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RESENHA

LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo:


Boitempo Editorial, 2011 (439 p.)

Para ler e compreender os clássicos da


literatura
ANTONIO OZAÍ DA SILVA*

O históricas que permitiram o seu


autor dispensa apresentações. Seu nome surgimento; a produção literária do
tornou-se substantivo e adjetivo no autor inglês Walter Scott e a crítica que
movimento comunista internacional. o romance histórico expressa em
Autor de vasta obra filosófica, nos anos relação ao romantismo.
1936-37 escreveu O romance histórico,
“O romance histórico surgiu no início
publicado originalmente em russo – e,
do século XIX, por volta da época de
em 1954, no idioma alemão.
Napoleão (Waverley, de Walter Scott,
O romance histórico foi escrito em foi publicado em 1814)”, escreve
plena ascensão do stalinismo, num Lukács (p. 33). Scott teve
tempo em que a crítica à política oficial predecessores. É possível encontrar
do todo poderoso “guia genial dos romances com temáticas históricas nos
povos” significava o risco do séculos XVII e XVIII. No entanto, “são
ostracismo, a prisão, o exílio forçado e históricos apenas por sua temática
até mesmo a vida. Numa época em que puramente exterior, por sua roupagem.
a dissidência era pecado grave, heresia Não só a psicologia dos personagens,
condenável à fogueira da inquisição como também os costumes retratados
política e ideológica. Foi, portanto, são inteiramente fora da época do
neste clima político-ideológico que, escritor” (Id.). Trata-se, portanto, de
residente na meca do socialismo, analisar o romance histórico enquanto
Lukács escreveu este livro. O tempo um novo fenômeno, diferente do que o
histórico marca indelevelmente a obra precedeu. Como ressalta o autor: “O
de qualquer autor, nem mesmo o mais que falta ao pretenso romance histórico
excepcional está livre das influências da anterior ao de Walter Scott é o elemento
sua época. Aliás, a análise de Lukács especificamente histórico: o fato de as
sobre as obras e autores do romance particularidades dos homens ativos
histórico ressaltam este aspecto. derivar da especificidade histórica de
A obra é composta por quatro capítulos seu tempo” (Id.).
– além da apresentação, escrita por O solo social e ideológico que
Arlenice Almeida da Silva, a Nota à proporcionou o surgimento do romance
edição alemã e o Prefácio. No primeiro, histórico foi preparado pela ascensão da
o autor analisa a forma clássica do burguesia, pelos antecedentes e
romance histórico: as condições sócio- consequências da Revolução Francesa e

