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INCONFIDÊNCIA MINEIRA

O calendário brasileiro ganhou mais um feriado em 1890. O dia da morte de um dos


envolvidos no movimento que passou para a história com o pejorativo nome de
inconfidência mineira tornou-se uma data a ser celebrada: 21 de abril.

Foi durante o período republicano que se popularizou a imagem de Tiradentes como herói
nacional, mártir da Independência. Da mesma forma, a revolta que não chegou a eclodir
no final do século XVIII em Minas Gerais tornou-se epítome para movimentos de
independência. Após décadas de obscuridade, luzes intensas foram lançadas sobre o
movimento e suas personagens, que passaram por um processo de mitificação coerente
com a nova ideia de Brasil trazida pela República.

Cento e vinte anos depois, o movimento povoa o imaginário dos brasileiros ainda com
uma aura de nacionalismo primordial e heroico patriotismo, mas as tentativas de se
compreender melhor as ideias e motivações envolvidas e separar fatos e mitos ganham
espaço maior. Algumas questões recorrentes, complexas por sua própria natureza,
permanecem em aberto, e talvez assim continuem por muito tempo. Os chamados
inconfidentes constituíam um bloco ideológica e politicamente coeso? Qual foi o papel
desempenhado pelo iluminismo francês no movimento? De que substratos sócio-
econômicos provinham os revoltosos?

Apesar da destruição de boa parte do material pessoal dos inconfidentes, a documentação


oficial diretamente relacionada com o evento encontra-se no Arquivo Nacional,
concentrada nos fundos Inconfidência Mineira e Diversos Códices, neste último caso,
especificamente nos nove volumes do códice 5, que contém os autos do processo. Além
disso, a correspondência oficial pode ser encontrada nos fundos Secretaria de Estado do
Brasil e Negócios de Portugal, material que contribui para um maior entendimento da
organização da revolta, das ideias daqueles que a conceberam, e também do próprio
funcionamento da justiça colonial.
As Minas Gerais no século XVIII

“Minas Gerais, no transcurso do século dezoito, foi palco de uma verdadeira epopeia,
alimentada tanto pela cobiça e coragem dos participantes como pela riqueza em ouro ali
encontrada.” 1

Desde os anos dos grandes descobrimentos, Portugal sempre teve esperanças de encontrar
ouro e prata em suas colônias, esperanças mantidas vivas em especial quando da
descoberta de prata na atual Bolívia, então possessão espanhola. O sonho realiza-se na
virada do século XVII para o XVIII, em uma região pouco conhecida do colonizador
europeu, inóspita e de difícil acesso, recém desbravada por bandeirantes paulistas.

Como é comum ocorrer em áreas acometidas pela “febre do ouro”, logo o fluxo
migratório tornou-se intenso, apresentando uma diversidade característica. Indivíduos
oriundos tanto da metrópole quanto de outras partes da colônia acorriam para a região das
minas – onde atualmente se encontram as cidades de Mariana, Sabará, Ouro Preto, São
João Del Rei. Chegavam por conta própria, trazendo consigo pouco mais que a roupa do
corpo ou, em outros casos, cabedal a ser investido. Se inicialmente havia uma atmosfera
geral aberta e até acolhedora, com o esfriar do primeiro entusiasmo e a organização e
regulamentação mais firmes da atividade mineradora por parte da Coroa instalou-se uma
franca animosidade entre os primeiros mineradores paulistas e os luso-baianos, chamados
emboabas.

Muito se tem falado a respeito da sociedade mineradora, das suas diferenças em relação
a sociedade colonial presente em outros núcleos, contrapondo-se em especial às áreas de
monocultura extensiva. A emergência de uma teia de núcleos urbanos e as próprias
exigências e peculiaridades da atividade mineradora originaram não apenas uma forma
de sociabilidade diversa tanto das existentes nas grandes fazendas quanto das
apresentadas nos núcleos urbanos relativamente mais sofisticados – Salvador e Rio de
Janeiro -, como também contribuíram para um processo (ainda que incipiente, ainda que
jamais muito intenso) de integração entre algumas regiões da colônia. Distante dos portos
principais, localizada em área de difícil acesso e apresentando um crescimento
populacional rápido que demandava maior fluxo de mercadorias tanto de Portugal como
de outras partes da colônia, a região das minas tornou-se polo dinamizador de atividades
de pecuária nos sertões do norte e também nas regiões mais ao sul. Por conta das
dificuldades de transporte e acesso, algumas atividades complementares também se
desenvolveram na região mineradora, indo da agricultura para abastecimento local ao
artesanato e prestação de serviços.

