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2 Uma Igreja missionária

e civilizadora

Ruínas de San Ignacio Mini, a 60km de Posadas, Argentina, para onde fugiram, em 1631,
jesuítas e índios Guarani de nossa região perseguidos pelos bandeirantes.
Maringá representa um caso raro, talvez único, na história. Pelo menos, do Brasil. Não se conhece outra
cidade elevada a bispado aos oito anos e nove meses da fundação. Que aos nove anos e dez meses tenha rece-
bido seu próprio bispo. Para estabelecer alguma semelhança, alguns recordam Brasília. Contudo, a diferença é
astronômica. A começar pelo fato de que na Capital Federal – como em outras cidades erguidas para atender
a projetos estratégicos ou políticos – o poder público injetou montanhas de recursos oficiais, enquanto aqui
tudo foi levantado pela iniciativa particular. Na sua edificação, Maringá deixou patente a grandeza de um
exército de humildes, mas corajosos trabalhadores, que de outra riqueza não dispunham além do amor pela
família e da vontade inquebrantável de alcançar melhor padrão de vida e futuro para os filhos. Com a força
única dos braços afrontaram o desafio de domar a mata e, valendo-se da produção do solo, ergueram uma
comunidade cujo valor maior se retrata no caráter das pessoas aqui radicadas. Maringá brotou do vigor de
homens e mulheres desprovidos de luxo, mas dispostos a vencer. Para cá se mudou, naquele início de derru-
bada da floresta, gente da lida, disposta a não se deixar esmagar pelas aflições e carências que hoje assombram
quem ouve contar. A cidade nasceu e se solidificou esquecida dos políticos e abastados, que por ela só vieram
a demonstrar interesse quando apareceram as primeiras promessas efetivas de retorno eleitoral ou financeiro.
Não obstante, também foi exigido algum tipo de presença do poder público. Ações desencadeadoras do
progresso dificilmente se produzem à margem do comando político ou econômico, quase sempre unificados
nas mesmas mãos. Em país patrimonialista e cartorial como o nosso, raros são os passos dados sem a autoriza-
ção, o beneplácito ou as benesses do governo. Não seria o Norte do Paraná que inauguraria regime de absoluta
autonomia dos empreendedores frente aos governantes. A colonização se fez a partir da entrega, por parte do
Estado, de imensas áreas a grupos dispostos a investir, na certeza de lucros vindouros. À União e Unidades Fe-
derativas sempre pertenceu o direito de posse ou de uso do território, cabendo-lhes historicamente disciplinar a
forma de apropriação da terra. A começar do projeto posto em prática, desde o descobrimento, pela metrópole
na exploração das riquezas naturais da nova colônia. Quatro séculos mais tarde, as mudanças na situação agrária
ainda refletiriam o prolongamento natural das políticas oficiais sobre o tema.

Os movimentos expansionistas ocorridos no Paraná antes da década de 30 vão marcar-


se, na sua fase inicial, pela transferência da forma pública para a forma particular de
apropriação da terra privilegiando, de um lado, a grande propriedade e, de outro, na
condição de grandes proprietários, elementos vinculados a uma reduzida faixa da popu-
lação, justamente a que melhor se relacionava com o poder político dominante. Num
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segundo momento, a estrutura agrária tradicional, construída com base na grande pro-
priedade (leia-se sesmarias) sofre um processo de desagregação calcado em interesses
maiores do poder dominante (importação de trabalhadores livres para substituir o tra-
balhador escravo nas lavouras de exportação) e com isso a estrutura fundiária parana-
ense abre espaço para a pequena propriedade, destinada a outra categoria de elementos
privilegiados: o imigrante estrangeiro. O interesse do poder dominante, que deveria
ser viabilizado através da pequena propriedade e através do imigrante estrangeiro, era
a ocupação efetiva do território (o Paraná, que a esta altura, podia ser considerado um
vazio demográfico) e ao mesmo tempo era estabelecer a exploração econômica da terra
(as sesmarias, apesar das grandes extensões que ocupavam, não produziam sequer para
garantir a subsistência de seus poucos moradores) (SERRA, 1991, f. 42).

Até o início do século XVII, “todo o espaço paranaense se constituía em propriedade pública sob o
domínio da Coroa portuguesa”. A sesmaria, que disciplina o uso da terra no Brasil, determina a passagem
da forma pública para a particular, constituindo-se em regime jurídico de acesso à terra e repartição dela.
No Paraná, a primeira carta de sesmaria data de 1614 (SERRA, 1991, p. 44). Por séculos, será o modelo de
exploração das reservas naturais de um território por demais amplo e desconhecido.
Em 1808, por determinação do príncipe regente dom João, é concedido também a estrangeiros o di-
reito a sesmarias, com “a intenção de aumentar as lavouras e a população, que era muito pequena em todo o
Estado brasileiro” (CAMARGO, 2004, p. 199).1 Bem próxima da emancipação política do Paraná (1853) e,
por isso, influenciando significativamente a vida da nova Província, a Lei de Terras (Lei 601), de 1850, altera
o regime de exploração do solo, aceitando o conceito de colonização pelo qual se reconhece o direito de
“importar” colonos livres estrangeiros para serem empregados em colônias. Às autoridades da época figurava
impossível a tarefa de ocupar e aproveitar as imensas vastidões de um país continente com os poucos cidadãos
brancos aqui estabelecidos ou outros possíveis de, a partir da metrópole portuguesa, para cá se transferirem.
A prática de escravizar os indígenas aqui encontrados de há muito havia se revelado contraproducente e, por
isso, fora abandonada. O uso do escravo negro, importado da África, apesar de se prolongar por tempo exces-
sivamente superior ao verificado em outros países, já não oferecia as facilidades nem o rendimento econômico
dos primeiros tempos. Por outro lado, o clima tropical, tido por insuportável, e a terra, embora cheia de
promessas, também coalhada de agruras aparentemente invencíveis, não animavam o homem da metrópole a
um esforço do qual se sentia incapaz. Melhor arrebanhar gente mais afeita a esse rude mister. Daí a abertura
a colonizadores.

Colonização passa a corresponder à implantação de colônias e agricultores estrangei-


ros, em regiões previamente determinadas pelo Estado, segundo critério que levou
em conta a necessidade de produção de gêneros alimentícios para o abastecimento das
populações urbanas (SERRA, 1991, f. 61).

Mas o Paraná tardou a ver exploradas as suas áreas interioranas situadas mais para oeste, distantes do
litoral. Mesmo com a emancipação política, na segunda metade do século XIX, o aproveitamento e a povoa-
ção da Província continuaram a concentrar-se na região costeira, a partir de Paranaguá, subindo a Curitiba e
estendendo-se aos Campos Gerais. Desde a primeira metade do século XVII, o Paraná já era conhecido como
parte do Sul do Brasil, não só pela proximidade geográfica com o eixo São Vicente-Rio de Janeiro-Bahia, mas
também pela descoberta de ouro no litoral e nos sertões de Paranaguá. Como, no entanto, o rico metal não
aparecia em quantidade significativa, logo se extinguiu. Desde então, a economia estruturou-se, a partir de

1 A nova Província do Paraná revelou-se bastante aberta à colonização de agricultores estrangeiros e franqueou terra a imigrantes de
diferentes procedências, que aqui estabeleceram agrupamentos, preservando os traços da cultura de origem. O Paraná dos nossos
dias continua uma das unidades da Federação com maior número de grupos nacionais originários de países sobretudo da Europa
(alemães, russos, poloneses, ucranianos, italianos, suíços, holandeses), mas também japoneses, coreanos e outros. A propósito confira
Camargo (2004, p. 201-213).
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outras fontes de renda, na região dos Campos Gerais. O grande negócio que se firmou na segunda metade do
século XVIII e início do século XIX foi a criação de gado,

seguida de invernagem de gado muar que, a partir de 1731, com a abertura da Estrada
do Viamão, do Rio Grande do Sul, destinava-se à feira de Sorocaba, objetivando os
trabalhos e transportes das minas gerais e das fazendas de café. [...] Organizaram-se
pousos, invernadas, freguesias, como as de Sant’Ana do Iapó, de Santo Antonio da
Lapa, e outras, originando vilas e cidades do Paraná tradicional. Com base no criatório
e na invernagem, foram ocupados os campos de Curitiba, os Campos Gerais, bem
como, no século XIX, aqueles de Guarapuava e Palmas (CARDOSO; WESTPHALEN,
1981, p. 19).

Só lá pelo final do século XIX tem início o desbravamento das terras do noroeste, partindo do Norte
Pioneiro, já parcialmente ocupado, próximo à divisa com o Estado de São Paulo, no prolongamento da Es-
trada de Ferro Sorocabana. A fama das “terras roxas do Paraná” já houvera anteriormente alcançado Itajubá
(MG), motivando o major Thomaz Pereira da Silva, em 1865, a formar sociedade com amigos e parentes
para adquirir a posse de Domiciano Machado, uma gleba junto ao rio das Cinzas. Ele se deslocou de Minas
Gerais, no final do ano, pelo caminho conhecido de então, que seguia por Pouso Alegre, Ouro Fino, Itapira,
Mogi-Mirim, Amparo, Campinas, Itu, Sorocaba, Itapetininga, Itaporanga para, finalmente, cruzar o rio Ita-
raré, penetrando no Paraná. A fertilidade do solo atraiu mais gente de Minas e também da Província de São
Paulo, além de fluminenses e capixabas, que formaram imensos cafezais. Assim tiveram origem cidades como
Tomazina, São José da Boa Vista, Siqueira Campos, Venceslau Brás, Ibaiti, Pinhalão e Jaboti.
Embrenhando-se, agora, mais para oeste, a ocupação chegou até o rio Tibagi, onde se deteve. Atribui-
se a João da Silva Machado, conhecido como barão de Antonina, a fundação, em 2 de janeiro de 1851, da
Colônia Militar de Jataí, junto do rio Tibagi, onde tropas brasileiras se aquartelaram para enfrentar as tropas
de Francisco Solano López, na Guerra do Paraguai. O barão passaria a ser conhecido pelos serviços prestados
ao Império e pela extensão de terras das quais se apropriou (SERRA, 1991, f. 47-49; CAMARGO, 2004,
p. 120-125).

A sociedade tradicional ocupara apenas as zonas de campos, de ervais e de araucárias.


Restavam vazias as grandes florestas dos vales do Paranapanema, Paraná, Ivaí e Iguaçu.
Dois movimentos populacionais extraordinários ocorreram paralelamente, resultando
na formação do Paraná moderno. Um, mais ruidoso e visível, impulsionado pela lavoura
tradicional do café, ocupando o Norte do Paraná; outro, ainda que a princípio menos
espetacular, mas tão conseqüente quanto o primeiro, aquele da ocupação do Sudoeste
do Paraná. Desde o final do século XVIII, o café do litoral do Paraná é encontrado nas
listas de exportação de Paranaguá, contudo sem expressão econômica. Nos meados
do século XIX também já se produzia café, para consumo interno, nos aldeamentos
indígenas de São Pedro de Alcântara e de São Jerônimo, e na colônia militar do Jataí.
Porém, o café de fato entrou no Paraná no final do século, com a frente pioneira que
procurava terras para a empresa agrícola cafeeira, de modo espontâneo, e com o esta-
belecimento de fazendas no tradicional estilo paulista e como uma extensão deste. De
início, a existência de fertilíssimas terras roxas disponíveis, o clima favorável e o não
gravamento do café paranaense pelo regime de quotas foram condicionantes da intensi-
ficação da cafeicultura em território paranaense. Penetram pelos cursos superior e médio
do Itararé e, no decorrer de um século, o café se estende dominantemente em todo o
Norte do Paraná, em três zonas sucessivas, as duas últimas com maior impetuosidade
face à conjuntura. A primeira, do Norte Velho, desde a divisa Nordeste com São Paulo,
até Cornélio Procópio, colonizada entre 1860 e 1925; a segunda, do Norte Novo que,
desde Cornélio Procópio, abrange Londrina, prolongando-se até o rio Ivaí, colonizada
entre 1920 e 1950; e a última, no Norte Novíssimo, entre os rios Ivaí e Piquiri, coloni-
zada desde 1940, até 1960 sobretudo, quando se encerra o ciclo de grande dinamismo
da cafeicultura paranaense (CARDOSO; WESTPHALEN, 1981, p. 10).
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Consta ter sido o fluminense Antonio Calixto, em 1886, o primeiro desbravador de Jacarezinho, que
viria, depois, a constituir-se em capital do Norte Pioneiro e sede do único bispado que, durante 31 anos,
ocupou toda a parte setentrional do Estado, desde a divisa com São Paulo até o rio Paraná, no extremo oeste,
confrontando com o atual Mato Grosso do Sul (CAMARGO, 2004, p. 150-152; FEDALTO, 2004, f. 148).2
Pelo espaço de aproximados quarenta anos vai ainda permanecer coberta pela exuberante mata, intocada e
selvagem, a extensa faixa territorial detentora de solos reconhecidos como dos mais férteis do planeta. Con-
tudo, desde o momento em que a Companhia de Terras Norte do Paraná adquiriu o direito de explorar uma
imensa gleba de floresta, implantando, a seguir, o seu projeto de colonização, bastaram menos de quarenta
anos para a completa ocupação de toda a área. Em que pese a correta orientação eventualmente dispensada
pela colonizadora aos novos proprietários da terra, a voracidade do lucro ao alcance da mão aliada ao des-
conhecimento do correto uso do solo – ainda que à custa de sofrido esforço para, nos anos bons, extrair da
terra generosas safras – determinou a investida sobre os recursos naturais de uma região virgem, ocasionando
perdas irreparáveis de que hoje nos ressentimos todos.

