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Dialogismo e educação:

uma aproximação entre


Paulo Freire e Mikhail Bakhtin?
Marcelo Rythowem*
Jair José Maldaner**

Resumo: A proposta defendida nesse artigo é estabelecer uma leitura


do dialogismo a partir de Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. Ambos apre-
sentam uma série de convergências, divergências e complementaridades
em suas reflexões. Na obra de ambos há reconhecimento de que os seres
humanos só se constituem a partir da relação com os outros em um pro-
cesso dinâmico, histórico e inacabado. Emerge de suas reflexões uma
ética de compromisso para a superação do processo de reificação dos
seres humanos. Ressaltamos o diálogo como fundamento da existência
humana que só pode realizar sua vocação ontológica em “ser mais” na
dinâmica das relações dialógicas que estabelece com os outros em pro-
cesso contínuo e aberto. Abordamos também as possibilidades no cam-
po educativo de transformação das relações sociais pela formação de

* Professor do IFTO Campus Palmas. Coordenação de Ciências Humanas. Licencia-


do em Filosofia (IFIBE/UPF), Mestre(UnB) e Doutor em Educação (UFG). E-mail:
<marcelorythowem@gmail.com>.
** Professor do IFTO Campus Palmas. Coordenação de Ciências Humanas. Licencia-
do em Filosofia (IFIBE/UPF), Mestre e Doutor em Educação (UnB). E-mail: <jair
maldaner@yahoo.com.br>.

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personalidades democráticas capazes de se reconhecerem como atores-
-autores da construção da história.

Palavras-chave: Dialogismo. Educação libertadora. Polifonia. Consciência.

1. Introdução

O ser humano é vocacionado para realizar-se historicamente e


construir um sentido para sua existência no mundo e com o mundo:
constrói a si mesmo construindo mundo. Todavia, essa vocação tem
sido negada quando esse direito à realização de um projeto de mundo
pautado no diálogo é impedido pelas forças que oprimem o ser huma-
no nas relações sociais, econômicas, culturais, afetivas, educativas entre
outras. Em virtude dessas forças opressoras, o ser humano é coisificado,
reificado - torna-se um objeto manipulável pelo opressor.
A reificação é, portanto, um fenômeno no qual as relações sociais
estariam cada vez mais submetidas a uma finalidade calculadora. A re-
lação dos sujeitos com seu mundo circundante não comportaria mais a
dimensão da produção de si mesmos como sujeitos, mas seria claramen-
te substituída por uma atitude de disposição meramente instrumental e
indiferente cuja conduta calculadora característica atingiria as próprias
experiências mais íntimas dos sujeitos e suas condições de autorrealiza-
ção. Tal reificação imprimiria à consciência e à subjetividade a força de
uma ação irrefletida e calcada no imediatismo da ação individualista.
A superação dessa condição de objeto poderia ser alcançada pelo
processo dialógico, isto é, da construção de uma subjetividade aberta ao
outro e no reconhecimento ético e político de que nossa condição hu-
mana é produto das interações mediadas pela transformação do mundo.
Esse processo, que ultrapassa a dimensão psicológica e subjetiva, mas
não prescinde delas, constitui-se em uma dinâmica política de cons-
trução de novas instituições, entre elas a escola, capazes de oferecer aos
sujeitos históricos a oportunidade de se produzirem como sujeitos que
se autodeterminam reconhecendo-se coautores de seus processos edu-
cativos.
Tal empreitada se viabiliza na medida em que a relação ao outro
seja constituída por uma interação baseada em uma ética de respeito ao

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outro enquanto radicalmente outro (LEVINAS, 1988). Essa relação ba-
seada no dialogismo implica em sujeitos capazes de compreender que a
busca de um sentido para seu mundo está sendo permanente construído
na arena da linguagem. O psiquismo não pode, nesse sentido, ser com-
preendido fora do campo da linguagem, pois não há atividade mental
sem expressão semiótica. Assim sendo, o pensamento está vinculado a
um determinado conjunto de ideologias que são refletidas e refratadas
pelo sujeito. A subjetividade e a ação educativa político transformadora,
portanto, só se constituem tendo como horizonte essa relação com o
outro.
Reconhecendo esse projeto de construção de seres humanos au-
tônomos, capazes de reflexão, capazes de construírem uma sociedade
e consequentemente uma humanidade livre de toda forma de opres-
são, abordaremos a perspectiva conceitual e política de Paulo Freire e
Mikhail Bakhtin. Exploraremos doravante suas concepções sobre o ser
humano como um ente constituído dialogicamente e proporemos algu-
mas reflexões no campo da educação a partir dessa perspectiva.

