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Carlos Nelson Coutinho: a crítica marxista da literatura

Henrique Wellen e Ranieri Carli


Inter 1 Introdução
A crítica literária promovida por Carlos Nelson Coutinho possui entre outros méritos o de
se respaldar de forma pioneira nas categorias da estética de Lukács para compreender a literatura
brasileira (não somente ela, como veremos). Por certo, Coutinho não foi cronologicamente o
primeiro dos críticos brasileiros a mencionar Lukács. Esta posição desbravadora cabe a Nelson
Werneck Sodré, que publicou em 1960 a terceira edição de sua História da literatura brasileira
usando Lukács especialmente em sua introdução para demarcar as fronteiras da autenticidade
artística (Sodré, 2002). No entanto, estamos diante de dois projetos distintos: ao passo que, em
Sodré, Lukács serve somente como um suporte inicial para se delinear os caminhos da literatura
brasileira e, por isso, aparece esporadicamente ao longo do texto, a não ser em seu estudo
introdutório, em Coutinho, Lukács é uma presença orgânica: as suas categorias se exaurem em
seus estudos, permitindo-lhe saturar de determinações a arte literária e suas leis estruturais.
À guisa de exemplo, observa-se em determinado trecho de Literatura e humanismo, de 1967,
o caráter da posição de Lukács não apenas no âmbito da estética marxista, mas também na
história da filosofia estética:
#Lukács foi o único pensador a desenvolver coerentemente a estética marxista no sentido
e na direção indicados por Marx e por Engels. E, na medida em que o marxismo lhe
proporcionou a assimilação da herança válida do passado, seu pensamento estético aparece como
a culminação e como a forma contemporânea da tradição revolucionária e humanista que – de
Aristóteles aos democratas revolucionários russos, passando por Lessing, Goethe, Hegel e tantos
outros – compreendeu e valorizou a arte como uma das mais altas manifestações da grandeza e
do poderio do homem na luta contra a destruição da sua integridade (Coutinho, 1967, p. 135).
Lukács é alocado por Coutinho no lugar de um autêntico continuador das ideias de Marx e
Engels, distanciando-o da estética do marxismo oficial de Zhdanov e da estética do marxismo
liberal de Garaudy. As palavras citadas são claras a este respeito: segundo Coutinho, Lukács é a
culminação do desenvolvimento da filosofia estética que remonta às origens com Aristóteles e
passa pelo período heroico da burguesia; seria a síntese última de todo este longo e rico processo.


Os dois autores doutoraram-se em Serviço Social pela UFRJ. Henrique Wellen, professor adjunto da Escola de
Serviço Social da UFRJ, é co-autor (com Héricka Wellen) de Gestão organizacional e escolar: uma análise
crítica. Curitiba: IBPEX, 2010. Ranieri Carli, professor adjunto do curso de Serviço Social da Universidade
Federal Fluminense/UFF, é autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2012. [N. do O.]

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Inter 1 Franz Kafka e Marcel Proust
Isso não significa que a recepção de Lukács por parte de Coutinho tenha sido sempre
concordante. Embora enalteça as conquistas obtidas pelo pensamento do marxista húngaro,
Coutinho não fecha os olhos para alguns problemas que nascem da estética lukacsiana. Há os
instantes de crítica, ainda que permaneçam dentro dos limites da estética do pensador húngaro.
Quer dizer, as ressalvas feitas a Lukács são elaboradas com o seu próprio arcabouço categorial.
Estamos falando exatamente da interpretação lukacsiana da obra de Kafka e de Proust.
Como se sabe, inicialmente, a leitura que Lukács faz destes romancistas é exageradamente
severa. Kafka e Proust são ao mesmo tempo considerados tanto fenômenos da decadência
ideológica da burguesia imperialista quanto antecipações preparatórias da mística fascista. Eis
uma passagem da obra de Lukács (1991, p. 100, 101) em que esta relação é levada a cabo:
#Não pretendemos dizer, evidentemente, que os escritores mais notáveis da decadência
estejam pessoalmente ligados à política hitleriana ou da guerra fria. Ninguém ignora que um Joyce
ou um Kafka escreveram as suas obras – imensamente significativas – muito antes dos
acontecimentos que acabamos de referir, que Musil era pessoalmente um antifascista etc. Mas, se
não pretendemos imputar-lhes uma tomada de posição diretamente política, devemos notar, no
entanto, a sua responsabilidade, na medida em que a sua concepção de mundo serviu de quadro a
toda uma literatura, enquanto reflexo da realidade efetiva, e particularmente desta realidade atual,
onde a sua maneira de refletir o mundo e de o julgar ocupa um lugar tão importante. Que este ou
aquele escritor tire daí conclusões práticas de caráter político, neste ou naquele sentido, não
interessa no momento. Trata-se somente de saber se, na imagem do mundo que estes autores
oferecem, e que é reflexo da realidade objetiva, o caos, o sentimento de perdição, o desespero, a
angústia, são realmente os fatores essenciais que determinam subjetivamente os comportamentos
correspondentes, isto é, justamente os aspectos intelectuais e emocionais da interioridade
humana, cuja predominância permite que as propagandas do fascismo e da guerra fria exerçam o
seu pleno efeito.
De acordo com esta passagem extraída de Realismo crítico hoje, a imagem de mundo oferecida
por Kafka, Proust e demais escritores permitiu que as ideologias do fascismo e da guerra fria
exercessem o seu pleno efeito; assim, esta imagem de mundo encontrada na sua literatura detém
responsabilidades quanto ao devir das lutas que abriram espaço para o advento de Hitler e seus
consortes, uma vez que teriam iluminado as sendas pelas quais a barbárie fascista caminhou.
Esta avaliação de Lukács não é aceita por Coutinho desde a juventude, em Literatura e
humanismo, o que motivou inclusive a troca de correspondência entre o mestre e o seu seguidor
(ver Coutinho e Konder, 2002). Muito embora aceite a posição geral de Lukács face à literatura

