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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA


Africanias, Imagens e Linguagens
29 a 31 de agosto de 2012
Salvador – BA

IDENTIDADE E RESISTÊNCIA NOS CONTOS ANGOLANOS


EM O HOMEM QUE NÃO TIRA O PALITO DA BOCA (2009) 1

Bianca Magalhães Wolff2


Inara de Oliveira Rodrigues3

Os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, após a independência, tomaram a literatura


como um espaço para a mobilização de seus povos, “através de seus temas de resistência... deslocando-se
para a busca e preservação das fontes da cultuara popular e raízes nacionais autênticas” (TUTIKIAN,
2006, p.19). O presente trabalho consiste em evidenciar elementos do processo de construção identitária e
de resistência presentes na obra O homem que não tira o palito da boca (2009), do escritor angolano João
Melo, que é composta por quinze contos, dentre os quais aqui serão analisados. A identidade tem sido
objeto de investigação, pois é possível reconhecer em Angola um movimento de construção de sua
identidade, mas atravessado por desafios do atual mundo globalizado que torna a identidade algo
imprevisível, inacabado e em constante movimento (BAUMAN, 2005).
O primeiro conto [ homônimo ao título da obra], “O homem que não tira o palito da boca” (2009),
já evidencia o caráter das demais narrativas que se sucedem, marcadas pela voz do narrador. Deve-se
salientar que, de modo geral, João Melo inscreve-se no território da narração, imprimindo a ambiguidade
autor/narrador em seus contos. Nesse texto, o narrador intenta resgatar um personagem que, segundo ele,
“jamais foi personagem de literatura” (MELO, 2009, p.11). Com o tom irônico, vale-se da metanarrativa
para demonstrar sua capacidade de construir um personagem inédito na Literatura universal: trata-se do
homem que não tira o palito da boca e “está em todo o lado. Surge quando e onde menos o esperamos, em
quaisquer momentos, circunstâncias e cenários” (MELO, 2009, p.17). Além disso, o autor conclui que o
homem que não tira o palito da boca pode ser “figura de carne e osso ou criação virtual, marginalizado ou
dono do mundo” (MELO,2009, p.19). Desde o primeiro conto, o narrador expõe sua intenção como
escritor:

Apenas para que conste, mergulhei, para isso, na rica, prolixa e injustamente
desconhecida literatura oral dos povos hoje chamados periféricos, pois sempre desconfiei
do juízo segundo o qual a história da literatura universal começa com os Gregos. Não

1
Este artigo apresenta resultados parciais do projeto de Iniciação Científica (ICB/UESC) “Identidade e resistência - Estudos
Culturais e Literaturas Lusófonas”. Inara de Oliveira Rodrigues (DLA/UESC).
2
Aluna do Curso de Letras da Universidade Estadual de Santa Cruz, bolsista de Iniciação Científica na modalidade
ICB/UESC. wolffbianca@hotmail.com
3
Orientadora. Prof.ª Dr.ª do Curso de Letras e do Mestrado em Letras Linguagens e Representações da Universidade Estadual
de Santa Cruz (UESC). profeinaraletras@hotmail.com.

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deixei de lado, inclusive, a gloriosa oratura angolana, pois, embora também aspire
interagir- digamos assim, para não levantar suspeitas- com o mercado global, continuo a
dar a importância merecida ao lugar (e ao tempo) a que pertenço (MELO, 2009, p.12).

