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O SILENCIAMENTO DO FEMININO NA CRÍTICA DE ARTE

Claudia Eugênia de Mello e Alvim

RESUMO: Estudo sobre o silenciamento do feminino por meio de análise de textos críticos
publicados em jornais a respeito da pintora Georgina de Albuquerque.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; crítica de arte; argumentação; semiótica.

O período normalmente denominado Pré-Modernista – constituído pela última década


do século XIX e pelos dois primeiros decênios do século XX – constitui o período que dá
início ao florescimento das artes e da crítica de arte brasileiras, que se consolidam a partir da
década de 20, com o Modernismo.
Com a chegada do movimento modernista, as artistas mulheres, que eram vistas como
“sombras” de seus maridos famosos, passam a exercer um novo papel. No Brasil, porém,
podemos dizer que o reconhecimento ficou restrito a poucas figuras femininas, dentre as quais
Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Outras figuras importantes, entre elas Georgina de
Albuquerque (1885-1962), permaneceram na penumbra, apesar de todo talento revelado em
suas produções.
Nascida em Taubaté/SP, Georgina foi pintora, desenhista e professora. Ingressou na
Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1904, onde foi aluna de Henrique
Bernadelli. Permaneceu por cinco anos em Paris, onde freqüentou a Academia Julian.
Regressando, participou de várias atividades artísticas e educacionais, dedicando-se, inclusive,
ao ensino artístico para crianças. Em 1939, assumiu a Cadeira de Desenho e entre 1952 e 1954,
a direção da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Diferente de seus
contemporâneos que formavam o grupo que trouxe à arte brasileira as contribuições da pintura
ao ar livre, Georgina nunca demonstrou interesse pelos recursos do divisionismo e
desenvolveu uma técnica de fusão imediata das cores.
Consciente da necessidade de uma maior divulgação das produções artísticas brasileiras
no exterior e da falta de incentivo que os artistas recebiam em sua época, Georgina de
Albuquerque foi uma das mulheres que abriram caminho para que mudanças ocorressem, pois
foi a primeira pintora a firmar-se como artista considerada no mesmo nível de nossos maiores
pintores.
Para realizarmos a análise sobre o silenciamento do feminino, utilizamos como base
teórica a Semiótica greimasiana e consideramos como corpus 37 críticas de arte sobre a
pintora1, publicadas no período compreendido entre os anos de 1911 e 1978.
Observamos, no conjunto dessas críticas, como a imagem da pintora é silenciada.
Casada com o também pintor Lucilio de Albuquerque, sistematicamente a figura feminina de
Georgina é apagada nas críticas referentes às exposições feitas pelo casal. Apesar de as
exposições serem de ambos os pintores, freqüentemente nenhuma palavra é dita sobre a
pintora ou sobre qualquer um dos quadros por ela expostos.
O texto crítico de arte julga o objeto artístico, determinando seu valor, e firma-se como
elo entre obra e espectador. Cabe ao crítico de arte, dotado de um saber e um poder julgar,
emitir juízos de valor sobre o objeto artístico.
Por meio dessa autorização atribuída ao texto crítico, observamos a valorização e a
circulação de algumas obras, enquanto outras são submetidas ao ostracismo. Apesar de haver
artistas cujo reconhecimento aparece tardiamente, o discurso da crítica de arte deixa
transparecer os valores artísticos de um determinado período histórico, constituindo material
relevante para análise do percurso das artes plásticas.
No estudo da sintaxe discursiva, o sujeito da enunciação assume as estruturas
narrativas, convertendo-as em estruturas discursivas. Esse sujeito da enunciação projeta no
discurso determinadas marcas (de pessoa, tempo e espaço), que possibilitam verificar quais os
procedimentos utilizados por ele para produzir esse discurso, observando quais os efeitos de
sentido dessas escolhas.
Todo enunciador busca a adesão de seu enunciatário. A ele cabe, então, espalhar
marcas pelo discurso para que o enunciatário (a quem cabe o fazer interpretativo) as encontre e