A região comumente chamada Norte do Paraná pode ser definida como a soma ter-
ritorial dos vales muito férteis formados pelos afluentes da margem esquerda do rio
Paraná e Paranapanema, no arco que esses dois cursos d’água traçam entre as cidades
de Cambará e Guaíra. É suave o relevo e muito regular a distribuição dos rios. Colinas
mansas, vales não muito profundos, espigões abaulados e de fácil acesso. A orientação
predominante dos afluentes do Paranapanema é Sudeste-Noroeste, e todos eles inte-
gram a rede hidrográfica característica do planalto definido pela Serra do Mar, cujos
rios se afastam do litoral no rumo da extensa depressão existente no centro do conti-
nente sul-americano: a Bacia Paraná-Uruguai. Essa região – definida pelos rios Itararé,
Paranapanema, Paraná, Ivaí e Piquiri – abrange uma superfície de aproximadamente
100 mil quilômetros quadrados, dividida em três áreas, segundo a época e a origem da
respectiva colonização: o Norte Velho, que se estende do rio Itararé até a margem direita
do rio Tibagi; o Norte Novo, que vai até as barrancas do rio Ivaí e tem como limite, a
Oeste, a linha traçada entre as cidades de Terra Rica e Terra Boa; e o Norte Novíssimo,
que se desdobra dessa linha até o curso do rio Paraná, ultrapassa o rio Ivaí e abarca
toda a margem direita do Piquiri (COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE
DO PARANÁ, 1977, p. 35).

O “vazio demográfico”
Embora responsáveis pela construção do país e do povo brasileiro em proporção por vezes maior que o
branco de origem européia, o negro e o índio jamais conseguiram registrar a sua visão da história. Ensinada
nas escolas e cultivada pelo homem comum, a historiografia oficial, produzida por brancos e vista sob a ótica
dos conquistadores, é responsável pela crença de que, antes da década de 30 (1921-1930), toda a superfície
do Norte Novo e do Norte Novíssimo do Paraná achava-se desprovida de habitantes, povoada tão somente
por animais e plantas (MOTA, 1994, p. 17-59, 63-89).3
A ser exata essa interpretação, apenas nos alvores do século XX, no prolongamento da colonização do
Norte Pioneiro, nossa região teria começado a sofrer ocupação, atraindo gente de todos os cantos do Brasil e

2 No final de outubro de 2006, Fedalto comunicou ao autor deste relato que sua obra sairá publicada em livro, que, evidentemente,
não conservará a mesma paginação aqui referida. As presentes indicações bibliográficas remetem às anotações pessoais, gentilmente
cedidas por ele.

3 O professor da Universidade Estadual de Maringá relaciona as repetidas afirmações de sociólogos e historiadores sobre o “vazio
demográfico” do Norte do Paraná por aproximadamente dois séculos antes de 1925. A seu ver, a construção do vazio demográfico
respondeu ao interesse de criar “uma forma de ocultar os conflitos indígenas no Paraná”. Em seguida, a partir de documentos, des-
trói a confiabilidade da teoria, comprovando a presença de habitantes no Paraná desde a pré-história. A existência, entre Paiçandu e
Doutor Camargo, do “cemitério dos caboclos” comprova a presença de habitantes muito antes da colonização iniciada com a inglesa
CTNP. O cemitério é seguro indício histórico, embora careça, no entender de Mota, de estudo mais aprofundado.
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de outros países. Antes desse tempo, nada mais teria sido senão exuberante selva desabitada.
A verdade, porém, é bem outra. Desde séculos, aos milhares, viviam e circulavam pessoas por todo o
Norte paranaense. Relatos de viajantes que se aventuraram por estas bandas bem como de outros que vieram
aqui fixar residência informam a presença de indígenas ocupantes da mata que se estendia para o interior;
espessa, desconhecida, jamais pisada por pé de homem civilizado. Donos de cultura própria, afeitos a práticas
de uma vida distinta da dos brancos, desde tempos imemoriais os silvícolas conviviam bem com os recursos
de um meio extraordinariamente rico, que atendia com sobra às suas necessidades. Aquilo que aos intrusos se
afigurava entrave e privação para os naturais da selva traduzia riqueza e possibilidade. Dentre os colonizadores
ingleses da CTNP dos tempos do início alguns deixaram registros escritos, como Gordon Fox Rule, o mais
antigo funcionário em atividade por ocasião do cinqüentenário da Companhia, em 1975. De seu depoimento
faz parte o trecho seguinte:

Certa vez paramos na estrada para encher de água o radiador do nosso fordeco e de
repente ouvimos de todos os lados, vindo da mata, o som de paus batendo nas árvores.
Eram os índios que então existiam nos arredores do que viria a ser a nossa progressista
Londrina de hoje. Isso foi em 1930. Lembro-me bem de que todos queriam correr,
mas eu os acalmei e disse que fizessem tudo com naturalidade. Ouvíamos os índios mas
não podíamos vê-los. Pouco a pouco nos aproximamos do automóvel, sempre ao som
das batidas nas árvores, enchemos de água o radiador e zarpamos a toda velocidade.
Quando a Companhia estava construindo em Jataí um desvio para virar locomotivas,
os funcionários deram com urnas mortuárias dos índios da região, algumas das quais
foram enviadas para o Museu Histórico do Rio de Janeiro (COMPANHIA MELHO-
RAMENTOS NORTE DO PARANÁ, 1977, p. 86).

Também o território onde se desenvolveu, a partir 24 de março de 1957, a diocese de Maringá foi
palco da ocupação prolongada de silvícolas, que aqui desenvolveram vida inteiramente regular, tanto que se
multiplicaram chegando a constituir organizados agrupamentos de milhares de indivíduos.
Segundo o Atlas Histórico do Paraná, criteriosamente elaborado por professores da Universidade Fe-
deral do Paraná, descobertas arqueológicas revelaram indícios da presença de grupos indígenas entre 7500
a.C. e 1500 d.C., pelo menos na região da foz do rio Pirapó, que deságua no Paranapanema, entre os hoje
municípios de Jardim Olinda e de Itaguajé; e, no rio Ivaí, em área dos atuais municípios de São Carlos do
Ivaí, São Jorge do Ivaí e Doutor Camargo. Pesquisas recentes de respeitados professores da Universidade
Estadual de Maringá atestam a presença de habitantes primitivos em território do perímetro urbano de
Maringá e região.

Se compararmos a duração dos períodos de ocupação das diversas populações que vi-
veram neste território, veremos que os 50 anos de Maringá são ínfimos em relação aos
mais de 2.000 anos de presença Guarani, Xokleng ou Kaingang. Menos significativos,
ainda, se comparados aos 7.000 anos da presença da população, que os arqueólogos
denominaram como ‘Tradição Humaitá’. [...] Diante dessas evidências, é importante
ressaltar que o fundador de Maringá não foram os primeiros humanos a ocupar a re-
gião; nem foram os caboclos que aqui chegaram antes. O mesmo pode-se dizer dos
militares e das expedições de reconhecimento da antiga província do Paraná no século
XIX ou dos espanhóis que fundaram Vila Rica por volta de 1578, no atual município de
Fênix, e dos jesuítas que fundaram diversas reduções nos vales dos rios Paranapanema,
Tibagi, Ivaí e Pirapó (NOELLI; MOTA, 2000, p. 7-8).

Entre todos os povos indígenas que ocuparam a nossa região sobressaem, por várias razões, os Guarani,
cuja denominação indica tanto o povo como a língua falada. Originários das bacias dos rios Madeira e Guapo-
ré, na região amazônica, espalharam-se por praticamente todo o interior do sul do Brasil, desde há pelo menos
2.000 anos. Ocupavam novas regiões sem abandonar as antigas. Informam os professores Noelli e Mota:
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Dessa maneira, iam ocupando as várzeas dos grandes rios e, com o passar do tempo, as
áreas banhadas por rios cada vez menores. Por exemplo, após dominar as terras próxi-
mas do rio Ivaí e Pirapó, ocuparam trechos ao longo de alguns dos ribeirões que ba-
nham o divisor de águas onde está situada Maringá. Como havia uma série de caminhos
no entorno das aldeias, para ir às roças, às áreas de caça, pesca e coleta etc., bem como
para ir até as aldeias vizinhas, é provável que a área de Maringá fosse local de passagem
ou contato entre as aldeias do Ivaí e do Pirapó (NOELLI; MOTA, 2000, p. 13).4

Até 1600 d.C., cem anos depois do descobrimento do Brasil, a inteira região abrangida pela arquidio-
cese de Maringá e pela atual diocese de Paranavaí (além da quase totalidade do espaço ocupado pela arqui-
diocese de Londrina e pelas dioceses de Apucarana e de Campo Mourão) se constituía de terras cobertas de
floresta tropical e subtropical (CARDOSO; WESTPHALEN, 1981, p. 14-25).
O descobrimento da América, em 1492, e do Brasil, em 1500, vai determinar total reviravolta na vida
das populações primitivas que, a partir desse momento, verão espezinhada sua original condição de soberanas
da terra para se converterem em empecilho à conquista empreendida por espanhóis e portugueses. Para elas
revelaram-se trágicas as conseqüências do choque de suas milenares culturas com o modo de vida dos invaso-
res europeus, que passaram a identificá-las como seres brutos, indolentes e perigosos.

