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O CONCEITO DE NAÇÃOPROBLEMATIZADO

NO CONTO ANGOLANO “AMOR EM TEMPO DE CÓLERA” 1

Bianca Magalhães Wolff2


(Cnpq/UESC)
Inara de Oliveira Rodrigues
(DLA/UESC)3

RESUMO
Apresenta-se, neste trabalho, uma análise do conto“Amor em tempo de cólera”(2007), que
compõe a antologia O Homem que não tira o palito da boca (2007) do autor angolano João
Melo. Trata-se de uma longa caminhada pela sobrevivência empreendida por um grupo de
refugiados que tenta escapar da guerra civil em Angola, mas, antes de chegarem à
fronteira,onde estariam seguros, o líder do grupo, angustiado ao ver a família esgotada, se
depara com uma difícil decisão: cumprir, como chefe, a condução dos fugitivos ao destino e
abandonar sua família,ou ficar para trás com sua esposa e filhos.O presente trabalho
problematiza o conceito de nação na narrativa, considerando-se que os horrores da guerra
deixaram consequências devastadoras para o país de Angola, tornando ainda mais complexo o
processo de construção da sua identidade nacional. Para o desenvolvimento analítico
proposto, de cunho eminentemente bibliográfico, adotam-se concepções de Memmi (2007) e
Fanon (2008), que abordam os “traumas” da colonização, a discussão de nação por Anderson
(2008),o conceito de identidade em Bauman (2005) e Hall (2006),e os estudos pós-coloniais
de Hamilton (1999), Leite (2003) e Tutikian (2006).Como resultados mais abrangentes,
constatou-seos embates entre diferentes “imagens” que fragmentam o sentido de
angolanidade, denunciando a perspectiva crítica do conto sobre o passado e o presente de
Angola.

Palavras-chave: Literatura e História. Nação. Identidade. Contoangolano.

INTRODUÇÃO

O escritor João Melo nasceu em Luanda em 1955, é jornalista, publicitário, professor


universitário, deputado à Assembleia Nacional de Angola e membro fundador da União de
Escritores Angolanos da qual já foi secretário-geral, presidente da Comissão Diretiva e

1
Este artigo apresenta resultados parciais do projeto de Iniciação Científica (Cnpq/UESC) “Literaturas Africanas
de Língua Portuguesa: oralidade, identidade e resistência”, coordenado pela Prof.ª Dr.ªInara de Oliveira
Rodrigues (DLA/UESC).
2
Aluna de Graduação do Curso de Letras, bolsista de Iniciação Científica na modalidade Cnpq/ UESC no
projeto “Literaturas africanas de língua portuguesa: oralidade, identidade e
resistência”.wolffbianca@hotmail.com
3
Orientadora. Prof.ª Dr.ª do Curso de Letras e do Mestrado em Letras Linguagens e Representações da
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). profeinaraletras@hotmail.com.
presidente do Conselho Fiscal. Como escritor, poeta, ensaísta, contista e cronista, já publicou
onze livros para vários idiomas (MELO, 2009).
Dentre suas obras literárias, destaca-se O homem que não tira o palito da boca
(2009), livro que reúne quinze contos.Trata-se de narrativas que não só permeiam nos campos
da ficção, como também abordam temas, como, contradições existentes no país de Angola,
conflitos políticos e econômicos. Em suas obras, o autor João Melo aborda também o tema
das raças, cores de pele e classes (MELO, 2009).Assim, suas obras tornam-se referênciaspara
entender como ocorrem os questionamentos a cerca da identidade, objeto de reflexão,tendo
em vista a recente formação de Angola e um movimento de construção de sua identidade
(MELO, 2009).
Sobre o autor João Melo:

[...] assim como muitos outros das décadas de 80 e 90, assume uma postura de
denúncia da corrupção e das contradições do poder, através de um sujeito de
enunciação que, desiludido e desencantado com os seus referentes revolucionários,
abandona o empenhado "canto social coletivo". Começando a percecionar a "crise
das utopias" que vai informar uma série de interrogações, estes jovens poetas são
veículos de muitas angústias existenciais e geracionais.4(online)

O escritor João Melo, segue a mesma tendência de outros escritores que compõem a
literatura dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa que tomaram a literatura como
um espaço para a mobilização de seus povos, de resgate e de resistência das identidades locais
(TUTIKIAN, 2006). Assim, com o objetivo de reescrever o passado com o fim de protestar
contra as distorções, mistificações, e exotismos inventados pelos colonialistas da África, “[...]
verificava-se uma tendência entre escritores nacionais a re-escrever e assim re-inventar a
África e seus respectivos países.” (HAMILTON, 1999,p.16).
Segundo Leite (2003), estudar e discutir os efeitos culturais da colonização passou a
ter espaço nos estudos pós-coloniais. Embora o termo “pós-colonial” seja de origem anglo-
saxônica, este conceito foi adequado aos estudos literários africanos lusófonos nos anos 70 e
passou a ser entendido como estratégias para refutar a visão colonial e resistir ao conjunto de
ideologias colonialistas implicando uma nova visão de mundo não só para as literaturas
emergentes, mas também para textos literários da ex-colônia.

