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Teoria romance 1
A estilística
editora•34
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
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Paulo Bezerra
Prefácio 7
do mesmo ano. Quatro dias antes da viagem, a 25 de março, como concebera, insiste em abrir algum novo espaço no meio
conclui a redação do capítulo "As questões da estilística do editorial. Valendo-se do caráter abrangente de sua reflexão
romance", dando início à confecção de sua Teoria do roman- teórica, insere na abertura do primeiro capítulo de T.R. o
ce. Ainda no ano de 1930, portanto, já no degredo de Kus- propósito de resolver, "à luz das ideias do realismo socialis-
tanai, conclui "O discurso na poesia e o discurso no roman- ta", a carência de clareza que até então dominara a estilísti-
ce", segundo capítulo de T.R., terminando o restante da obra ca e assim "elaborar com eficiência e profundidade esse pro-
entre 1934 e 1936. Em 1940 conclui A cultura popular na blema à base de matérias de nossa atualidade e da produção
Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Ra- soviética". É como se T.R. tivesse surgido agregada ao ro-
belais - pode-se dizer, portanto, com base no que escrevem mance soviético, ainda mais nos anos 30, quando era fortís-
Botcharo_v e Kójinov, que toda a sua obra sobre teoria do simo na crítica, senão predominante, o sociologismo vulgar
romance foi escrita entre os últimos anos da década de 20 e como método de interpretação. Ora, nada disso constava no
o final da década de 30, mas completada por outros textos projeto inicial de T.R., cujo fio condutor era e continuou
cuja produção se estende até 1961. sendo uma combinação das questões centrais da existência
humana sedimentadas por uma filosofia especificamente
bakhtiniana e plasmadas no romance como gênero e na esti-
A PERSEVERANÇA DO GRANDE PESQUISADOR lística do gênero romanesco, passando pelos diversos gêneros
literários como antecedentes e também componentes do pró-
O grande pesquisador é aquele para quem as adversida- prio gênero romanesco. Tampouco integrava o projeto inicial
des da vida e do tempo parecem estar, parafraseando Ca- o adendo final, espécie de pós-escrito em que Bakhtin fala do
mões, aquém do que permite a força humana. No início de destino do romance numa sociedade sem classes, da qual a
1929, já preso há quase um semestre e aguardando julgamen- sociedade soviética dos anos 30 seria o protótipo. Era mais
to, Bakhtin vê publicado seu ensaio fundamental Problemas uma tentativa de sensibilizar o mundo editorial para publicar
da obra de Dostoiévski, livro que mudaria de forma essencial sua obra em um país onde até os livros de física começavam
os estudos sobre Dostoiévski e inauguraria uma nova era na com citações de Lênin ou Stálin. Os organizadores da nova
investigação do discurso romanesco e na própria teoria do edição tiveram o cuidado de inserir aqueles acréscimos de
romance. Já então havia engendrado a primeira parte de Bakhtin, que dão ao leitor uma ideia das dificuldades enfren-
T.R., que, apesar das pressões políticas, policiais e psicológi- tadas pelo teórico e filósofo na publicação de sua obra.