interprete o parecer verdadeiro como o ser verdadeiro. Se isso ocorre, está estabelecido o
contrato fiduciário ente eles.
A argumentação consiste em um conjunto de mecanismos utilizados pelo enunciador
para convencer seu enunciatário da verdade do discurso. É por meio dela que os acordos, com
base em valores, são estabelecidos entre enunciador e enunciatário. A própria estrutura
discursiva e as projeções do sujeito da enunciação no enunciado, bem como a constituição do
enunciador e do enunciatário já constituem manifestações argumentativas.
Além dessa estrutura mais ampla, o sujeito da enunciação utiliza determinados
procedimentos argumentativos mais específicos, sendo dois deles comentados em seguida.
Seleção de Conteúdos
Todo e qualquer discurso produzido revela a seleção de alguns conteúdos e, em
conseqüência, o silenciamento de outros. Se um texto de crítica de arte comenta determinada
obra ou exposição, automaticamente todas as outras que poderiam estar ocupando aquele
espaço são silenciadas.
Atualmente, impulsionadas pela mídia, diversas exposições são organizadas visando
atingir um público bastante abrangente. Dessa maneira, alunos de escolas públicas e
particulares formam filas extensas para observar... a arte!
Esse poder da mídia de levar milhares de pessoas a museus com o objetivo de conhecer
a produção de determinado artista traz em seu bojo o poder de escolha, pois é ela mesma, a
mídia, que seleciona a exposição a ser vista, já que outras simultâneas não ganham espaço nos
meios de comunicação. È dessa maneira que se revela o texto crítico de uma obra de arte: ao
selecionar determinado artista ou exposição para comentar, silencia todos os outros.
O próprio texto crítico reconhece a existência dessa seleção, como podemos observar
em: “(...) e não mais citamos porque o espaço destinado a este artigo mal nos permite fazer
referência a uma obra de cada expositor que nos interessa. (...) Talvez nessa apressada lista
feminina, tenhamos omitido alguns nomes... Perdão! Não foi propriamente por querer!” 2
Assim, vemos reconhecido o poder atribuído ao texto crítico de selecionar – e, ao fazê-
lo, definir o que deve ser observado – os quadros que devem ser comentados. Evitando um
atrito desencadeado pelo poder a ele dado, o enunciado do trecho acima citado trata de
desculpar-se, eximindo-se da culpa pela ausência de certas citações e, mais, atribuindo esse
silenciamento à ausência de espaço físico na folha do jornal.
Buscando ou não uma isenção dessa responsabilidade, o fato é que ela existe, já que ao
enunciador é atribuído o poder de julgamento. Dessa forma, Rodin, Tarsila e Miró, exemplos
entre muitos outros, tornam-se personagens conhecidas de um público não habituado à arte e
que passa a consumi-la por meio da aquisição de camisetas, copos, canetas e outros tantos
souvenirs vendidos no hall dos espaços organizadores de tais exposições.
O mecanismo de explicitar e implicitar conteúdos constitui, portanto, uma estratégia
enunciativa. Há, neste recurso, um jogo de vozes que possibilita desvendar, por meio do que
está dito, aquilo que não se encontra posto no discurso.
Esse mecanismo possibilita ao enunciador afirmar determinados valores, eximindo-se
da responsabilidade do que está sendo dito. Dessa maneira, buscamos identificar os conteúdos
subjacentes ao que a crítica de arte diz sobre a obra da pintora Georgina de Albuquerque,
procurando desvelar os pressupostos e subentendidos, dois recursos utilizados para implicitar
conteúdos. Torna-se necessário, portanto, diferenciar essas variações que se encontram no
espaço do não-dito:
Esse conteúdo pressuposto é o fundo comum sobre o qual se assenta o texto e que não
pode ser negado, sob a pena de interrupção do discurso. O uso dos pressupostos é,
muito claramente, uma das táticas do enunciador para aprisionar o enunciatário num
dado universo de valores e para deles persuadi-lo. (...) A grande astúcia do
subentendido [é] fazer o enunciatário entender aquilo que o enunciador pretende dizer,
mas que, por razões, em geral sociais, não deve dizer. (BARROS, 1990, pp. 66-67)

