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RESUMO
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SUMÁRIO
1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS....................................................................................4
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................19
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................20
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1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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histórico-social. No caso, a presença soviética e cubana em Angola, os constantes cortes
de energia e a menção às guerras de pós-independência são alguns dos traços que
auxiliam o leitor a se localizar no espaço-tempo.
Longe de afirmar que apenas a História é suficiente para caracterizar Angola,
mas por não se tratar de romances com a proposta de falar do país, fazer referências ao
que acontecia na sociedade é uma maneira de estabelecer onde os eventos se
desenrolaram. Usando o exemplo de Uma Escuridão Bonita, uma das obras que
analisaremos no capítulo três, o protagonista usa de um problema recorrente na cidade
(a falta de luz) para conseguir um beijo. Evidentemente, a maneira como o autor
constrói a narrativa também distingue esse romance de outros que tenham como
proposta narrar um personagem tentando beijar outro, porém alguns dos diálogos mais
interessantes do romance ocorrem por conta do histórico-social em que o protagonista e
sua amada estão. Isso denota a importância de não se apagar a História, por melhor ou
pior que ela seja sob o ponto de vista contemporâneo.
Tendo dito isso, podemos focar apenas nos trabalhos de Ondjaki e como as
referências à história de Angola surgem nas obras selecionadas para esta monografia.
No segundo capítulo, é apresentado um panorama geral dos processos de pré e pós
independência em Angola, visto que as principais informações sobre a história do país
se referem a estes dois eventos. No terceiro capítulo, analisam-se as obras de Ondjaki à
luz das teorias de György Lúkacs (2011) e Linda Hutcheon (1991) sobre romance
histórico e metaficção historiográfica, respectivamente, observando de qual definição
Ondjaki mais se aproxima, e como isso se manifesta nas histórias.
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2 - SOBRE ANGOLA PRÉ E PÓS-INDEPENDENTE: UM PANORAMA GERAL
Por fim, uma pressão ainda maior recaiu sobre o governo português após o “Ano
Africano” (1960), quando grande parte dos países no continente tiveram sua
independência decretada, permitindo ainda uma maior circulação de ideias e planos
contra a colônia, simbólica e concretamente.
Não é o objetivo deste capítulo detalhar os processos ocorridos durante a pré-
independência. Portanto, cientes do contexto previamente explicado, nos deslocamos ao
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cenário de 1974, quando a Junta de Salvação Nacional (JSN) liderada pelo general
Spínola divulga o plano de independência angolano: o novo governo seria formado por
três grupos nacionalistas que englobariam todas as etnias (inclusive brancos); uma Lei
Eleitoral deveria ser estabelecida; e um prazo de no mínimo dois anos para decidir que
tipo de laços Angola ainda teria com Portugal. Contudo, a proposta pouco agradou os
movimentos populares angolanos, pois, primeiramente, estes não foram participados
quanto à decisão, e em seguida pela implicação de que Angola ainda teria algum tipo de
laço com Portugal, e que tal processo levaria, no melhor dos casos, pelo menos dois
anos para ser resolvido. A insatisfação, somada a outras circunstâncias do próprio
governo do militar, levou Spínola à renúncia em setembro naquele mesmo ano.
A renúncia abriu margem para uma nova forma de negociação da independência,
garantindo inclusive um cessar-fogo nas fronteiras do país o que, a princípio,
simbolizava que a paz estaria próxima. Em janeiro de 1975, portanto, o Acordo de
Alvor foi criado garantindo que a independência de Angola ocorreria em 11 de
novembro de 1975, e que até lá, um governo provisório cuidaria dos interesses do país
com representantes de um colegiado. Um representante de Portugal estaria presente,
porém não era permitido a esta pessoa interferir em assuntos governamentais – apenas
aconselhar, se assim o governo provisório desejasse. O acordo também determinava que
não houvesse distinções étnicas para futuros critérios de nacionalidade, e que uma
assembleia fosse organizada para a escolha democrática do futuro presidente;
finalmente, exigia a organização de um Conselho de Defesa Nacional formado a partir
dos três principais movimentos sociais no país, com a perspectiva de se formar um
Exército Unificado.