2. O dialogismo em Paulo Freire

O dialogismo em Paulo Freire (2005) remete ao reconhecimento de


que os seres humanos são históricos e que é pelo diálogo que constroem
e reconstroem o mundo. O diálogo não pode ser portanto, um manho-
so instrumento na mão de um sujeito visando conquistar o outro. A
conquista almejada é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, que por essa
conquista produzem a sua libertação das situações e relações sociais em
que são submetidos a coisa, objeto. O diálogo nesse sentido é condição
para a formação do sujeito histórico e social.
Assim sendo, dizer a palavra verdadeira é transformar o mundo.
Para Paulo Freire, esse processo só é viável pela dupla dimensão da prá-
xis: ação e reflexão solidariamente interagindo (FREIRE, 2005b). Dessa
forma, uma práxis que não busque a radicalidade da transformação do
mundo não pode dizer o mundo autenticamente. Essa palavra só pode
ser inautêntica com a qual

[...] não se pode transformar a realidade, resulta da dicotomia

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que se estabelece entre seus elementos constituintes. Assim é
que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada,
automaticamente na reflexão também, se transforma em pala-
vreria, verbalismo, blablablá. Por tudo isto, alienada e alienante.
É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do
mundo, pois não há denúncia verdadeira sem compromisso de
transforação, nem este sem ação (FREIRE, 2005b, p. 90).

Não é possível a existência muda ou silenciosa. Renunciar a essa


condição é abrir mão da própria dignidade. Da mesma forma, em parte,
o ser humano renuncia de seu papel de ator-autor na história quando
homens e mulheres nutrem-se de palavras falsas ou vazias. “Existir, hu-
manamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronun-
ciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a
exigir deles novo pronunciar" (FREIRE, 2005b, p. 90).
Portanto, “[...] não é no silêncio que os homens se fazem, mas na
palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 2005b, p. 90). Assim
sendo, o ato de proferir a palavra verdadeira que se faz mundo pelo tra-
balho, pela práxis e que pode transformar o mundo é direito de todos
e jamais pode ser privilégio de poucos. Em consequência disso, jamais
a palavra verdadeira poderá ser dita por um só sujeito, ou prescrever a
verdade aos demais. Esse é um ato que implica em reconhecer que só
o diálogo permite o dizer a palavra verdadeira. “[...] dizendo a palavra
com que, pronunciando o mundo, os homens o transformam, o diálogo
se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação en-
quanto homens" (FREIRE, 2005b, p. 91).
O diálogo é, portanto, um encontro de seres humanos mediatizado
pelo mundo, ultrapassando a relação interindividual abrindo-se para
a transformação do mundo. Nas palavras de Paulo Freire (2005), esse
processo não é viável quando alguns não querem a pronuncia trans-
formadora do mundo e negam esse direito aos demais. É preciso, desse
modo, reconquistar esse direito primordial de dizer a palavra cessando
o ato desumanizante que rouba o poder “ser mais” daqueles que são
silenciados.

Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o en-


contro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos
endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado não
pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no

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outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem
consumidas pelos permutantes (FREIRE, 2005, p. 90).

Por outro lado, o diálogo não pode existir quando se dá na forma


de uma discussão guerreira, polêmica. Os sujeitos sociais devem aspirar
ao compromisso com essa pronuncia transformadora do mundo. Buscar
em conjunto a verdade e evitar de todas as formas impor suas ideologias
arbitrariamente uns aos outros.
Chama atenção, nesse sentido, o relato de Paulo Freire, na obra
Pedagogia da Esperança, da situação em que foi duramente questionado
pela forma como se referia aos seres humanos usando sempre o termo
homem. Após receber uma série de reclamações de leitoras da Pedagogia
do Oprimido, Freire reconhece que em seu discurso acabou por introje-
tar o discurso machista e revê seu posicionamento para um pronunciar
criativo e libertador. Ele reconhece seu débito para com aquele grupo de
mulheres por ter tido a oportunidade de perceber o quanto de ideologia
tem a linguagem. Nesse sentido assevera que

A discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso ma-


chista e encarnada em práticas concretas é uma forma colonial
de tratá-la, incompatível, portanto, com qualquer poção pro-
gressista, de mulher ou de homem, pouco importa [...] Por isso
mesmo, ao escrever falar uma linguagem não mais colonial eu o
faço não para agradar mulheres ou desagradar a homens, mas
para ser coerente com minha opção por aquele mundo menos
malvado de que falei antes. Mudar a linguagem faz parte do
processo de mudar o mundo. A relação entre linguagem-pensa-
mento-mundo é uma relação dialética, processual, contraditória
(FREIRE, 2005, p. 68).