Cristianização oficial x zelo missionário


No entardecer do século XV, Espanha e Portugal alinhavam-se na Europa como nações católicas num
palco de conflitos políticos, econômicos, sociais e religiosos que acabariam por desembocar na Reforma Pro-
testante. Aproveitando o domínio exercido no período áureo da navegação marítima e dos grandes descobri-
mentos, juntamente com a ambição por supostas fortunas que imaginavam disponíveis em terras de além-mar,
por exploração do comércio de especiarias e de outras riquezas, reis ou rainhas dos dois países nutriam, ao
mesmo tempo, o anseio de ampliar a fé católica. Junto com privilégios papais haviam recebido a incumbência
de levar aos novos territórios a religião da metrópole. O que determina o início da evangelização da Améri-
ca Latina é a concessão feita pelos papas do chamado “direito de fé” aos reis católicos, elevados, por isso, à
condição de defensores da religião católica e de responsáveis pela sua pregação nos territórios conquistados.
“Dilatar a fé e o reino” era o mote do rei de Portugal (FEDALTO, 2004, f. 34). Por esse regime, conhecido
como “padroado”, competia aos soberanos espanhóis e portugueses administrar os negócios eclesiásticos, o
que os transformava nos verdadeiros chefes da Igreja da América Latina. A conseqüência era a submissão dos
índios à coroa castelhana ou portuguesa. As decisões papais afetavam o destino não só do mundo conhecido,
mas também das regiões a serem descobertas.
Em época de cristandade, reconhecia-se ao romano pontífice o poder de decisão inclusive sobre assun-
tos político-administrativos da Europa e do mundo todo. Em 1494, o papa Alexandre VI aprovou o Tratado
de Tordesilhas, pelo qual Portugal e Espanha repartiriam entre si as colônias delimitadas pelo meridiano
situado a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Não definia, contudo, que ilha tomar como referência
nem que tipo de légua usar como medida. O Tratado conseguiu suscitar constantes discussões e muito pouco
entendimento, apesar de repetidas tentativas de acordo. Por esse diploma, a parte oeste do Brasil era proprie-
dade de Castela, cabendo a Portugal a parte leste. A linha divisória corria, para a coroa portuguesa, de Belém
(PA) a Santana, hoje Laguna (SC). Para Castela, no entanto, terminava na barra de Paranaguá (PR). Além da
disputa sobre o traçado exato, ainda Portugal esteve, entre 1580 e 1640, sob o comando da coroa de Castela,
unificando-se, dessa forma, a posse do território inteiro. A cobiça de habitantes dos campos de Piratininga
(bandeirantes, ou simplesmente paulistas), em seu avanço para o sertão, determinou que, a partir do século
XVII, as fronteiras do Brasil português se alargassem enormemente. O crescimento territorial, entretanto,

4 Informam ainda a descoberta, até o ano 2000, de sítios arqueológicos nos ribeirões Keçaba e Pingüim, com possibilidade de sítios
nos ribeirões Maringá, Morangueira, Sarandi, Borba Gato e Aquidaban.
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não se fez acompanhar de igual respeito pelos indígenas que, aos milhares, foram submetidos à escravidão ou
mortos pelos sertanistas. Só quem se levantou em sua defesa foram os missionários, embora até um ou outro
admitisse o trabalho escravo, desde que sem maus tratos aos silvícolas.
Alguns sobressaem aos seus iguais. Não há quem não se deixe enternecer ao tomar conhecimento do
vigoroso humanismo e vivíssima fé que irrompem das páginas apaixonadas de um Bartolomé de las Casas
(1474-1566). Em razão de seu destemido zelo na defesa dos índios diante dos conquistadores, o enérgico
dominicano foi, com justiça, cognominado “Apóstolo das Índias”. Por longo tempo, manteve ácida po-
lêmica com Juan Ginés de Sepúlveda, teólogo jurista da corte de Espanha, que pretendia legitimar o uso
da força em guerras “justas” contra os índios. Encerrando as justificativas de uma evangelização pacífica,
argumenta las Casas:

Os índios são nossos irmãos, pelos quais Cristo deu sua vida. Por que os perseguimos
sem que tenham merecido tal coisa, com desumana crueldade? O passado, e o que dei-
xou de ser feito, não tem remédio; seja atribuído à nossa fraqueza sempre que for feita a
restituição dos bens impiamente arrebatados. [...] Sejam enviados aos índios pregoeiros
íntegros, cujos costumes sejam espelho de Jesus Cristo e cujas almas sejam reflexo das
de Pedro e Paulo. Se for feito assim, estou convencido de que eles abraçarão a doutri-
na evangélica, pois não são néscios nem bárbaros, mas de inata sinceridade, simples,
modestos, mansos e, finalmente, tais que estou certo que não existe outra gente mais

Las Casas foi defensor acérrimo dos índios contra a crueldade dos brancos (PURCHAS, 1625).
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disposta do que eles a abraçar o Evangelho, o qual, uma vez por eles recebido, é ad-
mirável com que piedade, fé e caridade cumprem os preceitos de Cristo e veneram os
sacramentos (LAS CASAS apud SUESS, 1992, p. 543).

Las Casas não representa, certamente, uma exceção. Originários da Europa, onde os formadores se
empenhavam em dotar a Igreja de homens novos frente aos desafios da Reforma incipiente, os missionários
– franciscanos, dominicanos, agostinianos ou carmelitas – eram provados no cultivo de valores humanos e
virtudes cristãs antes de serem admitidos para o embarque rumo ao Novo Mundo. Ainda assim, a saga da
cristianização dos habitantes das matas, acompanhada das notícias de atrocidades sem nome cometidas contra
eles, chegou até nós predominantemente nos relatos de jesuítas, que mais fartamente documentaram sua
atividade evangelizadora nas terras descobertas.

Até 1549, todos os contatos entre nativos do Novo Mundo e missionários haviam sido
estabelecidos por membros das ordens franciscana e dominicana. Mas os franciscanos es-
creviam pouco sobre suas experiências no Novo Mundo, e a principal fonte de informa-
ção disponível para os jesuítas antes de sua chegada ao Brasil eram, portanto, os relatos
escritos pelos dominicanos envolvidos em atividades missionárias. Os jesuítas seguiram
de perto a abordagem missionária de seus colegas dominicanos: defendiam os nativos
das tentativas dos colonos de escravizá-los e aprendiam as línguas indígenas para melhor
explicar as coisas da fé para os nativos pagãos (EINSENBERG, 2000, p. 69).

Jesuítas e bandeirantes
Ainda hoje o esforço evangelizador desenvolvido pelos discípulos de Inácio de Loyola em favor dos indí-
genas é visto com eventuais ressalvas, fruto, quase sempre, de antipatia pela Igreja Católica, pela Companhia de
Jesus, ou de incompreensão do contexto histórico e cultural da época das reduções. Por maior que seja o empe-
nho pessoal, continuará problemático o entendimento de todas as variáveis de eventos que escapam à experiên-
cia de quem os narra. Assim, não surpreende que um ou outro autor, até respeitável, emita opinião contrastante
com a da parcela mais representativa de seus pares, a exemplo da apreciação passional de nosso José Basílio da
Gama (c.1741-1795), no célebre épico Uraguai, onde se lêem qualificações rancorosas como “império tirânico,
injusto, oculto”, “república infame”, “organismo profundamente perverso” (CAVASO, 1980, p. 10).
Como em qualquer evento, aqui também o ódio, o preconceito ou a desinformação revela-se inimigo
da verdade.

A obra capital da Igreja foi, antes de mais, a conversão dos índios a um cristianismo
sumário, primeiro e decisivo passo no sentido da europeização. O clero secular, des-
conhecedor das línguas indígenas e ávido de gozar as suas gordas prebendas, não se
entregou à grande obra missionária. Mas as ordens religiosas – franciscanos, dominica-
nos, agostinhos – desempenharam, no trabalho da conversão dos indígenas, um papel
capital antes que os jesuítas viessem ocupar o lugar de vanguarda nos séculos XVII e
XVIII. Levaram a cabo um trabalho lingüístico e etnológico de compreensão em pro-
fundidade, a fim de darem alicerce à obra realizada. O grande pioneiro foi Bernardino
Ribeira de Sahagun, o pai da etnografia índia na Nova Espanha do século XVI. Essa
obra foi também de proteção dos índios e a ela ficará para sempre ligado o nome de
Bartolomé de las Casas, que conseguiu comover Carlos Quinto ao relatar-lhe as desgra-
ças de que fora testemunha e que esteve na origem do Código das Novas Leis (1545),
cuja aplicação efetiva nunca conseguiu obter. Os jesuítas, nos séculos XVII e XVIII,
exerceram sobre os índios das suas missões uma proteção vigilante, mas muitas vezes
tirânica; forçados a viver em aldeias (reducciones) e a trabalhar aí a terra, castigados
como crianças com punições corporais, eram mais os súditos de pequenas teocracias do
que propriamente do rei da Espanha. À frente de milícias índias, os jesuítas das célebres
missões do Paraguai repeliam os assaltos dos caçadores de escravos, os bandeirantes
paulistas. O espírito de independência da Companhia valeu-lhes inimizades sólidas que
52

A Igreja que brotou da mata


se cristalizaram no decreto de expulsão de 27 de março de 1767. Ninguém pode ava-
liar o golpe assestado por essa medida nas Índias de Castela. O melhor traço de união
entre a Europa e o mundo índio foi destruído pela vontade de Carlos III (CHAUNU,
1971, p. 36).5

Pesquisadores ou escritores que do assunto se ocuparam demonstram, em sua absoluta maioria, respeito
ao trabalho dos abnegados missionários, que outra coisa não tinham em mira além da conversão dos pagãos
à fé cristã. Voltaire (François Marie Arouet, 1694-1778), conhecido pela antipatia devotada à Igreja Católica,
não se constrangeu em afirmar que “a fundação do Paraguai unicamente pelos jesuítas espanhóis, sob certos
aspectos, revela o triunfo da humanidade”. Entre outros de renome internacional aplaudem ainda a obra jesu-
ítica o arqueólogo e historiador italiano Ludovico Antonio Muratori (1672-1750), Chateaubriand (François
René, 1768-1848) e Buffon (Georges Louis Leclerc, 1707-1788), para quem “nada conferiu à religião tanta
honra quanto o fato de ter civilizado aquelas nações e lançado os fundamentos de um império, sem outra
arma além da virtude” (CAVASO, 1980, p. 10).
Evidentemente, nascida da têmpera forte de Inácio de Loyola, espanhol e soldado, a espiritualidade
da Companhia de Jesus atribuía grande importância à disciplina de seus membros, convidados a integrar o
“exército do papa” na luta em defesa da fé ameaçada pelos conceitos dos pregadores da Reforma. Da nova
ordem religiosa esperava-se, conforme o espírito inaciano, total fidelidade à doutrina católica e obediência
absoluta aos superiores, em especial ao Sumo Pontífice. O fundador insistiria, segundo consta, na necessidade
de obediência sem discussão, tamquam cadaver (= como um cadáver). Para a época e a compreensão da fé
vista à luz de sua radicalidade, nada havia de chocante em tal proposta.
A “redução” implicava, sem dúvida, no rompimento com o modo de viver dos habitantes do Novo
Mundo. Na ânsia, contudo, de convertê-los ao Evangelho, sentiam-se os missionários inabalavelmente con-
victos de que por esse caminho os ajudariam a se inserirem no seio da comunidade de salvação, a Igreja,
proporcionando-lhes os benefícios espirituais da fé, e os culturais da vida civilizada.

Note-se que chamamos ‘Reduções’ aos ‘povos’ ou povoados de índios que vivendo à
sua antiga usança em selvas, serras e vales, junto a arroios escondidos, em três, quatro,
ou seis casas apenas, separados uns dos outros em questão de léguas duas, três ou mais,
‘reduziu-os’ a diligência dos padres a povoações não pequenas e à vida política (civiliza-
da) e humana, beneficiando algodão com que se vistam, porque em geral viviam na des-
nudez, nem ainda cobrindo o que a natureza ocultou (MONTOYA, 1997, p. 35).6

Não há em ninguém daquele tempo exemplo de sacrifício igual pela causa indígena como a posta em
prática por esses abnegados pregadores. Seria extremamente injusto exigir para o século XVII os hodiernos
critérios de apreciação da cultura indígena assim como os conhecimentos de que se beneficiam, entre outras,
disciplinas modernas como antropologia e missiologia.
Através das reduções, os jesuítas implantaram nova forma de evangelizar, que contrastava com tudo o
que, até ali, fora empregado por outros missionários. Não havia como conseguir aprovação unânime e ime-
diata para um método desconhecido e oposto aos interesses dos colonos.