Os três grupos que protagonizaram a luta pela liderança do país foram o
Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), cujo referencial se aproximava
do marxista-leninista, e com isso garantia apoio cubano e soviético; a Frente Nacional
de Libertação de Angola (FNLA), que tinha como bandeira o anticomunismo e uniu-se
à África do Sul posteriormente, sendo também frente direta à MPLA; e a União
Nacional para Independência Total de Angola (UNITA), dissidente da FNLA, unida à
República Democrática do Congo, à China e a militares de outros países africanos.
Tanto a FNLA quanto a UNITA, por irem de encontro com os ideais da MPLA, atraíam
o interesse dos Estados Unidos da América, principal rival da União Soviética (URSS).
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Dois problemas se sucederam ao acordo: os três grupos deviam ter permanecido
em suas posições para a unificação do exército, e no entanto, retornaram aos seus postos
iniciais para reforçar suas tropas em caso de confronto armado. Para o dirigente do
Partido Socialista Português, António Almeida Santos, essa ação era previsível,
considerando que cada movimento poderia ser compreendido como um partido político,
e cada um, por sua vez, tinha o próprio exército e o próprio plano para governar o país,
“cheios de ambições económicas e materiais”3. Além disso, Portugal não mais tinha
força para comandar o Conselho de Defesa Nacional tendo em vista que seu próprio
território estava à beira de sua própria guerra civil, deflorada em março daquele ano.
Dessa maneira, embora o Acordo tenha dado uma data para a independência, ela não
forneceu um governo, de fato, para os meses que antecederiam esse momento. Estes
eventos resultaram em uma “corrida ao pódio” dos movimentos sociais, ainda
intensificado quando Portugal, em 22 de agosto, suspendeu parcialmente o acordo,
determinando que a data de independência permaneceria a mesma, porém o país já não
se responsabilizava em manter uma trajetória pacífica na transição para o novo governo.
Durante o período de transição, a MPLA tinha a maior frente dentre os três
movimentos, porém encontrou-se cercada pela FNLA e a UNITA. Agostinho Neto,
líder da MPLA, recorre à Cuba que, aceitando o pedido de ajuda, enviou tropas para
diminuir as forças sul-africanas (e, consequentemente, da FNLA e da UNITA) no
território. Isso garantiu que a MPLA tivesse controle absoluto de Luanda em 11 de
novembro e, consequentemente, fosse responsável por substituir a bandeira portuguesa
pela nova bandeira angolana – rubro-negra com foice e martelo. Contudo, essa vitória
seria apenas o início de uma guerra civil que se estenderia até 2002.
Antes mesmo de completar dez anos de independência, em 1979 morria
Agostinho Neto. O líder foi sucedido por José Eduardo dos Santos até 1992, quando foi
reeleito, e permaneceu na presidência até 2017, sendo sucedido pelo atual presidente,
João Lourenço. Vale destacar que, durante a reeleição em 1992, o candidato oponente
Jonas Savimbi, líder da UNITA, alegou fraude eleitoral. O partido não reconhecia a
legitimidade do MPLA, o que resultava nas intensas guerras armadas que
contabilizaram inúmeras mortes durante todo o período de instabilidade entre o MPLA e
a UNITA. A intenção era barrar o avanço soviético no país, o que, com o fim da Guerra
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Ango Notícias – Acordo de Alvor foi apenas um pedaço de papel. Janeiro de 2005. Disponível em:
http://www.angonoticias.com/full_headlines.php?id=3717 (Acessado em 28/08/2021).
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Fria, levou o MPLA a negociar com a UNITA uma nova eleição sob a supervisão das
Nações Unidas. O processo garantiu vitória ao MPLA por 49% contra 40% para a
UNITA, o que garantia um “segundo turno” – porém, Savimbi não reconheceu a vitória
do partido inimigo e recusou-se a permanecer no processo eleitoral, retomando
imediatamente a guerra civil. Por não haver uma conclusão oficial, José Eduardo
permaneceu exercendo as funções presidenciais, mesmo sem haver legitimidade
constitucional.