Freire argumenta que não se pode pensar autenticamente se outros


também não pensam. Não se pode pensar pelos, nem sem, nem para os
outros. No campo da educação, o diálogo, portanto, não anula as dife-
renças entre professores e alunos, muito pelo contrário. Somente pelo
diálogo é que se pode marcar de forma democrática a posição de profes-
sores e alunos. Esse diálogo deve existir desde o processo que estabelece
como se deve desenvolver um programa de disciplina, o que pode ser
investigado, como um determinado objeto pode ser conhecido, como
posso me aproximar dele.

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O dialogo tem significação precisamente porque os sujeitos dia-
lógicos não apenas conservam sua identidade, mas a defendem
e assim cresce um com o outro. O diálogo, por isso mesmo, não
nivela, não reduz um ao o outro. Nem é favor que um faz ao ou-
tro. Nem é tática manhosa, envolvente, que um usa para confun-
dir o outro. Implica, ao contrário, um respeito fundamental dos
sujeitos nele engajados, que o autoritarismo rompe ou não per-
mite que se constitua. Assim também a licenciosidade, de forma
diferente, mas igualmente prejudicial (FREIRE, 2005, p. 118).

Para que o diálogo ocorra de forma a permitir o “ser mais”, voca-


ção ontológica dos seres humanos, é preciso que os educadores sejam
capazes de falar e compreender a língua dos oprimidos. Freire (2005a)
sustenta que é preciso de forma imperiosa que educadores e educadores
se esforcem em compreender e se familiarizarem com a sintaxe e a se-
mântica dos grupos populares. É preciso ter a mínima noção de como
procedem em suas leituras de mundo; como usam as artimanhas para
sustentar uma cultura de resistência contra a violência a que são subme-
tidos. Esse esforço torna-se fecundo porque

A relação dialógica, porém não anula, como as vezes se pensa,


a possibilidade do ato de ensinar. Pelo contrário, ela funda este
ato, que se completa e se sela no outro, o de aprender e ambos
só se tornam verdadeiramente possíveis quando o pensamento
crítico, inquieto, do educador ou da educadora não freia a capa-
cidade de criticamente também pensar ou começar a pensar do
educando (FREIRE, 2005b, p. 118).

A partir dessa perspectiva, o dialogismo freireano está vinculado


à construção da personalidade democrática. Desde as primeiras obras
publicadas, percebe-se que é necessário a formação de uma personalida-
de compatível com a experiência de uma sociedade democrática. Nesse
sentido o diálogo torna-se um elemento central tendo em vista esse ob-
jetivo (BEISIEGEL, 2010). Em sua tese para o concurso da Universidade
de Pernambuco Freire assevera que

A nossa experiência, por isso que era democrática, tinha de se


fundar no diálogo, uma das matrizes em que nasce a própria
democracia. Diálogo da instituição com o operário, seu cliente,
através de clubes recreativos e educacionais. Dialogação que re-

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presentava uma cada vez maior participação do operário na vida
da instituição a que se ligava e com que sobretudo aprenderia a
ver a coisa pública através de outras perspectivas (FREIRE apud
BEISIEGEL, 2010, p. 33).

De certa forma retomando as mais diversas tradições intelectuais


de tomada de consciência por parte do sujeito, Freire postula um itine-
rário em que se parte de uma consciência intransitiva para a consciência
transitiva crítica. Na primeira na qual não há consciência da histori-
cidade dos seres humanos está voltada quase que exclusivamente para
a subsistência biológica. Superado esse estágio passa-se a consciência
transitiva. Num primeiro momento essa é uma consciência ingênua que
tem um certo gosto pelo passado, acredita em soluções mágicas para os
problemas, explicações fantasiosas, é refratária ao contraditório. Em um
terceiro momento é possível conquistar a consciência crítica. Todavia
sem o diálogo esse momento é praticamente inalcançável porque é uma
conquista que se dá de modo coletivo. Freire a caracteriza nos seguintes
termos:

A transitividade crítica, pelo contrário, se caracteriza pela pro-


fundidade na interpretação dos problemas. Esta modalidade da
consciência transitiva teria como características a “substituição
de explicações mágicas por princípios causais”, o teste dos acha-
dos e a permanente disposição a suas revisões; a disposição ao
abandono de preconceitos na análise dos problemas: o esforço
por evitar deformações; a recusa à transferência da responsabili-
dade, a “recusa a posições quietistas”, a “segurança na argumen-
tação “o gosto pelo debate uma “maior dose de racionalidade” a
aceitação de arguições: a “apreensão e receptividade a tudo o que
é novo”. Seria também marcada pela aceitação da massificação
como um fato, e ao mesmo tempo pelo esforço dirigido à hu-
manização do homem. (FREIRE apud BEISIEGEL, 2010, p. 31).

Posteriormente, quando Paulo Freire caracteriza a ação dialógica


em Pedagogia do Oprimido, ele retoma essas reflexões:

Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação a este hoje


normalizado, para o crítico, a transformação permanente da
realidade, para a permanente humanização dos seres humanos.
Para o pensar ingenuo, a meta é agarrar-se a este espaço garan-

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tido, ajustando-se a ele e, negando a temporalidade, negar-se a
si mesmo. [...] Somente o diálogo, que implica um pensar crítico,
é capaz também, de gerá-lo. [...] Sem ele não há comunicação
e sem esta não há verdadeira educação. A que, operando a su-
peração da contradição educador-educandos, se instaura como
situação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu ato cog-
noscente sobre o objeto cognoscível que os mediatiza (FREIRE,
2005b, p. 95-96).

O diálogo se faz uma relação horizontal porque se funda no amor,


na humildade e na fé nos seres humanos. A confiança de um polo no
outro é condição necessária. Para Paulo Freire (2005b) seria uma con-
tradição se o diálogo não provocasse este clima de confiança entre seus
sujeitos estando fundado nessas condições. Não há nenhuma garantia
por parte do oprimido. É preciso confiar e essa confiança inexiste na
antidialogicidade da concepção “bancária” da educação. Como assevera
Freire:

Se a fé nos homens é um dado a priori do diálogo, a confiança se


instaura com ele. A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos
cada vez mais companheiros na pronuncia do mundo. Se ha esta
confiança, é que falharam as condições discutidas anteriormen-
te. Um falso amor, uma falsa humildade, uma debilitada fé nos
homens não podem gerar confiança. A confiança implica o tes-
temunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas
intenções. Não pode existir, se a palavra, descaracterizada, não
coincide com os atos. Dizer uma coisa e fazer outra, não levando
a palavra a sério, não pode ser estímulo à confiança (FREIRE,
2005b, p. 94).

Assim sendo, falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo


é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é uma mentira.
A confiança só pode ser conquistada portanto pela coerência de quem
busca transformar o mundo e suas opções no campo da educação volta-
da para a formação político-ideológica comprometida com as mudanças
necessárias.
Para os educadores que fazem a opção por uma educação compro-
metida com a libertação, com a dialogicidade, expressão de uma prática
de liberdade, o processo começa a partir da escolha dos objetos em tor-
no dos quais o processo gnosiológico irá se desenvolver. Isso implica em

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como determinar os conteúdos programáticos nos quais o diálogo será
construído. Assim sendo,

Para o educador-educando, problematizador, dialógico, o con-


teúdo programático da educação não é uma doação ou uma im-
posição - um conjunto de informes a ser depositado nos educan-
dos - mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada
ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma de-
sestruturada (FREIRE, 2005b, p. 96-97).

Na medida em que o educador dialógico investiga o pensar dos


seus educandos mais os dois se educam juntos. Nesse caso, a investiga-
ção temática, que definirá os temas geradores, é um processo indisso-
ciável do processo educativo na perspectiva problematizadora. Ao con-
trário da educação bancária que deposita no aluno os conteúdos que o
professor determinou a priori, “[...] na prática problematizadora, dialó-
gica por excelência, este conteúdo, que jamais é ‘depositado’, se organiza
e se constitui na visão do mundo dos educandos, em que se encontram
seus temas geradores” (FREIRE 2005, p. 120).
Os conteúdos abordados e as situações de aprendizagem, na pers-
pectiva problematizadora são dinâmicos como é a vida.