As Reduções jesuíticas, que datam da primeira década do século XVII, encarnavam


uma clara alternativa aos métodos existentes de evangelização pastoral e marcaram uma
ruptura com os conceitos que haviam prevalecido desde o período de experimentação

5 Para “agostinhos” melhor tradução seria “agostinianos”.

6 O livro, considerado um clássico das reduções jesuíticas do antigo Paraguai (atual Estado do Paraná, no Brasil), é tido por quase
inacessível, tanto na edição espanhola, feita em Madri, em 1639, quanto na de 1892, editada em Bilbao, da qual foi feita a presente
tradução por padre Arnaldo Buxel, SJ, com revisão e notas de padre Arthur Rabuske, SJ.
53

Os 50 anos da Diocese de Maringá


missionária na primeira metade do século XVI e um retorno ao mundo de Las Casas e
Quiroga [...] Os jesuítas têm o mérito histórico de ter praticado amplamente um mo-
delo de evangelização que contrastava com a fórmula predominante na época da pre-
gação do evangelho, e ao mesmo tempo de colonização e hispanização dos conversos,
como se os evangelizadores tivessem de ser a máquina de integração. As reduções pro-
clamavam desafiadoramente a necessidade de construir uma sociedade paralela à dos
colonos, livre da interferência tanto destes quanto de uma administração civil sensível
aos interesses destes. Como se recusavam a atuar como reservatórios da mão-de-obra
para os colonos, as Reduções estavam aptas a estabelecer uma evangelização baseada
no interesse pela personalidade integral do converso. Seu objetivo não era apenas dou-
trinar, mas fortalecer a vida social e econômica dos índios em todos os aspetos. [...] O
caráter efetivamente utópico do sistema de Reduções torna-se claro a partir dos muitos
antagonismos que provocou – da parte dos competidores coloniais espanhóis, das au-
toridades civis, dos colonos (privados do acesso à mão-de-obra indígena) e da igreja
diocesana, entre outros. Como princípio básico, a evangelização através do sistema
de Reduções, adotava a crença de que “se deve fazer homens antes de se poder fazer
cristãos”. Mas deve-se também reconhecer que o sistema estava fadado a um sucesso
menos que limitado pelo fato de que exigia que o chamado mundo cristão das colônias
aceitasse que os índios eram integralmente homens, e totalmente livres, sem sofrer nem
injustiças nem exploração”, como afirmava Bartolomé Meliá. A hostilidade para com
as Reduções seria um dos fatores por trás da expulsão dos responsáveis por elas no final
do século XVIII (BARNADAS, 1998, p. 554-545).

Romário Martins, apoiado em Southey (não católico, mas suficientemente imparcial para reconhecer
os méritos de grandes pregadores da fé que foram os discípulos de Inácio de Loyola), não sente nenhuma
dificuldade em admitir:

O sistema adotado pelos jesuítas para a conversão do gentio de Guaíra assentou na


vantagem da fundação de aldeias onde fosse constante a assistência dos religiosos, de
preferência às visitas periódicas às suas tabas, como ocorrera até então. A essas aldeias
para onde removiam os conversos chamaram reduções. Ao tempo da conquista do ser-
tão, reduzir índios era prepará-los, como faziam os bandeirantes, para vendê-los ou
escravizá-los às suas fazendas. Mas parece que ao denominarem redução às aldeias que
fundaram, pretenderam os jesuítas significar que as constituíam redutos, isto é, defesas
à intromissão dos perseguidores dos índios, pois que ao tempo, nas terras da coroa de
Castela, à qual Guaíra pertencia, o gentio era repartido pelos senhores brancos, sob
o odioso regime da Janacona e da Mitaya, para que os servissem como escravos, ou
simplesmente caçados como o faziam os paulistas. Da idéia da redução sobreveio o alto
pensamento de se constituir, com o conjunto das reduções, uma república guarani, se-
gundo o ideal de perfeição cristã, da qual foi Guaíra a construção fundamental, prosse-
guida depois nas missões orientais entre os rios Uruguai e Paraná, em grande parte em
território atual do Rio Grande do Sul. Santo Inácio Maior, ao ocidente do rio Paraná,
foi a primeira redução fundada de acordo com o novo sistema, e, a seguir, Loreto e
Santo Inácio Míni, ao sul do Paranapanema, assumiram desde logo, a partir de 1610,
a máxima preponderância na obra civilizadora exsurgida no sertão sul-americano, ao
ponto de, por ocasião do seu forçado abandono, rivalizarem com as melhores povoa-
ções do Paraguai, contando a primeira novecentas famílias e a segunda, oitocentas. As
igrejas eram maiores que as de Assunção e melhores os seus ornatos, tendo os mora-
dores chegado ao grau de civilização a que se propunha o sistema (MARTINS, 1995a,
p. 83-84).7

7 Mota é contrário à idéia de uma ”república” Guarani, conforme esclareceu ao autor destas notas num dos vários diálogos, nos pri-
meiros dias de fevereiro de 2006, mantidos no CCH - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da UEM.
54

A Igreja que brotou da mata


A Província de Guairá figurava entre as mais importantes do governo do Rio da Prata, subdivisão do
vice-reino do Peru, extensão aquém-mar do poderoso reino de Castela. Os primeiros jesuítas que nela pene-
traram foram os padres Manuel Ortega, português, e Thomas Fields, irlandês, em agosto de 1587, vindos da
província jesuítica do Brasil, depois de passarem por Assunção, para onde voltaram mais tarde. “Em 1609,
dirigiram-se à região do Guairá os padres José Cataldino e Simon Mascetta. Anos depois, em 1612, incor-
porou-se às missões no Guairá o padre Antonio Ruiz de Montoya” (AGUILAR, 2002, p. 143), que viria
a se tornar o principal cronista da evangelização promovida pelos jesuítas. Densamente povoada, banhada
por generosos rios, cobiçada por riquezas que se acreditava guardar, a Província de Guairá ocupava espaço
disputado por colonizadores espanhóis e portugueses. Limitava-se, ao norte, com o rio Paranapanema; a
leste, em direção ao Atlântico, com a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas, no território português das
vilas de São Paulo e São Vicente. Para oeste, alcançava o grande rio Paraná, importante via de navegação e de
escoamento de produtos, confrontando ainda com a Província do Itatim, entre os rios Paraguai, Miranda e
Apa, hoje Mato Grosso do Sul.8 O Itatim era habitado pelos índios Guarani, dos quais seriam descendentes
os atuais Kayová. Como fronteira ao sul, Guairá possuía o rio Uruguai, separando-a da Província de Tape
(atuais Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul). O interior da Província era entrecortado pelos
rios Tibagi, Pirapó, Ivaí, Piquiri e seus afluentes. Conhecida como terra dos Guarani, abrigava três grandes
grupos, que se subdividem em inúmeras etnias indígenas: os Tupi (aos quais pertence a etnia Guarani), os
Kren (dos quais no Paraná restam sobreviventes nos povos Kaingang e Xokleng) e os Jê, também chamados
Botocudo. Divergindo embora entre si, autores falam de uma população de até 300.000 habitantes, que
usavam predominantemente o idioma Guarani (AGUILAR, 2002, p. 129-133). Informa Lúcio Tadeu Mota
que eles viviam da caça e da pesca, dedicavam-se à agricultura de subsistência e, para uso doméstico, ao ar-
tesanato. Não se afastavam muito das margens dos numerosos rios que banhavam todo o território. Depois
de explorarem temporariamente uma área, plantavam árvores frutíferas e deslocavam-se para outra, sempre
dentro de seu espaço. Evitavam penetrar em território ocupado por etnia diferente, conhecendo que seria
motivo de guerra. Depois de alguns anos, voltavam a explorar as antigas áreas, onde as frutas plantadas já
tinham atraído pássaros e animais de caça.
O agrupamento dos habitantes da selva, reunidos pelos padres em novo modelo de vida, contemplava
predominantemente o grupo Guarani, o mais expressivo. Mas o trabalho evangelizador visava formar co-
munidades pautadas pelas normas do Evangelho. Assim, não hesitaram os missionários em acolher também
indígenas de origens diferentes, ainda que nem todos cultivassem práticas culturais idênticas. “A grande
maioria dos povos indígenas reduzidos à direção dos jesuítas era Guarani, nos seus diversos matizes, porém
índios de outros grupos foram também aldeados” (MARTINS, 1995, p. 77). Nas reduções, além dos Guarani
encontravam-se também índios Campeiro, Kaingang, Cabeludo, Guaianá (por alguns considerados Tapuia),
Carijó, Teminó e Tupi. O número de índios aldeados pelos padres da Companhia de Jesus ascendia a 100.000
por ocasião do ataque que sofreram, em 1629, das bandeiras lideradas por Manuel Preto e Antônio Raposo
Tavares. A batalha que se seguiu foi um covarde massacre seguido de aprisionamento atestado em correspon-
dência enviada de Salvador, na Bahia, ao rei de Castela para exigir providências contra a invasão dos bandei-
rantes. Escrita em espanhol pelos jesuítas Simon Mascetta e Justo Mancilla, no dia 10 de outubro de 1629, a
extensa carta consome várias folhas com informações pormenorizadas de atrocidades que deviam horrorizar
o monarca. Sirva de exemplo:

No princípio do mês de agosto de 1628, saíram da vila de S. Paulo até 900 portugueses
com escopetas, espadas, seteiras, escudos, facões e muita munição de balas e pólvora e
também de outras armas, acompanhados de 2.200 índios injustamente cativados em
outros tempos [...]. Antônio Raposo Tavares foi declarado capitão maior da companhia
[...]. O superior de campo de todas essas companhias foi Manuel Preto, autor de todas

8 Os índios das reduções da Província do Itatim sofreram também ataques dos bandeirantes, vendo-se forçados a fugir continuamente
para o sul, até se localizarem, por fim, em área do atual Paraguai.
55

Os 50 anos da Diocese de Maringá


estas incursões [...]. O que pretendemos e, por caminhos tão cansativos por terra e por
mar, com tantas dificuldades e trabalhos viemos buscar, é algum remédio eficaz para o
passado e para o futuro. Para o passado parece-nos não haver satisfação bastante a não
ser a libertação dos índios que cativaram, voltando para suas terras e reduções todos
ou a maior parte deles, para que nos sirvam de testemunhas de nossa inocência, junto
aos de suas terras, de que não os entregamos aos portugueses [...]. Para o futuro, que
se dê castigo muito exemplar, ou que de qualquer outro modo se ordene que, daqui
por diante, se evitem semelhantes extorsões e cativeiros que, há tantos anos, vêm pra-
ticando esses de S. Paulo. Porque voltaram logo a saquear nossas outras aldeias e assim
falam eles que gostaram da fruta, que lhes pareceu saborosa, e querem bem depressa
voltar a ela [...]. Quando chegamos a S. Paulo, em 1º de maio de 1629, foram outra
vez (as duas companhias), uma por terra, e outra, muito grande, de Manuel Preto, por
mar [...]. Desde que se fundou a vila de S. Paulo, por conta da multidão de gente que
arrancaram de nossas aldeias, confessam que jamais trouxeram tanta gente de uma vez.
Dizem que só a companhia de Antônio Raposo Tavares, que saqueou nossas aldeias,
trouxe até 20.000 almas. Por isso, é certo que, se agora não se corrigir, de forma eficaz
e a mais rápida possível, logo hão de acabar e destruir tudo e despovoar todas aquelas
terras tão populosas, como fizeram à maior parte do estado do Brasil não só destruindo
trezentas aldeias de índios que havia anteriormente ao redor da mesma vila de S. Paulo,
matando-os, escravizando-os e vendendo-os até que os consumiram a todos, e em me-
nos de seis anos (coisa espantosa) acabaram sem resistência com até 200.000 mil almas
que nelas havia, mas também correndo até as alturas do Maranhão e até o Rio de São
Francisco, que entra no mar entre a Bahia e Pernambuco, e outras partes bem distantes,
consumindo e queimando tudo (MANCILLA; MASSETA, 1629 apud CORTESÃO,
1951, p. 311-337, grifo e tradução nossos).