Analisando os conteúdos que permeiam esse jogo entre dizer e ocultar, destacamos a
questão do silenciamento, ao qual Georgina aparece submetida nas críticas iniciais. O
silenciamento diferencia-se do implícito na medida em que este manifesta-se nas entrelinhas
do que é dito e silenciar consiste em deixar de dizer, seja para impedir o discurso do outro, seja
para excluir um acontecimento da ordem do discurso.
Silenciar significa excluir e a pintora sofre esse apagamento de maneiras diversas. E se
ao silenciar determinadas manifestações, determina-se o que deve ser apreciado, esse
silenciamento apresenta-se como forte mecanismo argumentativo.
Em um primeiro momento, alguns textos de crítica de arte simplesmente ignoram o
nome e a produção artística da pintora. Em crítica publicada no Correio Paulistano, em
outubro de 1911, por exemplo, essa forma de silenciamento fica bastante evidente. Em um
longo texto, vários quadros são comentados, todos de autoria de Lucilio de Albuquerque. Este
é considerado “um artista feito”, que retornou da Europa “livre das peias da Academia (...)
guiando-se pelo seu temperamento, sem a influência dos mestres e a sugestão da escola.”
Porém, toda essa ressalva sobre a liberdade marcante nas obras dele entra em contradição com
os valores destacados de suas telas, que se enquadram perfeitamente, de acordo com a crítica,
às regras acadêmicas, como “correção do desenho”, “exatidão da perspectiva aérea e linear”,
“não lhe escapam as minúcias”, entre muitos outros valores.
Deixando de lado essa contradição aparente, identificamos como conteúdo
subentendido que Georgina não apresentou amostras significativas de seu aprendizado na
Europa. Considerando que os dois permaneceram durante o mesmo período de tempo na
França, espera-se que essa ressaltada libertação das normas acadêmicas também exista na obra
da pintora. Mas se a crítica nada fala de sua produção, deve-se entender que não há nada de
diferente nela – ou mesmo que não há produção.
Outras críticas que avaliam as obras produzidas pelo casal de pintores não associam o
nome do autor às telas comentadas, ratificando o silenciamento da pintora. Nesses textos, cria-
se a dúvida sobre a autoria das telas, tanto as vendidas quanto aquelas em que se apontam
falhas, provocando o efeito de sentido de despersonalização e indefinição. A citação, em outra
crítica publicada no Correio Paulistano, ainda no ano de 1911, de telas em que se evidenciaria
despreocupação com “os valores” e “o modelado”, estabelece como pressuposto que as telas
vendidas apresentam qualidades “reais”, ou seja, constituem objeto estético reconhecido. Em
conseqüência, fica subentendido que à arte amadora atribui-se a falta de preocupação com o
modelado.
Lembramos que ter telas vendidas constitui ponto positivo para qualquer pintor, pois é
sinal de que há uma apreciação da obra de arte produzida. A venda constitui sanção positiva de
performance do pintor. Dessa forma, se obras de Georgina de Albuquerque foram vendidas,
fato que valorizaria o seu fazer artístico, o enunciador omitiu a informação.
Em crítica publicada no mesmo jornal, no mesmo ano, é feita referência a um quadro
de Georgina vendido para a Pinacoteca do Estado, juntamente com uma tela de Lucilio; porém,
essa informação não é dada no texto. A autoria da tela só pôde ser confirmada com a leitura de
outra crítica, publicada no mesmo dia no Estado de São Paulo. Enquanto no Correio
Paulistano o nome da artista não aparece como autora do quadro vendido, no Estado de São
Paulo, a informação é dada: “A outra tela comprada pelo governo é o de nº 90, da Sra,
Georgina de Albuquerque”. A aquisição de um quadro pelo governo qualifica a obra da
pintora, fazendo com que o texto crítico não possa deixar de elogiá-la, afirmando ser a tela
“um trabalho de artista”, sem explicitar, porém, quais atributos justificariam tal afirmativa.