No trecho acima, percebe-se as implicações identitárias problematizadas pelo autor, pois ele
intenta valorizar a literatura de Angola o lugar a que pertence. Assim, João Melo possui a mesma
tendência de outros escritores, que compõem a atividade literária dos Países Africanos de Língua Oficial
Portuguesa (PALOP) que passaram a produzir uma “literatura que celebrava a derrota do regime colonial,
proclamava a revolução social e celebrava a (re-) construção nacional” (SALINAS, 1999, p.16).
O segundo conto, “Porra” (2009), narra a história do velho personagem Zacarias, que presenciara
o proceso de independência de Angola, considerado um funcionário exemplar apesar de estar ligado
secretamente “à rede clandestina que apoiava a guerrilha” (MELO, 2009, p.23), e que “só não chegou a
director de serviços por ser preto”. O velho Zacarias, ao observar, da varanda do prédio onde morava, as
ruas de Luanda, nota uma mulher que, segundo ele, “Deve ser amante de algum general, algum
ministro...” (MELO, 2009, p.27), considerando seus traços distintivos: “tissagem ruiva, boca-de romã,
óculos escuros, vestido colado no corpo e sapatos altos e finos deesmbarcar, cheia de estilo, do jipe verde-
garrafa” (MELO, 2009, p.21). Entretanto, é surpreendido com a mesma mulher à sua porta identificando-
se como sua filha, que há anos expulsara de casa.
O terceiro conto, “A Virgem Maria do Sambila” (2009), narra a história da solitária personagem
Maria Sabão que perdera os pais ainda criança, começou a engordar a medida que crescia, e desistiu dos
estudos aos 18 anos por não conseguir avançar, “Aos poucos os outros foram-na esquecendo, até que ela
passou a andar sempre sozinha” (MELO, 2009, p.35). Nunca havia sido vista interagindo com outras
pessoas, nem sequer se envolvendo em algum relacionamento amoroso. No entanto, surpreendentemente,
Maria Sabão é levada às pressas, pela tia, ao hospital, e sua hemorragia é explicada pelo médico que
noticia que o parto de Maria Sabão foi normal. Por isso, todos a chamam de Virgem Maria do Sambila,
pois, ela não diz “até hoje, que é o pai da criança inesperada” (MELO, 2009, p.37). Maria Sabão vive na
cidade de Sambila, que tem “uma magnífica vista para o oceano Atlântico que contrasta... com a
degradação e a miséria das suas toscas habitações, lixo espalhado,..., crianças rotas e estranhamente
barrigudas,..., o Sambila é mais um dos museques de Luanda” (MELO, 2009, p.31). Além disso, “Os
homens e as mulheres que habitam o Sambila não possuem qualquer glamour pós-moderno... não fazem
compras mensais... Um dia qualquer, cansados de tudo,... enforcam-se” (MELO, 2009, p.32). Sambila
reflete o sistema perverso que vemos na modernidade

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Este é o tempo em que vivemos...se trata de um tempo em que a única realidade que
conta é a da televisão e/ou a produzida pelos diferentes sistemas de vídeo que nos filmam,
vigiam e controlam em todo o lado. Um tempo de personagens errantes, que ninguém
sabe de onde vêm e para onde vão, se é que querem ir mesmo para algum lugar. Um
tempo de autores permanentemente em trânsito. Um tempo dominado pela velocidade,
mas que é incapaz de produzir qualquer novidade, algo que realmente dê um novo sentido
à existência dos homens e das mulheres. Um tempo de insegurança geral, em que o único
antídoto para combater o medo parece ser a necessidade de sucesso a qualquer custo. Ou
então fugir constantemente de um lugar para outro, até descobrir o verdadeio entre-lugar,
que simplesmente não existe (MELO, 2009, p.31).

Essa descrição, que, aliás, não se limita à Sambila, está em harmonia com a descrição que Bauman
(2005) faz dos indivíduos na atualidade a qual ele chama de “época líquido-moderna”. Segundo Bauman
(2005), “a acelerada liquefação das estruturas e instituições sociais... num ambiente fluido, não tem como
saber se o que nos espera é uma enchente ou uma seca...” (BAUMAN, 2005, p.57). De acordo com
Bauman (2005), “homens e mulheres desta nossa época suspeitam ser... desprotegidos... facilmente
renegados e destinados à pilha de lixo quando acharem que eles não dão mais lucro” (BAUMAN, 2005,
p.53). Assim numa sociedade marcada pela “versatilidade, volatilidade e imprevisibilidade
desorientadora” (BAUMAN, 2005, p.58), “Uma identidade coesa, firmemente fixada e solidamente
construída seria um fardo, uma repressão, uma limitação da liberdade de escolha” (BAUMAN, 2005,
p.60).
O quarto conto, “Um angolano especial” (2009), narra a história do personagem Rui Jordão, um
executivo que embora não tenha cursado o ensino superior, se acha um angolano distinto dos demais por
ter concluído o sétimo ano que o permite ter uma estabilidade financeira, além disso, segundo ele, mesmo
sendo preto, “no período colonial, jamais fui vítima de qualquer manifestação de racismo” (MELO, 2009,
p.42). No entanto, todo sistema colonialista caracteriza-se por relações humanas que “provém de uma
exploração tão intensa quanto possível, fundam-se na desigualdade e no desprezo e são garantidas pelo
autoritarismo policial” (MEMMI, 2007, p.100). Assim, “a maioria negra sempre foi profunda e
estruturalmente discriminada, pois, se não o fosse, o colonialismo não teria condições para se manter”
(MELO, 2009, p.42).
O quarto conto também permite aos leitores conhecer alguns eventos históricos de Angola, pois o
personagem Rui Jordão presenciara “entre os milhões de pessoas... na carismática e pausada voz de Neto,
à proclamação da independência de Angola” (MELO, 2009, p.45), “o acordo de paz de Bicesse, em 1991,
entre os governos e os rebeldes... e a decisão da UNITA de recusar a vitória do MPLA” (MELO, 2009,
p.47), e “a morte do líder dos rebeldes, Jonas Savimbi” (MELO, 2009, p.48). Além disso, Rui Jordão
mostra sua decepção ao fim da guerra:

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-É certo que não há mais tiros, mas até quando? Todo o mundo parece que só pensa em
ficar milionário do dia para a noite!...Todo o mundo, vírgula! Uma meia dúzia, os
mesmos de sempre... As melhores terras, diamantes, telecomunicações, transportes,
petróleo... Eles ficam com tudo, não deixam nada para ninguém!...Sim, estão a fazer umas
estradas, umas pontes, umas escolas... E o resto? Nem a maka da água e da luz
conseguiriam resolver em cinco anos!...e a corrupção? As coisas agora são feitas às
claras, parece que ninguém tem vergonha (MELO, 2009, p.49).

O décimo conto que compõe a antologia, “American way life” (2009), narra a história do
americano Bob Mcain que sobrevivera à guerra no Vietnã, e ao retornar para sua cidade de origem, sofre
uma decepção amorosa e decide “esquecer tudo...inscreveu-se numa companhia petrolífera e pediu para
ser enviado para o mais longe” (MELO, 2009, p.98). Assim, o soldador é mandado para Angola
Antiga colónia de um país pobre e miserável- mistério histórico ainda por explicar-, fora
do palco, depois que, desgraçadamente, se tinha tornado independente, de uma série de
guerras intermináveis...O país estava em paz há seis anos, após quase trinta de guerras
ininterruptas, mas ninguém em sã consciência podia dizer para onde caminhava ele.
Tratava-se de um país incompreensível, cujas aldeias tinham sido abandonadas por causa
da guerra, com milhões de deslocados espalhados por todo o território (MELO, 2009,
p.99

Na descrição feita pelo personagem Bob Mcain, é possível perceber que a construção identitária
de Angola não é tarefa simples diante dos episódios aos quais o país se submeteu. A identidade desse país
que tem sobrevivido “a todos os azares que, desde há séculos, lhes têm teimosamente perseguido”
(MELO, 2009, p.21), não possui uma natureza completa e perfeita, mas sim trata-se de uma busca
contínua e inacabada, que “só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de
um esforço, um objetivo” (BAUMAN, 2005, p.21-2).
O décimo primeiro conto “O ex-português” (2009), narra a história do personagem Mário Alberto
Alves da Costa que se considera “ex-português”. Na sua versão, Alves da Costa contara que nascera em
Portugal por acaso, pois sua mãe, ainda grávida, teve que ir a Galiza e antes de completar a gestação
acabou dando à luz, retornando para Angola depois de um mês. Aos dezoito anos, ele perdera os pais e
presenciara os horrores da guerra dentre eles “a escassez alimentar, as falhas de luz e água, a degradação
da cidade...” (MELO, 2009, p.125). Alves da Costa almejava ser reconhecido como angolano, mas
segundo ele, após a guerra isso seria resolvido:
Apesar de ter aguentado tudo isso, a minha nacionalidade ter demorado tanto tempo a ser
autorizada! Como se diz na gíria, xixilei para ser angolano!...Apenas por ser branco...
Ainda bem que, quando tudo já parecia sem solução, conseguimos alcançar a paz... Agora
está tudo bem, tudo indica que a guerra nunca mais voltará, as estradas estão a ser
reconstruídas, o país começa a andar... A imagem de Angola no mundo está a mudar,
agora respeitam-nos mais, deixámos de estar associados à guerra e, claro, o crescimento