4
João de Melo (Angola). In: Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012.
Disponível em: <URL: http://www.infopedia.pt/$joao-de-melo-(angola)>.Acesso em: 12 dez. 2013
Sobre os estudos pós-coloniais:

[...] abrange questões tão complexas, variadas e interdisciplinares, como


representação, sentido, valor, cânone, universalidade, diferença, hibridização,
etnicidade, identidade, diáspora, nacionalismo, zona de contacto, pós-modernismo,
feminismo, educação, história, lugar, edição, ensino, etc., abarcando aquilo que se
pode designar como uma poética da cultura e criando alguma instabilidade no
domínio dos estudos literários tradicionais. (LEITE, 2003, p.13, grifo nosso).

Nesse sentido, o presente trabalho intenta fazer uma reflexão sobre o conceito de
“nação” problematizado por Anderson (2008) e analisar de que forma este conceito é
abordado no conto “Amor em tempo de cólera”.

NAÇÃO: UMA REFLEXÃO DE POSSÍVEIS ORIGENS E AMARGOS EFEITOS

No âmbito dos estudos pós-coloniais, a literatura dos países africanos de língua


portuguesa vale-se de textos criativos que revelam uma nova visão diante de um olhar
construído durante o processo de colonização marcado pelo racismo e que tentou obscurecer a
história e a cultura do povo colonizado. Além disso, o passado desse país “[...] tende, por
vezes, a ser olhado ou com algum desconhecimento [...] ou com uma visão mais ou menos
maniqueísta[...]”(LEITE, 2003, p.22), no entanto, “[...] a necessidade de diálogo se mantém,
porque a história existiu, produziu, no caso da literatura portuguesa, entre outras, uma
literatura de viagens, descritiva e etnográfica, uma literatura colonial, e mais recentemente
uma literatura sobre a guerra colonial.” (LEITE, 2003, p.23).
Segundo Leite (2003), a África lusófona:

[...] além de uma guerra colonial, que atrasou quinze anos as independências
políticas em relação às suas congêneres anglófonas, teve regimes subsequentes de
feição socialista, que optaram por práticas linguísticas e culturais diversas daquilo
que a “negritude”, o nativismo e os essencialismos culturais africanos, durante
algum tempo, promoveram como discussão [...] (LEITE, 2003, p.15).

Assim, o conto “Amor em tempo de cólera” (2007), assim como outrostraz à


lembrança e permite reconhecer também a realidade das pessoas que presenciaram regimes
que resultaram em conflitos internos devastadoresque dizimaram povos, obrigaram famílias a
saírem de seus lares, arrasou terras, por um objetivo: disputa de poder. O conto narraa difícil
missão do angolano Ventura Chiteculo, escolhido para ir à frente, conduzindo todo grupo de
fugitivos para uma zona de segurança. Ao tentar defender a cidade, Ventura Chiteculo
percebe que não será possível impedir a invasão dos rebeldes, grupo esse que ameaça os
moradores locais que são forçados a fugirem:

Eles já estavam na Caminhada há sete dias. Tinham conseguido, a muito custo, furar
o implacável cerco dos rebeldes e juntar-se a outro grupo de fugitivos que também
havia sido forçado a deixar a cidade. A maioria deles eram policiais e militares, mas
havia igualmente muitos civis, em especial jovens acusados de desconhecerem as
tradições culturais da região, nomeadamente de não falarem correctamente a língua
local, pelo que só podiam ser de Luanda. (MELO, 2009, p.86).

