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AMILCAR CABRAL E AMADOU KOUROUMA: GERAÇÕES

INTELECTUAIS E LUTA ANTI-COLONIAL AFRICANA


Gustavo de Andrade Durão
Doutor em História Comparada (UFRJ)
Professor Adjunto na Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
gustavo.durao@srn.uespi.br

Resumo:

A presente apresentação busca recuperar parte dos textos de dois importantes autores
africanos: Amílcar Cabral (1924-1973) e Amadou Kourouma (1927-2003) traçando entre
eles uma comparação através de um eixo em comum: a descolonização. Com o aporte da
teoria pós-colonial é possível perceber como os textos desses dois autores são ilustração
exemplar dos contextos coloniais de luta pela liberdade política e cultural. Amílcar Cabral
(nascido guineense, mas envolvido com a cultura cabo-verdiana) foi uma figura central
nas revoluções africanas, pois seus escritos influenciam até hoje os pesquisadores
africanos. A nossa análise de parte da obra “Arma da Teoria” (1966) será importante para
captar um pouco de seu projeto de luta de libertação. Nascido na Costa do Marfim,
Amadou Kourouma vai ter uma trajetória de exílio e crítica ao sistema político
neocolonial escrevendo o romance de contestação “O Sol das Independências” (1968).
Assim, através da obra dos dois autores será possível estabelecer não só as críticas ao
domínio colonial, mas o esboço de um projeto para o continente africano, bem como suas
realidades nacionais.
Palavras-chave: colonização, intelectuais africanos, pós-colonial.

Introdução

Os textos escritos dos autores africanos são documentos relevantes para a


constituição de uma historiografia ainda limitada por divisões dos campos do saber. Vale

1
dizer que escritores proeminentes na era contemporânea para o campo da história como
Amílcar Cabral (1924-1973) e para as letras tal como Amadou Kourouma (1927-2003)
trazem impactos importantes para as análises críticas de um pensamento africano cada
vez mais fundamental de ser interpretado. O objetivo de demonstrar comparativamente
as obras de Amílcar Cabral (Arma da Teoria – 1966) e de Amadou Kourouma (Os sois
da independência – 1968) auxilia expandir a discussão sobre o pensamento social africano
e compreender de que modo as gerações intelectuais se inserem na perspectiva pós-
colonial.
Os dois autores em comparação possuem aspectos tanto semelhantes quanto
divergentes, tornando mais complexa a nossa narrativa nesse momento. Os campos de
atuação para a emancipação da África estão bem demarcados nos dois autores, mas os
projetos futuros para os países nos quais atuaram ainda precisam ser mais bem definidos.
Esse recorte busca abarcar a década de 1960, como um momento relevante para a Guiné
e para a Costa do Marfim. Amílcar Cabral e Amadou Kourouma buscando esclarecer
algumas das questões do contexto político e intelectual no caminho para os movimentos
de libertação nacional.
A primeira parte dessa análise visa demonstrar um pouco das trajetórias
anticoloniais dos autores corroborando uma rápida cronologia a fim de situar o leitor em
suas produções e os rumos destas no tempo e no espaço, de compreender a importância
de cada obra e como as relações entre a luta pela descolonização da África de expressão
francesa se relacionou com a de libertação lusófona, sobretudo nos projetos de
continuidade a que se define comumente como neocolonialismo.
A segunda parte dessa narrativa se concentra em desenvolver as noções de
libertação nacional/emancipação para Amílcar Cabral e Amadou Kourouma, levando em
consideração alguns aspectos teóricos presentes em suas produções. O papel de Amílcar
Cabral de valorizar a luta e a revolução na obtenção da liberdade auxiliaram na
constituição de uma identidade africana para Cabo Verde e Guiné (SANCHES, 2018,
p.13). Por outro lado, a “escrita do desencanto” de Amadou Kourouma demonstra as
fragilidades das estruturas nacionais, o nepotismo, a corrupção e da problemática do
Estado (pós)colonial na Costa do Marfim (CHEVRIER, 2003, p.139).