A guerra civil angolana terminaria em 2002 apenas com a morte de Jonas
Savimbi, levando às assinaturas do acordo de paz em abril do mesmo ano. Para tanto, a
UNITA desistia da luta armada, chegando ao fim 27 anos de guerra civil. Nota-se que,
apenas após a assinatura do tratado, o país conseguiu avançar em termos de
desenvolvimento econômico devido à exploração petrolífera (DOMBAXE, 2011, p. 16).
Isso significa que antes, durante o período de guerra civil, não havia espaço para
desenvolvimento econômico e social, afetando diretamente a população em termos de
acesso às necessidades básicas, como por exemplo o fornecimento de energia elétrica,
que mesmo atualmente é um problema no país.
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3 - A HISTÓRIA (NÃO) CONTADA EM TRÊS ATOS
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Observo que, no uso de expressões para generalização (por exemplo: “o único”, “o primeiro”) ou
qualquer uso de superlativos, estou sempre me referindo às três obras selecionadas, e traçando
comparação entre as três obras selecionadas – não todo o catálogo do autor (N. da A).
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de um “estabelecimento discursivo” e “posicionamento narrativo” (1991, p. 131),
criando uma nova representação dos eventos “que não significa dizer que (...) nunca se
concretizaram” (idem). Em outras palavras, o que ocorre nessas obras é uma releitura do
passado, geralmente contada por um ponto de vista que inicialmente teria sido
silenciado ou não consultado – as três obras, por exemplo, têm uma criança como
narradora em primeira pessoa e protagonista. Isso resulta em uma seleção dos fatos,
indicando que fatores podem ser aumentados, excluídos, inventados e/ou esquecidos.
Ainda sobre protagonismo, outra grande diferença que afasta a obra de Ondjaki
da definição de Lukács se encontra na construção do protagonista. Para Lukács, este
deveria ser “uma síntese do geral e do particular, de ‘todas às determinantes essenciais
em termos sociais e humanos’” (LUKÁCS, 1962 apud HUTCHEON, 1991, p. 151),
enquanto para Hutcheon os protagonistas da metaficção historiográfica são “os ex-
cêntricos, os marginalizados, as figuras periféricas da história ficcional” (HUTCHEON,
1991, p. 151). Ou seja, enquanto Lukács defende que o protagonista deve ser o modelo
daquilo considerado “essencial” para a sociedade, Hutcheon defende o protagonista
vindo da margem, com traços supostamente “não-importantes” ou “falhos” diante da
sociedade – e Ondjaki, ao escolher a voz de uma criança, consequentemente se
aproxima da teoria de Hutcheon.
Por fim, talvez a última característica digna de nota seja a presença de figuras
históricas. Em geral, personalidades reais aparecem na ficção como forma de “validar”
os eventos, indicando que, ainda que estejamos lidando com um conteúdo literário, há
traços suficientes de verossimilhança para conectar os eventos criados pelo autor ao
evento histórico a que se refere. Para Lukács, esses personagens devem ter papéis
secundários. Para Hutcheon, não importa se estão de fundo ou sob os holofotes: o
importante é que eles proporcionem o questionamento do passado como o conhecemos.
Em Ondjaki, personalidades reais não possuem destaque, e por vezes tampouco são
nomeadas ou identificadas; a não ser que o leitor conheça a História, qualquer referência
aos movimentos sociais ou ao governo pode passar despercebida, por vezes. Este é o
único traço que alinha Ondjaki e Lukács, mas não é suficiente para categorizar as obras
do escritor angolano como um romance histórico.
A partir desse gancho, podemos então nos dedicar a analisar as obras
selecionadas em suas particularidades. Seguirei a ordem inversa a que foram
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apresentadas no primeiro parágrafo deste capítulo, pensando nas referências à História
que podem ser encontradas, o que elas significam e como afetam o enredo como um
todo. Em Uma escuridão bonita, essa referência é feita brevemente, e por isso escolho
começar por ela. AvóDezanove, por outro lado, é rica em referências, e por isso deixo-a
por último.