Ventura Chiteculo é descrito como o militar mais graduado, casado com Verónica
João com quem tem dois filhos. Os dois se conheceram “[...] durante uma missão que ele
tivera de cumprir, durante a guerra anterior [...]” (MELO, 2009, p.89) em Kuando Kubango,
perto da fronteira com a Namíbia. Acreditando que a guerra havia acabado, Ventura foi
desmobilizado, assim, regressou para sua região com a mulher, grávida do seu segundo filho.
Todos “[...] estavam satisfeitos, pois pensaram que a guerra havia acabado, finalmente, mas
logo constataram que tinham caído num logro [...]” (MELO,2003, p.89). Todas as localidades
começaram a ser ocupadas por rebeldes que “[...] controlavam todas as entradas da cidade
[...]” (MELO, 2003, p.87), mas, antes de começar a Caminhada em busca de refúgio,
iniciaram-se combates na tentativa de tentar impedir a tomada da cidade:

Os defensores pareciam mais do que eram realmente, pois multiplicavam-se pelas


ruas, pelos cantos e pelos becos da cidade, tentando retardar ao máximo a entrada
dos sitiantes. De repente, todos os que estavam empenhados na defesa da cidade
tornaram-se admiravelmente iguais uns aos outros, sem as diferenças que, no
passado, talvez tivessem servindo para dividi-los ou, no mínimo, separá-los.
Origem, idade, aparência, humores ou expectativas pessoais- tudo isso lhes parecia,
subitamente, ridículo e inútil. (MELO, 2009, p.86-7).

Esse fato constata o que Anderson (2008) expõe: “[...] mais que inventadas, nações
são imaginadas [...] e constituem objetos de desejos e projeções [...]” (ANDERSON, 2008,
p.10). Segundo ele, “[...] a nação constrói tempos vazios e homogênios, e amnésias coletivas
fazem parte desse jogo político.” (ANDERSON, 2008, p.17). Assim, o nacionalismo, nada
mais é que um jogo político, e faz com que se apague qualquer diferença em qualquer
sociedade transformando-a em homogênea a fim de que esta sirva aos interesses políticos
mesmo que para isso tenha que perder o tirar a vida. (ANDERSON, 2008).
Segundo Anderson (2008) “Essa concepção esplendidamente europeizada da
condição nacional [...] vinculada à propriedade privada da língua teve enorme influência na
Europa oitocentista e, mais estritamente, na teorização posterior da natureza donacionalismo.”
(ANDERSON, 2008, p.108). A legitimação do conceito de nação como algo essencial e
natural está presente em hinos, nas falas oficiais, no sentimento de pertença e resulta num a
pagamento de quaisquer diferenças em qualquer sociedade.
O conto “Amor em tempo de cólera” (2007), descreve uma das falas de Ventura
Chiteculo que dá instruções de sobrevivência durante a Caminhada:

O chefe teve de nomear alguns homens para dirigirem cada grupo, indicando o
ponto onde se deveriam reunir, quando tivessem ultrapassado as montanhas que em
breve os esperavam e estivessem perto do litoral. As mulheres e as crianças iam em
pequenos grupos, protegidos por homens armados à frente e atrás. O chefe tinha dito
que as crianças, principalmente eram uma prioridade, pois constituem <<o futuro da
nação>>. Inclusive, quando os fugitivos parassem para comer qualquer coisa,
deveriam servi-las primeiro (MELO, 2009, p.89).

Nesse trecho do conto fica subentendido que embora o termo nação tenha sido usado
na fala do personagem Ventura, o conceito é mais complexo do que se imagina e merece
atenção especial antes de ser usado.
A partir das considerações anteriores é possível concluir que o conceito de nação não
se trata de um conceito legítimo, mas que foi construído como forma de construir uma ideia
de unidade, na verdade, não é possível. Além disso, o colonizador com o seu nacionalismo
tentou obscurecer fatos históricos do colonizado, como, as sucessivas guerras as quais
resultaram dessa invenção nacionalista. No entanto, a literatura dos países africanos de Língua
Oficial Portuguesa tem sido um instrumento que torna possível o reconhecimento da realidade
de Angola, durante guerra, e a destruição que esta foi capaz de causar, e permite
compreenderque os problemas que, hoje, afligem esse país são resultado de dominação e
racismo, aos quais foi obrigado a se sujeitar.
Evidencia – se também que a construção identitária de um povo trata-se de uma
busca contínua e essa busca tornou-se ainda mais complexa com acontecimentos que
obscureceram o passado, assim,é atravessando esses obstáculos que o país de Angola tenta
construir sua identidade e firmar seu futuro.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmund. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2005.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2006.


HAMILTON,Russell.A literatura dos PALOP e a Teoria Pós-colonial. In: Anais...IV ENCONTRO
DE ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA.São Paulo,
USP,1999.

LEITE, Ana Mafalda. Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa: Colibri, 2003.

MELO, João. O homem que não tira o palito da boca. Alfragide: Editorial Caminho, 2009.

MEMMI,Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de


Janeiro:Civilização Brasileira,2007.

TUTIKIAN,Jane. Velhas identidades novas. O pós-colonialismo e a emergência das nações de


Língua portuguesa. Porto Alegre: Sagra Luzzatto,2006.

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