2
A compreensão desses escritores ainda está por ser feita e aqui vislumbra-se
compreender dificuldades, acertos, limites e avanços do escritor africano em âmbito pós-
colonial. Dessa forma, pretende-se um recorte pontual de conceitos-chaves para
compreender o papel desses autores e atores de suas próprias transformações sócio-
político-culturais na luta contra o colonialismo. Tanto Cabral quanto Kourouma podem
nos ajudar, nos orientar a “deslocalizar” e “descolonizar” nosso pensamento ocidental,
problematizando as percepções de cultura, emancipação e unidade, tanto na análise de
seu legado literário como levando-se em conta os seus comentadores (SANCHES, 2019,
p. 18).

Trajetórias e gerações intelectuais africanas

A construção dessa visão sobre a historiografia africanista ganha bases importantes


quando estabelecemos essa geração intelectual da qual esses escritores podem fazer parte.
Tendo o cuidado de não cometer uma restrição e classificar demasiadamente esses
autores, podemos afirmar a possibilidade de caracterização de Amílcar Cabral e Amadou
Kourouma enquanto artífices da escrita pós-colonial das décadas de 1960 e 1970
(SIRINELLI, 2008, p.133).
A realidade pós-colonial desses autores se torna mais complexa quando durante suas
trajetórias culminaram por estabelecer críticas de uma realidade colonial. Dito de outra
maneira, nós hoje estabelecemos que os caminhos intelectuais trilhados por eles nunca se
desligaram de uma realidade ainda essencialmente colonial (TOMÁS, 2018, p. 55). Por
isso, nesse pequeno ensaio é preciso pontuar o quanto toda análise feita por professores/
pesquisadores carregará as descrições de um ponto de vista atual contemporâneo. Desse
modo é fundamental uma breve contextualização das realidades desses dois articulistas.
O colonialismo português carrega o estigma de ter sido um dos últimos a deixar o
solo africano e por conta da grande empreitada no continente pode ter deixado marcas
indeléveis com a “colonização das mentes.” Um dos aspectos mais sérios da empresa
colonial portuguesa é essa necessidade se sobrepujar aos sujeitos de tal maneira que criou
uma construção ideológica que perdura reproduzindo a máxima de que os portugueses

3
reproduziram a colonização mais humana e pacífica do continente africano
(GUIMARÃES. 2016, p.146).
Nascido em 1921 na cidade de Bafata (Guiné-Bissau) Amílicar Cabral carregou uma
trajetória bastante extensa dentro dos movimentos de libertação dos países lusófonos.
Seus pais eram comerciantes em Cabo Verde e precisaram migrar devido às grandes secas
que assolavam o arquipélago. Localizado no Oceano Atlântico a quase 600 metros da
costa da África Ocidental e contém dez ilhas que cobrem uma vasta área do mar atlântico
(LOPES, 2012, p.8).
Amílcar Cabral foi fruto de uma geração cuja herança tinha sido buscar as bases
africanas do arquipélago de Cabo Verde e da Guiné Bissau. A aproximação em 1957 com
o Partido Comunista Português foi algo importante para sua orientação política e aos
poucos foi constituindo uma noção de seu projeto nacional, bem diferente da arquitetada
pela metrópole. Sendo assim,
viriam a criar o Centro de Estudos africanos em Lisboa, por iniciativa de
Amílcar Cabral, Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade e
procurariam utilizar forma tão ampla quanto possível, as potencialidades
culturais e políticas da Casa dos Estudantes do Império, antes de se verem
forçados a refugiar-se no estrangeiro (GUIMARÃES, 2016, p.153).