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personagem, são levados ao questionamento proposto por Hutcheon: a história de fato
ocorreu como o menino conta? Primeiro, ele revela que sua avó perdera o dedo após
uma briga com um soviético que queria levá-la para o “tão-longe”, mas em seguida ele
admite que na verdade o dedo fora perdido por conta de um procedimento médico. A
tentativa de o protagonista impressionar sua amada faz com que o leitor levante um
questionamento sobre as histórias que ele conta – até que ponto são reais, e até que
ponto são aumentadas.
Isso é confirmado diante de outro subterfúgio criado por ele para passar pelas
ausências de luz, o Cinema Bu. Como é explicado no romance, quando um carro de
farol alto passa e a luz é refletida no muro, as sombras que surgem são suficientes para
se criar uma história, aguçando a imaginação do protagonista e de todos os outros que
testemunham o fenômeno. Sendo já descrito como alguém imaginativo, cabe ao leitor
prestar atenção nas histórias contadas pelo protagonista não apenas pelo teor criativo,
mas também para identificar possíveis referências e possíveis criações acerca da história
real.
Por fim, vale destacar que Uma escuridão bonita pode ser compreendida como
uma “romantização” do escuro – perceba que não se trata de uma romantização da
ausência de energia. Ainda que saibamos o motivo para a luz faltar, o romance não se
propõe a criticar a ausência, tampouco criar um cenário de miséria e fragilidade. Pelo
contrário, Uma escuridão bonita se dedica a mostrar, por um ponto de vista de margem,
que algo bom pode ser encontrado mesmo diante das adversidades. Os motivos para
ausência da luz não são ditos, e as problemáticas acerca disso tampouco são reveladas:
se conhecemos o contexto histórico, sabemos que a energia se ausenta por questões de
gestão e governo. Porém, se não conhecemos, isso não interfere no entendimento do
romance.
A bicicleta que tinha bigodes, embora não seja tão rico em referências quanto
AvóDezanove, apresenta uma gama um pouco maior de conexões com o contexto
histórico-social de Luanda. No romance, o protagonista se envolve em um concurso
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cultural da Rádio Nacional para ganhar uma bicicleta, e por isso decide “roubar” as
ideias do tio Rui, um famoso escritor que vive em sua rua.
Em uma primeira leitura superficial, os detalhes se perdem. Porém, ao prestar
mais atenção, encontramos logo no começo uma característica importante do socialismo
defendido pelo partido do governo, pois as cores da bicicleta são “amarela, vermelha e
preta” (2013, p. 10), as mesmas da bandeira de Angola, servindo assim como símbolo
do nacionalismo no país. A conexão com os soviéticos também é percebida no início da
história na apresentação do tio Rui, um escritor que vive na região e famoso no “tão-
longe”, mais especificamente em países como a “Julgoeslávia” (como o protagonista
acredita se pronunciar o nome do lugar). Referências ao comunismo também se fazem
presentes, por exemplo, quando o General atropela o sapo da personagem Isaura e o
seguinte diálogo se sucede: “‘Matei o Raúl? Mas qual Raúl?’ ‘O irmão do Fidel –
respondi para ele se assustar’” (2013, p. 20). O que também leva à referência do
antagonismo entre os soviéticos e os Estados Unidos quando tio Rui menciona que não
iria sintonizar o rádio no sinal estadunidense pois ele e sua esposa “não gostam dessas
vozes americanas” (2013, p. 78).
Outro momento interessante é mais ao final da história quando as crianças estão
esperando o anúncio do resultado do concurso e o protagonista descreve as notícias do
rádio: informes sobre a guerra, sobre greves em fábricas, os conflitos com a África do
Sul e a prisão de Mandela. Tudo isso é visto rapidamente, pois o protagonista tem as
atenções concentradas no resultado do concurso: não é que ele não se interessa pelas
notícias ou não se importe – ele brevemente concorda com Isaura quando ela diz que
deviam soltar Mandela – mas esse não é o seu foco no momento, portanto as notícias
tampouco despertam a atenção imediata do leitor.