Da avaliação de dados disponíveis, percebe-se também que a sociedade mineradora,


embora escravista, possuía melhor distribuição de riquezas do que no resto da colônia e
possibilidades maiores de ascensão social. Esta mobilidade alcançava até mesmo os
escravos, já que a cessão de uma parte do ouro extraído era uma recompensa comum ao
escravo, um incentivo para que ele se dedicasse mais intensamente a encontrar ouro.

Poucos anos depois do seu início, a atividade mineradora passou a se concentrar nas mãos
daqueles que conseguiram acumular mais cabedal: a concessão de lavras pela Coroa
relacionava-se diretamente com o número de escravos registrados pelo investidor, e a
concessão de uma segunda data dependia da exploração da primeira. Logo a metrópole
tratou de regulamentar a atividade e dela extrair o máximo que conseguisse: “conhecida
a potencialidade da área, a Coroa tratou de montar a estrutura administrativa e o
arcabouço legal com vistas a absorver parte do produto das minas. Implantou a máquina
arrecadadora dos quintos; criou uma complexa organização burocrática na qual se
confundiam funções executivas, legislativas e judiciárias, definiu regras para a concessão
de datas minerais e impôs inúmeros impostos e taxas sobre mercadorias e escravos
enviados às Gerais”.2 Esta estrutura administrativa, coletora de impostos, mostrar-se-ia
origem de aspirações, disputas e insubordinações que desaguariam em revoltas locais, em
especial, e caracteristicamente, a conjuração de 1789.

Crise da atividade mineradora

Durante seis décadas a riqueza das Minas Gerais atravessou o oceano Atlântico em
direção à Europa, às toneladas. A partir de 1760, contudo, os níveis da extração
começaram a decair paulatinamente. Durante alguns anos, manteve-se a esperança de que
o quadro fosse revertido, até porque muitos – fosse na metrópole, fosse na colônia –
acreditavam que o declínio se devesse ao contrabando, desde sempre endêmico na região
mineira.

No entanto, já por volta de 1770 percebia-se, na colônia, que a exploração do ouro havia
alcançado um limite, imposto pela própria forma de mineração, tecnologias utilizadas na
produção – inadequadas para alcançar veios subterrâneos – e pesquisa do campo. Mas
durante muito tempo a cegueira e o preconceito dos homens de Estado portugueses em
relação aos homens da terra fariam com que aqueles insistissem que apenas o contrabando
era responsável pela queda na arrecadação.

A forma de cobrança de impostos alterara-se no decorrer do século XVIII. De início era


uma forma de capitação, arrecadação por cabeça, ou seja, de acordo com o número de
escravos. Também a forma de cobrança do quinto da produção não era ponto pacífico:
cobrança por bateia, por arroba, calculada por média, a cada ano, sobre o ouro em pó,
sobre ouro das fundições... Alguns levantes tiveram lugar ainda no início do século XVIII,
resultado da indefinição da cobrança e principalmente da fragilidade da estrutura de
arrecadação de impostos e administração. Em 1720, a capitania de São Paulo foi
desmembrada, sendo criada a capitania das Minas Gerais, em consequência do levante de
Felipe dos Santos, resultado de um conflito entre atores políticos em disputa de poder e
riqueza em um cenário em que a soberania real e metropolitana não conseguia se impor
de forma unitária.