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de vanguarda1, Coutinho desvia-se da rejeição absoluta que há em Lukács diante de Kafka e
Proust. A sua sentença é definitiva: “entre os escritores ligados à vanguarda, Kafka foi talvez o
único a criar uma forma verdadeiramente original para representar os problemas de nosso
tempo” (Coutinho, 1967, p. 34). O interessante da posição de Coutinho é que a sua aceitação de
Kafka e Proust não o leva a aceitar as experimentações formalistas da vanguarda, produzidas à
maneira de Joyce; ao contrário, a tarefa de que se incumbe é precisamente distinguir aqueles dois
romancistas destas experimentações vazias de conteúdo realista2.
O caso de Kafka é muito claro para Coutinho (2005, p. 130): o narrador tcheco representa
realisticamente em sua obra o avanço do capital monopolista e o “paulatino estreitamento dos
espaços individuais de manobra”. A trajetória concreta dos seus principais personagens
demonstraria, ainda segundo Coutinho, “o poder esmagador” da realidade estranhada do
capitalismo tardio sobre a ação humana; a temática da burocracia não é casual, portanto. O caso
de Proust explica-se com a menção ao período de crise do capitalismo liberal, até então
estabilizado, que culminaria “na época „explosiva‟ do capitalismo monopolista, do imperialismo,
das guerras mundiais” (Coutinho, 2005, p. 52). Este é o cenário no qual atuam os destinos
narrados na Em busca do tempo perdido. Daí a sentença: “Proust é o romancista dessa época de crise
e de transição” (Coutinho, 2005, p. 53). A partir destas contextualizações, Coutinho estava apto a
tratar Kafka e Proust enquanto instantes vigorosos do realismo crítico. Ambos se portam como a
apropriação do movimento do real, fixando em suas respectivas criações literárias a
autoconsciência do gênero.
Esta distinção entre Kafka e Proust, de um lado, e o irracionalismo vanguardista, de outro,
é sentida como uma necessidade orgânica para a crítica literária de Coutinho, inclusive porque
Lukács não a fez. No grosso de sua obra, o pensador húngaro tratava a vanguarda como um
bloco unitário, o que implicou frequentemente em tomar Kafka por Joyce e vice-versa. A
ausência desta distinção favorável a Kafka determinou a seguinte repreensão de Coutinho
destinada a Lukács: “é bastante estranho que Lukács tenha feito (...) esta opção infeliz [eleger
Kafka o maior representante da decadência]; é evidente que não é Kafka, mas James Joyce, o

1
“A posição negativa de Lukács em face da arte moderna só pode ser devidamente compreendida a partir de sua
concepção humanista do estético: ele exige que a arte contemporânea continue a desempenhar para a
humanidade o mesmo papel que ela desempenhou no passado, desenvolvendo todas as imensas possibilidades
que lhe são inerentes, ao invés de renunciar a este papel em troca da elaboração de depoimentos pessoais sobre o
desespero e a impotência em face das tendências desumanizantes do capitalismo” (Coutinho, 1967, p. 135, 136).
2
“Podemos observar que a chamada arte de vanguarda – não obstante as inúmeras, e mesmo excessivas,
variações „formais‟ – tem como visão do mundo subjacente os postulados básicos da concepção irracionalista da
vida. Toda arte de vanguarda se caracteriza, em primeira instância, por tratar como eternos e metafísicos, como
fetiches desligados de seu contexto histórico, os temas da solidão e da falta de perspectivas concretas do homem
„privado‟ no mundo de hoje” (Coutinho, 1967, p. 25).

3
mais típico representante do anti-humanismo e do antirrealismo no romance moderno”
(Coutinho, 1991, p. 10).
Em 1968, Coutinho (1991, p. 10) alegava que, “antes de 1956, Lukács jamais falara em
Kafka”. Isso não é exatamente correto. Realismo crítico hoje não é a primeira menção de Lukács ao
escritor tcheco. Com efeito, na maturidade de 2005, Coutinho corrigiria a informação: a primeira
menção de Lukács a Kafka é um pouco anterior a Realismo crítico hoje. Ela acontece em 1953, no
problemático prólogo de A destruição da razão: “atualmente, os representantes literários da
economia política diretamente apologética, da filosofia semântica, são os quadros do desespero
niilista; é Kafka, é Camus” (Lukács, 1959, p. 330). Lukács não havia considerado o autor de O
processo na breve história da literatura alemã que escreveu em meados da década de 1940. Este fato
indica que o confronto de Lukács com os romances de Kafka se deu tardiamente, depois que o
pensador húngaro já havia lido os filósofos existencialistas citando Kafka para respaldar suas
ideias sobre a angústia humana, como o Sartre de O ser e o nada (o que acabou por influenciar a
leitura lukacsiana).
Conforme a interpretação de Coutinho, Lukács deixou-se carregar pelas lutas da década de
1930, quando o movimento comunista e as forças progressistas da burguesia republicana uniram-
se nas denominadas Frentes Populares contra o assalto nazista ao poder. Nesse caso, a estratégia
era resguardar as instituições democráticas burguesas como o palco mais apropriado para a
atuação revolucionária da classe trabalhadora. Para Lukács, a defesa das instituições da
democracia burguesia abrangia tanto o parlamento político, a filosofia do período revolucionário
da modernidade (de Maquiavel a Hegel), como as tradições do romance, esta épica burguesa que
se consolidou desde Cervantes até Thomas Mann. Cabia, então, proteger das distorções nazistas
o parlamento liberal, a filosofia progressista da burguesia, o romance do realismo crítico etc.
Lukács terminou por lutar por uma verdadeira “frente popular na literatura”, segundo a
expressão de Arvon (1970).
Aos olhos de Coutinho, a luta pelas Frentes Populares explicaria a exigência da totalidade
que Lukács estabelece para o romance e, daí, a sua crítica à vanguarda, que terminou por atingir
também Kafka e Proust3. Isso explica aquela passagem de Realismo crítico hoje mencionada acima: a
vanguarda dissolve as tradições do realismo crítico e, portanto, a sua atitude é correlata à dos