Essa caracterização genérica parece dar conta dessa qualificação que não poderia ser
contestada.
Nessas críticas iniciais sobre a pintora, podemos observar que características subjetivas
são atribuídas ao casal, atrelando o merecimento de um ao outro: “incontestável merecimento
dos dois artistas”, “distintos pintores”, “distintos artistas brasileiros”, entre outros exemplos.
São amostras de uma outra forma de silenciar a pintora, que durante muito tempo tem
sua individualidade diluída na imagem do “casal de pintores”. Essa diluição fica evidente na
observação do título das críticas, nos quais o nome de Georgina aparece junto ao do marido,
mesmo que nenhum comentário seja feito sobre seus quadros. Esse aparecimento na titulação
dos textos críticos funciona como elemento de evidência desse apagamento, já que o
enunciador revela o nome para em seguida ignorá-lo.
Os atributos a ela dirigidos sempre estão também presentes no marido, mas o inverso
nem sempre é verdadeiro. E essas qualidades apresentam sempre o mesmo tom genérico,
sendo extrínsecas ao fazer artístico. Afirmar que os dois são merecedores de elogios, sem
explicitar o porquê, constitui apenas uma maneira de dizer que a mulher também apresenta
suas qualidades, que não chegam a sobressair em sua produção artística, a ponto de serem
comentadas em particular. Ou seja, atribuem-se qualidades à pessoa e as obras continuam
sendo tratadas como produção amadora.
Temos, então, uma terceira forma de silenciar a pintora: atribuir a ela qualidades
extrínsecas às obras. Se inicialmente nas críticas os elogios eram feitos ao casal,
gradativamente são atribuídas à Georgina algumas qualidades não atreladas às do marido,
apesar de extrínsecas a sua obra, conforme percebemos nos trechos em seguida destacados,
que pertencem a uma crítica de 1915: “a jovem pintora que a cada obra nova que expõe, acusa
certo adiantamento (...)” e “(...) a nossa jovem e inteligente patrícia afirma-se com ela uma
pintura com qualidades não vulgares”3. Ser jovem e inteligente não deveriam constituir valores
de base avaliativa para obras de arte, mas revelam um certo respeito à artista, que se destaca no
universo feminino. Revelam-se aqui indícios de quebra desse silenciamento a que Georgina era
submetida, ainda que as referências possam ser atribuídas à adequação de sua pintura aos
padrões vigentes na época.
As críticas de 1911 a 1913 mencionam Georgina, mas não se detêm na análise de seus
quadros. Outros poucos nomes de mulher são citados nessas críticas. Todas elas dão
consideradas “as notas mais simpáticas da exposição”, como diz o texto publicado em
setembro de 1913, no Jornal do Commércio. Atribuir simpatia às obras das pintoras (ou a elas
mesmas) significa desqualificá-las do ponto de vista artístico, já que este quesito não aparece
em referência aos pintores homens. Podemos, a partir desse último exemplo, perceber que o
silenciamento sofrido por Georgina constitui reflexo do silenciamento sofrido pelas mulheres
pintoras.
Argumento de autoridade
Ao construir a argumentação, o enunciador deve, antes, definir seu público-alvo,
evitando assim as falácias argumentativas. Conhecer bem o enunciatário possibilita ao
enunciador a utilização de recursos argumentativos adequados ao público a que se dirige,
aumentado as chances de seu discurso ser interpretado como verdadeiro.
As críticas publicadas em jornais e revistas não especializadas pressupõem um leitor
que não possui interesse particular sobre o assunto, podendo eventualmente ler a coluna
destinada ao comentário da arte.
Para convencer este público geral, o crítico de arte vai desenvolver diversos
mecanismos argumentativos para convencer seu leitor da qualidade da obra de determinado
pintor. E um dos processos mais eficientes é o do argumento de autoridade, em que o
enunciador qualifica-se, mostrando domínio sobre o assunto, levando assim o outro a crer na
sua capacidade de julgamento das obras comentadas:

Aa qualidades emotivas, viventes na pequena tela, são flagrantes, não escapam mesmo
aos olhos dos menos experimentados em questão de estética. (Illustração Brasileira
fev./1926)

Um entendido notaria talvez, no conjunto, certa falta de harmonia, de equilíbrio; mas


seria, talvez, uma simples impertinência... (Revista do Brasil, set./1916)

(...) onde os exigentes poderão notar ser menos exata a perspectiva aérea, uma certa
indecisão nos valores, menos bem observada a disposição dos planos e a frouxidão do
modelado. (Idem)

Para convencer o enunciatário da presença ou ausência de qualidade em uma obra, o


enunciador deve mostrar conhecimento sobre aquilo de que fala. Afirmar que um entendido
notaria uma falta de equilíbrio na obra comentada significa não somente que o enunciador
domina o assunto (por perceber o desequilíbrio), mas também que é superior ao “entendido”,
pois este interpretaria como defeito o que se apresenta como “simples impertinência”.
Para julgar o valor de uma obra, o enunciador precisa basear-se em alguns critérios. No
conjunto de textos críticos que falam sobre a pintora, podemos observar que eles constroem,
“aos pedaços”, a imagem do que deveria, na época, ser considerada uma boa produção. Dessa
forma, realizamos um levantamento dessas ocorrências e observamos que para ser considerada
uma obra de arte de qualidade, esta deveria apresentar desenho firme, rico em detalhes,
harmônico, com boa distribuição luz/sombra, perspectiva linear e aérea bem feita, entre outras
características. Estas constituem, portanto, os aspectos que devem ser observados e julgados
por esse crítico de arte, funcionando como parâmetros para as análises realizadas. Além das
marcas observáveis nas obras, são bem aceitas determinadas características dos pintores, como
por exemplo, ser sincero, pintar com a alma, flagrar a verdade, etc.:

(...) se apodera com amor dos temas que escolhe e os interpreta com a sinceridade,
numa maneira segura e nada mesquinha. (Jornal do Commércio, set./1915)

(...) o amor com que executa suas telas. (Illustração Brasileira, nov/1923)

A estas qualidades de desenho e de fatura deve-se juntar-se outra não menos


apreciável – a sinceridade. Lucilio de Albuquerque procura traduzir com correção
sincera o que impressionou a sua retina, o que lhe emocionou a alma. (Correio
Paulistano, out./1911)

Mais do que bem-vindas, essas características aparecem como uma exigência para que
a obra seja considerada de boa qualidade. Com essas valorizações, toda a objetividade
construída por meio dos critérios estabelecidos para análise das obras de arte perde força. A
subjetividade do sujeito da enunciação do texto crítico ganha espaço, pois não nos é permitido
mensurar, por exemplo, a sinceridade do artista ao pintar um quadro.
É no jogo entre pontuar qualidades comprováveis e outras mais subjetivas que o
discurso de autoridade do enunciador se fortalece. Conhecedor das características técnicas
necessárias para um quadro ser considerado um objeto estético, ele se superqualifica
mostrando-se capaz de avaliar inclusive as qualidades espirituais ou emotivas de uma tela.
Quais seriam, então, as qualidades atribuídas à obra de Georgina de Albuquerque? Que
características de sua produção foram relevantes para que houvesse comentários positivos a
seu respeito? O que as críticas falam sobre ela? Que julgamento de valor está marcado nos
textos críticos?
As críticas encontradas refletem a falta de espaço destinado às mulheres na sociedade
da época. Consideradas à parte, como as “notas mais simpáticas” das exposições, as pintoras,
apesar de constituírem um número significativo, de modo geral não obtinham grande espaço
nas colunas de crítica de arte: “as expositoras são vinte e cinco. Só me referi a cinco” (Revista
do Brasil, nov./1918). Georgina de Albuquerque, uma dessas cinco pintoras cujos nomes
sobressaíram na referida crítica, revela-se uma artista de certo prestígio, pois sua arte
diferencia-se das demais a ponto de ser comentada.
Uma das críticas feitas às mulheres pintoras é a de pintarem flores e frutos ou paisagens
sem emoção e sem vida, fato que marca um diferencial da produção de Georgina. O espírito
original da artista é valorizado e a ela é atribuído um equilíbrio entre emoção (“sente a
natureza” e “recolhe impressões”) e razão (“estuda” e “inteligência inquieta”). Uma
interessante crítica publicada em agosto de 1917, no Jornal do Commércio, dedicada a
comentar as obras de Regina Veiga e Georgina (além de vaga nota sobre os trabalhos de
Lucilio de Albuquerque, o que mostra uma inversão na seleção do conteúdo a ser comentado),
afirma:

Deve ser função de uma artista mulher saber exprimir as qualidades de graça e
elegância das outras mulheres, e principalmente tornar bem enfática a sua beleza
externa. Se a par disso sabe ela dar nos seus trabalhos a expressão de delicadeza e de
afetibilidade que são os elementos essenciais do caráter feminino, então fará obras de
supremo encanto.