Em 1944, enquanto eclodia a Segunda Guerra Mundial Amílcar Cabral concluía seus
estudos em São Vicente (Cabo Verde). Após algumas tentativas conseguiu uma bolsa
para continuar seus estudos em Lisboa. Assim, o jovem Amílcar formou-se anos depois
como engenheiro agrônomo, realizando uma trajetória brilhante ele pode se inserir nos
meios intelectuais os quais criticavam a penetração colonial portuguesa. Cabral iniciou
seus estudos no Centro de Estudos Africanos em 1946 e quando em 1952 voltou para
Guiné-Bissau (apesar da censura promovida pela PIDE - Polícia Internacional
portuguesa) conseguiu um trabalho como engenheiro agrônomo em seu país natal
(LOPES, 2012, p.8-9).
Em 1956, Amílcar Cabral já se organizava em torno do partido que ajudou a fundar,
o PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde). Esse partido foi
influenciado pelo movimento revolucionário de Angola MPLA (Movimento Popular de
Libertação de Angola) de Agostinho Neto e Viriato da Cruz sendo possível afirmar que
ambos fizeram parte de uma tomada de consciência política e cultural da África lusófona.

4
Amadou Kourouma nasceu em 1927 e cumpriu uma trajetória comum aos integrantes
de uma determinada classe média na Costa do Marfim de Boundiali (norte da Costa do
Marfim). Entre 1935 e 1941 cursou a escola agrícola de sua cidade. Em 1943, Kourouma
fez os seus estudos secundários (ensino médio) ainda na Costa do Marfim (Bingerville) e
em 1947 fez os seus estudos técnicos em Bamako (Mali) e entrou em contato com a
complicada situação política da África Ocidental Francesa onde as greves já contestavam
a forma como a colonização francesa conduzia o conflito envolvendo os trabalhadores
nos seus territórios (OUÉDRAOGO; BARRY, 2013, p.12).
No seu retorno a Costa do Marfim é levado a participar de um ato contra o partido de
Houphoüet-Boigny, o R.D.A (Rassemblement Démocratique Africain) e ao se recusar a
tal posicionamento acaba indo para o seu segundo exílio. Entre 1951 e 1954, Kourouma
vai atuar forçadamente ao lado dos temidos “atiradores senegaleses” – força militar
colonial francesa - sendo enviado a Indochina (CARMO, 2007, p. 19).
Por ser um dos poucos africanos letrados no batalhão ele atingiu certo destaque e
conseguiu retornar para a França em 1954. Apesar de uma série de contratempos o escritor
marfinense conseguiu passar no concurso para o B.U.S. (Bureau Universitaire de
Statistique) e se estabeleceu mais uns anos em Nantes e depois em Lyon na França. Um
pouco antes da Costa do Marfim ganhar sua independência (em 1960), Kourouma retorna
para sua terra natal, muito em função da complicada situação política de seus amigos e
familiares (CARMO, 2007, p. 19).
Em termos literários Amadou Kourouma trouxe um gênero totalmente inovador para
a Costa do Marfim, sua terra natal. Mas sua escrita rompeu barreiras visto que envolveu
todo um contexto cultural preocupado com os preceitos pós-coloniais das décadas de
1960 a 1970. Seu primeiro romance, Les soleils des indépendances (O sol das
independências), retratava a realidade de vários países africanos que, mesmo tendo saído
de uma condição colonial, continuavam tendo uma dependência muito grande em relação
à antiga metrópole. Nesse sentido, suas obras foram muitas vezes um incômodo para o
presidente da Costa do Marfim (o proeminente político Félix Houphouët-Boigny) que o
perseguiu durante anos, obrigando-o a procurar o exílio em diversos países (ADHIKARI,
2015, p.6-7).

5
Em 1963, alguns anos após a independência da Costa do Marfim, Amadou
Kourouma saía de seu trabalho na Caisse de retraite (Serviço Previdenciário) e foi preso.
Ficou detido alguns dias nenhuma explicação, até que finalmente conseguiu apoio judicial
para sua soltura, sabendo que foi acusado de complô contra o presidente. Ele foi salvo
por conta de sua nacionalidade francesa, visto que era casado com uma francesa
(Christiane Michaillat) e assim o presidente Houphouët-Boigny não iria se indispor com
a França (OUÉDRAOGO et al, 2013, p. 13). Kourouma precisou sair da Costa do Marfim
refletindo o quanto a independência não representava em nada o fim da opressão do
homem contra seu semelhante, nesse contexto começava a brilhar “novo sol” para ele.
De acordo com Jean Ouédraogo e Saidou Barry (2013, p.14):
Após os desagravos com o poder, ele se encontra na Argélia onde trabalhou
como no ramo de seguros de 1964 a 1969 antes de retornar à França e assumir
suas funções em um grande banco local. Esse último o envia em uma
representação na Costa do Marfim em 1971 (tradução livre do autor). 1