3
“Esta batalha estética [contra as vanguardas] liga-se, de certo modo, a uma longa batalha política e ideológica
travada por Lukács desde 1929, ano em que apresenta as suas famosas Teses de Blum: a batalha por uma „frente
popular‟ na cultura, por uma aliança de todas as forças progressistas, democráticas e socialistas, no combate à
reação e à decadência. A tradição do realismo ligado ao humanismo democrático foi desde então, para Lukács,
uma das mais importantes entre as forças progressistas. No plano literário, o inimigo principal desta „frente
popular‟, desta aliança de realismo crítico e realismo socialista, é precisamente a vanguarda decadente,
irracionalista e anti-humanista” (Coutinho, 1991, p. 09)

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fascistas, que dissolvem as tradições do parlamento liberal; Lukács conclui a fórmula de modo tão
simples quanto insatisfatório: a vanguarda literária abre as portas para a política fascista.
Contudo, é preciso ponderar com atenção a propósito desta associação que Coutinho
efetua entre as Frentes Populares e a exigência da totalidade que existe na teoria do romance em
Lukács. O fato é que Lukács sempre exigiu a perspectiva da totalidade para a criação estética,
mesmo antes das Frentes Populares. Sabe-se que, em seu texto juvenil A teoria do romance, a sua
grande crítica à forma do romance é justamente a ausência da segurança que se lê nas epopeias
homéricas; para o Lukács do período hegeliano, o romance nasce numa época em que a
insegurança prepondera, em que os homens estão em “desabrigo transcendental”, sem a ajuda
dos deuses para enfrentar as lutas cotidianas4. Não haveria para a sociedade burguesa e sua épica
a totalidade imediata da vida típica das sociedades antigas5. Derivam daqui os elogios utópicos
que Lukács confere a Dostoievsky, por julgar que este escritor anuncia em sua arte uma época em
que a segurança imediata da vida retorna à superfície. A seu modo, A teoria do romance exigia a
totalidade para a criação estética. Não é preciso dizer que o ensaio foi escrito antes das Frentes
Populares, antes inclusive que Lukács se convertesse à teoria social de Marx.
Ademais, ele persistiu em defender as tradições progressistas do romance burguês depois
das Frentes Populares. No que tange aos seus últimos artigos sobre literatura, datados da década
de 1960, comparece neles a sempre atualizada defesa da estrutura interna ao romance
concernente à apropriação do movimento do real. Basta ler as resenhas lukacsianas sobre
Soljenitsin, por exemplo. Outra ilustração: na grande Estética, de 1963, a teoria sobre a aquisição
de um mundo próprio para o estético, com o fim do comunismo primitivo, não é compreensível
sem a referência à totalidade de conteúdo e forma para a arte; é bastante difícil de acreditar que a
interpretação de Lukács acerca das pinturas rupestres esteja condicionada pelas Frentes
Populares. Enfim, a associação entre a exigência da totalidade para o romance e as lutas das
Frentes Populares indicaria erroneamente que Lukács submeteu as suas teses estéticas aos
conflitos políticos mais imediatos. Efetivamente, ocorre que a defesa das tradições do realismo

4
“O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo
evidente, para a qual a imanência do sentido da vida tornou-se problemática, mas que ainda assim têm por
intenção a totalidade” (Lukács, 2000, p. 35).
5
“Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da
descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá de
buscar-se. Essa é a era da epopeia. Não é a falta de sofrimento ou a segurança do ser que revestem aqui homens
em ações em contorno jovialmente rígidos (o absurdo e a desolação das vicissitudes do mundo não aumentaram
desde os inícios dos tempos, apenas os cantos de consolação ressoam mais claros ou mais abafados), mas sim a
adequação das ações às exigências intrínsecas da alma: à grandeza, ao desdobramento, à plenitude. Quando a
alma ainda não conhece em si nenhum abismo que se possa atrair à queda ou a impelir alturas ínvias, quando a
dignidade que prescinde o mundo e distribui as dádivas desconhecidas e injustas do destino posta-se junto aos
homens, incompreendida mas conhecida, como o pai diante do filho pequeno, então toda ação é somente um
traje bem talhado da alma. Ser e destino, aventura e perfeição, vida e essência são então conceitos idênticos”
(Lukács, 2000, p. 26, 27).