Definir o que e como deve ser pintado significa atrelar o fazer artístico a normas pré-
estabelecidas. Se, além dessas normas, há outras específicas para o fazer pictórico feminino,
fica evidente o grande cerceamento sofrido pelas mulheres pintoras, que deveriam apresentar
uma pintura enquadrada ao ideal de delicadeza e sentimentalismo que os homens esperavam de
uma mulher.
Essas características mostram-se como valores na produção feminina, pois surgem em
diversos trechos das críticas, como, por exemplo, “(...) tudo isso feito com uma técnica
desembaraçada e segura e com intenso sentimento e delicadeza próprio de pincel empunhado
por mão femil” (Jornal do Commércio, set./1915).
Definir as características da pintura feita por mulher significa construir um ideal de
pintura oposta, que represente o modo de pintar masculino. E essa maneira de pintar é
valorizada, considerada superior, seja na escolha do assunto, seja na técnica. Assim, a artista
que timidamente apresenta, em 1911, um “desenho firme e correto”, “modelado forte”, enfim,
“um trabalho de artista”, atinge um alto grau de reconhecimento: Georgina de Albuquerque,
sem favor, é a individualidade mais completa do ambiente feminino de nossa terra; a sua
produção é fecunda e cheia de refinamentos dignos de apreço. (Illustração Brasileira,
fev./1926).
Considerar a pintora um destaque “no ambiente feminino de nossa terra” indica a
permanência de uma segregação, pois os comentários sobre sua obra não partem de um
ambiente igualitário, no qual estariam inseridas todas as obras produzidas por artistas.
Considerando o feminino como uma construção, observamos que a pintora acaba rompendo os
limites desse universo a ela imposto, conforme verificamos em uma crítica de 1923, publicada
na Illustração Brasileira:

[Georgina de Albuquerque] assina o Estudo de Nu, interessante mancha de atrevida


técnica, pertencente à Galeria Jorge; foi alvo de crítica honesta, merecendo referências
1
As críticas, transcritas na íntegra, fazem parte do corpus da tese de doutorado intitulada Georgina de
Albuquerque: a pintura da delicadeza, defendida em dezembro de 2004, na Universidade Federal Fluminense.
2
O Salon de 1916. In: Revista do Brasil, setembro/1916
3
Exposição de D. Georgina de Albuquerque In: Jornal do Commércio, 24/09/1915.
elogiosas, referências merecidas por todos os motivos. A pequena tela tem pouco mais
de quarenta centímetros, revela a feitura segura de um experimentado artista, dir-se-ia
pintado por um homem, tal o vigor e a liberdade de pincelada.
Dizer que a tela parece ter sido pintada por um homem – exatamente pela presença do
vigor e da liberdade, características excluídas do universo feminino – significa ratificar que o
feminino (assim como o masculino) constitui uma construção e, de acordo com essa linha de
raciocínio, Georgina consegue igualar-se aos pintores homens, comprovando a sua capacidade
de diferenciar-se de outras mulheres, cujas obras deveriam ser marcadas pela leveza e
contenção. O próprio fato de a crítica afirmar que a artista apresenta uma “atrevida técnica”
confirma essa postura de, digamos, rebeldia.
Por meio da produção de quadros dignos de notas feitas por uma “crítica honesta” – o
que implica a existência de uma desonesta -, Georgina consegue firmar-se no meio artístico,
comprovando seu valor. Poderia ser esta a maneira de a pintora rebelar-se contra a condição a
ela imposta, já que ela mesma apresentava consciência de sua segregação enquanto mulher

Em 1927, fiz concurso para catedrático de Pintura, mas, apesar de ter sido
classificada em primeiro lugar pela Comissão Julgadora do Concurso, a
Congregação da Escola mandou o nome do segundo classificado para o Presidente
da República para a nomeação. Nessa época, a mulher ainda não tinha os mesmos
direitos que o homem... 4

