vejamos agora alguns
comentários sobre a peça Vestido de noiva, porque, se houve uma revolução no
palco do Teatro Municipal, ela se deveu em primeiro lugar ao dramaturgo que
escreveu o texto posto em cena. Não houvesse a peça, a história do moderno
teatro brasileiro seria outra e não estaríamos aqui para falar da “revolução
Nelson Rodrigues”.
Ruy Castro, biógrafo do dramaturgo, transcreve várias opiniões favoráveis
à peça, principalmente de escritores e intelectuais – não de críticos teatrais
que militavam na imprensa –, no livro O anjo pornográfico. Entre elas, pode-se
destacar a que diz respeito ao tema desta palestra. Segundo Ruy Castro, Car-
los Lacerda – que na época gostava de teatro e logo escreveria algumas peças
– “deu uma conferência no Teatro Phoenix, dizendo que Nelson Rodrigues
estava revolucionando a linguagem do teatro mundial”5.
Exagero à parte, sejamos modestos em admitir que a revolução dizia respei-
to à dramaturgia brasileira, como aliás reconheceu o principal crítico literário
em atividade no país, Álvaro Lins. Num entusiasmado estudo de Vestido de noi-
va, depois de assinalar as qualidades dessa “tragédia da memória”, ele conclui
dizendo: “Tenho comigo que Nelson Rodrigues está hoje no teatro brasileiro

5 Castro, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992,
p. 176.

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A revolução Nelson Rodrigues

como Carlos Drummond de Andrade na poesia. Isto é: numa posição excep-


cional e revolucionária”6.
Se o julgamento favorável de Álvaro Lins teve o peso de vir de alguém
que era uma autoridade no terreno da crítica literária, o que dizer dos elo-
gios que Vestido de noiva ganhou de um dos maiores poetas brasileiros, Manuel
Bandeira? Em dois artigos, ele qualificou o autor como “poeta”, “um grande
poeta”, e a peça como “admirável” e “obra-prima”. E mais: afirmou que não
se tratou apenas de um triunfo da mise en scène o que ocorreu na noite de 28
de dezembro: “O drama em si adquiriu extraordinário relevo, concretizou-se
em inesquecíveis imagens plásticas, assumiu aos nossos olhos iluminados uma
realidade, ou antes, uma super-realidade mais forte, mais prestigiosa, mais
humana”7.
Outro poeta, Augusto Frederico Schmith, também fez elogios a Nelson
Rodrigues, chamando-o, numa carta pessoal, de “inovador e renovador”. Afir-
mou também que “Vestido de noiva é mais que uma peça – um processo e uma
revolução”8.
A repercussão do espetáculo nos meios literários e intelectuais e, principal-
mente, os artigos de Álvaro Lins e Manuel Bandeira, explicitando as inovações
dramatúrgicas e a qualidade artística de Vestido de noiva, projetaram o nome de
Nelson Rodrigues no Rio de Janeiro e no país. Quando o grupo Os Come-
diantes se apresentou em São Paulo, em junho e julho de 1944, um jovem crí-
tico, Décio de Almeida Prado, em início de carreira que seria fecunda, fez uma
apreciação sobre o espetáculo e a peça de Nelson Rodrigues, na qual apontou
as inovações no terreno da encenação e da dramaturgia. Escreveu, então:

“A importância da peça do Sr. Nelson Rodrigues para o teatro brasileiro


é enorme. Causa mesmo espanto ver repentinamente surgir do nada que
é o nosso teatro, quase por milagre de geração espontânea, um autor com

6 Lins, Álvaro. “Uma tragédia da memória”. In: Rodrigues, Nelson. Teatro completo. Rio de janeiro: Nova

Aguilar, 1993, p. 192.


7 Bandeira, Manuel. “Vestido de noiva”. In: Rodrigues, Nelson. Teatro Completo, op. cit., p.183.
8 Cf. Rodrigues, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. Rio de Janeiro: Record, 1977, p. 132.

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tanta audácia, que procura, logo nas primeiras tentativas teatrais, dominar
virtuosisticamente o meio de expressão artística que escolheu”9.

Décio fez uma bela análise da peça, por um lado elogiando sua “forma
propositadamente complexa”, seu “conteúdo psicológico”, seu “enredo dra-
mático interessante por si mesmo”, e, por outro, criticando alguns pontos que
julgou mais fracos. No saldo positivo de suas considerações críticas, louvou
a ousadia de Nelson Rodrigues, que procurou “novos caminhos” e sacudiu
“a pasmaceira que vai por aí”. Suas palavras finais vêm ao encontro do tema
desta palestra:

“Vestido de noiva é uma peça excepcional para o nosso meio e um excelente


ponto de partida. Dela, guarde o Sr. Nelson Rodrigues a capacidade ima-
ginativa com que ideou a história e a figura de Alaíde e a audácia com que
procurou revolucionar a técnica do nosso pobre teatro, tão necessitado de
alguns revolucionários”10.