Os levantes que tiveram por palco a região das minas no século XVIII, via de regra,
possuíam um viés conservador, posto que a ideia de independência da metrópole e a
constituição de um novo Estado não se encontravam na agenda. Normalmente surgiam
como reações às mudanças no sistema de arrecadação de impostos. Tal sistema dependia
enormemente de representantes reais que intermediavam a coleta de impostos e seu envio
às autoridades metropolitanas.
A estrutura política e administrativa baseava-se no Regimento das Minas, que
determinava a existência de uma Intendência das Minas em cada vila próxima à área de
exploração de ouro. O intendente seria nomeado pelo rei e a ele estaria ligado diretamente.
As novas descobertas deveriam ser comunicadas à Intendência, para que esta
providenciasse a demarcação dos novos terrenos auríferos, distribuindo as datas entre os
mineradores.

Desde a descoberta do ouro, e ao longo do século dezoito, a região das Gerais mostrou-
se suscetível a levantes e revoltas: “se tomarmos a história das Minas desde seus
primórdios, e ao longo de todo o século XVIII, veremos um histórico, não desprezível,
de sedições e motins, com maior ou menor repercussão, nos quais os mineiros, ricos e
pobres, procuravam impor certos limites às políticas administrativas metropolitanas, com
especial ênfase no que respeita às novas políticas tributárias que não raro se
propunham”.3 Contudo, ao fim do século XVIII, alguns elementos novos iriam integrar
o antigo cenário que fazia da região um caldeirão em constante ebulição.

Primeiro, o concreto declínio da produção aurífera e a diversificação econômica da


região; segundo, a independência das colônias inglesas na América do Norte; terceiro, a
disseminação de ideais iluministas, que acabavam por levantar questões ligadas ao Estado
e à legitimidade dos governos e sua relação com os povos, questões que não se colocavam
até então.

A combinação destes elementos novos em um cenário de recorrentes disputas de poder


em meio a um universo que ainda não compreendia a distinção entre o público e o privado
faria da Conjuração Mineira um marco entre os movimentos autonomistas, e referencial
fundamental para a construção da imagem do Brasil como nação independente.

Os inconfidentes: algumas motivações

Uma das dificuldades de se compreender as intenções dos revoltosos e os ideais que mais
os influenciaram deve-se à ausência de documentação que mostre o que aqueles homens
pensavam e pretendiam. O movimento jamais eclodiu e, por isso, não há panfletos, livros,
documentos escritos por eles com o objetivo de disseminar suas ideias e nortear suas
ações. O que chegou até nós são processos, e também correspondência oficial entre
representantes do poder contra o qual lutavam os inconfidentes, e é a partir desta
documentação que podemos reconstituir os acontecimentos e delinear as intenções do
movimento.

Um dos fatores críticos que permitiu a aglutinação de indivíduos diferentes em torno do


projeto para um levante foi a crise pela qual passava a produção do ouro e,
especificamente, a incapacidade de a metrópole perceber a concreta decadência desta
produção, insistindo em cobrar impostos atrasados há anos. No entanto, a análise dos
envolvidos na conspiração e a existência de um cenário internacional conturbado levam
a crer em outros fatores a compor, juntamente com a questão fiscal, um quadro propício
para um levante que ultrapassaria os limites do mero interesse econômico imediato de
alguns magnatas endividados.

Após a década de 1760 percebe-se que a comarca de Rio das Mortes passa a apresentar
um crescimento demográfico substancial, em oposição à comarca de Vila Rica, que
começa a perder população. Isso se deve ao declínio da produção de ouro – estreitamente
relacionada à Vila Rica – e a diversificação e florescimento da agricultura, pecuária e até
mesmo, em certa medida, da nascente produção manufatureira em Rio das Mortes. Já em
1785, o ministro do Ultramar, Martinho de Melo e Castro – substituto de Pombal que
tendia para a aplicação estrita do mercantilismo como forma de explorar as colônias com
maior lucro possível -, mandava instruções a todos os governadores da América
portuguesa no sentido de reprimir as “perniciosas transgressões”4 representadas pela
instalação de manufaturas de tecido (dentre outras), sob pena de os colonos do Brasil
perceberem que Portugal de fato não se fazia necessário a sua sobrevivência.