Por tal razão é que este conteúdo há de estar sempre renovando-


-se e ampliando-se. A tarefa do educador dialógico é, trabalhan-
do em equipe interdisciplinar este universo temático recolhido
na investigação, devolvê-lo como problema, não como disserta-
ção, aos homens de quem recebeu (FREIRE 2005, p. 120).

Vimos portanto, algumas considerações do ponto de vista de uma


análise filosófica do processo do diálogo em Paulo Freire. Ressaltamos
o diálogo como fundamento da existência humana que só pode realizar
sua vocação ontológica em “ser mais” na dinâmica das relações dialógi-
cas que estabelece com os outros em processo contínuo e aberto. Abor-
damos também as possibilidades no campo educativo de transformação
das relações sociais pela formação de personalidades democráticas capa-
zes de se reconhecerem como atores-autores da construção da história.
Na seção seguinte procuraremos abordar o dialogismo na ótica
bakhtiniana estabelecendo algumas proposições de convergência, diver-
gência e complementaridade com o diálogo como foi proposto nessa etapa.
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3. Dialogismo em Bakhtin

O dialogismo embasa, fundamenta e proporciona unidade ao pen-


samento bakhtiniano. “Essa noção funda não só a concepção bakhti-
niana da linguagem como é constitutiva de sua antropologia filosófi-
ca” (FIORIN, 2006, p. 18). A construção teórica de Bakhtin sobre o ser
humano e a sociedade são impregnadas pelo princípio do dialogismo.
Nesse sentido, o outro, os outros são sempre um polo de referência sig-
nificativa na maneira como o sujeito se constitui enquanto ser humano
que produz um sentido ao mundo que o circunda. Em certo sentido, a
vida mesma é uma produção dialógica. Sem o confronto, o diálogo a
vida é impossível.

A língua em sua totalidade concreta, viva, em seu uso real tem


a propriedade de ser dialógica. Essas relações dialógicas não
se circunscrevem ao quadro estrito do diálogo face a face, que
é apenas uma forma composicional, em que elas ocorrem. Ao
contrário, todos os enunciados no processo de comunicação, in-
dependentemente de sua dimensão, são dialógicos. Neles, existe
uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre
pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a pa-
lavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir
um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está pre-
sente no seu. Por isso, todo discurso é inevitavelmente ocupado,
atravessado, pelo discurso alheio. O dialogismo são as relações
de sentido que se estabelecem entre dois enunciados (FIORIN,
2006, p. 18-19).

A concepção dialógica bakhtiniana apoia-se na compreensão da in-


teração discursiva como um evento comunicacional. Ao contrário das
correntes positivistas da linguagem que predominavam em seu tempo,
Bakhtin (2003), afirma que é no processo de interação, no evento da fala
viva, entre dois interlocutores que é possível a construção de sentido. Des-
sa forma, o enunciado está inserido no contexto social do qual emerge, é
emoldurado pela entonação expressiva de quem o pronuncia. Em sua re-
cepção ocorre uma resposta que é um novo enunciado e assim por diante,
de tal forma que a apropriação de um determinado discurso nunca é uma
transmissão mecânica entre dois interlocutores, mas uma apropriação
criativa que implica concordância, discordância, conflito, negação.

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Na obra de Bakhtin, o dialogismo ocupa essa posição privilegiada
porque em seu horizonte de reflexão esteve muito presente a problemá-
tica da relação entre o “eu e o outro” (STAM, 2000). Não se trata da re-
lação de duas mônadas absolutamente separadas entre si como opostos
que se contradizem (EMERSON; MORSON, 2008). Os indivíduos não
formam mônadas completamente determinadas ocupando um deter-
minado lugar fixo. Sempre se é meio para o outro, e é nessa desordem
que se dá uma relação de fronteira entre as particularidades de nossa
experiência individual e a auto-experiência dos outros, porque a cons-
ciência não é um território soberano, mas um evento social e linguisti-
camente constituído, isto é,

[...] a estrutura da atividade mental é tão social como a da sua


objetivação exterior. O grau de consciência, de clareza, de aca-
bamento formal da atividade mental é diretamente proporcional
ao seu grau de orientação social (BAKHTIN, 1986, p. 114).