Já é tempo agora de demonstrar a pertinência das palavras dos críticos


aqui mencionados, no que diz respeito ao caráter revolucionário de Nelson
Rodrigues como autor dramático – palavras escritas no “calor da hora”, por
intelectuais renomados, cujas opiniões críticas merecem atenção ainda hoje.
Não vou, pois, tratar do espetáculo, isto é, da encenação de Ziembinski, dos
cenários de Santa Rosa, da iluminação ou da interpretação dos artistas. O que
pretendo agora é observar de perto a peça Vestido de noiva, para buscar em seus
elementos de forma e conteúdo aquilo que pode ser caracterizado como novo,
como revolucionário, em relação à dramaturgia existente no Brasil.11

9 Prado, Décio de Almeida. “Os Comediantes em São Paulo”. In: Folhetim: Teatro do Pequeno Gesto

(Especial Nelson Rodrigues), n.o 29, 2010/2011, p. 96.


10 Idem, p. 100.
11 Aproveito, a partir deste ponto, parte do ensaio “Nelson Rodrigues e a modernidade de Vestido de

Noiva”, que publiquei no livro O Teatro na Estante (Cotia: Ateliê Editorial, 1998, pp. 113-142).

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A revolução Nelson Rodrigues

A certa altura de seu livro de memórias, A menina sem estrelas, Nelson Ro-
drigues afirma o seguinte sobre Vestido de noiva: “Como todos os meus textos
dramáticos, é uma meditação sobre o amor e sobre a morte. Mas tem uma
técnica especialíssima de ações simultâneas, em tempos diferentes”12.
Tomemos essas palavras como ponto de partida e ampliemos o seu signi-
ficado, levando em conta que a primeira ordem de considerações diz respeito
ao conteúdo e a segunda à forma. O que Nelson Rodrigues quis dizer com
“técnica especialíssima de ações simultâneas, em tempos diferentes”?.
A resposta está no artigo “Teatro desagradável”, que ele publicou em 1949,
no primeiro número da revista Dionysos:

“Eu me propus a uma tentativa que, há muito, me fascinava: contar uma


história, sem lhe dar uma ordem cronológica. Deixava de existir o tempo dos
relógios e das folhinhas. As coisas aconteciam simultaneamente. Por exem-
plo: determinado personagem nascia, crescia, amava, morria, tudo ao mesmo
tempo. A técnica usada viria a ser a de superposições, claro. Antes de começar
a escrever a tragédia em apreço [Vestido de noiva], eu imaginava coisas assim:
– A personagem X, que foi assassinada em 1905, assiste em 1943 a um ca-
samento, para, em seguida, voltar a 1905, a fim de fazer quarto a si mesma...
Senti, nesse processo, um jogo fascinador, diabólico e que implicava,
para o autor, numa série de perigos tremendos. Inicialmente, havia um
problema prático: a peça, por sua própria natureza, e pela técnica que lhe
era essencial e inalienável, devia ser toda ela construída na base de cenas
desconexas. Como, apesar disso, criar-lhe uma unidade, uma linguagem
inteligível, uma ordem íntima e profunda? Como ordenar o caos, torná-lo
harmonioso, inteligente?”13.

Quem leu ou viu Vestido de noiva no palco sabe muito bem que a ação dramá-
tica da peça não se apresenta em ordem cronológica e acontece em três planos:

12 Rodrigues, Nelson. A menina sem estrelas. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 84.
13 Rodrigues, Nelson. “Teatro desagradável”. In: Dionysos, n.o 1, 1949, p. 17.

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o da realidade, o da memória e o da alucinação. Para contar uma história