A participação significativa de fazendeiros de Rio das Mortes na planejada sublevação


indica que o medo da derrama – embora esta fosse atingi-los também – não era o único
motor da conspiração que, na verdade, possuía raízes mais complexas do que uma
tradicional revolta contra impostos. A percepção da crise pela qual passava a região de
Minas, e também as relações desta com a metrópole, variavam, de certo modo, de acordo
com a inserção dos indivíduos na estrutura econômica e social. Assim, indivíduos
estabelecidos em Rio das Mortes, cujas atividades não se relacionavam apenas com o
ouro, enfrentavam não apenas a ameaça da cobrança de impostos atrasados, mas também
mais uma tentativa da metrópole de impedir a diversificação de atividades que vinha
caracterizando a região, abrindo-lhe espaço, inclusive, para uma autonomia maior em
relação a Portugal. Segundo João Pinto Furtado, “podemos confirmar que o levante não
se constituiria em simples reação à pobreza e à estagnação econômica que se sucederam
à crise da mineração .... O movimento parece, antes, uma reação às virtuais ameaças
mercantilistas à continuidade da expansão da riqueza e da diversificação, em especial na
comarca de Rio das Mortes, que concentra 58% dos indiciados”.5

Pode-se argumentar que apresentar uma quantificação dos indiciados no processo não
sustenta, por si só, a tese de que a motivação real da inconfidência residia mais na
expansão econômica ameaçada do que na questão da crise da mineração e na cobrança do
imposto. Não há necessariamente uma correlação direta entre a quantidade de indivíduos
e o seu peso no movimento. No entanto, este dado mostra-se fundamental para indicar o
nível de complexidade da inconfidência, cujos participantes apresentavam perfis e
interesses diferenciados, o que talvez explique em parte a falta de unidade do movimento,
bem como a fragilidade dos seus projetos.

Dentre os revoltosos, contamos fazendeiros, profissionais liberais, soldados (em especial


das tropas auxiliares, ou seja, localmente arregimentados e treinados), burocratas e
mineradores. Percebe-se também uma certa sobreposição de atividades, e uma quase
“divisão do trabalho” dentro da dinâmica do levante, de acordo com a ocupação do
indivíduo. Os mais abastados contribuíam financeiramente e os que possuíam força
pessoal e armamento também assim colaboravam; os militares, obviamente, com a
organização da luta armada; intelectuais e clérigos forneciam a base teórica, o arcabouço
jurídico; sem falar nos colaboradores de uma forma geral que contribuíam com sua
disposição e capacidade de arregimentação.
A novidade da inconfidência mineira reside na forma com que tradicionais questões se
articulavam com ideias novas, permitindo o surgimento de um horizonte possível que
incluía nação e independência – mesmo que tais ideais não encontrassem respaldo em
conceitos e projetos mais consistentes. O questionamento em relação às amarras impostas
pelo pacto colonial, se anteriormente remetia de forma mais direta a disputas por poder
dentro do próprio sistema de administração colonial, em fins do século XVIII já possuía
também um referencial externo que permitia pensar, ainda que de forma incipiente,
questões relativas a identidade e autonomia.

A independência das colônias inglesas da América do Norte representou um poderoso


exemplo para os rebeldes de Minas. Menos pelo modelo adotado – uma república baseada
na democracia representativa -, e mais por estabelecerem com firmeza o direito de
existirem como entidade independente de uma nação europeia. O exemplo dos “ingleses
americanos” acirrou ainda mais os ânimos daqueles que já liam alguns filósofos
iluministas, em especial os franceses, a discutir conceitos como soberania, governo justo,
despotismo, tirania. De fato, autores como Montesquieu e o abade Raynal, aparentemente
os mais lidos pelos inconfidentes, exerceram influência no tocante a organização política
imaginada no período posterior à emancipação. Quanto ao último, em especial, percebe-
se o entusiasmo com que os mineiros acolheram sua defesa do direito de rebelião e à
liberdade das nações americanas. Era um autor proibido em Portugal desde 1773, por seus
ataques contra o colonialismo tradicional dos países ibéricos, mas chegou relativamente
cedo ao Brasil, influenciando os inconfidentes mineiros em fins da década 1780, e
posteriormente os baianos de 1798.

