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t e at r o b r a s i l e i r o ”
A revolução Nelson
Rodrigues *
João Roberto Fa r i a Professor Titular
de Literatura
Brasileira na USP.
Para Sábato Magaldi É pesquisador
do CNPq e
A
coordenador
ntes de tudo eu quero agradecer à Academia Brasileira de da coleção
Letras o convite para proferir uma palestra sobre Nelson “Dramaturgos do
Brasil”, da editora
Rodrigues, um dos dramaturgos brasileiros que mais admiro. O tí- Martins Fontes.
tulo desta palestra – “A revolução Nelson Rodrigues” – me foi pas- É autor dos
sado pelos organizadores deste evento como uma espécie de “lição seguintes livros:
José de Alencar e o
de casa”, que aceitei prazerosamente por concordar com sua ideia teatro; O teatro
central: Nelson Rodrigues foi de fato uma peça-chave no processo realista no Brasil:
de modernização do teatro brasileiro, quando escreveu suas primei- 1855-1865; O
teatro na estante e
ras peças no início da década de 1940, e, especificamente como idéias teatrais: o século
dramaturgo, revolucionou a nossa dramaturgia, como procurarei XIX no Brasil. Em
demonstrar a vocês, com uma análise da peça Vestido de noiva. 2008, publicou,
Do teatro: textos
Mas não posso começar sem antes dizer que aqui em meu lugar críticos e escritos
melhor figura faria meu professor e amigo, o Acadêmico Sábato diversos, no qual
Magaldi, que é quem mais profundamente estudou a obra dramática reuniu a produção
crítica de
Machado de Assis
sobre teatro.
* Conferência proferida em 10 de maio de 2011.
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de Nelson Rodrigues. Dedico a ele esta palestra, exprimindo assim o meu re-
conhecimento e a minha dívida para com os seus estudos críticos, que tanto
me ensinaram e ensinam.
Comecemos por algumas considerações sobre o teatro brasileiro no início
da década de 1940, momento em que o jornalista Nelson Rodrigues surge no
cenário teatral. Em termos concisos, podemos dizer que o teatro profissio-
nal ia muito bem, com o grande público satisfeito com o teatro de revista, por
um lado, e com o teatro declamado, por outro. Impressiona folhear a coleção
do Boletim da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) da década de
1930, na qual podemos acompanhar, mês a mês, o repertório apresentado
no Rio de Janeiro, São Paulo e em várias outras localidades. O predomínio
absoluto das peças brasileiras – comédias em primeiríssimo lugar – é notável,
por revelar o prestígio extraordinário dos nossos dramaturgos junto às com-
panhias teatrais e ao público. Um jornalista da Gazeta de Notícias, Astério de
Campos, fez um balanço do sucesso desse repertório entre 1931 e 1941. Vale
a pena ler o trecho transcrito no Boletim da SBAT de abril de 1941:
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Esse balanço – que não leva em conta o teatro de revista – dá uma ideia
perfeita da realidade teatral brasileira do período. Por ele sabemos quais são
os autores e as peças de maior sucesso, informações às quais podemos acres-
centar que os artistas mais aplaudidos foram Procópio Ferreira, Dulcina de
Moraes e Jaime Costa.
O crítico Henrique Oscar, lembrando as principais realizações teatrais na
virada da década de 1930 para a de 1940, observa que também faziam suces-
so, com comédias históricas sentimentais ou comédias leves e despretensiosas,
artistas como Olga e Delorges Caminha e Eva Todor, que deixou o teatro de
revista em 1940 e ingressou no teatro declamado, formando uma companhia
dramática com o marido, Luiz Iglesias2.
Essa fortaleza muito bem estruturada, o teatro profissional, parecia ina-
balável no início da década de 1940. Havia autores, peças e público – um
público popular –, em perfeita sintonia. Com rapidez, exceto pelos suces-
sos já apontados, as peças se sucediam no cartaz, ensaiadas o bastante para
os artistas conhecerem os lugares que ocupariam no palco, as características
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pieu e Judith, de Jean Giraudoux; L’annonce faite à Marie, de Paul Claudel, e várias
outras peças. O que se deve salientar é que Jouvet imprimia a seus espetáculos
uma marca pessoal, a do diretor que se encarregava de harmonizar os elemen-
tos todos da montagem: texto, interpretação, cenografia, figurinos, música,
iluminação. A importância de sua estada entre nós não pode ser minimizada.