aparentemente simples, de uma irmã que rouba o namorado da outra e se
casa com ele, Nelson Rodrigues subverte o modelo convencional da peça com
começo, meio e fim, e nos dá um enredo formado por fragmentos, cenas des-
conexas que vão aos poucos encaixando-se umas às outras, à maneira de um
quebra-cabeça. A aparência à primeira vista é a de um caos, porque as cenas
sucedem-se em tempos e espaços diferentes, mas simultaneamente, por força
da divisão da peça em três planos. Como a passagem de um plano a outro é
feita apenas com uma mudança de luz, o dinamismo da ação dramática é ex-
traordinário. Cada fragmento joga para o leitor/espectador uma informação
essencial a respeito dos personagens, principalmente de Alaíde. E com esses
dados a trama constrói-se na recepção do texto ou do espetáculo, sem a ne-
cessidade de cenas preparatórias ou de explicações prévias.
Décio de Almeida Prado, na crítica mencionada há pouco, elogia Nelson
Rodrigues por ter utilizado uma “técnica revolucionária” na construção da
peça e não se ter perdido no labirinto que é a ação dramática posta em cena:
“Se o público (ou o leitor) – diz ele – seguir com atenção e inteligência o
que vai se desenrolando, não só acabará compreendendo perfeitamente o que
aconteceu, como acabará conhecendo, nos limites do possível, a vida psicoló-
gica inteira de uma mulher”14. Está claro que as dificuldades enfrentadas por
Nelson Rodrigues na composição de Vestido de noiva foram vencidas. Respon-
dendo às perguntas que ele fez a si mesmo, na citação lida pouco acima, po-
demos dizer, com suas próprias palavras, que ele conseguiu não só dar à peça
“uma unidade, uma linguagem inteligível, uma ordem íntima e profunda”,
mas também “ordenar o caos, torná-lo harmonioso, inteligente”.
Se fizermos uma comparação de Vestido de noiva com as peças brasileiras mais
bem-sucedidas na virada dos anos 1930 para os anos 1940, perceberemos
por que estamos falando aqui da “revolução Nelson Rodrigues”. Peças como
Carlota Joaquina, de R. Magalhães Júnior; Maria Cachucha, de Joracy Camar-
go; Iaiá Boneca, de Ernani Fornari; ou A marquesa de santos, de Viriato Corrêa,

14 Prado, Décio de Almeida. “Os Comediantes em São Paulo”, op. cit., p. 96.

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A revolução Nelson Rodrigues

apresentam-se como tributárias da estrutura da “peça benfeita” do século


XIX. São peças que não dispensam a ordem cronológica na apresentação dos
fatos, apoiando-se na exposição do conflito no primeiro ato e nos desdobra-
mentos que seguem uma lógica rigorosa até o desfecho, para impedir desvios
de rota ou surpresas que desafiem o entendimento do espectador. Tal estru-
tura pressupõe um encadeamento das cenas em que a que vem antes prepara
a seguinte e assim sucessivamente. É uma espécie de mecânica cênica que o
crítico teatral mais influente da França, na segunda metade do século XIX,
Francisque Sarcey, definia como “a arte das preparações”. O dramaturgo que
não soubesse preparar o rumo do enredo ou a transformação de um persona-
gem ganhava duras restrições desse crítico que, preso à convenção, não soube
compreender nem o teatro naturalista, nem o gênio de Ibsen.
O espectador da “peça benfeita” acostuma-se com a convenção teatral e
acompanha o enredo com expectativas que vão se cumprindo de acordo com
o que está acostumado a ver nos palcos. Se, no início de uma peça, duas mo-
cinhas enfrentam obstáculos à sua felicidade porque uma prima solteirona faz
intrigas, o que vem a seguir só pode ser o esclarecimento dos quiproquós e
confusões, o desmascaramento da vilã, com sua devida punição, e a felicidade
dessas mocinhas enfim conquistada. É o que vemos em Iaiá Boneca, com mais
algumas poucas complicações de enredo vinculadas ao seu pano de fundo his-
tórico, situado nos tempos da regência, em 1840. Não quero dizer, com esse
exemplo, que as peças escritas de acordo com o esquema da “peça benfeita”
sejam ruins. Ao contrário, o sucesso que muitas obtiveram é uma demonstra-
ção inequívoca de que funcionavam muito bem no palco. Seus autores tinham
pleno domínio da chamada “carpintaria teatral”. O problema é que haviam
esgotado uma fórmula, repetindo procedimentos e modelos que impediam o
teatro brasileiro de se modernizar, tanto no terreno da dramaturgia quanto
no da encenação. Na maioria das vezes, esses autores escreviam peças por
encomenda, para fazer brilhar atores e atrizes que eram donos de companhias
teatrais. Para o grande público, por sua vez, não importava muito a peça que
ia ser encenada, mas sim se estariam em cena Procópio Ferreira, Dulcina de
Moraes ou Jaime Costa.

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João Roberto Faria

O surgimento de Nelson Rodrigues pôs em questão a hegemonia da dra-


maturgia da época, essencialmente cômica. No número de janeiro-fevereiro-
março do Boletim da SBAT, R. Magalhães Júnior escreveu um artigo intitulado
“Em defesa da farsa”, no qual se defendia dos intelectuais que, após a tem-
porada de Os Comediantes, desferiram ataques aos dramaturgos então em
evidência, que só escreviam comédias. Dizia, então:

“Pela vontade dos críticos improvisados que se manifestaram sobre a


iniciativa, devíamos ser todos linchados (...). Sou um dos autores de farsas
do Brasil (...). Não me envergonharei disso. Uma dessas farsas representou
um dos maiores êxitos de bilheteria do teatro brasileiro de todos os tem-
pos, provando que nesses dias sombrios o público quer rir”.