5
crítico é uma constante em sua estética; sem dúvida, esta defesa é bastante reforçada por ele
durante as Frentes Populares, o que fez com que Coutinho se equivocasse, associando-as como
se constituíssem entre si uma relação de causa e efeito.
Coutinho (1991, p. 9) acredita que era justa a luta de Lukács pelas Frentes Populares: “a
justeza essencial dos princípios que informam esta política cultural „frentista‟ parece-me
indiscutível”. Mesmo não concordando com os excessos de Lukács, os princípios desta política
cultural lhe pareciam corretos na sua juventude de 1968. O que Coutinho reprova em Lukács é
que, depois do nazismo, continuasse a balizar-se numa espécie de Frentes Populares fora de
tempo para ler as vanguardas, colocando o socialismo real como o farol deste movimento. Parece
que, depois da Segunda Guerra, aqueles que defenderam os experimentos formais
necessariamente estariam do lado da guerra fria, assim como, entre as décadas de 1920 e 1940,
aqueles que defendiam os mesmos experimentos foram colocados nas trincheiras do nazismo. A
partir de 1950, dada a correlação de forças, “tornava-se agora impossível – sem cometer uma
clara violência contra os fatos – colocar a vanguarda ao lado dos que defendiam a guerra ou a
julgavam inevitável e o realismo ao lado dos defensores da paz” (Coutinho, 2005, p. 35-36).
Enfim, de tudo, resta a certeza de que Coutinho foi um lukacsiano “ortodoxo” ao analisar
o par formado por Kafka e Proust, sendo que, aqui, a ortodoxia precisa ser compreendida no
mesmo sentido dado pelo próprio Lukács referindo-se a Marx em História e consciência de classe: ser
um ortodoxo é manter-se fiel ao método, ainda que haja discordâncias quanto a afirmações
laterais sobre o objeto apreendido; ainda que a história posterior negue os dizeres de Lukács a
propósito da literatura, seu método permanece como o ponto de partida para a autêntica
apreciação da reflexão estética. Kafka e Proust foram os objetos capturados pela crítica literária
de Coutinho sob o suporte necessário do método histórico-sistemático de Lukács, muito embora
o devir histórico tenha negado aquilo que o filósofo húngaro afirmou sobre ambos.

Inter 1 Graciliano Ramos e Lima Barreto


Contudo, dissemos na linha inicial deste ensaio que o grande mérito de Carlos Nelson
Coutinho é trazer as categorias da estética lukacsiana para as fronteiras da literatura brasileira.
Dois romancistas foram o veículo que possibilitou este movimento: Graciliano Ramos e Lima
Barreto.
Se, por um lado, não existe uma relevante diferença entre os períodos históricos de escrita
dos ensaios abordados anteriormente (Proust em 1967, Kafka em 1970) e aqueles relativos aos

6
escritores brasileiros (Graciliano Ramos em 1965 e Lima Barreto em 19726), uma característica se
destaca nos textos sobre Graciliano Ramos e, especialmente, sobre Lima Barreto: uma análise que
privilegia a relação mais concreta do escritor com a sua realidade social. Não que Coutinho, nos
casos anteriores, tenha realizado uma crítica que supostamente tratasse a literatura como
autônoma dos vínculos societários, pois como analista estético vinculado ao método marxista de
Lukács, a teoria do reflexo fez-se presente. Mas, pelo conhecimento particular da nossa história e
das características essenciais que consubstanciam nosso desenvolvimento peculiar, as avaliações
realizadas sobre os romancistas brasileiros apresentam relações mais mediatizadas, ora
descortinando marcas do passado, ora apontando para possibilidades concretas do nosso
horizonte.
Parte-se, então, de um princípio elementar para a estética marxista de Lukács: como o
escritor realista apropria-se do movimento do real em suas obras, é imperativo avaliá-las,
sobretudo, a partir da sua relação com a realidade ela mesma e, para tanto, é preciso conhecê-la.
Exige-se, assim, da criação estética a expressão de características essenciais nas suas relações
diretas com o núcleo das vidas humanas. Duas grandezas em uma unidade: o real em movimento
expresso a partir da reflexão estética. Respeitando e cumprindo as determinações próprias da
legalidade estética, cabe à criação literária apropriar-se, sob a perspectiva antropomorfizadora, da
realidade em que se insere. Nem uma cópia, nem uma abstração: a exata medida da realidade na
relação com o humano concreto, apresentada com destinos cruzados de seus personagens típicos.
Por isso que, como afirma Coutinho (1967, p. 107), “uma obra de arte é realista quando
manifesta em sua conformação singular a totalidade das determinações do reflexo estético da
realidade objetiva”.
Como não poderia deixar de ser, o desenvolvimento da nossa literatura faz parte da
totalidade da formação histórica do Brasil e se a contradição é uma marca estrutural dessa, a
existência da mesma característica naquela não pode ser vista com espanto. Tradições literárias
tais como a francesa (de Stendhal e Balzac a Roger Martin du Gard), ou a russa (de Púshkin e
Gogol a Dostoievski e Tolstoi), não tiveram paralelo similar em países como o Brasil. Isso se
deve ao nosso desenvolvimento histórico peculiar, marcado, dentre outras qualidades, pela
ausência da formação de um sujeito nacional e popular que alcançasse uma unidade na luta pelo
progresso social, e pela acentuada separação entre os intelectuais e o povo. Não obstante, esse

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No que toca aos momentos de publicação, ressalte-se que ocorreram algumas alterações em relação à sequência
da escrita: o texto sobre Graciliano Ramos fez parte do seu livro Literatura e Humanismo, publicado em 1967; o
texto sobre Lima Barreto integrou, ao lado de ensaios de outros autores brasileiros filiados à matriz lukacsiana, o
livro Realismo & Antirrealismo na Literatura Brasileira, publicado em 1974; o texto sobre Franz Kafka foi
publicado inicialmente em 1977 na Revista Temas de Ciências Humanas; já o texto sobre Marcel Proust só foi
publicado, depois de um processo de revisão, em 2005, no seu livro Lukács, Proust e Kafka: literatura e
sociedade no século XX.