cas sofridas como condenado durante o degredo de Kustanai, Nas notas escritas para esta edição de T.R., Serguei Bo-
conclui entre 1934 e 1936. Em seguida, na segunda metade tcharov oferece um quadro abrangente das agruras enfrenta-
do decênio, tenta diversas vezes publicar o livro em Moscou. das por Bakhtin nos decênios de 20 e 30 para gestar e con-
A cada tentativa frustrada retoma a obra, faz nela novas solidar seu projeto estético-filosófico, bem como da comple-
inserções, mas sem contrariar a essência de sua reflexão. Pre- xidade das etapas que ele teve de percorrer. Botcharov mostra
mido pelas circunstâncias, pelo impasse entre a necessidade que as décadas de 20 e 30 foram as mais produtivas na ati-
de publicar sua obra - de cujo caráter revolucionário tem vidade criadora do teórico, e que toda a sua teoria do roman-
plena consciência - e a impossibilidade de fazê-lo do modo ce situa-se nos anos 30, época em que sua mais intensiva
O discurso na poesia
e o discurso no romance
Exemplo 5 (livro II, cap. 13): É a mesma solidariedade fictícia com a opinião comum
"Como um grande incêndio enche com seu hipócrita e solene sobre Merdle. Todos os epítetos aplicados
ronco o espaço a uma grande distância, assim a a Merdle na primeira oração são epítetos da opinião comum,
chama sagrada espalhada pelos poderosos Barna - isto é, são o discurso dissimulado do outro. A segunda oração
eles no altar do grande Merdle enchia cada vez mais - "pouco a pouco todo mundo começava a compreender... ",
o ar com o som desse nome. Ele ecoava em todas etc. - é comedida num estilo acentuadamente objetal, não
as bocas, ressoava em todos os ouvidos. Não hou- como opinião subjetiva, mas como reconhecimento de um
ve, não há nem haverá outro homem como mister fato objetivo e absolutamente indiscutível. O epíteto "deten-
Merdle. Como já foi dito, ninguém sabia que faça- tor de tais méritos diante da sociedade" está inteiramente
nhas ele havia realizado, mas cada um sabia que ele situado no plano da opinião comum (dos elogios oficiais),
era o maior entre os mortais." mas a oração subordinada ligada a esse elogio - "da qual
arrancara tão grande monte de dinheiro" - são palavras do
É um discurso épico, "homérico" (paródico, é claro), em próprio autor (como um "sic" intercalado entre aspas numa
cuja moldura está inserido o elogio a Merdle pela multidão citação). A continuação da oração principal situa-se mais
(discurso dissimulado do outro na linguagem do outro). Se- uma vez no plano da opinião comum. Desse modo, as pala-
guem-se as palavras do autor, a cuja expressão (grifada) "ca- vras de desmascaramento do autor encravam-se aqui na ci-
da um sabia" foi dado, não obstante, um caráter objetivo. É tação tirada da "opinião comum". Estamos diante de uma
como se o próprio autor não duvidasse disto. típica construção híbrida, na qual o discurso direto do autor
é a oração subordinada, sendo a principal o discurso do ou-
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tro. As orações principal e subordinada estão construídas em
Leo Spitzer toma um dos exemplos de Charles-Louis Philippe em:
"Le peuple, à cause de /'anniversaire desa délivrance, laisse ses filies dan-
diferentes horizontes semânticos e axiológicos.
ser en liberté" [O povo, por causa do aniversário de sua libertação, deixa Toda a parte da ação do romance, representada em tor-
que suas moças dancem em liberdade]. no de Merdle e das personagens a ele vinculadas, está repre-
29 Cf. as motivações pseudo-objetivas do grotesco em Gógol. sentada pela linguagem (ou melhor, pelas linguagens) da pér-
33 Que não estão em cronologia com o próprio Rabelais nem, no '' "Troca de convites": intercâmbio de experiências. (N. do T.)
fundo, podem ser atribuídas aos representantes do romance humorístico 35Viagem sentimental e A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram
inglês na exata acepção do termo. Shandy (que traz um prefácio a Viagem sentimental).
34 Mesmo assim, não se supera até o fim a seriedade sentimental 36 Por exemplo, Hesperus e Die unsichtbare Loge [A loggia invisível]
O jogo humorístico com linguagens, a narração "não do O heterodiscurso introduzido no romance (quaisquer
autor" (do narrador, do autor convencional, do herói), os que sejam as formas de sua introdução) é discurso do outro
discursos e as zonas dos heróis e, por último, os gêneros in- na linguagem do outro, que serve à expressão refratada das
tercalados ou emoldurados são as formas basilares de intro- intenções do autor. A palavra de semelhante discurso é uma
dução e organização do heterodiscurso no romance. Todas palavra bivocal especial. Ela serve ao mesmo tempo a dois
essas formas permitem realizar um modus de emprego indi- falantes e traduz simultaneamente duas diferentes intenções:
reto, precondicionado e distanciado das linguagens. Todas a intenção direta da personagem falante e a intenção refrata-
elas marcam a relativização da consciência linguística, forne- da do autor. Nessa palavra há duas vozes, dois sentidos e
cem a expressão de sensação da natureza objetal da lingua- duas expressões. Ademais, essas duas vozes são correlacio-
gem própria dessa consciência, dos limites da língua - limi- nadas dialogicamente, como que conhecem uma à outra (co-
tes históricos, sociais e até de princípios (isto é, das frontei- mo duas réplicas de um diálogo, conhecem uma à outra e são
ras da língua como tal). Essa relativização da consciência construídas nesse conhecimento recíproco), como se conver-
linguística tampouco exige, em absoluto, a relativização das sassem uma com a outra. A palavra bivocal é sempre inte-
próprias intenções semânticas: as intenções podem ser abso- riormente dialogada. Assim é a palavra humorística, prosai-
lutas até no campo da consciência linguística prosaica. Mas ca, paródica, assim é a palavra refratadora do narrador, que
é exatamente por isso que à prosa romanesca é estranha a refrata a palavra nas falas do herói e, por último, a palavra
ideia de uma língua única (como linguagem indubitável, in- do gênero intercalado: tudo isso são palavras bivocais inte-
condicional): a consciência prosaica deve orquestrar suas riormente dialogadas. Nelas está fixado o diálogo potencial,
intenções mesmo que sejam absolutas. Apenas numa única não desenvolvido, o diálogo concentrado de duas vozes, de
das muitas linguagens do heterodiscurso essa consciência se duas visões de mundo, de duas linguagens.