Magalhães Júnior admite que o grupo Os Comediantes deu “um passo


em favor do progresso artístico, procurando impor um gênero até aqui quase
proscrito”, mas não abre mão de escrever comédias, até porque, a seu ver,
“fazer rir é muitas vezes mais difícil do que fazer chorar”15.
Nos dois números seguintes, o Boletim da SBAT traz artigos que elogiam os
dramaturgos do teatro profissional. Para Mateus da Fontoura, em “Aspectos
da evolução do teatro brasileiro”, “possuímos escritores à altura do teatro
universal contemporâneo”16. Com o significativo título “A dívida de glória
dos nossos artistas aos autores dramáticos”, Sérgio Peixoto escreve um texto
para dizer que artistas como Dulcina de Moraes, Procópio Ferreira, Bibi Fer-
reira, Jaime Costa, Eva Todor e vários outros se consagraram graças às peças
brasileiras que representaram: “o repertório nacional tem sido e continuará
sendo a fonte de glória de muitos artistas.”17.

15 Magalhães Júnior, R.. “Em defesa da farsa”. In: Boletim da SBAT, n.o 221, jan/fev/mar 1944, p. 11.
16 Fontoura, Mateus da. “Aspectos da evolução do teatro brasileiro”. In: Boletim da SBAT, n.o 222, abr/
mai/jun 1944, p. 27.
17 Peixoto, Sérgio. “A dívida de glória dos nossos artistas aos autores brasileiros”. In: Boletim da SBAT,

n.o 223, jul/ago/set 1944, p. 27.

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A revolução Nelson Rodrigues

A defesa do “velho teatro” e os ataques à revolução trazida pelo grupo Os


Comediantes e por Nelson Rodrigues aparecem ainda no final de 1944, em
mais um número do Boletim da SBAT, agora na pena de Daniel Rocha (“Os sete
fôlegos do teatro nacional”). Escreve ele:

“Já disse alguém que no Brasil, todos entendem de tudo. É possível que
isso não corresponda à verdade. Mas o fato é que se convencionou promo-
ver os indivíduos que não entendem de outra coisa a entendidos de teatro.
Os suplementos dominicais de nossos periódicos enchem-se de doutri-
na sobre o assunto, firmada por ‘ilustres entendidos’ que os nossos intér-
pretes, os nossos autores, e até mesmo o nosso público, desconhecem por
completo.
E apesar disso o nosso teatro progride. E progredindo dá dinheiro a
ganhar aos empresários, aos artistas e aos autores! Isso talvez desperte um
sentimento natural de revolta. Se as outras atividades intelectuais não ren-
dem coisa alguma ou apenas alguma coisa que não justifica uma atividade,
por que motivo o Teatro e a sua literatura hão de ser uma notável fonte
de renda de um núcleo de privilegiados? E a campanha para tomar de as-
salto esse setor tão nutrido do nosso debilitado organismo literário, logo
se organizou. Como fazer rir é uma arte muito difícil e esses homens, em
geral, são mal humorados, o ‘teatro para rir’ ficou no índex desses Catilinas
da cena nacional. Como disse Raimundo Magalhães Júnior com grande
felicidade, o ‘Delenga Cartago’ da campanha é ‘O Drama ou a Morte’ (...).
Esses demolidores de tudo que é nosso querem reduzir o público a uma
elite de ‘cerebralizados’ capazes de compreender as sutilezas de um mas-
sante Giraudoux; ou o simbolismo de um poeta como García Lorca; ou os
recalques metafísicos de Lúcio Cardoso ou enfim o Teatro psíquico de um
Nelson Rodrigues”18.

18Rocha, Daniel. “Os sete fôlegos do teatro nacional”. In: Boletim da SBAT, n.o 224, out/nov/dez
1944, p. 8.