Passando pelo enfrentamento de dois tipos distintos de dominação colonial


Amílcar Cabral necessitava de um caminho teórico para a participação popular na
revolução e Amadou Kourouma precisava enfrentar o despotismo de uma Costa Marfim
que apesar de independente ainda mantinha as estruturas autoritárias do Estado Colonial.
De um lado um ativista da revolução africana gerindo realidades nacionais distintas e de
outro um romancista preocupado com uma situação neocolonial capaz de romper com as
estruturas das tradições orais (ANDRINGA, 2018, p. 108; WATHIER, 1977, p 323).

O “Sol da Independência” e a “Arma da Teoria”: perspectivas pós-coloniais

Apesar de trajetórias e estilos de militância bastante diferentes Amadou


Kouoruma e Amílcar Cabral são expoentes africanos da luta de contestação ao

1
“Après ses démêlés avec le pouvoir, il se retrouve en Algérie où il travaille come assureur de 1964 à 1969
avant de rentrer en France et de prendre ses fonctions dans une grande banque de la place. Celle-ci l’envoie
dans as représentation em Côte d’Ivoire en 1971 (OUÉDRAOGO; BARRY, 2013, p.14).”

6
colonialismo. Objetivando perceber as especificidades de cada autor é preciso pontuar
primeiramente o quanto a perspectiva anticolonial expressa na literatura tornou-se uma
marca para compreendermos os vestígios dessa contenda. Tal como aponta Edward Said
(2005, p.339):
Visto que boa parte da literatura de resistência foi escrita no calor da
batalha, existe uma tendência compreensível de se concentrar em seu
tom categórico, combativo, muitas vezes estridente. Ou de enxergar
nela o esboço dos horrores do regime de Pol Pot.

Iniciando nossa análise da obra “O Sol da Independência” percebe-se até que


ponto identificamos os traços mais genuínos da crítica pós-colonial. Ela demonstra de
maneira aprofundada o quanto a independência não assegura novas condições para os
países africanos e aliado a isso, o quanto o romance pode caracterizar grande parte dessas
críticas e inquietações (JAUNET, 2001, p.100). A literatura de “resistência” tem assim
várias nuances e o interessante para o historiador contemporâneo é perceber como uns
discursos são recuperados e exaltados enquanto outros acabam entrando no ostracismo.
O papel desse escritor diante do neocolonialismo foi também de expressar sua
desesperança, seu desânimo e ver o sonho da independência se tornar um pesadelo
(OUÉDRAGO; BARRY, 2013, p.9).
O escritor marfinense teve parte de sua trajetória desvalorizada por muito tempo
e mesmo o seu livro mais conhecido “o sol das independências” (1968) só foi editado e
comercializado quase 10 anos depois de seu lançamento. Nesse sentido chamo atenção
para um aspecto subjetivo, mas nem por isso de somenos importância. Ele foi considerado
como um escritor de destaque porque produziu em uma época colonial em que os
indivíduos estavam sob extrema vigilância. A própria métrica deste escritor em se
destacar do francês (buscando o malinké) e de produzir nesse período faz de sua trajetória
algo fundamental para nossas análises (CAITUCOLI, 2004, p. 14).
Pode-se dizer compreender o quanto a “revolução” de Kourouma tenha provocado
um debate inédito após sua publicação, como nos demonstra Kesteloot (2011, p 249):
A recepção do Sol das Independências de Amadou Kourouma foi bem
diferente. O romancista marfinense tinha, no entanto irritado numerosos
puristas brancos e negros. Ele introduziu na língua francesa uma massa de

7
imagens, de expressões idiomáticas e até elementos de sintaxe da língua
malinké. 2