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a Revolução Industrial na Inglaterra. artisticamente perfeita” (p.84). Seu
Estes processos históricos transformam romance está diametralmente oposto à
as sociedades em seus aspectos concepção sobre a história do
econômicos, políticos e ideológicos, romantismo. Nesta altura, o autor
mas também culturais e conceituais. As diferencia duas grandes correntes
massas fazem a sua própria experiência, importantes: o romantismo liberal, “que
incorporam o sentimento nacional, em termos de visão de mundo e modo
agem historicamente. Assim, operam-se de figuração tem muito em comum com
rupturas e mudanças importantes na o solo original do romantismo, com a
visão de mundo e a concepção da luta ideológica contra a Revolução
história. Francesa, mas representa, sobre essa
base contraditória e oscilante, a
As revoluções burguesa e industrial
ideologia de um progresso moderado”;
convulsionaram o ser e a consciência
e, por outro lado, autores fundamentais
dos homens e constituíram as bases
como Goethe e Stendhal, “que
econômicas e ideológicas que
conservaram muito da visão de mundo
proporcionaram as condições para o
do século XVIII e cujo humanismo
aparecimento do romance histórico.
contém fortes elementos do
Neste contexto, a obra de Walter Soctt é
Iluminismo” (Id.).
pioneira e, ao mesmo tempo, representa
a continuidade do romance social Em que o romance histórico scotteano
realista do século XVII. Sua influência se diferencia ou aproxima-se destas
é profunda. correntes? Por que e como o romance
Contudo, Walter Soctt é um autor histórico clássico se posiciona contra o
conservador que permanece fortemente romantismo? Para responder a estas
ligado ao passado pré-Revolução questões, o Lukács analisa e confronta
Industrial, às camadas sociais autores clássicos como o americano
arruinadas pelas transformações James Fenimore Cooper; os alemães
econômicas promovidas pelo advento Goethe e Willibald Alexis; o italiano
do desenvolvimento capitalista. Aqui, Manzoni, os russos Púchkin, Gógol e
como em outras páginas de sua obra, Tolstói; os franceses Victor Hugo,
sobressai-se a grandeza de análise do Stendhal, Prosper Mérimée e Balzac.
autor. Ao contrário do maniqueísmo
No segundo capítulo, o autor realiza
tosco dos néscios, cândidos ou
uma investigação “séria e minuciosa”
fanáticos, Lukács nota que embora Scott
da relação entre dos gêneros romance
integre as fileiras dos “honestos tories
histórico e drama histórico com a
da Inglaterra de então, que não poupam
história (p. 115). Ele resgata Ésquilo,
críticas ao desenvolvimento do
Sófocles, Shakespeare, Thomas Mann,
capitalismo” (p. 49), sua literatura
Hebbel, Górki, Balzac e outros. Então,
cumpre um papel importante. Não há,
ele considera possível ver claramente e
portanto, um vínculo mecânico
responder à questão formulada no início
insuperável entre a postura política-
deste capítulo: “como é que grandes
ideológica de um autor e a sua produção
dramas históricos podem ter surgido em
literária.
uma época de consciência histórica
Para Lukács, “a arte de Walter Scott defeituosa ou totalmente inexistente, em
expressa a tendência progressista uma época em que os romances
essencial desse período, a defesa históricos eram verdadeiras caricaturas,
histórica do progresso, de forma tanto do romance quanto da história?”

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(p. 189-190). Ele conclui que “a relação “baixo”’ (Id.). Lukács, ao contrário dos
do escritor com a história nada tem espíritos estreitos que confundem
especial ou isolado; trata-se de um literatura ficcional com panfletos
componente importante da relação com políticos pseudo-revolucionários, afirma
o conjunto da realidade e, em particular, que isto leva ao “empobrecimento da
da sociedade” (p. 208). literatura”. Para ele:
No terceiro capítulo, o autor analisa o “A grandeza do romance histórico
romance histórico e a crise do realismo clássico consiste precisamente no
burguês. O marco decisivo foi a fato de ele fazer justiça a essa
primavera dos povos, a revolução que diversidade da vida do povo. Walter
sacudiu a Europa em 1848. Este fato Scott descreve as mais distintas
histórico afeta a ideologia burguesa, o lutas de classe (...), mas nunca
deixa de apresentar a multiplicidade
movimento social dos trabalhadores e,
ricamente encadeada das reações
inclusive a ciência e a arte. Por outro das massas populares a essas lutas.
lado, também acarreta mudanças Em suas obras, as pessoas do povo
significativas sobre a concepção de conhecem muito bem o abismo que
história e do progresso predominante separa o “alto” do “baixo” na
até então. Lukács analisa este processo sociedade. Mas esses dois mundos
histórico, as concepções em confronto e são abrangentes no sentido de que
o seu desenvolvimento contraditório. abarcam a vida inteira de seres
Sua análise toma como referência as humanos de aspectos variados.
obras de Flaubert, Maupassant, Anatole Assim, suas interações resultam em
France, Tkackeray, Leon Tolstói, entre choques, conflitos etc., cuja
totalidade abrange toda a esfera
outros.
social da luta de classes de uma
Ao analisar o naturalismo da oposição época” (p. 256).
popular (p. 253-371), ele chama a Estes aspectos ficam ainda mais
atenção para as tendências “que operam evidente ao confrontarmos as obras de
no sentido de privar o romance histórico Tolstói e Erckmann-Chatrian:
de seu caráter popular”. São escritores
que “não tem mais força (e, com “Pensemos na concepção de Tolstói
frequência, tampouco vontade) para sobre a guerra. Nenhum escritor da
vivenciar a história como história do literatura mundial teve uma
povo” (p. 253). Por outro lado, há desconfiança tão profunda contra
autores que permanecem vinculados ao tudo o que vem do “alto” quanto
povo, “para os quais o sofrimento do ele. Sua figuração mundo do “alto”,
do generalato, da corte, da
povo, sob a terrível pressão do “alto”, província reflete a desconfiança e o
constitui o ponto de partida de sua visão ódio do simples camponês ou
de mundo e de sua figuração artística (p. soldado. Mas Tolstói também
254). retrata esse mundo do “alto” e, com
isso, dá à desconfiança e ao ódio do
Neste contexto, ocorre o “alheamento
povo um objeto concreto, visível”
dos escritores” em relação “aos grandes (p. 259).
problemas que englobam a sociedade” e
a um estreitamento que, negativamente, Quanta diferença em relação a um autor
limita o horizonte temático à figuração que enfatiza os de “baixo”, mas sem a
do mundo pelo “alto”. O contraponto a devida mediação e conexão com os do
esta postura “direciona sua atenção “alto”, prefigurando a totalidade em
exclusivamente para o mundo de toda a sua complexidade e contradições.