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João Roberto Faria

A citação é longa, mas, ao lado das anteriores, dá uma ideia da reper-


cussão dos espetáculos apresentados pelo grupo Os Comediantes. Como o
destaque da temporada foi Vestido de noiva, que punha em cheque a dramatur-
gia de viés cômico, sentiam-se incomodados os autores do chamado “teatro
para rir”.
Voltemos mais uma vez nossa atenção para a peça de Nelson Rodrigues.
Acima, afirmei que o autor não se pautou pela estrutura da “peça benfeita”,
rompendo com a ordem cronológica na apresentação dos fatos e não se do-
brando à velha ideia de que uma cena deve preparar a seguinte e assim suces-
sivamente, até o desfecho. De fato, é só começar a leitura para percebermos
que a ação começa com uma cena no plano da alucinação (a ida de Alaíde a
um bordel à procura de Madame Clessi), que é subitamente interrompida por
outra, que se passa no plano da realidade, na redação de um jornal. Esta cena,
por sua vez, é curta, e logo o foco volta ao bordel, para em seguida recair sobre
o plano da realidade, num diálogo entre os pais de Alaíde.
Nelson Rodrigues, sintonizado com os anseios de modernização teatral
no Brasil dos anos 40, radicalizou o processo de fragmentação da ação
dramática em Vestido de noiva. O primeiro ato não “prepara” os subsequen-
tes e nem cria expectativas no leitor/espectador, pois não há um conflito
armado com clareza nas cenas iniciais. Propositadamente, o dramaturgo
subverte o tempo cronológico e nos oferece uma sucessão de cenas que,
fragmentariamente, põem diante dos nossos olhos uma mulher atropelada,
à beira da morte, que sofre uma cirurgia enquanto escapam de sua mente e
se materializam no palco algumas imagens de um passado recente e outras
que parecem fazer parte de um sonho ou de um delírio. Em suma, não há
pistas, não há ganchos, mas cenas que se superpõem, como se fossem qua-
dros independentes entre si.
O segundo e o terceiro atos são construídos com os mesmos procedimen-
tos. A ação dramática caminha sem uma ordenação lógica, no sentido con-
vencional do termo; a cronologia tampouco é obedecida, pois o que se tem é
uma mescla de lembranças e de fantasias de Alaíde, tudo articulado com tanto
domínio da técnica de ações simultâneas em tempos diferentes que a certa

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A revolução Nelson Rodrigues

altura rompem-se as barreiras que separavam o plano da memória do plano


da alucinação, sem que isso afete a unidade do enredo.
Uma das principais consequências da escolha formal do dramaturgo é que
apenas ao final da leitura ou da representação o leitor ou o espectador con-
seguem organizar mentalmente a trama, que se revela de uma simplicidade
espantosa, conforme já assinalado. Alaíde rouba o namorado da irmã e casa-se
com ele. Infeliz no casamento, vê a situação inverter-se: a irmã ameaça roubar-
lhe o marido. Boa parte da peça gira em torno da crise conjugal da protago-
nista, que não teria nada de surpreendente se a rival não fosse a própria irmã.
A isso junta-se outro dado fundamental: no sótão da casa dos pais, Alaíde
encontra o diário de Madame Clessi, uma mundana que foi assassinada em
1905 por um rapazote apaixonado. Ao mesmo tempo em que vive seu pró-
prio drama pessoal, Alaíde não consegue refrear a curiosidade sobre os fatos
que envolveram Madame Clessi e chega a frequentar a Biblioteca Nacional,
para ler em jornais antigos as notícias sobre o assassinato.
A crise conjugal de Alaíde e sua curiosidade em relação à mundana foram
apenas os pontos de partida de Nelson Rodrigues. O trabalho maior e mais
importante veio depois, quando o autor escolheu o ponto de vista “narrati-
vo”, isto é, o foco de onde emanam as imagens da matéria ficcional: a mente
de Alaíde. Essa escolha possibilita que se leia Vestido de noiva de duas maneiras
pelo menos: por um lado, pode-se considerar que os três planos da peça
materializam-se a partir das imagens mentais de Alaíde; por outro, pode-se
considerar que o plano da realidade é exterior à mente da personagem, e que
apenas os outros dois resultam das suas lembranças e fantasias.
De qualquer modo, o que importa salientar é que no cerne da ação dramá-
tica há um foco subjetivo, uma mente perturbada e em franca desagregação.
Os assuntos que vêm à tona sofrem, obviamente, as consequências desse fato.
As lembranças de Alaíde irrompem aos pedaços, sem ordem cronológica, mis-
turadas aos devaneios e sonhos que alimentam a sua alma. A forma complexa
da peça, como se vê, é homóloga à consciência da protagonista.
Vale observar, também, que Vestido de noiva é um grande flashback , recurso
que começou a ser utilizado no teatro com as possibilidades abertas pela