Apesar de nominalmente católicos, não eram, em absoluto, modelos de vida cristã todos os espanhóis
e portugueses que aportaram no Novo Mundo. Bem ao contrário. Procedentes do outro lado do Atlântico,
muitos deles trabalhavam como funcionários no cuidado dos interesses da coroa, sujeitos, como se conhece,
à corrupção e prepotência. Outros, aventureiros em busca de fortuna fácil numa terra de lei frouxa, não
mostravam preocupações éticas, menos ainda convicções religiosas. Abandonando o litoral ou o planalto de
Piratininga para se embrenharem por matas e rios desconhecidos, as bandeiras se montavam com homens
rudes, violentos, capazes das piores atrocidades para alcançar seus propósitos. Os jesuítas defendiam valores
opostos. Não havia como evitar o confronto. Não obstante revestirem sinais externos de temor de Deus e
amor à Igreja – e, solertemente ou com reta intenção, participarem dos ritos religiosos oficiados pelos padres
–, no fundo não eram mais que caçadores de fortuna. Fossem ouro e outros metais, fossem, por sua inexistên-
cia, índios preados para lucrativo comércio com os proprietários rurais de São Paulo e São Vicente. Desde que
os jesuítas os reuniram em aldeamentos, por vezes, os bandeirantes se valiam de artimanhas e disfarces para
alardear motivos de um ataque com aparência de “guerra justa”. Em outras ocasiões, nem se davam ao esforço
da simulação. Irrompiam abruptamente nas reduções, arrebatando com violência quantos conseguissem. Ate-
avam fogo às casas, perseguiam, feriam, matavam sem o menor sinal de remorso. Jogavam com o lucro, mola
mestra do comércio em todos os tempos. Vianna Moog faz, a respeito, interessante observação, concluindo
com pensamento que define o antagonismo das posições, bem assim a contribuição de cada um, bandeirante
e jesuíta, na construção do país em que hoje vivemos:

A luta entre o bandeirante e o jesuíta era inevitável, pois, ao mesmo tempo em que este
encarnava a Contra-Reforma, o desejo de retorno à unidade espiritual da Idade Média,
sob a égide do Papado, o bandeirante, na sua ânsia de riqueza e poder, consciente
ou inconscientemente, já era o grande instrumento do capitalismo moderno, irmão
gêmeo da Reforma, nascido do mesmo galho e da mesma gota de orvalho. Claro, os
jesuítas não se opunham ao bandeirante pelo mero prazer de hostilizá-lo, nem para
deter a procura de ouro e metais preciosos de entradas e bandeiras ou para interromper
deliberadamente os processos de transformação que haviam de converter em símbolo
56

A Igreja que brotou da mata


nacional a imagem que lhe correspondia. Não houve tal. O a que se opunham, isto sim,
era ao desenfreio da cobiça, às incursões predatórias de caça ao índio, a tudo aquilo, em
suma, que iria, por fim, possibilitar o capitalismo. [...]. Pode ser que o bandeirante haja
conquistado o sertão, dilatado as fronteiras do Império, mas a defesa da integridade
nacional e de sua estruturação moral e espiritual, essa foi obra indiscutível do jesuíta
(MOOG, 2000, p. 174).

Índios e jesuítas deste chão


Pelo pouco tempo de colonização ou, quem sabe, pelo desinteresse de tudo o que não resulta em ganho
palpável e imediato, a população do Norte do Paraná tem demonstrado sofrível conhecimento de sua história.
Quando muito, estende sua curiosidade até à época do aparecimento das cidades. Pouco demonstra saber da
evangelização desenvolvida pelos jesuítas. Para muita gente os fatos dessa fase histórica se desenrolaram lá pelos
lados de Foz do Iguaçu, do Paraguai e da Argentina de hoje. Ignora que pelo menos parte do território da
diocese de Maringá integrou o ambiente geográfico desse momento de heroísmo e derramamento de sangue
dos primeiros ocupantes destas terras. Muito perto de Maringá instalaram-se algumas das mais importantes
reduções jesuíticas. Comprovam-no evidências de respeito, acessíveis infelizmente, quase de modo exclusivo, a
publicações impressas, de vez que nem sítios nem artefatos arqueológicos mereceram das autoridades responsá-
veis o devido cuidado de preservação e estudo. Moradores mais antigos relatam cenas de tosco vandalismo leva-
das a efeito na área das reduções de Santo Inácio e de Loreto por ignorantes gananciosos de supostos tesouros
enterrados pelos Guarani ou pelos jesuítas. Foram assim destruídas peças, quiçá valiosas, se submetidas à análise
de estudiosos. O mesmo se diga do cemitério dos caboclos, próximo a Paiçandu, cidade vizinha de Maringá,
devastado por vândalos no correr do tempo. Explorada por gente da roça, interessada unicamente em plantar e
colher, nossa região não mereceu o cuidado de pessoas competentes para preservar informações esclarecedoras
sobre o passado deste pedaço do Brasil. Duas vezes em nossa história, primeiro com os bandeirantes, depois
com os colonizadores, fomos assolados pela tríplice praga da ambição, da crueldade e da ignorância.
Entre as ricas fontes de relatos da epopéia inaciana, daqueles que não temiam, até com risco de morte,
meter a mão na massa, sobressaem as cartas ânuas, longas cartas redigidas sistematicamente pelos superio-
res provinciais e enviadas ao superior geral da Companhia, estabelecido em Roma. De 1609 a 1617 foram
anuais, daí o nome. Depois, sobretudo por causa dos ataques de bandeirantes, as do Paraguai passaram
a bienais ou trienais. Escritas em latim ou castelhano, eram enviadas por duas vias marítimas diferentes,
para o caso de uma se perder em algum naufrágio, e forneciam um relato minucioso sobre os progressos
e as dificuldades do labor apostólico despendido na evangelização. Outros também escreveram a respeito,
entre os quais, para o que toca à nossa região, sobressai padre Antonio Ruiz de Montoya, testemunha e
protagonista da resistência aos bandeirantes na batalha final da Província Guairá, em 1629. É fonte assaz
conhecida e confiável, na qual se abastecem muitos historiadores. Nascido no Peru, em 1582, esse notável
missionário desempenhou os papéis de padre, lingüista, escritor, catequista, místico e historiador. Entre
outras obras, escreveu em Madri, no ano de 1639, o livro “Conquista Espiritual”, onde expõe o trabalho
apostólico dos jesuítas nas províncias do Paraguai (Paraná atual), Uruguai e Tape (S. Catarina e Rio Grande
do Sul). Em 294 páginas, na segunda edição brasileira, retrata a experiência das 13 reduções jesuíticas esta-
belecidas na área do nosso Estado. Sobre a renomada obra debruçou-se padre Jurandir Coronado Aguilar,
da diocese de Campo Mourão, para produzir a dissertação doutoral em que tentou “recuperar a história
da evangelização na Província Guairá, atual Estado do Paraná (sul do Brasil), durante o período de 1609-
1631 na obra histórica, lingüística, catequética e espiritual de um dos seus principais protagonistas”. O livro
de Aguilar, “Conquista Espiritual – A História da Evangelização na Província Guairá na obra de Antonio
Ruiz de Montoya, S. I. (1585-1652)”, mereceu o Prêmio Bellarmino 2001, da Universidade Gregoriana de
Roma. Sem favor, cabe-lhe ser relacionado como das mais vigorosas obras históricas a tratar da presença
evangelizadora da Igreja Católica na América Latina.
Em face de divergências entre historiadores – motivadas por mudança de nome, de extinção após curta
duração, de transferência para novo endereço – é prudente dar crédito a Montoya, Cavaso, Aguilar, Martins,
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Os 50 anos da Diocese de Maringá


Mapa 2 As 13 reduções jesuíticas do Guairá (arte: Francisco de Assis Pinheiro Dantas, Rosângela Rocha e Elton Osvaldo
Cunico sobre original de CARDOSO; WESTPHALEN, 1981, p. 35).

Fedalto e outros, que definem como treze o número de aldeamentos ou “reducciones”, onde os padres jesuí-
tas agruparam milhares de índios em nosso Estado, todas situadas às margens dos rios Paranapanema, Pirapó,
Ivaí, Tibagi e Piquiri.

Na Missão do Paraná os padres entraram em contato com o veterano missionário fran-


ciscano Luís Bolaños, grande conhecedor da língua e dos costumes guaranis. Visitaram
a redução de Santa Ana e deram início, em princípios de 1610, à redução de Santo
Inácio, a primeira dos jesuítas na Província do Paraguai. [...]. Ao passo que na missão
do Guairá, acompanhados pelo clérigo Rodrigo Ortíz de Melgarejo, depois de terem
dado assistência aos espanhóis de Ciudad Real e Vila Rica do Espírito Santo, os missio-
nários Cataldino e Mascetta encaminharam-se à distante região do rio Paranapanema
onde começaram o ministério entre os indígenas, a partir de junho de 1610. Os rios
foram as principais vias de comunicação com os indígenas e, à margem dos grandes
rios da Província Guairá, fundaram-se, entre os anos de 1610 a 1628, treze reduções,
conforme testificou o padre Ruiz de Montoya, sendo assim distribuídas: às margens
do rio Paranapanema as reduções de Nossa Senhora do Loreto do Pirapó (1610) e
Santo Inácio Miní (1612); às margens do rio Tibagi e seus afluentes as reduções de São
Francisco Xavier (1622), Nossa Senhora da Encarnação (1625), São José (1625) e São
Miguel (1627); às margens do rio Ivaí e seus afluentes as reduções de Sete Arcanjos
(1627), São Paulo (1627), Santo Antônio (1627), São Tomé (1628) e Jesus Maria
(1628); e às margens do rio Piquiri as reduções de São Pedro (1627) e Nossa Senhora
da Conceição (1627-1628) (AGUILAR, 2002, p. 216-217).

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A Igreja que brotou da mata


Ruínas de San Ignacio Mini, na província de Misiones, Argentina (DD, 2007).
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Os 50 anos da Diocese de Maringá


Despertam interesse para o propósito deste relato os dois importantes núcleos de povoamento conhe-
cidos como Ciudad Real (ou Ciudad del Guairá) e Vila Rica do Espírito Santo, assim como as duas reduções
jesuíticas de Loreto e de Santo Inácio, “as mais bem estruturadas, as mais ricas da região, tanto em termos
de instalações como de exploração agropecuária, safras e comércio de algodão manufaturado” (AGUILAR,
2002, p. 237).

Situam-se estas duas reduções légua e meia uma de outra, e a de Nossa Senhora de
Loreto tem 700 índios casados e a outra 850, na primeira há 450 meninos de escola e
na outra 500; não tinham igrejas e já as construíram muito amplas só com os trabalhos
do padre Antônio a de Nossa Senhora de Loreto, e a do padre José (Cataldino) a da
outra redução (Santo Inácio Mini) com que se atrairão mais índios e os já reduzidos
estão mais contentes (OÑATE, 1929, f. 1, tradução nossa).

Ciudad Real, ao que tudo indica, situava-se no território onde hoje se encrava o município de Terra
Roxa do Oeste. Vila Rica do Espírito Santo, transferida duas vezes após sua fundação, acabou por fixar-se em
área ocupada atualmente pelo município de Fênix. Santo Inácio estava localizada na área do atual município
desse nome, junto ao rio Paranapanema, hoje diocese de Apucarana. Nossa Senhora do Loreto erguia-se na
foz do rio Pirapó, onde este se lança no Paranapanema, no atual município de Itaguajé.
Conclui-se, pois, que esses espaços de forte presença humana, em que predominavam os Guarani, situ-
avam-se em áreas que se poderiam descrever como vizinhanças da atual arquidiocese de Maringá.
Sobre Loreto e Santo Inácio, refere, a partir de Córdova de Tucuman, o padre Nicolau Duran, superior
da província jesuítica do Paraguai, na carta ânua sobre os anos de 1626 e 1627:

Embarcamos no (rio) Paraná para a primeira nossa redução, de Nossa Senhora de Lo-
reto, que está a 60 léguas da cidade (del Guayrá). Uma légua antes de chegarmos
saíram do povoado para nos receber o padre José Cataldino, originário de Ancona,
numa balsa enfeitada de arcos e ramos. Logo se aproximaram outras balsas também
enfeitadas. Numas vinham os principais caciques do povoado, em outras, os cantores
com cornetas e charamelas. Todo aquele rio se coalhou de muitas canoas [...]. Visitado
este povoado, embarquei para a redução de S. Inácio, que dista umas 4 léguas, onde me
receberam com a mesma festa e aparato, e procuram esmerar-se por ser o povoado um
pouco maior [...]. Estes dois povoados (distantes não mais que 4 léguas um do outro)
têm mais de duas mil famílias. Todas, gente muito firme na fé e florescente de costumes
cristãos, sobre quem poderia falar muito (DURAN, 1628 apud CORTESÃO, 1951, p.
213-214, 221, tradução nossa).