De fato, por algumas vezes o texto apresenta uma espécie de “overlook” (ou
seja, um olhar superficial, sem realmente dedicar alguma atenção) aos problemas ou
eventos que apenas ao fazer uma releitura atenta nos damos conta de seu real
significado. Quando o sapo Raúl é atropelado pelo motorista do GeneralDorminhoco, é
explicado que este tem um apelido – Nove – referente ao número de pessoas que ele
havia mortalmente atropelado sempre à noite, quando ninguém via. À princípio, a
informação não gera reflexão, porém logo podemos compreender que os “acidentes”
eram propositais, comprovado quando perguntam se ele havia “atropelado só, ou
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atropelado mesmo” (2013, p. 20), indicando que dois tipos de atropelamentos podiam
ser provocados por aquele motorista.
De volta à rádio e às notícias, também há registros sobre a falta d’água e de luz,
e tal como em Uma escuridão bonita, a falha no fornecimento de energia proporciona
uma experiência positiva para os personagens no escuro; de fato, quando as crianças vão
colocar em prática o plano de buscar ideias com o tio Rui, eles dizem que “a Edel foi
amiga” (2013, p. 52) e “a luz foi” (idem). Um detalhe, porém, citado aqui e não
mencionado no romance anterior, é que por vezes o corte de luz é intencional.
Um último exemplo se encontra na fala final do tio Rui após ser perguntado se
as estrelas tinham dono, ao que ele responde que elas pertenciam “ao povo”. Para além
de ser apenas uma fala bonita, pensando o tio Rui como o personagem que faz sucesso
em países soviéticos e não tolera as vozes americanas, podemos compreender que ele
segue o ponto de vista marxista-leninista defendido pela MPLA, em que teoricamente se
defende que tudo pertence ao povo (uma alusão à célebre frase “se a classe operária
tudo produz, a ela tudo pertence”, do teórico socialista Ferdinand Lassalle).
Novamente, essas referências não interferem diretamente na narrativa, mas
valem como observação de como não é realmente possível contar uma história sem que
o contexto por trás surja. O desejo de ganhar uma bicicleta em um concurso cultural é
universal e poderia facilmente ser adaptado para outros países, porém os detalhes
historiográficos tornam as situações descritas pelo protagonista únicas.
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...o camarada VendedordeGasolina a correr com um papagaio vermelho
e amarelo, até o TioRui que era escritor passava numa bicicleta que
tinha uns bigodes desenhados e ele fazia as duas coisas, conduzia a
bina e dominava o papagaio – que bicicleta bonita! (ONDJAKI, 2009,
p. 72, grifo próprio)
Além disso, para quem leu esse romance antes de Uma Escuridão Bonita há a
certeza de que o protagonista havia revelado a verdade quando admitiu que sua avó era
chamada Dezanove porque havia perdido um dos dedos do pé, porém também sabe que
é verdade que ela havia sido chamada para ir ao “tão-longe” por um comandante
soviético – a diferença é que ele não havia reagido violentamente como a primeira
versão apresentada em Uma Escuridão Bonita sugere. Pelo contrário, na carta revelada
ao final de AvóDezanove descobrimos que o comandante havia compreendido a escolha
de sua amada, concordando que “lugar é junte com família” (2008, p. 177).
Por outro lado, esta também é a obra que mais se referencia ao contexto
histórico-social da região – de fato, esse fator exerce influência direta no enredo. Com a
construção do Mausoléu para Agostinho Neto próximo à PraiadoBispo, as crianças
traçam um plano para impedir que a praia seja destruída, o que interferiria para sempre
nas vidas dos moradores da região. Esta é a única obra em que é possível determinar
quem é o presidente em questão (se Agostinho Neto já está morto, então só pode ser
José Eduardo dos Santos), embora se o leitor desejar considerar que as três histórias
ocorreram em um curto espaço de tempo, então todas acontecem durante a presidência
de José Eduardo. Para além disso, informações sobre o que está acontecendo no país
surgem a todo momento na narrativa, embora de maneiras sutis; como dito
anteriormente, esses não são romances sobre a guerra, a falta de energia ou soviéticos e
cubanos em Angola, mas os quatro estão sempre ali.
