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Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Mikhail BAKHTIN.

São Paulo:
Editora 34, 2017, 100 páginas.

O livro Notas sobre Literatura, Cultura e Ciências Humanas é uma coletânea de três
textos do filósofo russo Mikhail Bakhtin reunidos primeiramente no livro Estética da
Criação Verbal publicado póstumante em Moscou em 1979. A edição brasileira lançada pela
editora 34 em 2017 foi traduzida, organizada, com prefácio, posfácio e textos de apoio do
professor, tradutor e crítico literário Paulo Bezerra. Diferentemente da maioria das traduções
de Bakhtin advindas do francês, o autor brasileiro traduziu os textos diretamente do russo.
No primeiro texto: A ciência da literatura hoje, Bakhtin conceitua aquilo que chama
de ciência da literatura. Por ser uma abordagem metodológica recente no campo da literário,
a ciência da literatura, segundo o autor, ainda carece de métodos mais elaborados de estudo.
A lacuna evidencia uma ausência de “lutas”1 em torno das discussões do campo da pesquisa
literária que se mostram como meros truísmos e chavões, presentes na área de estudos até
então.
Para Bakhtin, a ciência da literatura deve ser compreendida como um constructo do
tempo e da cultura, como algo mais amplo que envolve o “espírito do tempo”2. Em termos
conceituais, ela “deve estabelecer o vínculo mais estreito com a história da cultura. A
literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de
toda a cultura de uma época” (2017, p. 11). Nesse sentido, o estudo literário de uma época
não pode preceder de uma análise mais profunda e densa da cultura. É como cair no
reducionismo e no sensacionalismo que os jornais e revistas produzem sobre a literatura que
pouco ou nada contribuem para uma compreensão mais profunda de uma obra literária. Cabe
ressaltar a importância que Bakhtin dá às culturas populares, que contribuem de maneira
significativa para a produção literária mas que ainda recebem pouca atenção dos estudos
acadêmicos3.

1
Lutas estas que poderíamos conceituar, na acepção de Pierre Bourdieu, como “lutas simbólicas” em torno da
legitimação do que é ou não uma “ciência da literatura” no campo literário. Segundo Bourdieu, alguns “campos
sociais” disputam entre si sobre a legitimidade dos significados que circulam dentro do próprio campo.
2
Zeitgeist, expressão alemã que significa “espírito do tempo”.
3
Percurso que o autor russo tratou de fazer em sua tese de doutoramento intitulada A cultura popular na idade
média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Cf: A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília: Hucitec/UnB, 1993.
Se num primeiro momento o autor adverte para não descolar a literatura da cultura
mais ampla, em um segundo momento, ele chama a atenção para não fechar a amplitude de
uma obra literária apenas sua época de criação, em sua atualidade. Se o esforço for apenas
“interpretar e explicar uma obra apenas a partir das condições da época mais próxima, nunca
penetramos nas profundezas dos seus sentidos. O fechamento de uma época não permite
compreender a futura vida da obra nos séculos subsequentes” (2017, p. 15).
O grande desafio da ciência da literatura, portanto, é observar como uma obra literária
pode se tornar perene e capaz de atravessar os séculos em sua profundidade e amplitude.
Uma obra literária não sobrevive ao tempo se ela não trazer em si elementos do passado e do
futuro4. Uma obra que se ocupa em responder apenas as questões do presente, à medida que
são respondidas, perde o seu valor, morre juntos com as questões que tratou de responder.5
Por isso, o escritor “é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores
o libertam dessa prisão, e a ciência da literatura tem a incumbência de ajudá-lo nessa
libertação” (2017, p. 16). Portanto, a ciência da literatura, confere autonomia ao autor para
que ele subverta sua própria época e transcender as fronteiras do tempo por meio de sua obra,
o que em outros textos Bakhtin chama de “cronotopo”.
Outro conceito de grande reflexão na obra do filósofo russo é o conceito de alteridade.
O autor critica as formas de transposição inconsciente que se desligam de sua própria cultura
para ligar-se à cultura do outro de maneira irrefletida, o que anularia qualquer possibilidade
de interpretação mutua da cultura do outro. A alteridade implica olhar para si não pelo próprio
olhar, mas pelo olhar do outro. À medida em que nos identificamos como desta ou daquela
cultura, a compreensão ocorre não pelo olhar de si, mas pelo olhar que o outro tem de nós.
Em outras palavras, se somos algo, somos algo em relação ao outro, o que em termos

4
Inúmeras obras literárias fazem esse tipo de exercício. “O queijo e os vermes”, importante obra do historiador
italiano Carlo Ginzburg escrita no final da década de 1980 é um exemplo. A obra descreve a vida de Menocchio
um moleiro do século XVI perseguido pela inquisição pela afirmação de teorias alternativas sobre a origem do
universo.
5
Crítica semelhante é a feita por Adorno e Horkheimer à indústria cultural e aos produtos da cultura de massa,
justamente pelo fato da não presar por uma certa perenidade ou não subscreverem sua autoria no ato temporal.
Em outras palavras, morrem junto com aquilo que propõem.
bakhtinianos é chamado de exotopia: “ex”, fora, e “topos”, lugar, ou olhar de fora. O olhar
de fora, ou olhar do outro, nos caracteriza por meio da alteridade e nos fazem sujeitos para
alguém6. A alteridade em Bakhtin também é chamada de “excedente de visão estética”. A
perspectiva decorre de um dos conceitos-chave do autor, o “dialogismo”. Pensando em
sentido dialógico, “um sentido só revela as suas profundezas encontrando e contando aos
outros, o sentido do outro: entre eles começa uma espécie de diálogo que supera o
fechamento e a unilateralidade desses sentidos, dessas culturas” (2017, p. 19).
O texto fragmentos dos anos 1970 e 1971, foi escrito entre maio de 1970 e dezembro
de 1971. Paulo Bezerra afirma ser um dos últimos textos de Bakhtin escritos em vida. Como
o título enuncia, trata-se de fragmentos, de esboços que seriam posteriormente completados.
Algumas frases são desconexas e muitas não fazem sentido em si, mas as reflexões seriam
posteriormente retrabalhadas e apontavam possíveis caminhos que autor desejava trilhar.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. São Paulo:
Editora 34, 2017.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1965.

6
Compreender o outro é estar numa posição de “sim” e “não”, ou nos termos do filósofo alemão Karl Jaspers
(1965) numa relação entre concordância e discordância. Essa complexa relação ocorre pela Comunicação, ato
mútuo que move o entendimento humano na busca por uma verdade, a “verdade filosófica”.

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