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quadro histórico não apenas impossibilitou a criação de uma tradição literária do realismo crítico,
como, no seu interior, dificultou a expressão de personagens típicos e exemplares que,
conectados diretamente às forças sociais democráticas, fossem portadores de um horizonte
progressista. A ausência daquelas qualidades inviabilizou, em grande medida, a existência desses,
e, assim, em países como o Brasil, “o realismo assume quase sempre um caráter excepcional, não
apenas no estrito sentido de não habitual, mas também naquele de fenômeno irrepetível”
(Coutinho, 1974, p. 12).
Na ausência de um sujeito e de um projeto nacional que unificassem as forças democráticas
brasileiras em torno de progressivas rupturas com a ordem dada, tanto os intelectuais se alocaram
em um limbo ideológico7, delimitando uma suposta autonomia perante o povo, como as
diferentes fragmentações entre classes e franjas de classe ficaram fortalecidas em detrimento de
um vínculo orgânico com este projeto nacional, democrático e popular de que fala Coutinho.
Além da fragmentação das forças sociais ter servido para aprofundar os elos de exploração e
subordinação do Brasil aos países imperialistas, o outro resultado característico foi a cristalização
da dominação das elites locais e regionais, perpetuando determinações típicas de uma sociedade
aristocrática. Daí o caráter contraditório da nossa formação econômica, sobre o qual uma vasta
literatura sociológica já se debruçou: uma sociedade estruturada pela exploração nacional e
internacional do capital sobre o trabalho, mas envolvida por laços políticos e ideológicos de
cunho aristocrático.
O reflexo de tais determinações sobre as artes não se fez ausente e, no campo da literatura,
um grande personagem típico, que expressa em seu destino concreto a particularidade da nossa
formação social, encontra-se em São Bernardo, de Graciliano Ramos. A vida, as escolhas e o
destino de Paulo Honório não representam um tipo isolado nas personalidades brasileiras, pois é
nele que se encontram as qualidades principais que fermentam a essência da nossa realidade,
marcada pela mistura entre modernidade burguesa e arcaísmo aristocrático. A intenção de
Coutinho é precisamente desvendar as conexões entre o tipo Paulo Honório e as forças sociais da
vida brasileira que estão representadas por ele. É nesta direção que Coutinho (1967, p. 155) avalia
a exemplaridade desse personagem:
#O caráter excepcional de Paulo Honório, entre outras coisas, expressa-se na complexa
integração dos valores feudais e dos valores capitalistas que formam a sua personalidade. Movido
por uma sede de lucro e de domínio que é própria do capitalista, Paulo Honório é no essencial –
um burguês típico; mas permanecem em sua mentalidade certos aspectos feudais, como, por
exemplo, o seu apego à vida rural e a sua incapacidade de ambientação na cidade.
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Como veremos, Coutinho aprofunda essa análise ao incorporar a categoria “intimismo à sombra do poder”,
utilizada, por exemplo, no ensaio sobre Lima Barreto.

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Em Paulo Honório, movimentam-se num só ritmo a modernidade do burguês ávido por
lucro e o apego às tradições arcaicas das oligarquias rurais. Para criar este autêntico personagem-
tipo, Graciliano promoveu uma fusão entre indivíduo e classe social, entre singular e universal,
expressando não somente as ações comuns a grupos sociais historicamente determinados, como
também as possibilidades presentes nas suas relações com o restante das classes em sociedade.
Este é o sentido que, sob a ótica de Coutinho, Graciliano Ramos apresenta os personagens
de São Bernardo. E, no caso particular de Paulo Honório, se, por um lado, o personagem é dotado
de uma grande ambição por acúmulo de riquezas, por outro, ele guia parte das suas ações e
relações sociais por uma consciência típica de sociedades pré-capitalistas. O papel subordinado e
atrasado de nossa classe dominante é o grande exemplo desse quadro social, e Paulo Honório,
como “representante típico da burguesia brasileira, de uma burguesia que se ligou à mesquinhez
da sociedade semifeudal” expressa, na sua particularidade, uma renúncia, talvez definitiva, “aos
princípios democráticos e humanistas do seu período de ascensão revolucionária nos países hoje
desenvolvidos” (Coutinho, 1967, p. 155-156).
Mas, no que concerne à consecução de tipos, nem sempre Graciliano obteve sucesso, pois,
como demonstra Coutinho (1967, p. 147), a sua primeira obra literária, Caetés, está mais próxima
de um relato jornalístico da realidade do que de uma arte realista, uma vez que “o universo deste
romance não ultrapassa a representação da superfície da realidade; trata-se de uma crônica, do
relato quase jornalístico de uma cidade do interior nordestino”. Contudo, ainda que não tenha
atingido o resultado realista que Lukács acreditava tão necessário à criação artística, o processo de
realização desse romance foi essencial para o literato alagoano alcançar êxito nos seus romances
posteriores, ainda que representado como um momento a ser superado.
Em germe, a obra já apresentava uma tentativa de superação do naturalismo, especialmente
nas duas características centrais que marcaram essa perspectiva literária no Brasil: tanto nas suas
formas de descrição superficial da realidade, como na incorporação de condições humanas
patológicas e exóticas para explicar o caráter do personagem. Isso não há em Caetés, como explica
Coutinho. Nesse caso, este romance permanece como sendo um grande ensaio daquilo que virá
depois na evolução literária de Graciliano, à maneira das primeiras investidas de Thomas Mann,
por exemplo, que ensaiou temas na juventude de Sua alteza real, que ganhariam o estatuto de
grandes sinfonias na maturidade de Doutor Fausto.
O desenvolvimento desigual do capitalismo brasileiro adquire, em algumas de suas regiões,
contornos mais dramáticos. Esta é a circunstância em que se põe o Nordeste, região em que os
efeitos da decadência da sociedade colonial brasileira foram sentidos com mais intensidade.