Muito embora não tenha se organizado em torno de um conjunto de escritores, a


ruptura de Amadou Kourouma ilustra bem o que Claude Caitucoli denominou
glotopolítico, vale dizer, a quebra com as normas da linguística em uma perspectiva
“politizada” (CAITUCOLI, 2004, p. 17). A obra de Kourouma surgia para inaugurar essa
literatura negro-africana levando em conta uma novidade preocupante: a perpetuação da
manutenção dos laços coloniais. A quebra dos padrões através da denúncia das estruturas
coloniais que continuavam na Costa do Marfim e em grande parte da África outrora
colonizada pela França.
Amadou Kourouma utilizou do personagem Fama para demonstrar como o herói
foi aquele que passou pelas várias fazes da colonização e sobreviveu a toda sorte de
opressão. No livro que foi o carro chefe de sua trajetória o autor postulou a subversão dos
caracteres políticos-culturais em nome da estruturação colonial europeia.
Diante de estruturas preexistentes já organizadas, com sociedades com uma
estrutura monárquica baseada no exercício do poder hereditário, os franceses
decidem manter as cheferias tradicionais, mas substituir os velhos chefes
analfabetos por intelectuais e universitários, provocando uma modernização e
a intelectualização dos poderes tradicionais (BACK; SANTOS, 2018, p.357).

Para a escrita “militante” de Kourouma devemos lembrar a sua preocupação com


os recortes da tradição malinké aonde acentuou de forma magistral o conflito entre
“tradição/modernidade.” Ele criticou a estrutura institucional montada pelo colonialismo
apontando o quanto a subserviência continuava a imperar entre os governantes, fazendo
alusão à submissão e aceitação tácita do presidente Boigny às demandas da França
(KESTELOOT, 2003, p250).
No dizer da crítica literária Lilyan Kesteloot (2003, p. 250): “A primazia da crítica
africanista sobre a produção literária vai prolongar-se muitos anos ainda e orientar-se de
cada vez mais na promoção da identidade cultural (tradução livre do autor).”
Como já foi dito, para o pensamento intelectual africano a década de 1960 foi um
período fértil pois trouxe a eclosão dos processos de libertação nacional influenciados por

2
"Toute autre fut l’accueil fait au Soleil des indépendances d’Ahmadou Kourouma. Le romancier ivorien
avait cependant hérissé nombre de puristes blancs et noirs. Il introduisait dans la langue française une masse
d’images, d’expression idiomatiques, voire des elements de syntaxe de la langue malinké (KESTELOOT,
2011, p.249)."

8
uma intelectualidade extremamente engajada tais como o próprio Amílcar Cabral,
Roberto Holden, Mário Pinto de Andrade entre outros (LOPES, 2013a, p.10-1). Esse
período foi fundamental para muitas personalidades africanas emergentes como Frantz
Fanon (Argélia), Kwame Nkrumah (Costa do Ouro), Thomas Sankara (Alto Volta),
Patrice Lumumba (Congo Belga) e Sékou Touré (Mali) nomes proeminente de ativistas
e intelectuais responsáveis por projetar um futuro para a África Negra (BOUKARI-
YABARA, 2014, p.168-9) .
A obra “Arma da Teoria” (1966) foi fruto da interlocução de Cabral na Primeira
Conferência Tri-continental do Povos da Ásia, África e América Latina, e nessa narrativa
há um sem-número de interpretações a fazer, contudo, será importante refletir no caráter
inovador de seu discurso (MANOEL; LANDI, 2019, p.127). Em um primeiro aspecto
Cabral vai pensar nas aproximações com a luta de classes e posteriormente vai analisar
brevemente o imperialismo.
A lucidez do revolucionário-teórico guineense transparece na provocação feita por
ele de que só se atingirá a Revolução Nacional compreendendo as realidades econômico-
social-cultural dos países, sem ignorar ainda os caracteres históricos (MANOEL; LANDI,
2019, p. 132). Nesse sentido, ele estava tentando unir a luta política dos guerrilheiros a
um projeto mais amplo de nação, o qual se via em plena constituição.