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da economia também ajuda- e de que maneira!... É ver as delegações dos senhores do


mundo, que todos os meses, desembarcam em Luanda com propostas de novos
negócios!...E, por fim, a minha nacionalidade também saiu... agora sou angolano de pleno
direito!...(MELO, 2009, p.126)

No entanto, Alves da Costa ansiava tanto ser reconhecido como angolano, que a história que
contara continha algumas invenções, pois ele só chegara a Angola “exactamente no ano de 1992... antes
das primeiras eleições angolanas... pelo fim da guerra em Angola... a fim de montar qualquer actividade
comercial que lhe permitisse dar outro rumo a vida dele” (MELO, 2009, p.126-7). Assim, com a
prosperidade dos negócios, um ministro lhe fez uma proposta para ter “a nacionalidade angolana”
(MELO, 2009, p.131), por estar a quase dez anos em Angola. Esse fato coloca em cheque “a naturalidade
do pressuposto de que pertencer- por- nascimento significava, automática e inequivocadamente, pertencer
a uma nação” (BAUMAN, 2005, p.29).
O décimo segundo conto “O falso corrupto” (2009), ao narrar uma cômica história de um político
corrupto que é desmascarado pela amante, expõe a corrupção de Angola que “está espalhada e entranhada
hoje no corpo maltratado de Angola... a corrupção em Angola, mais do que um facto, é um ato natural,
como respirar” (MELO, 2009, p.135).
A verdade é que os angolanos, para desespero dos novos cruzados ocidentais, não se
comovem com a corrupção. Um povo que resistiu a 500 anos de colonialismo e soube
absorver os antigos colonizadores; que sobreviveu à escravatura, ajudando a edificar
novas civilizações; que derrotou uma das mais formidáveis conspirações imperialistas...
do século XX, mantendo a sua integridade e independência; e que foi capaz de terminar,
pelos seus próprios meios, uma guerra de 27 anos que parecia endêmica, não tem motivos
para entrar em depressão, por causa de um assunto obscuro e gelatinoso como a
corrupção (MELO, 2009, p.137)

Diante de uma série de conflitos pelos quais Angola passou, a corrupção é encarada pelos
angolanos como um problema mínimo em comparação com os problemas já enfrentados pelo país. Além
disso, a estrutura capitalista dominante “não oferece uma estrutura comum para que privações e injustiças
sociais se fundam e se consolide um projeto de mudança” (BAUMAN, 2005, p.41). Portanto, tornou-se
cada vez mais difícil “que os membros de uma sociedade cada vez mais privatizada e desregulamentada
dirijam as suas queixas e exigências” (BAUMAN, 2005, p.52).
O décimo terceiro conto “As raízes do mal” (2009), narra o dilema do jovem Jaiminho que deseja
se desabafar, sem sucesso, com seu pai o doutor Carlos Tati. O drama de Jaiminho só é esclarecido ao
final do conto, trata-se de sua sexualidade. O doutor Carlos Tati é um antropólogo conservador que
defendia algumas teses “que ele considerava determinantes para o futuro de Angola como nação”
(MELO, 2009, p.147). Segundo Carlos Tati, “o substrato bantu de angola... era o único que devia ser