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Comentando a obra Histoire d’un biográfica e o romance histórico de
conscrit de 1813, de Erckmann- Romain Rolland). Finaliza, com a
Chatrian, Lukács escreve: análise sobre as “perspectivas de
“Aqui, a guerra é, para o povo, desenvolvimento do novo humanismo
simplesmente a guerra, com todos histórico” (402-422). Novamente,
os seus horrores, mas sem nenhum ressalta-se a recusa do maniqueísmo
conteúdo político. Não sabemos simplista tão caro aos espíritos estreitos,
nada a respeito das complicadas mesmo no campo do marxismo.
contradições da época, que valem
em especial para os territórios sob
Um exemplo é a questão democrática.
domínio napoleônico nos quais o Lukács observa o “caráter contraditório
romance se passa. Sabemos apenas dos protestos democráticos”. Se por um
que a população de Leipzig, que lado, “a tendência geral do imperialismo
havia apoiado vivamente os segue naturalmente uma linha
franceses, agora os enfrenta como antidemocrática”; por outro, há o “risco
inimigos. Mas, de toda essa de passar de uma crítica de esquerda a
alteração de humor, só sabemos uma crítica de direita à democracia
aquilo que um recruta mediano, burguesa, isto é, de insatisfação com a
totalmente apolítico, consegue democracia burguesa à oposição à
captar durante uma visita ocasional
democracia em geral” (p. 310-311). As
a uma taberna. Aqui, aparece bem
claro o caráter limitado do modo de
contradições da conjuntura política
figuração naturalista, unilateral e também influenciam os escritores, pois,
exclusivamente restrito ao que é “Todo escritor é filho do seu tempo” (p.
meramente imediato na vida dos 311). Isto também é válido para o autor
homens medianos” (p. 260). de O romance histórico.
Ainda neste capítulo, Lukács analisa a Esta obra é de uma riqueza difícil de
obra de Conrad Ferdinand Meyer, exprimir e não se presta a leituras
considerado o “verdadeiro representante apressadas e aparentemente fáceis. É
do romance histórico desse período” (p. um texto que exige muito do leitor.
271), e as tendências gerais da Espero que os aspectos ressaltados aqui
decadência e constituição do romance estimulem o leitor, ávido de
histórico enquanto gênero particular (p. conhecimento e disposto ao esforço
282-306). intelectual exigido, a encarar o desafio
da leitura. Seja como for, há uma
No último capítulo, o autor analisa o
certeza: após ler O romance histórico
romance histórico do humanismo
compreenderá melhor os clássicos da
democrático (suas características de
literatura e não mais os lerá como antes!
protesto no período imperialista; o
caráter popular, a questão da forma

*
ANTONIO OZAÍ DA SILVA é
docente do Departamento de Ciências Sociais,
Universidade Estadual de Maringá (UEM).

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