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João Roberto Faria

utilização da iluminação elétrica. Mas o mais provável é que Nelson Ro-


drigues tenha colhido a sugestão no cinema dos anos 30 e 40, que usou e
abusou do flashback, e no qual encontramos uma característica semelhante à
que vemos em sua peça: o personagem colocado próximo da morte ou de
uma situação problemática no início do filme começa a narrar o seu passa-
do, que então se materializa em imagens. Muitas vezes, o diretor apresenta
o flashback numa sequência temporal cronológica, mas há casos em que essa
técnica ganha complexidade com desdobramentos da ação no tempo e no
espaço. Sem querer forçar uma aproximação, não custa lembrar que o mais
radical e revolucionário dos filmes já feitos e que lança mão da mesma téc-
nica cinematográfica utilizada por Nelson Rodrigues no teatro é Cidadão
Kane, de Orson Welles, uma produção de 1941. À morte do protagonista,
no início do filme, segue-se a ação entrecortada por vários fragmentos que
contam sua vida e que são introduzidos, como não poderia deixar de ser,
com o recurso do flashback.
Vejamos agora mais de perto como funcionam e como estão organizados
os três planos de Vestido de noiva, bem como alguns possíveis significados das
cenas criadas por Nelson Rodrigues. Investiguemos em que medida a peça é
“uma meditação sobre o amor e sobre e morte”.
O plano da realidade, se o compreendermos como exterior à mente de Ala-
íde, traz ao palco o corpo inerme da protagonista numa mesa de operação, os
comentários vulgares dos médicos e dos jornalistas e, no final, algumas cenas
que dão continuidade ao enredo presente no plano da memória. Em outras
palavras, após a morte de Alaíde, Pedro e Lúcia revelam num diálogo que o
atropelamento fora providencial e, passado um tempo, decidem casar-se. Na
última cena, é o fantasma de Alaíde que aparece no plano da realidade para
dar o buquê à irmã, numa imagem que se congela, ao som da marcha nupcial
e da marcha fúnebre, significando talvez a estreita vizinhança que pode haver
entre o amor e a morte. Ou significando também a presença incessante de
Alaíde na mente cheia de remorsos de Lúcia.
O plano da realidade, nos primeiros dois atos e na parte inicial do terceiro,
é construído com pequenos flashes, cenas curtas que informam o que se passa

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A revolução Nelson Rodrigues

com o corpo da protagonista. A nota dominante, como já observaram alguns


críticos, é a vulgaridade, a anedota de mau gosto, uma certa queda para o
grotesco, a indiferença diante do sofrimento humano. É o que se percebe nas
intervenções dos médicos, dos jornalistas e da mulher que testemunhou o
atropelamento.
O plano da memória, por sua vez, nos coloca diante do conflito principal
da peça. No primeiro ato, os rápidos e curtos diálogos entre Alaíde e Pedro
revelam um casal em crise, uma esposa insatisfeita e infeliz. Mais que isso,
Alaíde revela-se um tanto perturbada emocionalmente, queixa-se de que o
marido não lhe dá atenção e provoca-o com ameaças de tornar-se prostituta
ou de abandoná-lo. No auge da crise conjugal, Alaíde, agredida fisicamente
pelo marido, fere-o com uma barra de ferro e acredita tê-lo assassinado, expri-
mindo dessa forma o desejo de matar o homem que destruiu os seus sonhos
de felicidade: “Eu não gosto de você! Deixei de gostar há muito tempo! Desde
o dia do nosso casamento...”19, ela lhe diz. Mas a cena é uma pista falsa: Alaíde
não assassinou o marido.
A personagem criada por Nelson Rodrigues tem larga tradição na lite-
ratura. A mulher irrealizada no casamento, insatisfeita e infeliz é um ar-
quétipo, um tipo humano universal que aparece em muitas obras literárias,
principalmente a partir do século XIX. Em Madame Bovary, de Flaubert, por
exemplo, a protagonista decide-se pelo adultério na procura da felicidade;
em Casa de boneca, de Ibsen, Nora abandona marido e filhos para escapar da
“prisão doméstica”. No caso de Vestido de noiva, Alaíde não tem tempo de
escolher um caminho, pois morre em plena crise conjugal. Mesmo assim,
o que ela sugere no plano da memória, nos curtos diálogos com Pedro,
ganha corpo no plano da alucinação. Mais adiante veremos o significado
mais profundo de sua curiosidade ou interesse pela vida e pelos amores de
Madame Clessi.
Se o primeiro ato, no plano da memória, apresenta um casal em crise, o
segundo põe em cena a terceira ponta do triângulo amoroso: Lúcia, irmã de