A inconfidência que não chegou a eclodir contava, portanto, com uma diversidade de
interesses que iam além da decretação ou não da derrama. Afirma Maxwell, ainda em A
devassa da devassa: “Subjacente ao confronto dos grupos de interesse, havia o
antagonismo mais profundo entre uma sociedade que cada vez mais adquiria consciência
de si e autoconfiança (em um ambiente econômico estimulador de auto-suficiência) e a
metrópole interessada na conservação de mercados e no resguardo de um vital produtor
de pedras preciosas, ouro e receitas”. O que de forma alguma significa dizer que o
movimento possuía contornos populares, ou que estava disseminado entre a população de
um modo geral. De fato, seria altamente improvável que, caso tivesse ocorrido, a revolta
tivesse incorporado às suas lideranças aqueles que trabalhavam nos campos e minas das
Gerais, ou vagavam pelas ruas de Vila Rica. A adesão da população livre era antes uma
questão de tática de guerra. Bom exemplo desse elitismo é dado pela posição dos
sublevados em relação à escravidão, condenada inclusive por Raynal: à aparente exceção
de Inácio de Alvarenga e Carlos Correia Toledo, todos os participantes do movimento
defendiam a manutenção da escravidão, em maior ou menor medida. A despeito da
ampliação de horizontes representada pelos planos dos inconfidentes, a revolta ainda se
encontrava circunscrita aos homens de posse, posição ou cultura.

A revolta que nunca ocorreu

A chegada do visconde de Barbacena, em 1788, logo desfez as ilusões que porventura


houvessem nascido da partida de Cunha Meneses, governador anterior que ganhou
notoriedade por defender abertamente os interesses dos seus protegidos portugueses e por
perseguir, ainda com mais desenvoltura, os que se colocavam no caminho.

Barbacena chegava com ordens expressas de fazer valer o alvará de 1785 (que limitava a
produção nas colônias de bens para consumo interno), coibir os “abusos” e aplicar com
rigidez os preceitos da política econômica neomercantilista adotada por Lisboa. Em
termos específicos, isto significava encerrar determinados contratos e cobrar dos
contratadores o que era devido, reorganizar a estrutura administrativa e, principalmente,
cobrar impostos atrasados, enfatizando o alvará de 1750 que regulamentava a cobrança
do quinto sobre o ouro produzido, cobrança esta que há muito se encontrava atrasada, o
que permitia o lançamento da chamada derrama.

A infame derrama era um confisco generalizado que incidia sobre quem quer que tivesse
posses que pudessem ser confiscadas. De acordo com as regras vigentes, o povo de Minas
deveria pagar 100 arrobas anuais de ouro à Coroa (supostamente um cálculo médio), e
caso tal meta não fosse atingida, o acúmulo se daria até que o pagamento fosse
integralmente realizado. A quota deveria ser completada com todo o ouro encontrado nas
fundições e se mesmo assim não se chegasse à quantidade devida, o povo deveria
completar a diferença através da cobrança de um imposto per capita - a maldita derrama.
Apesar da severidade das determinações recebidas, Barbacena havia sido instruído pela
própria rainha a analisar primeiramente as condições reais da capitania e até que ponto
ela poderia suportar as exigências colocadas. Barbacena cumpriu todas as ordens com
firmeza: transmitiu as determinações de Lisboa, fez com que contratos fossem revistos,
implementou as medidas que limitariam uma produção local que pudesse colocar Minas
Gerais em posição autônoma e anunciou a derrama. Entretanto, e seguindo as instruções
da rainha, passou a observar de perto as condições da capitania, e o que viu acabou por
levá-lo a concluir, meses depois, aquilo que a ambição e o preconceito da metrópole
mascaravam: a produção de ouro se encontrava de fato em franca decadência e impor a
derrama seria jogar lenha em uma fogueira já acesa pela crise, pelas medidas que
limitavam a diversificação da produção e pela influência de ideias e acontecimentos
externos. O jovem governador percebeu que intensificar a opressão que se fazia presente
sobre os povos de Minas poderia ter consequências desastrosas em uma região que jamais
tendera para a paz e a obediência.