Como lembra o estudioso Carlos Lopes (2013b, p.5) sobre o problema da ausência
da ideologia: “Relativamente à ausência de ideologia, tratava-se de demonstrar a
necessidade de vontade própria, um debate muito contemporâneo, hoje usado com
roupagem nova: ‘ownership’, apropriação”. Ele se via como alguém responsável por unir
os ideais da teoria revolucionária à emancipação nacional, ou seja, sua experiência na
militância era apenas um aspecto de um contexto revolucionário muito maior.
Em termos práticos é possível perceber como desde a fundação do PAIGC, em
1956, o partido não possuía uma vertente radical, mas era fortemente inspirado pelo
marxismo e essa aproximação se intensifica de acordo com o passar do tempo (e da

9
ofensiva lusitana). Apesar de ter uma inspiração de libertação para os dois países a maior
dificuldade para Cabral e seus correligionários era reunir o proletariado, o que em se
tratando de Guiné e Cabo Verde era uma tarefa bastante difícil já que ambos os países
possuíam uma classe diminuída nesse sentido (DAVIDSON, 1969, p.24). Era
fundamental para a guerrilha trazer os camponeses para dentro do processo
revolucionário.
Sob uma perspectiva de denúncia ao Imperialismo encontra-se de mesmo modo
uma atuação exposta na experiência pessoal de Amílcar Cabral foi particular, pois ele já
possuía uma vertente de ação para minimizar os impactos da experiência colonial.
[...] a vigilância é indispensável: mantendo bem firmes os seus preconceitos
culturais de classe, os indivíduos desta categoria vêem em geral no movimento
de libertação o único processo válido para , servindo-se dos sacrifícios das
massas populares, conseguirem eliminar a repressão colonial sobre a sua
própria classe e restabelecerem assim o seu domínio público e cultural absoluto
sobre o povo (SANCHES, 2012, p.365).3

Evidentemente, como já foi ressaltado o tipo de militância de Amílcar Cabral era


mais fácil de detectarmos, pois ele conviveu com a violência perpetrada por Portugal bem
de perto e fez duras críticas a situação colonial. Ele foi um opositor contumaz das
imposições coloniais em Cabo Verde e Guiné Bissau e isso impulsionou sua atividade
política, trazendo à tona na história da África um pensador com poder de articulação que
englobava desde as lideranças da ONU até os trabalhadores agrícolas mais humildes
(LOPES, 2012, p. 21).
A grande conquista de Amílcar Cabral foi a sua atuação em três frentes:
articulação interna do Partido integrando os ideais de emancipação de Guiné e Cabo
Verde, a participação nos quadros agrícolas trabalhando pela integração dos trabalhadores
rurais na luta de libertação e na sua articulação internacional. Esse último ponto, pode ter
inclusive definido a vitória para a luta do PAIGC.
Praticando o que pregava, transformou a rivalidade interna numa frente
unida e convenceu os líderes do Senegal, da Guiné e outros Estados
regionais a reconhecer o PAIGC como o único representante legítimo
da Guiné e Cabo Verde e a desenvolver laços amigos de vizinhança
com o PAIGC (FOBAJONG, 2012, p.174).

3
O trecho destacado pela professora Manuela Sanches é o texto Libertação nacional e cultura do livro A
Arma da teoria: unidade e luta (1995).

10
O papel de protagonismo de Cabral nessa unidade pode ter sido inclusive a razão
do seu assassinato antes mesmo de ver Cabo Verde totalmente independente em 1973.
Seu anseio de ver um continente africano mais unido foi um dos fatores mais interessantes
de seu caminho, contudo, ainda é preciso aprofundar na sua teoria revolucionária para se
perceber o seu projeto envolvendo diversidades étnicas e caminhos para a concretização
da libertação nacional.
No âmbito do debate de Amílcar Cabral a cultura tinha uma forte influência e era
um dos campos de atuação do partido – perceber como os valores culturais fariam parte
da agenda política da Guiné e de Cabo Verde. Nesse sentido, a perspectiva pela
africanização da cultura foi um dos pontos fortes de sua produção intelectual.
A sensibilidade desses escritores foi perceber a carência do debate no âmbito
cultural e como através desse caminho era possível uma orientação comum para outros
militantes.
A resistência cultural do povo africano não foi destruída. Reprimida,
perseguida, traída por algumas categorias sociais comprometidas com o
colonialismo, a cultura africana, sobreviveu a todas as tempestades, se refugiou
nas cidades, florestas e no espírito das gerações vítimas do colonialismo
(BOUAMAMA, 2017, p. 266). 4