A própria consciência é antes de subjetiva, intersubjetiva. Sem sa-


ber ao certo quando inicia-se a participação na comunidade humana, o
sujeito social pode reconhecer no seu processo de formação que é fruto
de um conjunto de vozes que recebe e que ativamente posiciona-se dian-
te delas. A consciência reflete e refrata o discurso ideológico do qual
busca as referências para se fazer pessoa humana.

Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em


consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só
emergem, decididamente, do processo de interação entre uma
consciência individual e uma outra. E a própria consciência in-
dividual está repleta de signos. A consciência só se torna cons-
ciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico)
e, consequentemente, somente no processo de interação social
(BAKHTIN, 2006, p. 33).

Uma cultura, grupo social, comunidade é formada pela interação


permanente que é representada pelo dialogismo. Assim sendo, o com-
plexo fenômeno da linguagem é fruto das relações dialógicas historica-
mente construídas e dinamicamente vividas. Quando se está ocupando
uma certa posição na cadeia discursiva o sujeito social é sempre perpas-
sado por múltiplos discursos, textos e contextos dos quais não pode se

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imiscuir. No discurso próprio há sempre uma referência ao discurso dos
outros, não se pode simplesmente existir sem a figura do outro.
Há sempre, portanto outras vozes, discursos impregnados na cons-
ciência individual. Essa interação nem sempre está explícita. Todavia
pelo simples fato de o ser humano poder se comunicar com outros já
indica que ele entrou no campo da linguagem assumindo e ressignifi-
cando para si aquilo que a cultura lhe ofereceu. Desse modo,

A ideia não vive na consciência individual isolada de um ho-


mem: mantendo-se apenas nessa consciência, ela degenera e
morre. Somente quando contrai relações dialógicas essenciais
com as ideias dos outros é que a ideia começa a ter vida, isto é,
a formar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expres-
são verbal, a gerar novas ideias. O pensamento humano só se
torna pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de
um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado
na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na
palavra. É no ponto desse contato entre vozes-consciências que
nasce viva a ideia (BAKHTIN, 1997, p. 86).

No processo de comunicação, portanto na construção social da


realidade e da consciência, os sujeitos sociais utilizam os enunciados. A
sua principal característica é a dialogicidade. Ao pronunciá-los sempre
se leva em conta a réplica de um outro interlocutor para quem ele é en-
dereçado e do qual são levados em conta as expectativas e concepções.
Desse modo não há emissor ativo e nem receptor passivo, mas um pro-
cesso contínuo de interlocução e produção de sentido.
O ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do
discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição res-
ponsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o,
aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc; essa posição responsiva do ouvinte
forma-se ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o
seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante.
Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativa-
mente responsiva (embora seu grau de ativismo seja bastante diverso);
toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera
obrigatoriamente: o ouvinte torna-se falante (BAKHTIN, 2003, p. 271).
O referencial teórico de Mikhail Bakhtin, portanto, oferece algu-
mas categorias que poderão ajudar-nos a repensar e redesenhar proces-

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sos interativos que visem à autonomia na construção do conhecimento.
Exploraremos a seguir os conceitos de dialogismo e polifonia com for-
mas de expressão de uma relação pedagógica que podem proporcionar
uma educação crítico-reflexiva.
O caráter de evento, de irrepetibilidade, de um enunciado se jus-
tifica visto que o contexto em que ele foi pronunciado não é o mesmo,
a entonação expressiva é diferente pois as pessoas mudam e nunca res-
pondem de modo igual a diferentes enunciados (EMERSON; MOR-
SON, 2008). Nesse sentido, é preciso compreender que

A língua existe não por si mesma, mas somente em conjun-


ção com a estrutura individual de uma enunciação concreta. É
apenas através da enunciação que a língua toma contato com a
comunicação, imbui-se do seu poder vital e torna-se uma reali-
dade. As condições da comunicação verbal, suas formas e seus
métodos de diferenciação são determinados pelas condições so-
ciais e econômicas da época (BAKHTIN, 1986, p. 68).

Por contar com a participação de um sem número de vozes em um


determinado tema a relação dialógica pode ser também polifônica. A
polifonia representa a possibilidade de que

o nosso discurso da vida prática está cheio de palavras dos ou-


tros. Com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz,
esquecendo-nos de quem são; com outras reforçamos nossas
próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós;
por último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções,
que são estranhas e hostis a elas (BAKHTIN, 1997, p. 195).