Barbacena não se enganava. Em 1788 muitos homens ilustres – pessoas que ocupavam
cargos administrativos, inclusive – já se organizavam para um levante. Até hoje, dois
séculos depois do ocorrido, os projetos e a organização concretos concebidos por tais
homens permanecem obscuros. Sabe-se que algumas tarefas foram distribuídas: o cônego
Luís Vieira e Cláudio Manoel da Costa, por exemplo, ocupar-se-iam do arcabouço
jurídico do futuro Estado; Domingos de Abreu apoiaria com suporte material, armas e
munição; Inácio de Alvarenga Peixoto, Oliveira Rolim e Carlos Correia Toledo
responsabilizaram-se por articulações com forças de apoio de outras capitanias; José
Álvares Maciel contribuiria na elaboração de leis e no planejamento estratégico; Joaquim
da Silva Xavier – Tiradentes – era um formidável propagandista, além de, juntamente
com Freire de Andrada, organizaria a ofensiva militar. Este grupo, acrescido de outros
indivíduos, reuniu-se algumas vezes durante o ano de 1788 e seus planos ganharam mais
firmeza à medida que se tornava plausível a implementação das ordens de Barbacena. De
uma coisa os revoltosos estavam certos: seria necessário um evento de proporções
catastróficas para mobilizar o grosso da população no levante que eles planejavam
conduzir. Tal evento já tinha nome e data marcada para ocorrer: a derrama de fevereiro
de 1789.
Qual seria de fato a pretensão dos inconfidentes? Até onde, geográfica e politicamente
falando, iam seus planos? Qual era, concretamente, a extensão da revolta?

Como já comentado, o grupo de inconfidentes não possuía uma unidade ideológica sólida.
Havia divergências significativas entre eles e a maioria não tinha muita clareza a respeito
do que fazer caso o movimento fosse vitorioso. Diziam pretender uma “república”. Mas
tal afirmação, há dois séculos, não carregava o mesmo significado que carrega hoje em
dia. Referências a governos republicanos podiam muito bem expressar o desejo de viver
sob um governo justo, em que o povo sentisse que os seus direitos naturais eram
respeitados, e que seu soberano fizesse o melhor pelo seu povo. No contexto das
discussões em torno de formas de governo, modelos de Estado, origens da soberania e
secularização dos negócios públicos, é plausível que os inconfidentes, referindo-se à
república não estivessem falando de uma república nos moldes de Rousseau (aliás ausente
das bibliotecas dos revoltosos) e muito menos na republica norte-americana, baseada na
democracia representativa. Muito possivelmente aspiravam a um governo justo, em que
a “flor da terra” assumisse o comando para melhor responder aos anseios do povo local.
A existência de uma constituição escrita, a limitar certos poderes do monarca e tornar o
poder municipal das câmaras maior também parece ter sido uma das suas preocupações
centrais.

O mesmo pode-se dizer da extensão do separatismo dos inconfidentes. Os seus planos


pareciam incluir outras capitanias, outras regiões: esperava-se – possivelmente de forma
pouco realista – o apoio do Rio de Janeiro, São Paulo e, talvez, Bahia. É certo que havia
um número de contatos estabelecidos com comerciantes do Rio de Janeiro, com algumas
famílias influentes de São Paulo. Contudo, jamais surgiu uma prova concreta de que tais
indivíduos estivessem de fato integrados à revolta que se planejava. Ao menos, não de
forma substancial.

Pouco realista também parece ser a ideia de haver um seguro e maciço apoio externo à
causa de Minas. As relatadas conversas com Thomas Jefferson, herói da independência
norte-americana, e com outros liberais europeus muito provavelmente mostraram-se
apenas e exatamente isso: conversas. Embora faça parte do mito criado em torno da
inconfidência, não há evidências concretas de que a sua abrangência tenha ido muito além
da própria região das minas.