Aos brasileiros acostumados ao trabalho técnico do ensaiador, ele revelava o
trabalho artístico do encenador moderno. Como escreveu um estudioso do
assunto, Walter Lima Torres, “a maior contribuição da passagem de Jouvet foi
a possibilidade de seu trabalho, esta forma nova de pensar e apresentar a cena,
poder ter sido assimilada pelos artistas da prática teatral do período”3.
De fato, sabe-se que Jouvet manteve contato com o grupo Os Comedian-
tes. Como afirma a pesquisadora Tania Brandão, “o diretor francês teria re-
comendado aos líderes do grupo que valorizassem a literatura nacional, para
pensar em obter um teatro de qualidade. E a busca de um autor nacional teria
se tornado uma obsessão, ao mesmo tempo em que o grupo era juridicamente
organizado”4.
No mesmo ano de 1941, a guerra faz desembarcar no Brasil o encenador
polonês Ziembinski, que trazia em sua bagagem uma boa experiência com o
teatro moderno europeu. No final do ano ele já estava colaborando com o
grupo Os Comediantes.
A conjunção de fatores não poderia ser melhor para os jovens empenhados
em criar um teatro de qualidade artística, em termos modernos. Na tempo-
rada de 1943, entre os espetáculos apresentados pelo grupo Os Comedian-
tes, o destaque ficou com Vestido de noiva, a segunda peça escrita por Nelson
Rodrigues, que, sob a direção de Ziembinski e com cenários de Santa Rosa,
maravilhou a plateia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, na noite de 28
de dezembro.
3 Torres, Walter Lima. “A turnê do Teatro Louis Jouvet no Rio de Janeiro e São Paulo”. In: O Percevejo,
n.o 10/11, 2001/2002, p. 130.
4 Brandão, Tania. Uma empresa e seus segredos: Companhia Maria Della Costa. São Paulo: Perspectiva, 2009,
p. 87.
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5 Castro, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992,
p. 176.
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6 Lins, Álvaro. “Uma tragédia da memória”. In: Rodrigues, Nelson. Teatro completo. Rio de janeiro: Nova
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tanta audácia, que procura, logo nas primeiras tentativas teatrais, dominar
virtuosisticamente o meio de expressão artística que escolheu”9.
Décio fez uma bela análise da peça, por um lado elogiando sua “forma
propositadamente complexa”, seu “conteúdo psicológico”, seu “enredo dra-
mático interessante por si mesmo”, e, por outro, criticando alguns pontos que
julgou mais fracos. No saldo positivo de suas considerações críticas, louvou
a ousadia de Nelson Rodrigues, que procurou “novos caminhos” e sacudiu
“a pasmaceira que vai por aí”. Suas palavras finais vêm ao encontro do tema
desta palestra:
9 Prado, Décio de Almeida. “Os Comediantes em São Paulo”. In: Folhetim: Teatro do Pequeno Gesto
Noiva”, que publiquei no livro O Teatro na Estante (Cotia: Ateliê Editorial, 1998, pp. 113-142).
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A certa altura de seu livro de memórias, A menina sem estrelas, Nelson Ro-
drigues afirma o seguinte sobre Vestido de noiva: “Como todos os meus textos
dramáticos, é uma meditação sobre o amor e sobre a morte. Mas tem uma
técnica especialíssima de ações simultâneas, em tempos diferentes”12.
Tomemos essas palavras como ponto de partida e ampliemos o seu signi-
ficado, levando em conta que a primeira ordem de considerações diz respeito
ao conteúdo e a segunda à forma. O que Nelson Rodrigues quis dizer com
“técnica especialíssima de ações simultâneas, em tempos diferentes”?.
A resposta está no artigo “Teatro desagradável”, que ele publicou em 1949,
no primeiro número da revista Dionysos:
Quem leu ou viu Vestido de noiva no palco sabe muito bem que a ação dramá-
tica da peça não se apresenta em ordem cronológica e acontece em três planos:
12 Rodrigues, Nelson. A menina sem estrelas. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 84.
13 Rodrigues, Nelson. “Teatro desagradável”. In: Dionysos, n.o 1, 1949, p. 17.
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14 Prado, Décio de Almeida. “Os Comediantes em São Paulo”, op. cit., p. 96.
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15 Magalhães Júnior, R.. “Em defesa da farsa”. In: Boletim da SBAT, n.o 221, jan/fev/mar 1944, p. 11.
16 Fontoura, Mateus da. “Aspectos da evolução do teatro brasileiro”. In: Boletim da SBAT, n.o 222, abr/
mai/jun 1944, p. 27.