Começando pela guerra, podemos citar AvóCatarina, irmã de AvóAgnette (nome
verdadeiro da AvóDezanove), que está sempre a vestir preto em representação do luto,
pois “enquanto a guerra durar no nosso país, (...) todos os mortos são meus filhos”
(2008, p. 11). A insatisfação causada pela guerra também se dá quando Pi (3,14)
argumenta que a paz não deve existir, ainda que estejam toda hora a falar nela, e que
poderia perguntar à AvóCatarina que fala com os mortos (2008, p. 58). Por fim, há
também a representação da tristeza ao apresentar o personagem André:
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[ele] era comando que já tinha matado bué de sul-africanos carcamanos
e só de vez em quando lhe autorizavam a vir visitar a família, a guerra
não deve ser nada como nos filmes porque o André quando vem a casa
está cheio de fome e tão triste que não fala nada, só chora na hora que o
camião vem lhe buscar de novo para a tal frente de combate (2008, p.
108)
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mau-cheiro, português errado e casacos de pele na cor azul, o que garante o apelido
“lagostas azuis” a qualquer europeu que vejam pela praia.
Rafael Traz-Truz, por outro lado, é o médico cubano que cuida de AvóAgnette.
Diferente dos soviéticos, Rafael não fala português (nem mesmo o errado) e precisa de
um “tradutor” para ser compreendido e compreender outros. Interessante observar que
nesse caso, o médico não é criticado por não saber usar o português angolano,
provavelmente porque Cuba tem uma reputação melhor do que a União Soviética entre
os personagens desse romance. Um exemplo disso é quando 3,14 compara ir para a
Europa onde há neve e frio e moças não tão atraentes quanto em Cuba, onde há sol, mar
e belas mulheres (2008, p. 152). O antagonismo é compreensível, já que são os
soviéticos, e não os cubanos, que estão à frente da obra que deve destruir a
PraiaDoBispo.
Um último detalhe importante sobre estrangeiros em AvóDezanove é o desprezo
aos Estados Unidos, que também apareceu em A bicicleta que tinha bigodes, mas não de
uma forma tão explícita quanto aqui. A caminho do Mausoléu para executar o plano, as
crianças passam pela casa do jacó NomeDele, que grita enquanto assiste um anúncio
antigo de televisão “abaixo o imperialismo americano” e “ó Reagan, tira a mão de
Angola” (2008, p. 153). A menção ao presidente estadunidense Ronald Wilson Reagan
em um anúncio antigo completa a informação sobre tempo: o comentário de
AvóCatarina sobre os dez anos de Bilhardov em Angola indicam que faz mais de dez
anos que a independência ocorreu; o Mausoléu de Agostinho Neto, que a história
acontece após 1949; e a menção a Reagan indica que, no mínimo, os eventos se passam
a partir de 1981 (quando sua presidência começou nos EUA).
Por fim, os problemas da falta de luz também são citados, aqui de uma maneira
mais específica pois, diante da atração de Bilhardov pela AvóAgnette, durante um
episódio de apagão, a casa dela é a única com luz, pois ele havia conectado a residência
aos geradores dos soviéticos. Agnette tenta convencer Bilhardov a levar luz para as
outras casas também, ao que ele responde, primeiro “outres casas, outres donas” (2008,
p. 28), indicando de forma subliminar que havia feito aquilo por ela, mas também
completando que a casa dela era mais próxima ao Mausoléu, e por isso poderia fazer
ligação direta (idem). As crianças, com medo de uma possível retaliação por parte da
vizinhança que havia ficado sem energia, acabam cortando os cabos no dia seguinte.
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Depois disso, todo o enredo se passa basicamente sem o retorno de energia (ou pelo
menos, sem um retorno estável), mas a escuridão acaba sendo importante quando as
crianças conseguem estourar as dinamites no final da história – adulteradas por
Bilhardov para se transformarem, também, em fogos de artifício.
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4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OBRAS LITERÁRIAS
OBRAS TEÓRICAS
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