O levante jamais ocorreu. E muito provavelmente, tal fato não se deve à denúncia
realizada por Joaquim Silvério dos Reis em meados de março de 1789. Na verdade, a
derrama anunciada para fevereiro não aconteceu, e no início de março do mesmo ano o
governador anunciou às câmaras municipais que a cobrança fora suspensa.

Àquela altura, a sucessão de eventos se tornou um pouco obscura. O relato impreciso do


governador de Minas Gerais acabou por gerar dúvidas e interpretações equivocadas. Tudo
indica que Barbacena não suspendeu a derrama por causa da denúncia, já que esta só
ocorreu em meados de março, quando já havia indícios concretos de que a cobrança não
ocorreria. Na verdade, existem indícios concretos também de que os próprios
inconfidentes, sabendo das intenções de Barbacena, se desmobilizaram no início de 1789,
por perceberem que sem um estopim o movimento não teria forças para levantar a
população de toda a região.

É provável, inclusive, que os denunciantes do movimento, o principal deles sendo


Silvério dos Reis, tenham optado por trair seus companheiros em resultado dessa
desmobilização. De fato, sem a decretação da derrama e consequente eclosão do
movimento, contratadores como Silvério dos Reis ver-se-iam em maus lençóis, já que,
com ou sem derrama, a sua dívida com a Coroa ainda seria cobrada, e sem a revolta
perdia-se a perspectiva de não mais ter que prestar contas à metrópole.

Após a denúncia de Silvério dos Reis – que esperava receber, em troca, o perdão das suas
vultosas dívidas – o governador passa a agir em segredo. Em vez de instaurar de imediato
um processo contra os acusados de conspirar contra Portugal, inicia investigações por
conta própria e utiliza a possível revolta como justificativa para a não-instauração da
derrama. Esta inversão não foi a única manipulação de informação que Barbacena faria,
pois o fato de ter adiado a derrama, e também a sua ação reticente no início de todo o
processo eram atitudes que demandavam uma justificativa convincente. Em carta escrita
ao vice-rei no final de março de 1789, Barbacena afirmava encontrar-se em posição
delicada, sem tropas suficientes para conter um possível movimento e receoso de que
qualquer movimento imprudente pudesse desencadear o motim. O governador de Minas
aconselhava discrição, que não se fizesse grande estardalhaço em torno do ocorrido e que
não pesasse sobre os acusados a suspeita de conspiração para levante, já que tal ato
poderia acirrar os ânimos na capitania e colocar o povo contra o governo.

A reação do vice-rei d. Luis de Vasconcelos e Sousa veio apenas depois que o próprio
Silvério dos Reis foi enviado ao Rio de Janeiro com a denúncia por escrito e
recomendações de Barbacena, que era seu sobrinho. E sua reação não foi a esperada pelo
governador de Minas: Silvério foi preso – por presumida participação no levante abortado
– e uma devassa instaurada, exatamente o que Barbacena buscava evitar.

A partir daí os inconfidentes vão caindo um a um, inclusive os que integravam um círculo
mais próximo ao de Barbacena, que passa a agir com rapidez suficiente para que sua
integridade e competência não fossem colocadas em questão. O inquérito em Minas,
contudo, ainda demorou quase um mês para ser instaurado, e os eventos ocorridos ainda
em Vila Rica – sendo a misteriosa morte de Cláudio Manoel da Costa na prisão, pouco
depois de interrogado, o mais notório deles – lançam mais dúvidas do que fornecem
resposta para questões ainda pendentes a respeito da inconfidência.

Degredo, morte. E a criação de um mártir

Depois de inicialmente negar sequer a existência de uma conspiração – como de resto


todos os inconfidentes fizeram – Tiradentes admite sua culpa e diz ser o único
responsável. Juntamente com outros onze companheiros recebeu a sentença de morte.
Contudo, somente Joaquim José da Silva Xavier não recebeu o indulto real que
transformava a pena de morte em degredo. O motivo para tal permanece um mistério,
embora se afirme que Tiradentes encontrava-se em posição socioeconômica mais frágil
em relação aos outros inconfidentes, e esta seria a razão para que a culpa recaísse sobre
ele. O que se pode afirmar com certeza é que o alferes tinha uma personalidade ousada,
demasiadamente loquaz – não sem razão, o maior dos propagandistas do movimento,
segundo seus próprios companheiros, chegando às raias da indiscrição – e de fato chamou
para si a responsabilidade pelo movimento, enquanto se achava preso.