Para os padrões de sua época e cultura, com conhecimento e domínio dos recursos locais, movendo-se
pelo interior da floresta, os índios não sofriam graves incômodos para vencer o espaço entre esses pontos e
as terras nas quais, mais tarde, viria a se implantar Maringá, geograficamente distante não mais que 250 km
de Terra Roxa do Oeste (Ciudad del Guairá), e 70 km de Fênix (Vila Rica do Espírito Santo). A foz do rio
Pirapó, entre os municípios de Itaguajé e Jardim Olinda (Loreto) situa-se a aproximadamente 100 km, igual
distância até Santo Inácio. Não representa nenhum exagero, então, concluir que índios, jesuítas e bandeiran-
tes cruzaram os espaços que ocupamos com nossas cidades e campos, que atravessamos a pé, de automóvel
ou de avião.

O caminho de Peabiru
Merece prudente credibilidade, ao que tudo indica, a afirmação de alguns para quem os Guarani, ocu-
pantes da Província do Paraguai, chegaram a manter relações comerciais e culturais com os Inca, no Peru, cujo
fabuloso império teve sua capital em Cuzco (ASSIS, 1980, p. 3). Com o conhecimento ainda do intercâmbio
que entre si mantinham índios e missionários, colonos e viajantes, em freqüentes e longos deslocamentos por
60

A Igreja que brotou da mata


todas as direções, não é difícil calcular a importância da legendária trilha pré-colombiana, que recebeu o nome
de “Caminho de Peabiru” (peabiru = caminho fofo). Segundo informações dos indígenas aos missionários,
tinha entrado por ali, abrindo caminho, muitíssimos anos antes, um santo homem a quem chamavam Pai Sumé
ou Zumé. O jesuíta Pedro Lozano, nascido em 1697, escreveu que na província do Paraguai (Paraná atual)

corre o caminho denominado pelos guaranis, Peabiru, e pelos espanhóis, de São


Tomé, que é aquele que trouxe o gloriosíssimo apóstolo por mais de 200 léguas, des-
de a capitania de São Vicente, no Brasil, e tem oito palmos de largura, em cujo espaço
somente cresce uma erva muito miúda que se distingue de todas as outras ao lado, que
pela fertilidade do solo tem meia vara de altura, e mesmo que seja queimada a palha,
ou se queimem os campos, nunca a erva desse dito caminho se eleva mais (BOND,
1996, p. 26).

Quase trinta anos antes do nascimento de Lozano, havia já Montoya publicado em Madri sua “Con-
quista Espiritual”, onde se lêem palavras idênticas. Difícil não supor tenha-a Lozano conhecido nem se ins-
pirado nela. Ou, por outros recursos, buscado a confirmação do que, em 1639, escrevera o conhecido mis-
sionário do Guairá:

Estranhando nós um acolhimento tão fora do comum, disseram-nos que, por tra-
dição antiqüíssima e recebida de seus antepassados, sustentavam que, quando São
Tomé – a quem comumente chamam ‘Pay Zumé’ na Província do Paraguai e ‘Pay
Tumé’ nas do Peru – fez a sua passagem por aquelas terras, disse-lhes estas palavras:
‘A doutrina que agora vos prego perdê-la-eis com o tempo. Mas, quando depois de mui-
tos tempos, vierem uns sacerdotes sucessores meus, que trouxerem cruzes como eu trago,
ouvirão os vossos descendentes esta (mesma) doutrina’. [...] Em todo o Brasil é fama
constante entre os moradores portugueses e entre os nativos que vivem na Terra
Firme (continente, por oposição a ilha) que o Santo Apóstolo começou a sua marcha
desde a ilha de Santos, situada no Sul, em que hoje se vêem rastos indicadores deste
princípio de caminho ou vereda, ou seja nas pegadas que o Santo Apóstolo deixou
impressas numa grande penha, localizada no final da praia, onde desembarcou em
frente da barra de São Vicente. Segundo quer o povo, elas se enxergam ainda hoje
menos de um quarto de légua da povoação. Eu não vi. Mas, 200 léguas desta costa
terra adentro, meus companheiros e eu vimos um caminho, que tem oito palmos de
largura, sendo que neste espaço nasce uma erva muito miúda. Cresce, porém, aos
dois lados dessa vereda uma erva que chega até à altura de quase meia vara. Esta
erva, embora de palha murchada e seca, queimando-se aqueles campos, sempre nasce
(renasce e cresce) do modo que está dito. Corre esse caminho por toda aquela terra
e, como me asseguraram alguns portugueses (habitantes do Brasil), avança sem inter-
rupção desde o Brasil. Comumente o chamam de ‘caminho de São Tomé’. Tivemos
nós o mesmo informe dos índios de nossa conquista espiritual (MONTOYA, 1997,
p. 99-100, grifo nosso).

A informação, de muitos conhecida e relatada, é que se tratava de uma rota que atravessava a América
do Sul, do Atlântico ao Pacífico, perfazendo extensão superior a 3.000 km. Ia de São Vicente, no litoral pau-
lista, até Cuzco, no Peru, daí descendo ao Oceano Pacífico. “Na direção oeste do outro lado do rio Paraná,
o caminho passava por Assunção do Paraguai e chegava às encostas dos Andes, fazendo conexão com a rede
viária dos incas” (ASSIS, 1980, p. 3). Não parece rigorosamente correto, em verdade, admitir um traçado
único; abria-se em ramificações, formando uma rede de trilhas, como galhos de uma árvore, o que autoriza
falar de “caminhos”. Uma das trilhas era o ramal de Campo Mourão, que cruzava a nossa região. Começava
em Itu (SP), seguia, paralelamente ao rio Tietê, até o rio do Peixe, descendo ao Paranapanema justamente
onde ele recebe o rio Pirapó, no extremo norte da arquidiocese de Maringá. Acompanhava a margem oeste
do Pirapó até o rio Ivaí, seguindo por este até Campo Mourão. Atravessava a atual arquidiocese de Maringá,
61

Os 50 anos da Diocese de Maringá


passando pelos municípios de Jardim Olinda, Paranapoema, Paranacity, Cruzeiro do Sul, Uniflor, Atalaia,
Mandaguaçu, Maringá e Itambé.
Foi, segundo as informações de que se dispõe, um caminho muito importante para a vida não só do
Brasil, mas da América do Sul. “Serviu para as andanças e até grandes migrações de povos indígenas e, mais
tarde, para a descoberta de riquezas, criação de missões religiosas, para o comércio, fundação de povoados e
cidades” (BOND, 1996, p. 19).
Não seria, portanto, despropositado concluir que a mata onde se ergueu Maringá e outras cidades da
região não só pode ter sido, mas seguramente foi cruzada de forma intensa por pés indígenas e brancos, séculos
antes da colonização implantada pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná. Nossos valentes pioneiros,
que derrubaram mato, plantaram café e construíram as cidades que nos enchem de orgulho, conservam seu
mérito que ninguém roubará, mas não foram, com absoluta certeza, os primeiros a pisar este solo, que nos
acostumamos a acreditar nunca antes palmilhado.
Ainda que se verificassem duríssimas privações, já se fazia presente naqueles tempos a ação da Igreja,
preocupada com a sua precípua missão de evangelizar. Homens de fé intensa e fortaleza de alma expunham a
vida (alguns chegaram a entregá-la) na tarefa de tornar conhecido o Evangelho. Toda esta área encontrava-se
sob jurisdição eclesiástica do bispo de Rio da Prata (Assunção), diocese criada em 1547, mas sujeita, desde o
início, a incomuns vicissitudes. Por total deficiência de clero diocesano, fora entregue, para efeitos de evange-
lização, aos cuidados dos padres da Companhia de Jesus. Informa Aguilar que, de 1609 a 1632, trabalharam
por estas bandas 23 missionários jesuítas, das mais diversas origens, o que não foi, de forma alguma, obstáculo
à unidade do trabalho, antes fortaleceu o espírito universalista inaciano pela partilha dos carismas e valores de
cada um. Atuaram na Província de Guairá missionários provenientes da Companhia de Jesus já estabelecida no
Brasil, em Castela, Aragão, Toledo, Andaluzia, Peru, Nápolis, Veneza, Bélgica e até no atual Paraguai, onde
se haviam recentemente instalado (AGUILAR, 2002, p. 29, 143).

A destruição da obra jesuítica


A despeito da grandiosidade do empreendimento e da nobreza dos obreiros, terminou de forma trágica
o projeto de implantar em terras do Novo Mundo uma original experiência de vida comunitária, erguida
junto aos índios Guarani, e moldada nos ensinamentos do Evangelho.
Ávidos de riquezas e desiludidos, desde muito, de encontrar ouro, os bandeirantes vinham dedicando-
se a aprisionar indígenas para vendê-los como escravos. Eram portugueses ambiciosos e muito determinados.
Decididos a enriquecer a qualquer custo, não temiam nenhum tipo de risco. Desde 1607, o sertanista Manuel
Preto já andara pelas matas do Guairá, havendo indícios de que, até 1612, os paulistas tivessem retirado daqui
uns 5000 índios. As reduções tão caras aos padres facilitavam sua tarefa. Em vez de persegui-los com dificul-
dade pelo emaranhado da selva, onde os nativos levavam incomparável vantagem, bastava tão somente invadir
os aldeamentos jesuíticos e aprisionar o maior número, antes que escapassem. E foi o que aconteceu. Em São
Vicente e São Paulo montou-se uma bandeira, entregue ao comando de Antonio Raposo Tavares. Aos 30
anos, era um homem robusto, ambicioso e duro de coração. Por sua valentia e liderança, foi escolhido para
dirigir uma companhia, enquanto outra, maior e mais importante, teve o comando de Manuel Preto que, ao
lado de Sebastião e de outros seus irmãos, desde tempos, comandava o grupo mais feroz e bem sucedido na
criminosa prática de capturar índios para vendê-los como escravos aos colonos do litoral. Conforme escreve
Mascetta, o mais temido dos caçadores de índios era justamente

Manuel Prieto (sic), grande fomentador, autor e cabeça de todas estas entradas e in-
cursões predatórias, que já por toda a sua vida tem vivido nelas, levando muitos outros
portugueses e tupis em sua companhia para trazer índios à força de armas. E agora,
ultimamente, tem falado que nelas quer morrer, logo que este ano (1629) voltou a S.
Paulo com Pedro Vaz de Barros, em cuja companhia tinha ido; logo sem descansar, se
foi outra vez com muitíssimos portugueses, mamelucos e tupis, a pretexto de povoar
o porto de S. Catarina, mas a intenção que leva é capturar e explorar índios. Para abo-
62

A Igreja que brotou da mata


nar este seu empreendimento leva consigo um sacerdote que, em razão de seu estado
religioso, tem obrigação de abominar estas entradas tão injustas (CORTESÃO, 1951,
p. 330).9