17 Peixoto, Sérgio. “A dívida de glória dos nossos artistas aos autores brasileiros”. In: Boletim da SBAT,
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“Já disse alguém que no Brasil, todos entendem de tudo. É possível que
isso não corresponda à verdade. Mas o fato é que se convencionou promo-
ver os indivíduos que não entendem de outra coisa a entendidos de teatro.
Os suplementos dominicais de nossos periódicos enchem-se de doutri-
na sobre o assunto, firmada por ‘ilustres entendidos’ que os nossos intér-
pretes, os nossos autores, e até mesmo o nosso público, desconhecem por
completo.
E apesar disso o nosso teatro progride. E progredindo dá dinheiro a
ganhar aos empresários, aos artistas e aos autores! Isso talvez desperte um
sentimento natural de revolta. Se as outras atividades intelectuais não ren-
dem coisa alguma ou apenas alguma coisa que não justifica uma atividade,
por que motivo o Teatro e a sua literatura hão de ser uma notável fonte
de renda de um núcleo de privilegiados? E a campanha para tomar de as-
salto esse setor tão nutrido do nosso debilitado organismo literário, logo
se organizou. Como fazer rir é uma arte muito difícil e esses homens, em
geral, são mal humorados, o ‘teatro para rir’ ficou no índex desses Catilinas
da cena nacional. Como disse Raimundo Magalhães Júnior com grande
felicidade, o ‘Delenga Cartago’ da campanha é ‘O Drama ou a Morte’ (...).
Esses demolidores de tudo que é nosso querem reduzir o público a uma
elite de ‘cerebralizados’ capazes de compreender as sutilezas de um mas-
sante Giraudoux; ou o simbolismo de um poeta como García Lorca; ou os
recalques metafísicos de Lúcio Cardoso ou enfim o Teatro psíquico de um
Nelson Rodrigues”18.
18Rocha, Daniel. “Os sete fôlegos do teatro nacional”. In: Boletim da SBAT, n.o 224, out/nov/dez
1944, p. 8.
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20 Idem, p. 369.
21 Idem, p. 376.
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22 Idem, p. 352.
23 Idem, p. 355.
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em que Alaíde mistura o enredo da ópera La traviata com o que leu nos jornais
antigos acerca do assassinato de Madame Clessi.
A citação não é aleatória. Ela reforça o perfil da esposa frustrada, que,
num lapso bastante revelador do que se passa em sua mente, traz à tona esse
arquétipo da prostituta que é a “dama das camélias”, seja no romance ou na
peça teatral de Dumas Filho, seja na ópera de Verdi.
O próprio Nelson Rodrigues admite o fundamento mítico na representa-
ção da prostituição, ao escrever em suas memórias: “Um delírio põe a heroína
num prostíbulo. Logo se percebe que ela estava ferida pela nostalgia da pros-
tituta. Alaíde procura Madame Clessi, a meretriz antiga e fenecida. E assim o
mito da prostituta se irradiava para a plateia e cada espectadora ficava tensa
de sonho”24.
Ao identificar-se com Madame Clessi, ou mesmo ao fingir ser uma pros-
tituta, no primeiro ato, Alaíde, no plano da alucinação, age com liberdade,
revelando suas fantasias, seus desejos inconscientes, sua porção mais íntima.
Não há censura nesse plano, que, inter-relacionado com o plano da memó-
ria, faz de Vestido de noiva uma das mais engenhosas investigações da alma
feminina.
A segunda citação importante traz para a cena o triângulo amoroso for-
mado por Scarlett, Melanie e Ashley, do filme E o vento levou..., que espelha
o que se passa na peça: duas mulheres disputando o mesmo homem. Assim
como Scarlett perde Ashley para Melanie, Alaíde também perde Pedro para
Lúcia. As angústias e aflições da protagonista de Vestido de noiva irrompem no
palco por meio de relações intertextuais que enriquecem o enredo e ampliam
os significados da ação dramática. Alaíde, insatisfeita e infeliz, projeta-se na
figura da prostituta amada e identifica-se com a personagem perdedora vivida
na tela por Vivien Leigh.
A ação dramática fragmentada – emanando de uma mente em desagre-
gação –, os três planos que se interpenetram, a linguagem dos diálogos
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25 Sábato Magaldi, “Prefácio”, em Nelson Rodrigues, Teatro Completo, op. cit., p. 130. Esse “Prefácio”
havia sido publicado em quatro partes separadas, nos quatro volumes do Teatro Completo da editora Nova
Fronteira, nos anos 1980.
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