19 Nelson Rodrigues, Teatro Completo, op. cit., p. 359.

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João Roberto Faria

Alaíde. Significativamente, todos os diálogos entre elas ocorrem minutos an-


tes do casamento, com revelações surpreendentes, seja da constante rivalidade
entre ambas no passado, em relação aos homens, seja dos planos futuros de
Lúcia, que incluem roubar o marido da irmã, com quem diz ter um caso.
São diálogos tensos, de forte impacto dramático, que obviamente afetaram o
relacionamento de Alaíde com Pedro, como comprovam as cenas do primeiro
ato, cronologicamente posteriores.
No segundo ato, portanto, o plano da memória não só dá consistência ao
enredo, como revela as possíveis origens da infelicidade conjugal de Alaíde,
insegura e temerosa diante da irmã.
Fora isso, um outro dado merece ser destacado: a desagregação da memória
da protagonista, que traz implicações para a forma da peça. Já no início do
segundo ato, Alaíde queixa-se a Madame Clessi, dizendo que sua memória
está ruim. Em seguida, o próprio dramaturgo enfatiza numa rubrica expli-
cativa: “A memória de Alaíde em franca desagregação. Imagens do passado
e do presente se confundem e se superpõem”20. Mais à frente, a personagem
afirma, aflita: “Tudo está embaralhado na minha memória. Misturo coisa que
aconteceu e coisa que não aconteceu. Passado com o presente (num lamento).
É uma misturada”21.
É por essa razão que Alaíde não consegue saber quem é a mulher de véu
que está com ela nos minutos que precedem seu casamento com Pedro. A
memória em frangalhos recupera-se apenas no final do segundo ato, momen-
taneamente, para a revelação surpreendente: a mulher de véu, a rival, era Lúcia,
a própria irmã.
As consequências mais importantes desse processo ocorrem no terceiro e
último ato: são abolidas as fronteiras entre os planos da memória e da aluci-
nação. Alaíde confunde suas lembranças com suas fantasias e os personagens
transitam de um plano a outro, como se pode notar, por exemplo, na cena
entre Clessi e a mãe do namorado, que se passa em 1905, mas no plano da

20 Idem, p. 369.
21 Idem, p. 376.

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A revolução Nelson Rodrigues

memória, ou nos momentos em que Pedro, Lúcia e a mãe de Alaíde contrace-


nam no plano da alucinação.
Na verdade, o terceiro ato liberta Alaíde do esforço ordenador da memó-
ria, deixando-a livre para revelar-se por inteiro, em termos de interioridade,
processo aliás que é dominante em todo o plano da alucinação, sem dúvida o
mais importante e mais rico da peça.
Aqui, não interessam os fatos, o enredo, mas os fragmentos reveladores
de uma alma dilacerada pelo sofrimento. São os desejos inconscientes que
despontam, como respostas que o movimento interior dá aos estímulos da
vida exterior.
Em termos concretos, o plano da alucinação trabalha os dados apresenta-
dos no plano da memória, no sentido de dar-lhes respostas. Assim, o fato de
ser Alaíde uma esposa infeliz e insatisfeita tem como resposta o desejo de ser
feliz, de realizar-se plenamente como mulher, de ser amada, de ser desejada.
Mas, em vez de dizer tudo isso diretamente, Alaíde o faz através de livres
associações. Em sua mente, Madame Clessi é a mulher amada por excelência.
Por isso, já no início do primeiro ato, quando a procura e lhe dizem que ela
morreu velha, gorda e cheia de varizes, reage com estas palavras: “Mulher
gorda, velha, cheia de varizes não é amada! E ela foi tão amada!”22. Em se-
guida, quando Madame Clessi lhe pergunta: “Quer ser como eu, quer?”, ela
responde com veemência, segundo a rubrica: “Quero, sim. Quero”23. E nós
compreendemos o sentido desse desejo oculto em sua alma.
O mundo da prostituição fascina Alaíde. Seu fracasso no casamento é tam-
bém o fracasso de sua sexualidade, o fracasso de quem não consegue nem
dar nem receber amor. Madame Clessi, ao contrário, vive sua sexualidade na
plenitude, reatualizando o mito da prostituta romântica, capaz de amar e de
morrer por amor, como a conhecida personagem criada por Alexandre Du-
mas Filho, a “dama das camélias”, que aparece indiretamente na peça, na cena