sempre empregava com ela, um tom de galhofa com quem quer que assim vendo: "Assim ele escrevia - de modo obscuro e indolente, o que chama-
falasse de fato com ela". Anna Kariênina, parte I, cap. 30. mos de romantismo, embora eu não veja aí nada de romantismo ... ".
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Mikhail Bakhtin O falante no romance 145
duragem do discurso do outro. Entretanto, também neste ção da palavra do outro - a luta contra o discurso autoritá-
caso os elementos de representação literária desse discurso rio, a superação das influências, a polêmica, as referências e
são possíveis, sobretudo no campo ético: por exemplo, a as citações, etc. - , mas tudo isso permanece no processo do
representação da luta da voz da consciência com outras vozes trabalho e não se refere ao conteúdo concreto da ciência em
do homem, a dialogicidade interior da confissão, etc. O ele- cuja composição o falante e sua palavra não entram, eviden-
mento prosaico-literário do romance nos tratados de ética, e temente. Todo o dispositivo metodológico das ciências ma-
sobretudo nas confissões, pode ser muito significativo: por temáticas e naturais está voltado para o domínio de objetos
exemplo em Epíteto, Marco Aurélio, Agostinho e Petrarca materiais, surdos, que não se revelam na palavra, que nada
(Secretum) estão presentes os embriões do "romance de pro- comunicam a seu respeito. Aqui, a aquisição do conhecimen-
vação" e "romance de educação". to não está vinculada à obtenção e interpretação das palavras
É ainda mais significativo o peso específico do nosso por sinais do próprio objeto cognoscível. t
tema no campo da palavra e do pensamento religioso (mito- Nas ciências humanas, à diferença da matemática e das
lógica, mística, mágica). O objeto principal dessa palavra é ciências naturais, surge a tarefa específica de restabelecer,
o ser falante: a divindade, o demônio, o adivinho, o profeta. transmitir e interpretar as palavras do outro (cf., por exem-
O pensamento mitológico não conhece coisas inanimadas e plo, a questão das fontes na metodologia das disciplinas his-
mudas. A decifração da vontade de um deus, do demônio tóricas). Já nas disciplinas filológicas, o falante e sua palavra
(bom ou mau), a interpretação dos sinais de cólera ou boa são o objeto central do conhecimento.
vontade, os sinais de instrução e, por fim, a transmissão e A filologia tem objetivos e enfoques específicos de seu
interpretação dos discursos diretos de uma divindade (a re- objeto - o homem falante e sua palavra, que determinam
velação), de seus profetas, santos e adivinhos são, em linhas todas as formas de transmissão e representação da palavra
gerais, uma transmissão e uma interpretação da palavra ins- do outro (por exemplo, a palavra como objeto da história da
pirada por um deus (diferentemente da palavra profana): língua). No âmbito das ciências humanas (e da filologia em
tudo isso são importantíssimos atos do pensamento e da sentido restrito) é possível um duplo enfoque da palavra do
palavra religiosa. Todos os sistemas religiosos, inclusive os outro como objeto do conhecimento.