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Grande parte dos habitantes desta região, na sua maioria desprovidos das mínimas
condições de sobrevivência, ficou obrigada a cumprir a sina da migração. Esse é o quadro
responsável pelo êxodo rural e, desta forma, o flagelo da seca se interpõe como um dos seus
ingredientes. Narrando a trajetória característica de indivíduos envolvidos nessa mesma situação,
Vidas Secas, outro romance de Graciliano Ramos, trata o tema como seu objeto de reflexão:
#Como dissemos acima, só aparentemente o nomadismo de Fabiano [personagem central
de Vidas Secas] decorre de um fenômeno natural, da seca: ele se liga, em primeira instância, ao
fato de não ser Fabiano um proprietário, o que o impede de vincular-se definitivamente à terra; e,
em seguida, ao baixo nível tecnológico da exploração agropecuária, o que torna os homens
impotentes na luta contra os fatores naturais (como a seca) (Coutinho, 1967, p. 173).
Por causa destas determinações, as condições de vida destas classes subalternas tornam-se
mais precárias e, portanto, distantes da realidade vivenciada em regiões e países desenvolvidos
que passaram pela via clássica de transição para o capitalismo. Ainda que movida por
contradições, a sociedade burguesa conseguiu, em sua fase nascente, ampliar os horizontes
humanistas. O próprio romance, esta epopeia moderna, é um fenômeno que nos é legado pela
burguesia em sua fase heroica. O “herói problemático”, em cujo destino se centra o romance,
representa justamente este movimento: na órbita artística, instaurou-se o caminho contraditório
do personagem em busca da realização de uma vida autêntica e a necessária luta contra os
obstáculos sociais erguidos à sua frente. Este herói romanesco, sobre o qual nos falava o jovem
Lukács tendo à mão Dom Quixote, pretende sempre conferir um caráter humano à vida que o
cerca.
Todavia, se essa foi a expressão estética capaz de refletir a realidade objetiva dos países
capitalistas desenvolvidos (é claro, antes de sua fase de decadência ideológica), seria problemática
a sua aplicação ipsis litteris para tipificar a realidade narrada em Vidas Secas. Diferentemente de um
personagem que, inconformado com a ordem vigente, estabelece uma problemática luta por
valores capazes de superar as formas de alienação reinantes (o que nos é ilustrado por Memórias de
um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, por exemplo), os personagens centrais do
romance de Graciliano Ramos são caracterizados por um conteúdo mais elementar: o desejo de
subsistir, a mera sobrevivência física. Como observa Coutinho (1967, p. 175), é justamente “este
simples desejo de viver, de autoconservar-se, que o opõe decisivamente a um mundo inóspito, a
um sistema de morte e destruição – pois a acomodação ao sistema latifundiário significa, para o
camponês brasileiro, uma morte lenta e inexorável”.
Portadora de um conteúdo humanista, a trajetória de Fabiano, além de fomentar a
esperança na construção de uma sociedade superior, também combate ilusões perigosas, como as

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que atribuem uma espécie de progresso à atuação política das oligarquias aristocráticas
nordestinas. São tais razões que levam Coutinho (1967, p. 183; grifos originais) a afirmar que o
escritor alagoano seria portador da visão humanista mais ampla de seu tempo, integrando-se à
perspectiva socialista:
#Ao que nos parece, o humanismo de Graciliano, sua visão de mundo, são o máximo de
consciência possível do povo brasileiro, isto é, do conjunto das classes sociais que se opõem à nossa
realidade semicolonial e que lutam pelo desenvolvimento independente – nacionalista e
democrático – de nosso país, não hesitando, nesta luta, em formular uma perspectiva socialista,
ainda que abstrata (tal como as próprias condições permitiam).
Assim, com Coutinho servindo-se da estética de Lukács, a crítica literária se liga
diretamente à busca pela apreensão das determinações fundamentais que consubstanciam a
realidade brasileira. Analisar o romance de Graciliano seria, portanto, uma forma de pensar sobre
o caráter da formação histórica do nosso país. Como vimos, Coutinho escreveu esse ensaio sobre
Graciliano Ramos em 1965, um momento em que o debate sobre o caráter da formação social
brasileira representava uma esfinge a ser resolvida. A questão central era entender se a essência do
sistema social brasileiro seria feudal ou capitalista, para, a partir desse ponto, verificar quais forças
sociais seriam progressistas e subsidiárias da participação democrática e de cunho popular.
A complexidade maior desse dilema incidiu sobre a análise da burguesia nacional, quando
ocorreu uma separação dos analistas de esquerda, entre aqueles que defendiam ou negavam o
papel progressista de tal classe social8. Coutinho parece, nesse momento, oscilar entre essas duas
posições, uma vez que, se no ensaio estudado anteriormente, aponta para a renúncia dos
princípios democráticos e humanistas por parte da burguesia brasileira, por outro lado, num texto
escrito no ano seguinte (que também faz parte de Literatura e Humanismo), crê na possibilidade da
burguesia como uma força social progressista, ou até mesmo que representasse “uma poderosa
arma de mobilização popular na luta contra as formas semifeudais e imperialistas da reação”
(Coutinho, 1967, p. 21). Entretanto, essa oscilação ficaria superada nos anos seguintes, não se
repetindo, por exemplo, em sua crítica sobre Lima Barreto, escrita em 1972, em que o autor
incorpora a tese de Lenin sobre a “via prussiana”9.
Em oposição a críticos de Lima Barreto (que o julgaram a partir de um parâmetro que não
apenas destina seus esforços rumo a uma apreensão de sua arte baseada na sua biografia, como a

8
Um conjunto de ensaios sobre esse tema que apresenta, dentre outros, textos de Nelson Werneck Sodré e de
Caio Prado Júnior, encontra-se em Stedile (2005).
9
Pelas restrições do espaço e do enfoque de nossa análise, não nos propomos a examinar a relação, utilizada
posteriormente por Coutinho, entre a categoria da “Via Prussiana” e a de “Revolução Passiva”, nem os impactos
dessa relação em suas obras ulteriores, especialmente em A democracia como valor universal, publicada
originalmente em 1979.