A polifonia fundamenta-se em uma visão dialógica da verdade e


em uma posição especial de quem enuncia essa percepção de verdade
(EMERSON e MORSON, 2008). A polifonia caracteriza-se como um
evento em que várias consciências se encontram dialogando sem neces-
sariamente finalizar essa interlocução. Nesse sentido, diferentes vozes
sociais se fazem presentes cuja riqueza de pontos de vista e ideologias
oferecem ao discurso ilimitadas alternativas de sentido. Em oposição à
polifonia, o discurso monofônico não reconhece a multiplicidade e não
dá voz ao outro (FIORIN, 1994).

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4. Considerações finais: Freire e Bakhtin um diálogo possível
na educação

Retomamos nesse ponto, procurando colher algumas possibilida-


des de diálogo entre os autores mencionados, a ideia de reificação, coi-
sificação, que apontamos no início desse trabalho. Cremos ter demons-
trado que em ambos a superação dessa situação pelos seres humanos
é mais que um objetivo, é centro de um projeto intelectual, político e
existencial. Por postularem uma concepção de mundo aberta, inacaba-
da e uma antropologia dialógica Freire e Bakhtin sofreram um processo
de perseguição e exílio. Pagaram um preço muito alto por acreditarem e
lutarem pela construção de um ser humano emancipado, liberto de toda
forma de exploração.
No campo da educação, a reificação o “ser menos” ou até o não
ser, está representada, em Paulo Freire, pela educação bancária com os
depósitos de conteúdos que ocorrem em sentido único. É o momento
do discurso sonolento que torna a prática educativa enfadonha, que in-
viabiliza uma formação autêntica. Esse processo, a partir de Bakhtin,
podemos identificá-lo com a monofonia. Impera nessa visão o topos
autoritário e reducionista que tudo vê e tudo comunica sob uma con-
cepção totalitária e fechada de verdade. A prática monofônica negando
o caráter dialógico do encontro entre educador e educando explicita a
necrofilia que Paulo Freire condena nas formas autoritárias de educação
Educação libertadora e perspectiva educativa polifônica são coe-
rentes. Em ambas predominam linguagens das mais variadas formas
que possibilitam a construção de sentidos múltiplos, sempre inacabados
abertos ao novo. Proporcionam o estabelecimento de uma compreensão
de mundo baseada em uma ética de respeito ao outro como sujeito his-
tórico autônomo.
Sendo o diálogo o princípio de toda e qualquer forma humaniza-
ção pela linguagem em ambos teremos um reconhecimento e respeito
profundo pela alteridade, pelo reconhecimento ético do outro no pro-
cesso de constituição do eu. Essa relação eu-tu sempre será aberta. Para
Bakhtin, o diálogo sem outro é impossível, sem isso não há linguagem
nem subjetividade. Recusar-se ao diálogo, não reconhecer o outro, é ne-
gar a própria humanidade. Em Paulo Freire o outro é o oprimido lutan-
do pela sua libertação, que criando sua humanidade pode libertar a si

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mesmo e ao opressor restaurando a humanidade em ambos. A liberta-
ção é um processo coletivo, libertando-se em comunhão com os outros
se resgata a dignidade de todos.

No diálogo encontra-se a estratégia de construção social aponta-


da pelos autores; na alteridade encontra-se a forma única de cons-
tituição da subjectividade; na linguagem, o lugar do encontro e
desencontro dos homens Significar o mundo, tornando a vida
existência parece ser o ponto nevrálgico de aproximação dos dois
autores. E esta se constrói nas relações sociais, nas instituições so-
ciais, apesar e a despeito dos seus mecanismos de objectivação e
subjectivação: as histórias de interacções nunca são idênticas en-
tre si, e daí a irrepetibilidade de casa homem; as memórias de fu-
turo são possibilidades, compagináveis com outros sonhos, mas
não redutíveis ao mesmo e ao idêntico (GERALDI, 2003, p. 51).

Em vista do exposto nesse artigo, postulamos que a convergência


entre os autores, por suas lutas e projetos de vida, tem no processo edu-
cativo dialógico uma oportunidade privilegiada de articular suas ideias.
O desafio maior é construir e viabilizar, na prática docente e no com-
promisso com a transformação das relações sociais, um diálogo capaz
de promover o “ser mais” a que todos os sujeitos histórico-sociais são
vocacionados.

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