As sentenças finais foram emitidas já no início dos anos de 1790. Tiradentes morreu na
forca, no Rio de Janeiro, em abril de 1792, e o seu nome, assim como todo o movimento
do qual fez parte permaneceriam em um limbo por décadas. Entretanto, a partir da
repressão aos revoltosos, iniciou-se, por parte de Portugal, um movimento no sentido de
relaxar algumas das observâncias estritas, rígidas, contra as quais os próprios
inconfidentes se colocavam. No fundo, foi uma resposta mesmo à crise estrutural por que
passava o colonialismo de então, cuja razão de ser já se esgotava. Quando d. Rodrigo de
Souza Coutinho, o conde de Linhares, foi nomeado ministro do Ultramar em 1796, a crise
do sistema colonial e a influência de ideias iluministas sobre estes encontravam-se no
centro das preocupações de d. João, já então à frente do governo: entre 1786 e 1794, Goa
(Índia), Minas Gerais e Rio de Janeiro testemunharam levantes desse tipo. A renovação
do gabinete realizada pelo príncipe regente é consequencia dessa cadeia de eventos.

Não é a toa que uma das primeiras medidas de d. Rodrigo foi realizar um levantamento
minucioso sobre a colônia portuguesa na América, o que possibilitou que elaborasse um
projeto para tornar mais rentável a exploração, sem que os colonos fossem por demais
oprimidos pela cobrança de taxas pouco razoáveis que potencializavam o risco de
levantes. Dom Rodrigo incentivou a agricultura, transferiu a Casa da Moeda do Rio de
Janeiro para Minas Gerais, propôs transformações na administração das minas e na
política fiscal, em uma tentativa de introduzir métodos mais técnicos de exploração e
administração das minas. Várias destas medidas faziam parte das aspirações dos
revoltosos, não apenas de Minas em 1789, mas de outros levantes subsequentes na colônia
chamada Brasil.

O fim do pacto colonial era apenas uma questão de tempo. Em 1882 os ativistas
republicanos fundaram o Clube Tiradentes. Embora à época da Independência, em 1822,
houvesse quem erguesse sua voz para reapresentar Silva Xavier e seus companheiros
como precursores da nação brasileira, a partir da regência o movimento de Minas passa a
ser visto por muitos historiadores com olhos ainda conservadores, e descrito como
separatista, a ameaçar a unidade nacional. Apenas com o crescimento do movimento
republicano a inconfidência se torna símbolo nacional, e seu único militante a morrer na
forca, mártir da Independência.

A partir de então se observa a crescente mitificação – ou, mistificação? – de Tiradentes,


da inconfidência, e até dos mineiros. A despeito das limitações inevitáveis, dados o tempo
e o local em que o levante foi planejado, o pioneirismo dos rebeldes mineiros mostrou-se
marco fundamental para a percepção da possibilidade mesma de uma existência que não
dependesse intrinsecamente de uma nação europeia. Ao final, tornaram-se símbolo de
ideais e de uma nação que não poderiam ter concebido, mas de todo modo, estabeleceram
uma série de marcos muito afinados com o nascente Brasil republicano: um movimento
contra a franca extorsão de riquezas por parte da Coroa; um herói em certa medida popular
a assumir a culpa pela sedição, que viria a morrer na forca no mesmo dia do
descobrimento do Brasil pelos portugueses; influência de ideias modernas em
contraponto a um suposto obscurantismo que sustentava a monarquia portuguesa.
Movimento elitista que jamais foi deflagrado, ideologicamente inconsistente e de alcance
geográfico impreciso, passou a representar o ideal republicano de nação brasileira, e seu
militante mais audaz, nosso mártir maior.

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