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tratam desligada dos eventos históricos que o envolveram), Coutinho se propôs a examinar os
romances do escritor carioca segundo o que Lukács denominou de mímese, a saber: a
representação típica da realidade dada. Continuou, portanto, fiel à crítica literária que se sustenta
na categoria do realismo. Contudo, tanto a ampliação do arsenal de categorias e seu manuseio
mais preciso, como a maior sensibilidade histórica sobre os problemas sociais brasileiros,
possibilitaram ao crítico marxista apreender de forma mais concreta as relações entre as obras
literárias de Lima Barreto e seu contexto social. E duas grandes categorias se destacam para
basilar essas análises, pois, ao lado da já mencionada categoria de “via prussiana”, encontra-se a
do “intimismo à sombra do poder”.
Empregada originalmente por Lenin (1981) para apreender as diferenças essenciais que
distinguiram o desenvolvimento econômico da Alemanha (que, até 1871, era dividida em estados
independentes, sendo a Prússia o mais importante) dos países de capitalismo clássico
(centralmente Inglaterra, França e EUA), a categoria de “via prussiana” passou a ser utilizada por
intelectuais brasileiros a partir da segunda metade do século passado, na tentativa de determinar
melhor o caráter de nossa formação econômica. Diferenciando-se dos países que tiveram, graças
a uma revolução burguesa com ampla participação popular (cujo exemplo máximo é a francesa
de 1789), uma ruptura com os padrões econômicos, sociais e políticos vigentes no sistema feudal,
o Brasil se aproximaria da Alemanha, marcada por um caminho de conciliação entre as classes
dominantes: as novas (burguesas) e as antigas (junkers, ou aristocráticas e latifundiárias). Deste
modo, ao tratar da realidade brasileira refletida na obra de Lima Barreto, declara Coutinho (1974,
p. 3):
#O caminho do povo brasileiro para o progresso social – um caminho lento e irregular –
ocorreu sempre no quadro de uma conciliação com o atraso, seguindo aquilo que Lenin chamou
de “via prussiana” para o capitalismo. Em vez das velhas forças e relações sociais serem
extirpadas através de amplos movimentos populares de massa, como é característico da “via
francesa” ou da “via russa”, a alteração social se faz mediante conciliações entre o novo e o
velho, ou seja, tendo-se em conta o plano imediatamente político, mediante um reformismo „pelo
alto‟ que exclui inteiramente a participação popular.
Tendo como ponto máximo de sua obra a narrativa da trágica trajetória de Policarpo
Quaresma, Lima Barreto, segundo Coutinho, teria conseguido fixar de maneira realista algumas
das maiores contradições que perpassam uma sociedade que caminha pela “via prussiana”.
Constituindo-se em um dos momentos literários mais importantes de nossa história, o escritor
carioca, especialmente nas páginas de sua obra principal, Triste fim de Policarpo Quaresma, fez figurar
em seu romance uma aberta ironia contra os valores, costumes e instituições do arcaísmo

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brasileiro. Ridicularizando tanto a variante aristocrática e agrária, como a industrial e burguesa,
Lima condenou de maneira universal o modelo prussiano, enfileirando seus principais sintomas
na forma estética.
Lima Barreto, ao agir assim, distancia-se de intelectuais característicos do nosso
romantismo (embora não lhe seja exclusivo), que se imaginavam desvinculados das forças
populares que, em verdade, movem a história. Pensavam-se alheios às lutas que compõem a vida
pública. Isso é algo bastante presente no Brasil, diga-se de passagem. Erguendo-se a partir de
condições objetivas ainda mais intensas que as da Alemanha, pois o Brasil encontrou-se na
condição de nação capitalista mais que tardiamente, a formação de nossa intelectualidade foi
refratária aos anseios populares. Desenvolveu-se, entre nós, aquilo que Thomas Mann, ao referir-
se a intelectuais alemães, chamou de “intimismo à sombra do poder”. Não é fora de propósito
que os grandes romances de Machado de Assis tenham como principal objeto justamente a crítica
dos comportamentos que nascem com a cultura do “intimismo à sombra do poder”; a veraz
compreensão de Memórias póstumas de Brás Cubas dá-se apenas sob esta ótica, por exemplo.
Portanto, é, de acordo com Coutinho (1974, p. 4), essa unificação entre resignação e
elitismo que marca o comportamento de certa intelectualidade brasileira:
#Descrentes da possibilidade de influir decisivamente sobre as mudanças sociais, que se
processam sempre mediante acordos de cúpula entre as classes dominantes, os intelectuais
tendem a evadir-se da realidade concreta, a colocar-se num terreno aparentemente autônomo,
mas cuja autonomia é respeitada precisamente na medida em que não se põem em jogo as
questões decisivas da vida social, as concretas relações de poder.
Diversa é a situação de Lima Barreto. Ao lado de personagens como Paulo Honório,
Madalena, Luís da Silva e Fabiano (presentes nas obras de Graciliano Ramos), Policarpo
Quaresma é também um caso raro desse realismo brasileiro que, na sua tipicidade estética,
representa o símbolo das contradições humanas e sociais impostas pelo capitalismo de „via
prussiana‟ no Brasil. Como afirma Coutinho (1974, p. 35), com a narrativa do trágico destino de
Policarpo, Lima Barreto executa “uma demolidora e implacável crítica àquela sociedade que
condenava ao ridículo, à extravagância e à bizarrice as mais profundas e autênticas inclinações do
nosso povo no sentido da realização humana”. E se, ao cabo de seu romance, é possível se
questionar o que realmente pode ser rotulado de ridículo ou bizarro (a luta incansável por uma
vida autêntica lastreada pela relação recíproca entre indivíduo e gênero humano, ou a submissão
aos valores, costumes e leis sociais que destroem as esperanças de progresso e realização do
homem), é porque o escritor carioca alcançou êxito na sua práxis humanista.