Apresentar uma técnica apurada, que nada deixava a desejar, constitui uma forma de
provar sua capacidade e de contestar os papéis sociais atribuídos à mulher, a quem não eram
permitidos os mesmos direitos que ao homem.
A partir do momento em que a pintora comprova sua capacidade de igualar sua
produção à dos pintores homens, obtém um reconhecimento de sua arte, rompendo, então, o
silenciamento a que era submetida, desatrelando seu nome do de Lucilio. Sua individualidade
encontra-se firmada e seu espaço no meio artístico está garantido.
Esse reconhecimento consolidado revela-se com maior intensidade nas várias críticas
publicadas após o falecimento da pintora. O espaço ocupado nas publicações de críticas de arte
constitui reflexo da persistência de Georgina em seu fazer artístico.
Rompimento do silenciamento
Por meio da figurativização, o enunciador leva o enunciatário a acreditar na verdade do
discurso construído. Portanto, o contrato de veridicção estabelecido entre eles depende,
também, do reconhecimento, por parte do enunciatário, das figuras espalhadas no texto pelo
enunciador.
A imagem de Georgina é construída figurativamente ao longo dos textos que têm por
objetivo analisar as obras por ela produzidas. Inicialmente, a “jovem e já conceituada artista”
(Jornal do Commércio, set./1915) e “interessante pintora de interiores” (Idem, agosto/1917),
“apesar de conviver com um mestre (seu marido) consegue apresentar uma individualidade”
(Revista do Brasil, março/1916). Esta última afirmativa deixa entrever o implícito de que só a
individualidade da mulher está sujeita a desaparecer sob a influência do papel masculino, e não
o inverso.
Essa ressaltada individualidade constitui um valor a ser firmado pela pintora para
alcançar o reconhecimento. Assim, por meio de uma extensa produção qualitativa, passa a ser
considerada “primeira pintora do seu sexo em nossa terra” (Illustração Brasileira, nov./1925),
“notável artista” (Idem), que “estuda” e “reúne todos os requisitos” (Illustração Brasileira,
maio/1920) para a produção de obras de qualidade. Além de todos estes atributos, “não abdica
dos papéis de mãe e mulher para ser artista” (Idem), afirmativa que ratifica os papéis sociais
atribuídos à mulher.
4
Autobiografia da pintora, datada de 1958 e pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. A
transcrição desse material na íntegra compõe o corpus da tese já citada.
A narratividade presente no conjunto das críticas e figurativizada no nível discursivo,
portanto, constrói o percurso de uma pintora cuja produção revela-se, em um estágio inicial,
compatível com a apresentada por outras mulheres, ou seja, uma técnica marcada pela
delicadeza e sensibilidade. Por meio de um amadurecimento de sua técnica, a pintora altera seu
fazer pictórico, produzindo objetos estéticos e, assim, passando a ser sancionada
positivamente.
Dessa forma, sua produção artística caracteriza-se, inicialmente, por uma “arte fina e
delicada” (Jornal do Commércio, set./1915), apresentando “desenho firme e correto”,
“modelado forte” (Estado de São Paulo, out./1911), “técnica desembaraçada e segura”,
“qualidades não vulgares”, tudo marcado por um “intenso sentimento e delicadeza própria de
pincel empunhado por mão femil” (Jornal do Commércio, set. 1915).
Atrelado ao reconhecimento da pintora, suas obras passam a ser consideradas uma
produção de “rara solidez” e alto grau de perfeição (Illustração Brasileira, fev./1926), a ponto
de parecer produzida por um homem (Idem, nov./1924).
Como as figuras recobrem temas, torna-se necessário observar, além do percurso
figurativo, as recorrências temáticas. Portanto, temos um conjunto de figuras que revestem
dois percursos temáticos de maneiras distintas de pintar: uma masculina e outra feminina.
Assim, recuperada pela semântica discursiva, a oposição masculino e feminino
manifesta-se no nível discursivo, por meio de temas e figuras. Essa oposição gera os termos
vigor e delicadeza, em que aquele recebe um juízo de valor eufórico.
O fazer pictórico masculino aparece, então, revestido por figuras como “desenho
firme”, “rico em detalhes”, “harmônico”, “com boa distribuição de luz/sombra”, “perspectiva
aérea e linear bem feita”, “solidez”, “vigor” e “liberdade de pincelada”. Todas essas figuras
remetem a uma perfeição técnica, revelando qualidades desejáveis na produção de um objeto
estético.
Simultaneamente, temos o percurso figurativo da pintura feminina, que aparece
marcada por figuras como “fina e delicada”, “desenho firme e correto”, “intenso sentimento” e
“delicadeza”, características que não chegam a produzir objeto estético, levando, portanto, a