A invasão das reduções guairenhas obedeceu a uma determinação calculada e progressiva. Partindo de
São Paulo no início de agosto de 1628, à frente de 900 portugueses e 2200 índios escravizados em outros
tempos, já no dia 8 de setembro Raposo Tavares se avizinhava das reduções. Estava seguro de não encontrar
resistência dos espanhóis de Ciudad Real e de Vila Rica, interessados também eles em prear índios. Logo apri-
sionaram alguns, o que fez com que surgisse imediata reação da parte de padre Montoya. O valente missionário
arregimentou, “das reduções mais próximas, cerca de 1200 índios, e com os padres Cristóbal de Mendoza e
José Doménech, encaminharam-se a pedir com eficacia nuestros hijos que tenian captivos” (AGUILAR, 2002, p.
263). Os paulistas reagiram de forma violenta, mas os padres não se deixaram intimidar e ofereceram enérgica
resistência, conseguindo que fossem devolvidos os índios catecúmenos, isto é, os que, embora pagãos, estavam
em fase de preparação para receber o batismo. Os invasores entendiam, como muitos brancos na Europa, que
índios pagãos não se distinguiam de animais, merecendo, pois, a mesma sorte e podendo ser escravizados.
Após quatro meses de permanência na área, por ordem de Raposo Tavares, os bandeirantes invadiram, a 30 de
janeiro de 1629, a redução de Santo Antônio. Seguiu-se a invasão das reduções de Jesus Maria, no dia 20 de
março, e a de São Miguel, três dias depois. Apavoradas com a notícia da crueldade dos portugueses, as reduções
de Encarnação, São Paulo, Sete Arcanjos e São Tomé esvaziaram-se, com os índios fugindo em busca de segu-
rança nas matas. Não somente as reduções foram destruídas como também as vilas de Ciudad Real e Vila Rica
do Espírito Santo, se não arrasadas, foram repentinamente despovoadas, por conta do terror que a ferocidade
dos portugueses espalhou entre os espanhóis dessas localidades. Assim, além de devastar as reduções jesuíticas,
outra conseqüência do ataque foi a expulsão dos castelhanos para além do rio Paraná. Descontado o número de
índios vendidos em São Paulo, só nos mercados de escravos do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, de 1629
a 1632, foram postos à venda cerca de 60.000 cativos trazidos da região do Guairá.
As reduções de Loreto e Santo Inácio, localizadas a maior distância, não foram imediatamente atacadas.
Porém, destruídas as reduções e esvaziados os “pueblos” espanhóis, com razão, os padres temeram pela sua
ruína e pela morte ou aprisionamento dos índios. Decidiram empreender fuga para a região do baixo Paraná,
em áreas do Paraguai e Argentina de hoje, onde havia também aldeamentos, alguns bastante antigos, como o
de San Ignacio, o primeiro, fundando em 1609. Reuniram os sobreviventes salvos de outras reduções que, so-
mados aos locais, compunham uma multidão de 12.000 índios conversos. Não se apresentava isenta de riscos
a aventura de conduzir, correnteza abaixo, pelo Paranapanema e Paraná, tanta gente em fuga. À semelhança
do êxodo bíblico, a travessia, vista por Montoya como um espetáculo “horrendo e calamitoso” (AGUILAR,
2002, p. 279), oferecia a única solução possível na tentativa de preservar a vida e a liberdade daqueles a quem
sempre chamou filhos. Era forçoso rumar “até a mesopotâmia Paraná-Uruguai, onde os denodados apóstolos
iam reconstruir a formidável empresa da fé fracassada em Guaíra” (MARTINS, 1995a, p. 89). Os índios fabri-
caram, às pressas, setecentas jangadas, que se somaram às embarcações existentes, a fim de oferecer transporte
para todos. Em pouco tempo, as embarcações, “desde a foz do Pirapó à de Santo Inácio, foram lançadas ao
grande rio ponteado de cachoeiras, e 12.000 índios, guiados por sete padres, se confiaram àquelas águas em
rápido declive para o Rio Mar” (MARTINS, 1995a, p. 90). Quando, logo depois, aos aldeamentos de Loreto
e Santo Inácio chegaram os portugueses, encontrando-os vazios de moradores, arrasaram inteiramente o que
havia sido construído com tanta dedicação e abundante suor.
Enquanto isso, a caravana dos retirantes seguia em fuga, Paranapanema abaixo. Depois de vencerem os
problemas nele encontrados, o rio Paraná atirou-os nos braços de inesperado inimigo. Agora, eram os espa-
nhóis de Ciudad Real que, aproveitando a difícil travessia dos saltos das Sete Quedas, com troncos montaram
barricadas nas corredeiras, intentando aprisionar os retirantes:

9 Mais adiante (p. 334), informa que este sacerdote é ‘un fraile del Carmen’, um frade carmelita, portanto.
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Os 50 anos da Diocese de Maringá


Voltemos agora à nossa frota de balsas que, ao que parece, ia navegando segura de ini-
migos, deixados para trás. Veio-nos, contudo, então o aviso de que os espanhóis, mo-
radores de Guairá, estavam nos aguardando num espaço estreito e perigoso, próximo
do célebre Salto do Paraná, em cuja ribanceira eles haviam levantado uma fortaleza de
troncos, visando impedir-nos a passagem e cativar a nossa gente. Consistia o plano em
que, desde esse forte, ao passarem as embarcações, eles fossem abatendo os remeiros e
a gente capaz de se defender, debilitando assim a tropa em questão, e caíssem em cima
da presa. Vim a saber do caso e, duvidando que fosse verdade, deixei a gente para trás e
me adiantei eu mesmo numa embarcação ligeira. Descobri tratar-se da verdade, entrei
naquele palanque seguro de traição e me queixei com os meus motivos. Cerrando, po-
rém, a estes os ouvidos, puxaram das espadas e, endereçando cinco delas ao meu peito,
quiseram reter-me prisioneiro. Saí de sua roda, ajudado de uma sobre-roupa ou de um
sobretudo que vestia. Com isso voltei a meus companheiros, para nos consultarmos
sobre o caso, que a todos causou aflição e dor, vendo-se perseguidos e atalhados pela
má fortuna, que por todos os lados deles queria fazer a sua presa. Resolvemos que vol-
tassem dois padres àqueles homens, requerendo deles passagem livre para nós, pois eles
mesmos confessavam, no requerimento feito a nós, que não podiam ajudar-nos. Mais,
que a eles próprios os paulistas os haviam de expulsar de suas terras [...] (MONTOYA,
1997, p. 153-154).

Depois de penosa negociação em que os padres usaram os mais eloqüentes argumentos – além de, pos-
sivelmente, recearem bater-se com milhares de fugitivos desesperados, que nada mais tinham a perder –, os
colonos desistiram de fazer escravos aqueles infelizes (AGUILAR, 2002, p. 263ss). Obrigados a continuar a pé
a árdua retirada, por mais de trinta léguas de “caminhos aspérrimos”, caminharam por oito dias, voltando de
novo a construir canoas e balsas de taquara para o restante da viagem fluvial que, pela fragilidade das embar-
cações, conduziu muita gente à morte. “A fadiga, os obstáculos cada vez maiores e os mantimentos reduzidos
a quase nada, as doenças, os acidentes que se multiplicavam iam penetrando de desalento a expedição (MAR-
TINS, 1995a, p. 93).
Os outrora garbosos Guarani das florescentes reduções da região de Guairá, ora reduzidos a um bando
de miseráveis esfomeados, feridos e doentes, acompanhados de sete missionários, aportaram finalmente na
nova terra, dando início ao assentamento de Loreto e Santo Inácio Mini, assim denominado para distingui-lo
da redução mais antiga de Santo Inácio, fundada a 200km ao sul de Assunção, em 29 de setembro de 1609,
posteriormente chamada San Ignacio Guazú.

Um templo foi erigido, grande e belo, e a vida dos antigos cristãos de Loreto e Santo
Inácio, estimulada pelas povoações, exsurgiu de novo para prosseguir a obra que todas
as perseguições e todas as vicissitudes não puderam completamente destruir. Southey,
historiador protestante, diz: Tantas calamidades teriam desanimado homens estimulados
por motivos menos altos que o zelo religioso. Continuaram os jesuítas com os seus esforços,
com o mesmo ardor, mas infelizmente para um lado que os expunha a novos ataques
de seus vigilantes inimigos. E Guaíra renasceu no Tape do Rio Grande do Sul, mais
bela e mais formosa e florescente. De novo veio a ser perseguida e devastada, Contudo
nenhuma obra de paz e de amor foi mais bela do que essa que os jesuítas edificaram,
com alma e com coração, nos sertões do Novo Mundo (MARTINS, 1995a, p. 95,
grifo do autor).

Ruínas hoje incluídas em roteiros turísticos oferecem pálida lembrança do que foi a obra levada a cabo
nas áreas banhadas pelos rios Paraná e Uruguai. Podem ser observadas na Argentina, acompanhando a mar-
gem esquerda do rio Paraná, a 60 km de Posadas, na Província de Misiones. Na antiga Província de Tapes
(Rio Grande do Sul), à margem direita do rio Ibicuí, também se fixaram, em 1632, remanescentes dos perse-
guidos de Guairá, sob a condução dos padres Cristóbal de Mendoza e Pablo Benavides. Sempre pelo mesmo
motivo – ataques de bandeirantes vindos de São Paulo, no Brasil português – por duas vezes a redução inicial

64

A Igreja que brotou da mata


Mapa 3 Rota da fuga empreendida pelos jesuítas com
os índios ante o ataque dos bandeirantes
(AGUILAR, 2002, p. 485).

viu-se forçada a mudar de lugar. Finalmente, em 1687, fixou-se junto ao rio Ijuí. A seguir, foram-se instalando
outras que, com o tempo, passaram a constituir o conjunto conhecido como Sete Povos das Missões Orientais
do Uruguai.
Para pôr fim à infindável disputa por fronteiras, Portugal e Espanha assinaram, em 1750, o Tratado de
Madri. Por ele impunha-se a desocupação da área, reconhecida como pertencente a Portugal. Em contrapar-
tida, Portugal entregava à Espanha a Colônia Sacramento que fundara em 1680 no estuário do rio da Prata,
de frente para Buenos Aires (atual Colonia, no Uruguai). Ainda que descontentes com o acordo e tentando,
por todas as formas, evitar sua implementação, os jesuítas não viram outra saída que não admitir a retirada
dos indígenas aldeados, mais uma vez expulsos de seus domínios. Não obstante seus insistentes pedidos e as
medidas administrativas tomadas pelo governador de Buenos Aires, os índios negaram-se a abandonar seus
redutos. Não havia como superar o trauma provocado, na primeira metade do século XVII, pelas atrocidades
dos bandeirantes. Por isso, recusaram-se, de todas as formas, a concordar que suas terras passassem ao domí-
nio português. Ante a feroz resistência, Portugal decidiu, recebendo a anuência de Espanha, pelo emprego
das armas. Uniram-se contra a insurreição dos indígenas naquela que se chamou de “guerra guaranítica”,
concluída em 1756 com a total derrota dos silvícolas. Acabaram “arrasadas impiedosamente as reduções de
Santo Ângelo, São Borja, São João, São Lourenço, São Luís Gonzaga, São Miguel e São Nicolau (CAMAR-
GO, 2004, p. 120).

O crescimento dos povoados foi suspenso pelo conflito bélico denominado ‘guerra
guaranítica’ na qual os indígenas dos povoados enfrentaram as forças conjuntas de Es-
65

Os 50 anos da Diocese de Maringá


panha e de Portugal. Esse conflito tem sua origem no Tratado de Madri, subscrito em
1750 pelas duas potências coloniais, que fixou novos limites na região do rio da Prata.
Por ele a Espanha cedia a Portugal sete povoados missioneiros situados à outra margem
do Uruguai em troca da Colônia do Sacramento, fundada pelos portugueses em 1680.
Os índios guaranis não aceitaram que fossem segregados do conjunto dos 30 povoados
e passassem a depender do poder português que identificavam com seus tradicionais
inimigos, os bandeirantes. Apesar da valentia dos guaranis, a perícia dos soldados pro-
fissionais e a tecnologia do armamento dos exércitos espanhol e português acabaram
por derrotá-los com grande mortandade entre os índios. Contudo, o protesto levou a
Espanha a deixar sem efeito o Tratado, embora os portugueses se apoderassem desses
povoados em 1801, que ficaram definitivamente em suas possessões (GUTIERREZ,
1987, p. 42-44).