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A falência de Policarpo, quando este sucumbe diante das amarras sociais, é um das grandes
conquistas do realismo de Lima Barreto. Ao fazer sucumbir o seu maior personagem em suas
intenções mais honestas, humanamente autênticas, Lima Barreto comportou-se à maneira de
Balzac em As ilusões perdidas, uma vez que, assim, conseguiu desvelar as leis férreas desta realidade
que impede realizações humanas; é necessário perder as ilusões quanto às possibilidades dadas
por estas forças societárias que não se controlam. Quando Policarpo decai, surgem à tona as
desumanidades da modernidade arcaica colocada em prática no Brasil.
#A autocrítica de Policarpo – expressa não apenas na patética carta à irmã, mas sobretudo
em suas reflexões finais antes de ser executado – converte-se numa violenta acusação à realidade
social „que se vai fazendo inexoravelmente, com sua brutalidade e fealdade‟. Embora já
demasiadamente tarde, Policarpo descobre no fim do romance – tal como o Quixote – que
norteara a sua vida por uma ilusão: o seu fanático nacionalismo ufanista, como ele agora
compreende, baseava-se num mito, em um conceito de pátria que „certamente era uma noção
sem consistência e que precisava ser revista‟ (Coutinho, 1974, p. 44).
A derrota de Policarpo é um instrumento estético usado por Lima Barreto para estampar às
claras as formas de alienação que impedem com que os homens identifiquem-se com as suas
criações. As ações de Policarpo são bizarras porque, em sua bizarrice, denunciam um tempo que
deforma os homens de honestidade exemplar, como o major do romance máximo de Lima
Barreto. Diante de tudo isso, Policarpo não poderia sair vitorioso. Se o desfecho positivo fosse
concedido a ele, o triunfo de uma figura humana nos daria a falsa impressão de que esta realidade
estranhada permitiria realizações autenticamente genéricas a todos os seus membros. Para que o
realismo crítico de Lima Barreto se comportasse como um efetivo conhecimento sobre seu
tempo particular, Policarpo deveria ser necessariamente derrotado.
Por fim, se Coutinho (idem, p. 54) afirma que, “apesar das trágicas contradições que ainda
dilaceram a sociedade, Lima nos ensina a confiar nos recursos de que a humanidade dispõe para
superar essas contradições” e que, como um dos seus personagens principais, “sem alimentar
ilusões, pôde ele confiar serenamente no futuro dos homens”.

Inter 1 Conclusão
Estes pares de romancistas não foram os únicos a receberem a crítica de Coutinho. Ao lado
de Kafka e Proust, e Graciliano e Lima Barreto, outros foram seu objeto, como Dostoievsky, por
exemplo. A escolha não é gratuita: um exegeta demonstra a amplidão de seus projetos já no
instante em que seleciona o material sobre o qual investirá seus esforços.

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Coutinho participa de uma época em que a crítica literária no Brasil era feita com o
respaldo de categorias filosóficas, com a concretude que se ausenta de boa parte da crítica literária
atual, marcadamente jornalística, sem esta generalização filosófica que se apresenta em um
lukacsiano como Coutinho. Não é novidade que Lukács tenha sido o grande antídoto contra tais
deformações, mesmo quando a divergência fez-se necessária.
Não é à toa que Coutinho escreveu como epígrafe de dois de seus livros uma passagem de
outro lukacsiano, o italiano Cesare Cases (1963, p. 302), que demandava da crítica literária a
seguinte postura:
#A fundação da crítica na filosofia e não na linguística é constitutiva de sua essência. Com
efeito, somente o crítico de formação filosófica pode movimentar-se livremente em meio aos
problemas suscitados pelas conexões da obra de arte com a totalidade da vida e da sociedade,
sem cair, por um lado, no formalismo, e por outro, na separação positivista entre os elementos
conteudísticos e sua funcionalidade estética.
Não há sombra de formalismo ou positivismo na crítica de formação filosófica de
Coutinho. A crítica literária de Coutinho é, assim, capaz de evoluir por entre as grandes questões
suscitadas pela obra investigada, de movimentar-se em meio às conexões que o romance
estabelece com a parcela do real apreendido, de capturar o que a criação literária comporta de
autêntica fixação da autoconsciência do gênero humano.

Inter 1 Bibliografia:
ARVON, Henri. Lukács ou a frente popular em literatura. Lisboa: Estúdios Cor, 1970.
CASES, Cesare. Saggi e note di letteratura tedesca. Torino: Einaudi Editore, 1963.
COUTINHO, Carlos Nelson. Literatura e humanismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
_____. Introdução. In: LUKÁCS, György. Realismo crítico hoje. Brasília, DF: Thesaurus, 1991, p. 07
– 20.
_____. Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
_____. O significado de Lima Barreto na Literatura Brasileira. In: COUTINHO, Carlos Nelson,
et al. Realismo e Antirrealismo na Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
_____. e KONDER, Leandro. Correspondência com György Lukács. In: LESSA, Sérgio e
PINASSI, Maria Orlanda (orgs). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002, p.
133-155.
LENIN, v. I. El programa agrario de la social-democracia rusa. IN: LENIN, v. I. Obras Completas.
Vol. 06. URSS: Editorial Progresso, 1981, p. 321 – 370.

15
LUKÁCS, György. La Destruction de la raison. Paris: L‟Arche Editeur, 1959. v. 2.
____. Estética I: La peculiaridade de lo estético. Barcelo, México: Grijalbo, 1966. 4 v.
____. Realismo crítico hoje. Brasília, DF: Thesaurus, 1991.
____. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Graphia, 2002.
STEDILE, João Pedro. (org.) A Questão Agrária no Brasil: o debate tradicional: 1500 – 1960. São
Paulo: Expressão Popular, 2005.

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