um enquadramento na arte amadora.
A partir da identificação dessas duas maneiras de produção pictórica, buscamos pontuar
de que forma manifesta-se o percurso do sujeito Georgina de Albuquerque: se ela aprece
enquadrada nessa arte dita amadora ou se a extrapola.
Observando as figuras que revestem o fazer pictórico de Georgina, notamos que ela
apresenta em sua trajetória um percurso que parte dessa produção considerada amadora para a
da arte propriamente dita. Essa trajetória apresenta-se tematizada através da oposição
apagamento e reconhecimento. Por meio de sua produção, que antes se apresentava diluída no
conjunto das obras consideradas femininas e/ou na produção de seu marido (sujeita, portanto, a
um apagamento), Georgina consegue alcançar seu reconhecimento, revelando em seu fazer
pictórico um amadurecimento do fazer artístico. Assim, os pólos temáticos apagamento e
reconhecimento vão sendo figurativizados ao longo dos textos.
As críticas fazem referência a elementos do plano da expressão das pinturas,
demonstrando conhecimento sobre o objeto plástico. Assim, “organização singular”,
“pincelada desembaraçada e firme”, “colorido”, “correção do desenho”, “singeleza das linhas”,
“transparência obtida com maestria”, “jogo de luz”, “leveza do vestido de gaze”, “equilíbrio de
tons” e “finura de tintas” são exemplos de como é recoberto o termo reconhecimento, que
também se concretiza na menção a telas vendidas.
Curiosamente, o termo apagamento não encontra respaldo nas categorias plásticas das
telas, manifestando-se apenas na ausência de comentários sobre as obras ou por meio de
comentários genéricos do tipo “se apodera com amor dos temas que escolhe” ou “bem
envolvido em sua atmosfera”. Essas “análises, em contraste com as relacionadas às obras de
artistas homens, mostram um descaso dos críticos, que parecem não querer desperdiçar espaço
e tempo comentando obras feitas por mulher. Eis aí o apagamento de Georgina, que é feito
sem respaldo de um análise que considere o aspecto plástico, ou seja, não são os elementos
intrínsecos à pintura que justificam o silenciamento a que foi submetida.
O que a crítica constata como excepcional e atribui a um primado do masculino é, na
realidade, a expressão da potência do feminino na criação artística. A crítica, apesar de
legitimar as obras de Georgina, procede a uma deslegitimação do fazer artístico da pintora, que
representa um movimento de resistência expansivo e dinâmico; uma produção transformadora,
uma possibilidade de criação do novo. O texto crítico representa uma resistência marcada pela
inércia e contração, visto que constitui reflexo da conservação dos valores vigentes.
Enquanto a crítica considera a constância temática do feminino como indicador de uma
diferença, portanto assinalando e mantendo discriminados os papéis e suas funções correlatas,
Georgina a opera mais como um princípio de diferença. A artista se insurge e nos oferta o seu
segredo, a sua descoberta: a produção do feminino não é um atributo do ser mulher. É a
produção de uma diferença ou singularidade, ao alcance tanto das mulheres, quanto dos
homens. Será no jogo de ocultar/revelar presente em suas obras que a pintora contestará a
discriminação contida na crítica e contribuirá para o feminino tornar-se possível também ao
masculino.
A crítica, ainda contida por um discurso conservador, não consegue acompanhar a
artista em seu percurso de experimentação e empenha-se em capturar o seu fazer artístico,
reduzindo-o a um simples continuísmo e mantendo-o atrelado às características, tanto
temáticas, quanto técnicas, da pintura masculina predominante na sua época. Mas a
contribuição de Georgina passa despercebida e por isso mesmo não será pela crítica legitimada
naquilo que tem de original: ela promove uma quebra nas linhas de regularidade da mulher,
dissolvendo, com suas pinceladas, as identidades fixas, que nos enquadram a determinadas
formas de conduta e permitem que se reconheçam os papéis masculino e feminino como
produtos imutáveis e incambiáveis. Ao contrário, o feminino é em suas pinturas uma matéria
plástica, em constante construção de si, em um eterno incorporar-se, incitando a criação e
contrapondo-se à idéia de mulher como possuidora de uma essência feminina.

REFERÊNCIAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.

MONTEIRO, Claudia Eugênia de Mello e Alvim Jacy. Georgina de Albuquerque: a pintura


da delicadeza. [cópia mimeografada de tese de doutorado em Estudos Lingüísticos]. Rio de
Janeiro: UFF, 2004.

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