No atual município de São Miguel das Missões (RS), ainda se podem contemplar as ruínas da imponente
catedral, em cuja construção, de 1735 a 1745, trabalharam sem descanso cerca de cem índios Guarani. Restou
como pequena amostra a atestar o nível alcançado na educação implantada pelos jesuítas. Se o pensamento
antropológico do século XXI aí descobre dominação cultural, é oportuno recordar que a história se faz com
pessoas dependentes de critérios adotados em sua época.
Do admirável empreendimento erguido pelos jesuítas nada restou. Foi completa a destruição levada a
termo pelos bandeirantes, cantados em prosa e verso como heróis da conquista para Portugal de vasta área
do antigo território espanhol. A coincidência de nomes (Loreto e San Ignacio Míni) e a identidade de ações
traduzem a intenção dos missionários de marcar a continuidade no sul (Argentina, Paraguai, Rio Grande
do Sul, rio Uruguai) do original impulso evangelizador inaugurado em terras do Guairá, projeto nascido de
acendrado ardor apostólico, desgraçadamente vítima de tão lamentoso desfecho.
Subsiste entre historiadores algum que interprete a má vontade de portugueses e espanhóis contra os
jesuítas como expressão de velada senão franca oposição à concorrência que deles temiam vir a receber. Os
portugueses entendiam a obra missionária dos jesuítas não como atividade religiosa ou caritativa, mas como
ação de cunho político. Em vez de ação apostólica na busca de novos discípulos para a fé cristã, preferiam ver
as reduções como iniciativas particulares dos padres com vista à expansão do território espanhol de aquém-
mar. Ao lado de cupidez por riqueza, os bandeirantes teriam receado também a ameaça de um Estado jesuí-
ta, avesso às pretensões de Portugal sobre os territórios ocupados. Representaria grave obstáculo à expansão
portuguesa sobre as terras do interior. Assim se explicaria a crueldade brutal com que se empenharam na
invasão da província de Guairá, saqueando as reduções e destruindo tudo a fogo e espada. Aos espanhóis,
por outra parte, não era nem um pouco conveniente aceitar, no interior do reino de Castela, o surgimento
de um Estado jesuítico com autonomia para tornar-se um enclave. Por esse motivo não houve da parte das
autoridades locais grande empenho em defendê-los da perseguição dos bandeirantes, a tal ponto que os mis-
sionários não hesitaram em acusar como um dos maiores cúmplices do massacre o governador do Paraguai,
Luís de Céspedes Xeria.
Vila Rica do Espírito Santo foi invadida, pela primeira vez, em 1631 e, no ano seguinte, definitivamen-
te destruída. Em 1638 foi arrasada por completo a Ciudad Real de Guayrá.
As bandeiras conseguiram retirar dos Guarani aldeados pelos jesuítas as terras localizadas entre os rios
Paranapanema e Iguaçu. Mas a conseqüência mais séria foi forçá-los ao abandono de seu habitat original
para se refugiarem no Paraguai. As aldeias que deixaram desertas foram ocupadas, a partir do sul, por índios
que, no entender de Francisco S. Noelli e Lúcio T. Mota, originariamente devem ter precedido os Guarani
na região e agora, séculos depois, vieram a ocupá-las de volta, estendendo-se pelo vale do Tibagi e pelo
terceiro planalto do Paraná. Mas nem estes conseguiram manter o domínio das terras frente à cobiça dos
conquistadores brancos. Recolhidos em reservas, vítimas de penúria e abandono, teimam em sobreviver
alguns descendentes de Kaingang, de Xokleng e de um grupo Xetá, descoberto na região de Umuarama,
na década de 1950, com não mais de 18 pessoas (segundo estudiosos, talvez hoje componham número
mais expressivo).
66

A Igreja que brotou da mata


Peritos em arquitetura, escultura e pintura, os jesuítas construíram, no século XVII, uma civilização singular.
Na foto, ruínas da catedral de São Miguel, capital das missões no Rio Grande do Sul (DD, 2007).
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Os 50 anos da Diocese de Maringá


Como tristemente constatam nossos mestres da Universidade Estadual de Maringá, os Xokleng e
Kaingang

[...] tiveram contato com a Tradição Humaitá, que possivelmente foi sendo empurrada
para fora de seus territórios. A seguir chegaram os Guarani, que também empurraram
os Xokleng e os Kaingang para o centro-sul e o litoral, fixando-se nas bacias dos princi-
pais rios. Há uma aparente fase de “acomodação”, havendo certa estabilidade no tama-
nho das áreas ocupadas por um período que deve ultrapassar os mil anos, até a chegada
dos europeus. A partir de meados do século XVI, em razão de guerras, doenças e
migrações para fora das terras em conflito com os europeus, houve drástica diminuição
da população Guarani. Assim, a partir do século XVII, os Kaingang voltaram a se ex-
pandir no centro-sul do Estado para ocupar as terras que antes eram dominadas pelos
Guarani nas bacias do Tibagi, Piquiri e Ivaí. Os Xokleng reocuparam pequenas partes
do litoral, em locais de ocupação sazonal, indo e vindo das terras ao longo da encosta
da serra Geral. Finalmente, nos últimos 300 anos, com a agressiva ocupação branca do
atual território do Paraná, houve uma guerra de conquista, que foi primeiro empurran-
do os indígenas e depois foi retalhando e reduzindo suas terras para instalar as cidades
e “trazer progresso”. Atualmente, pouco mais de 9.015 Kaingang vivem no Paraná,
em 17 terras indígenas (85.235ha) controladas pela FUNAI, lutando para manter sua
autodeterminação, sua cultura e seus direitos humanos (NOELI; MOTA, 2000, p. 17).

A região oeste do Paraná, (como também a parte noroeste, a partir do rio Tibagi) seria deixada, pelo

Inauguração, em 8 de outubro de 2006, do abrigo indígena no Centro Cultural Indígena, criação da ASSINDI, em Maringá.
68

A Igreja que brotou da mata


espaço de quase dois séculos, à margem da civilização (MAACK, 1981, p. 37-38).10
Das reduções, outrora vibrantes de valores espirituais e éticos, fecundas em produção cultural, artística e
artesanal, não restaram mais que destroços; na maioria dos casos, nem isso. Com a total ignorância das novas
gerações por essa página da nossa história – portadora de tão abastecidas lições, mas relegada ao desinteresse
e esquecimento – há que se temer mais essa perda de um dos vigorosos períodos da história do nosso povo,
responsável por irradiar luz para o presente, clareando assim a esteira aberta do futuro.

10 Entidades e pessoas, um pouco por todo o Brasil, tentam despertar uma consciência cidadã com respeito à causa indígena. Na
ausência, porém, de uma política oficial corajosa, os resultados têm sido modestos, fato que só enobrece o trabalho de beneméritos
voluntários. Em Maringá ressalte-se o papel da ASSINDI – Associação Indigenista de Maringá, liderada por Darcy Dias de Souza
que, com apoios diversos (arquidiocese de Maringá, Universidade Estadual de Maringá, MECUM – Movimento Ecumênico de
Maringá, grupos voluntários de outros países...) vem desenvolvendo ações em benefício da etnia Kaingang e Guarani. No dia 8 de
outubro de 2006, na BR 376, km 170, foi inaugurado o abrigo indígena “Vênkan-nhã-fá-oy-nhandewa”.
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Os 50 anos da Diocese de Maringá


O que ninguém escreveu
Episódios pitorescos vividos por nossos padres
dos primeiros tempos, alguns já chamados à casa do Pai.

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Segundo ano do bispado. Saindo de casa, dom Jaime avista o prefeito
na esquina da Avenida Curitiba com a Rua Lopes Trovão. Apesar da dife-
rença de cultura e de estilo de vida, nutrem grande amizade e conversam
com freqüência. O asfalto está começando: o prefeito observa as máquinas
em ação. O bispo freia o carro para um rápido bate-papo. Depois observa:
“Américo, não seria mais certo fazer primeiro as galerias pluviais subterrâ-
neas para só depois asfaltar? Daqui a um tempo, será preciso quebrar tudo
para a canalização. Antes do asfalto deveriam vir as galerias pluviais”. E o
prefeito, político da velha guarda, matreiro: “Ah, dom Jaime, mandioca
grande debaixo da terra ninguém vê, não”.

Etiqueta
No começo, era difícil conseguir doméstica em condição de atender
à casa do bispo. Uma das primeiras, de origem polonesa, costumava aten-
der ao telefone gritando: “Casa do sô Jaime”. Em certa ocasião, dom Jaime
recebia o bispo de Londrina, dom Geraldo Fernandes. À hora do almoço,
recebeu o despachado aviso: “Sô Jaime, o almoço tá na mesa”. Outra, de
linguajar rebuscado, falava malço e galfo, em vez de “março” e “garfo”.
Em março de 1959, vieram as irmãs de Santo Antônio Maria Claret. A
residência episcopal virou um “brinco”. Madre Lícia de Luca, simpática
italiana, com o hábito imaculadamente branco, destoava da poeirenta Ma-
ringá de então. Esmerava-se para que tudo brilhasse na residência episco-
pal. A pobrezinha sentia verdadeiro pavor quando via chegar o vigário de
Mandaguaçu, frei Ambrósio de Bagnoli, que saltava do jipe carregando pó
até no céu da boca. Antes de cumprimentar o bispo, atacava a pia branca
da sala de estar (não havia lavabo), banhava as mãos e dava uma molhadela
na barba imensa. Depois, ante uma desconsolada madre Lícia, esfregava
no rosto a alvíssima toalha. Dá para imaginar o resultado. A pobre irmã
queria morrer.

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A Igreja que brotou da mata


Apagão
Em 1959, Jânio Quadros, candidato à presidência da República, per-
correndo o Paraná, vem a Maringá. Entre as lideranças da cidade, não
podia deixar de visitar o bispo. Amável, como todo político em campanha,
pergunta quais as necessidades mais sentidas em Maringá. Uma das pri-
meiras, apontada por dom Jaime, é a energia elétrica, bastante precária. Já
é noitinha e as luzes estão acesas. Na cozinha, uma irmã liga o liquidifica-
dor e a luz começa a piscar. “Está vendo do que estou falando?” esclarece
o bispo. Conhecido pelas decisões desconcertantes que tomava, Jânio não
foge do padrão. Ignorando a homenagem das lideranças políticas, o jantar
e o pernoite em Maringá previstos no programa, simplesmente deixa a
cidade e vai dormir em Londrina.

Bom gosto
Wilsinho é o filho mais velho de Vanda, a caçula das irmãs de dom
Jaime, casada com Wilson, na época, gerente de banco em São Joaquim
da Barra. Com Carlinhos e as irmãs Ana Helena e Ana Cláudia costumava
passar em Maringá as férias de fim de ano. Era também oportunidade de
“curtir” a vó, que sempre vinha nessa época e dava show como cozinheira
e quituteira. Tinha uma receita de doce-de-leite que ninguém imitava.
Não havia quem acertasse o ponto que ela dava. Um dia, após saborear
generosa porção da iguaria, num rasgo da sinceridade que só as crianças
mostram, Wilsinho não se conteve: “Ô, vó, vê se a senhora, antes de mor-
rer, ensina minha mãe a fazer esse doce”.

Olho vivo
Desde o início de 1960, como todo seminarista maior (cursos de Fi-
losofia e Teologia), o autor destas notas passou a usar batina. Em Curitiba
não tanto, mas em Maringá a batina preta funcionava como sauna portátil.
Nas férias, percorrendo a pé os seis quilômetros, do sítio onde morava até
Alto Paraná, atraía à beira da estrada todos os moradores, especialmente
moleques e cachorros, surpresos com o raro espetáculo de um “padrezi-
nho” de 19 anos ardendo sob um sol de estalar mamona. A convite de
dom Jaime, passava sempre com ele umas duas semanas nas férias de final
de ano. Era a ocasião de prestar alguma ajuda ao bispo, que não dispunha
sequer de office-boy. Numa manhã, madre Lícia bate à porta do seu quar-
to: “Dom Jaime está esperando no carro para a missa (que, naquele dia, ia
ser na capela Santa Cruz).” Salta, assustado, da cama. Perdera a hora. Atira
rápida mancheia d’água no rosto, alisa o cabelo e joga a batina sobre o pi-
jama. Ainda bem que ela cobre tudo; não há tempo para vestir-se de forma
conveniente. Chega à perua, já funcionando, as irmãs no banco traseiro
e a porta do carona aberta, à sua espera. Quando se acomoda no assento,
dom Jaime, ao volante, diz-lhe em voz baixa: “Arregace a calça do pijama,
que está aparecendo por baixo da batina”.

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Os 50 anos da Diocese de Maringá

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