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considerado”; “era um defensor das nações ancestrais angolanas” (MELO, 2009, p.147). Além disso,
outra tese “era a de que existe uma relação intrínseca entre os nomes e a identidade dos indivíduos”
(MELO, 2009, p.148), para ele os angolanos autênticos deveriam ter os nomes de origem bantu, e
“acusava o português de ser língua de colono e defendia a priorização... das línguas de origem africana
faladas em Angola” (MELO, 2009, p.149). No entanto, Carlos Tati agia hipocritamente, pois o seu
próprio nome e de seu filho não são de origem bantu, e, certa vez, proibiu a esposa de falar outras línguas
que não fossem o português. Essa postura contraditória evidencia que a identidade do indivíduo, e
pertencer a um lugar envolvem mais que o nascimento, a cor da pele, o nome, a língua. Embora os
indivíduos almejem ter uma identidade à qual possam se apoiar, na verdade, esta se trata de um processo
em constante formação.
O penúltimo conto “Uma estória edificante” (2009), narra o racismo da mulata Margarida cuja
mãe “era preta e o pai um branco português, que desapareceu” (MELO, 2009, p.156). Margarida casara-
se com um branco português e sequer convidou a mãe que fora abandonada e transformada em sua
lavadeira, até que, esta não aguenta mais e morre. Mas, acontece uma reviravolta, pois com a chegada da
independência, Margarida sente receio, pois “Os pretos odiavam todos os portugueses. Ela não queria
ficar ser viúva antes da hora” (MELO, 2009, p.158). No entanto, Margarida não consegue convencer o
marido a sair de Angola, visto que “Ele era português, sim, mas já estava em Angola há tanto tempo que
se sentia angolano de verdade” (MELO, 2009, p.158). Assim, seu marido morre vítima de bombardeio, e
Margarida se dá conta de que “a única pessoa que amava de fato- o pai – não passava de uma grotesca
ilusão” (MELO, 2009, p.160). Margarida passa a viver uma vida tão solitária com seus filhos que ao ser
pedida em casamento por Pedro Kalepete que “era preto... mas ela sentia-se tão castigada pela vida que
nem reparou” (MELO, 2009, p.161). Embora tenha resistido, Margarida casara com Pedro Kalepete, o
que resultou em grandes mudanças na vida dela a ponto de até mesmo “andar sempre com uma
medalhinha ao pescoço com a foto da lavadeira” (MELO, 2009, p.162).
Essa postura racista, assumida pela personagem Margarida, retrata a postura de muitos que são
influenciados por julgamentos sustentados durante a colonização a que esses países estiveram sujeitos,
construindo um processo perverso de afirmação de uma identidade desfavorável e desvalorizada dos
povos colonizados (MEMMI, 2007).
Ao colocarmos em vista todos os contos aqui brevemente apresentados, destaca-se, como
considerações finais, que os contos que compõem a antologia O homem que não tira o palito da boca
(2000), de João Melo, permite uma reflexão acerca de questões identitárias, que são um tema recorrente

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na literatura angolana, tendo em vista a recente formação do país. A partir da análise realizada, reafirma-
se, o quanto a literatura permite o questionamento sobre sentidos identitários, do mesmo modo que
permite o conhecimento e o reconhecimento de realidades histórico-sociais e culturais, como a de Angola.
É possível identificar, nos conto elementos que esclarecem a identidade nacional de Angola que
foi velada pelo processo de colonização. Assim, a narrativa torna conhecido aos leitores a complexidade e
os contrastes sociais, culturais e econômicos desse país, obscurecidos durante o processo de dominação
que tentou inferiorizar e reduzir o país em todos os aspectos, cultural, econômico, social entre outros.
Além disso, as narrativas expõem vários eventos que compõem o processo histórico de Angola,
como, sua independência, primeiras eleições, conflitos internos, a fim de expor a realidade de Angola,
durante guerra, e a destruição que esta foi capaz de causar. Desse modo, permite compreender que os
problemas que, hoje, afligem esse país são resultado de dominação e racismo, aos quais foi obrigado a se
sujeitar.
Portanto, com esses contos podemos entender, acima de tudo, que a identidade é um processo
complexo, formado em função da história e das situações vivenciadas pelos indivíduos, e que não é algo
fixo, nem depende apenas do nascimento, língua e nome como afirma o personagem Carlos Tati. Além
disso, no atual sistema globalizante dominado pela imprevisibilidade e versatilidade tornou-se um desafio
construir uma identidade sólida. Assim, no lugar de uma “essência” a identidade é um constate fazer-se–
assim como seu país o narrador pretende voltar-se para seu passado a fim de buscar construir a história do
lugar ao qual pertence.

Referências

BAUMAN, Zygmund. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

HAMILTON, Russell. A literatura dos PALOP e a Teoria Pós-colonial. In: Anais... IV ENCONTRO DE
ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo, USP, 1999.

MELO, João. O homem que não tira o palito da boca. Alfragide: Editorial Caminho, 2009.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.

PORTUGAL, Francisco Salinas. Entre Próspero e Caliban - Literaturas africanas de Língua portuguesa.
Galiza: Laiovento, 1999.

TUTIKIAN, Jane. Velhas identidades novas. O pós-colonialismo e a emergência das nações de Língua
portuguesa. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2006.

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