22 Idem, p. 352.
23 Idem, p. 355.

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João Roberto Faria

em que Alaíde mistura o enredo da ópera La traviata com o que leu nos jornais
antigos acerca do assassinato de Madame Clessi.
A citação não é aleatória. Ela reforça o perfil da esposa frustrada, que,
num lapso bastante revelador do que se passa em sua mente, traz à tona esse
arquétipo da prostituta que é a “dama das camélias”, seja no romance ou na
peça teatral de Dumas Filho, seja na ópera de Verdi.
O próprio Nelson Rodrigues admite o fundamento mítico na representa-
ção da prostituição, ao escrever em suas memórias: “Um delírio põe a heroína
num prostíbulo. Logo se percebe que ela estava ferida pela nostalgia da pros-
tituta. Alaíde procura Madame Clessi, a meretriz antiga e fenecida. E assim o
mito da prostituta se irradiava para a plateia e cada espectadora ficava tensa
de sonho”24.
Ao identificar-se com Madame Clessi, ou mesmo ao fingir ser uma pros-
tituta, no primeiro ato, Alaíde, no plano da alucinação, age com liberdade,
revelando suas fantasias, seus desejos inconscientes, sua porção mais íntima.
Não há censura nesse plano, que, inter-relacionado com o plano da memó-
ria, faz de Vestido de noiva uma das mais engenhosas investigações da alma
feminina.
A segunda citação importante traz para a cena o triângulo amoroso for-
mado por Scarlett, Melanie e Ashley, do filme E o vento levou..., que espelha
o que se passa na peça: duas mulheres disputando o mesmo homem. Assim
como Scarlett perde Ashley para Melanie, Alaíde também perde Pedro para
Lúcia. As angústias e aflições da protagonista de Vestido de noiva irrompem no
palco por meio de relações intertextuais que enriquecem o enredo e ampliam
os significados da ação dramática. Alaíde, insatisfeita e infeliz, projeta-se na
figura da prostituta amada e identifica-se com a personagem perdedora vivida
na tela por Vivien Leigh.
A ação dramática fragmentada – emanando de uma mente em desagre-
gação –, os três planos que se interpenetram, a linguagem dos diálogos

24 Rodrigues, Nelson. A menina sem estrelas, op. cit., p. 203.

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A revolução Nelson Rodrigues

– reproduzindo a fala cotidiana sem literatice –, a iluminação e os recursos


sonoros sugeridos nas rubricas são os aspectos formais inovadores que saltam
à vista em Vestido de noiva. Também no que diz respeito ao conteúdo o autor
inovou. A sondagem introspectiva a que é submetida Alaíde, numa perspectiva
visceralmente expressionista, ninguém havia feito antes no Brasil. Ao iluminar
a vida interior de uma mulher às voltas com suas frustrações sexuais, Nelson
Rodrigues atingiu um grau de subjetivação inusitado.
Depois de Vestido de noiva, a “revolução Nelson Rodrigues” continuou em
mais 15 peças, que não teremos tempo de comentar aqui. O autor afrontou
o próprio sucesso, arriscando-se com as chamadas “peças míticas” – peças
como Álbum de família ou Senhora dos afogados –, que receberam todo tipo de cen-
sura, até terem sua poesia resgatada pelo encenador Antunes Filho nos anos
1980. Depois de fazer a descida ao inconsciente primitivo, aos arquétipos
e mitos ancentrais, Nelson Rodrigues escreveu novas “peças psicológicas”,
prosseguindo no caminho aberto por Vestido de noiva, fazendo novas sondagens
introspectivas, como se vê em Valsa n.o 6, por exemplo. O conjunto mais nume-
roso é formado por oito “tragédias cariocas”, cuja característica marcante é a
presença das motivações do subconsciente e do inconsciente no plano da rea-
lidade. Quer dizer, os personagens vivem o dia a dia miserável dos subúrbios
cariocas, com seus costumes e problemas corriqueiros e, ao mesmo tempo,
têm uma vida interior complexa, riquíssima de significados que extrapolam o
senso comum. É o caso de peças notáveis como A falecida, Boca de ouro, Os sete
gatinhos e Toda nudez será castigada.
Como aproveitei aqui a divisão feita por Sábato Magaldi – peças psicoló-
gicas, peças míticas e tragédias cariocas – quando organizou o Teatro completo
de Nelson Rodrigues, nada mais adequado do que encerrar esta palestra com
uma avaliação crítica de sua autoria, que faz justiça à importância da obra do
dramaturgo que revolucionou o nosso teatro. Na conclusão de seu denso pre-
fácio estampado no volume publicado pela editora Nova Aguilar, em 1993,
Sábato Magaldi escreve: “O Teatro completo configura a imagem do renovador
da dramaturgia brasileira moderna, ou, se se quiser, do maior autor teatral

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brasileiro de todos os tempos, do dramaturgo que deu dimensão universal


à nossa literatura dramática. Há um teatro no Brasil antes e outro depois de
Nelson Rodrigues”25. Creio que essas palavras reforçam e complementam a
linha de pensamento que desenvolvi ao longo da palestra.

25 Sábato Magaldi, “Prefácio”, em Nelson Rodrigues, Teatro Completo, op. cit., p. 130. Esse “Prefácio”

havia sido publicado em quatro partes separadas, nos quatro volumes do Teatro Completo da editora Nova
Fronteira, nos anos 1980.

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