primitivos, dominam o imenso dispositivo metodológico es-
pecial de transmissão e interpretação das diversas modalida- t Tudo isso (como as formas de transmissão paródica da palavra do
des da palavra divina (hermenêutica). outro que analisamos em outro trabalho) é a preparação e o material do
Um pouco diferente é o que ocorre com a questão do romance (o arremedo da palavra do outro na criação cômica e sua trans-
missão séria em diferentes campos da cultura e da ideologia). Ambas as
discurso científico. Aqui o peso específico do tema do discur- linhas (do riso e do sério) se cruzam e confluem em um ponto: na repre-
so é relativamente pequeno. As ciências matemáticas e natu- sentação romanesca da linguagem e do falante.
rais não conhecem o discurso como objeto de orientação. No A penetração dialógica é obrigatória na filologia (pois, sem ela, ne-
processo de trabalho científico, evidentemente, cabe operar nhuma interpretação é possível): ela revela novos elementos no discurso
(semânticos em sentido amplo) que, uma vez descobertos por via dialógi-
com a palavra do outro - com trabalhos dos antecessores,
ca, coisificam-se em seguida. Todo o avanço da ciência sobre a palavra é
juízos dos críticos, opinião comum, etc. - , ocorre operar antecedido por sua "fase genial" - a aguda relação dialógica com o dis-
também com diferentes formas de transmissão e interpreta- curso, que neste revela novos aspectos.
tipo de romance) deve ser atribuída a uma unidade de casta ção (Entwicklungsroman). Ele inaugura uma série: Parsifal- Simplicissi-
mus - Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister - Grüner Heinrich
e classe consolidada, ainda não desintegrada. Essa unidade
[O verde Henrique].
conseguiu penetrar em todos os elementos do material alheio, Essa variedade de gêneros, diferentemente do gênero do romance
conseguiu reformulá-los e reacentuá-los a tal ponto que o de educação puramente didático (retórico) e predominantemente mono-
universo desses romances nos parece um universo épico e vocal (A educação de Ciro, Telêmaco, Emílio), requer um discurso bivocal.
único. O clássico romance de cavalaria em versos está de Uma mudança original dessa variedade é o romance humorístico de edu-
cação com um leve matiz paródico: Tom fones, de Fielding; Agatão, de
fato situado na fronteira entre a epopeia e o romance, mas
Wieland; Tobias Knaut, de Johann Karl Wezel; Lebensliiufe nach aufstei-
ainda assim atravessa nitidamente essa fronteira em direção gender Linie [Percursos de vida em linha ascendente], de Hippel; e Titan,
ao romance. Protótipos mais profundos e completos desse de Jean Paul.
ta as suas intenções, como na prosa literária (ora, o prosador aqui não se realiza na consciência individual dos criadores do romance:
romancista também não expõe o discurso alheio, mas cria esse processo, que foi longo e teve múltiplas fases, realizou-se na cons-
ciência linguística e literária de uma época e de uma classe; a consciên-
deste uma representação literária). Assim, o romance de ca-
cia individual não o iniciou nem o concluiu, apenas entrou em comunhão
valaria em versos, embora também tenha sido determinado com ele.
pela ruptura entre o material e a língua, supera essa ruptura, 67 No final do século XV e início do XVI saem edições impressas de
põe o material em comunhão com a linguagem e cria uma quase todos os romances de cavalaria criados até então.
t O discurso patético e sua figuralidade surgiram e formaram-se na stein, Arminius und Thusnelda.
imagem distante e estão organicamente vinculados à categoria axiológico- t Trata-se da zona espaço-temporal específica do patético sentimen-
-hierárquica de passado. Na zona familiar de contato com a atualidade tal de câmara. É a zona da carta, do diário, etc. (a zona da pregação pro-
inacabada não há lugar para tais formas de páthos; ele inevitavelmente testante). A zona de contato e familiaridade ("proximidade") da praça e
destruiria esse contato (por exemplo, em Gógol). Faz-se necessária uma da câmara. O palácio e a casa, o templo (catedral) e a capela protestante
posição hierárquica do topo, que nas condições dessa zona é impossível doméstica. Não se trata de escalas, mas de uma organização especial do
(daí a farsa e a tensão). espaço. Paralelos com a arquitetura e a pintura.