Ambos os pensadores africanos engajados na luta fosse por qual esfera iria passar
pelo desafio de ter uma contestação para realizar, percebendo o projeto de continuidade
das relações coloniais que buscavam “apagar” os traços das culturas tradicionais
africanas. Amílcar Cabral realizou uma série de falas nesse sentido, buscando
conscientizar sobre a existência de fatores étnicos únicos em parte da Guiné e Cabo Verde
5
(BOUAMAMA, 2017, p.261). Do mesmo modo Amadou Kourouma exaltou a
oralidade e a etnicidade malinké como traços presentes na população da Costa do Marfim.

Considerações finais

4
“La résistence culturelle du peuple africain n’a pas été détruite. Réprimée, persécutée, trahie par quelques
catégories sociales compromises avec le colonialisme, la culture africaine, a survécue à toutes les tempêtes,
réfugiée das les villages, dans les fôrets et dans l’esprit des générations victimes du colonialisme
(BOUAMAMA, 2017, p.266).”
5
A “arma da teoria” foi escrita em uma conferência realizada em Havana em que ele explicou a teoria e a
prática revolucionária, como visto mais adiante (BOUMAMA, 2017, p.261). Nesse mesmo encontro Cabral
teria proposto a revisão da teoria de marxista da luta de classes.

11
Contudo, a maior dificuldade presente nessa análise é inserir o escritor costa-
marfinense Amadou Kourouma nessa perspectiva pós-colonial, fundamentalmente
porque as suas análises estavam muito restritas ao campo literário. A obra “O sol das
Independências” (1968) abre caminho para se falar abertamente do sistema colonial, mas
traz ainda a “tradução” da importância línguas nativas e com isso capta magistralmente o
“griot”, sintetizando a oralidade para a literatura de expressão francesa. Nesse sentido, a
escrita de Kourouma é extremamente inovadora e reveladora da realidade africana, pois
expõe um debate “sobre a tradição que continua a suscitar vivas controvérsias”
(CHEVRIER, 2003, p130-1). 6
A “Arma da Teoria” (1966) também carrega as suas contradições por conta de não
ter atingido totalmente as especificidades cambo verdianas e guineenses. Não entrando
nas querelas envolvendo o seu assassinato, mas refletindo sobre o seu legado, é preciso
refletir e questionar se ele era realmente “um teórico pós-colonial agindo em uma situação
pós-colonial” como afirma António Tomás (2018, p.55). Contudo, a perspectiva crítica
ao imperialismo e as apropriações ao marxismo (enquanto teoria) foram as grandes armas
teóricas utilizadas em um momento tão conturbado como aquele de fins da década de
1960.
Certamente os estudos pós-coloniais e a História da África como um todo tiveram
forte influência do marxismo histórico, entretanto, a perspectiva analítica sobre a
produção dos intelectuais outrora colonizados nos conduz a interpretações contraditórias.
Não quer dizer que devemos aumentar as clivagens nos estudos sobre intelectuais
africanos, mas é preciso compreender que estudos étnico-raciais, historiografia e crítica
literária precisam ter seus limites bem definidos para não confundirem o leitor recém-
chegado nestes debates.

A crítica e a teoria pós-colonial exaltam o papel privilegiado de ambos os pensadores.


O que nos causa estranhamento é perceber o quanto os sujeitos por vezes pós-coloniais
ou colonizados são tidos como espécie de porta-vozes de sua realidade e ao mesmo tempo
“essencializado” pela crítica ainda eurocêntrica e ocidental.
Essa é particularmente o caso onde as oportunidades oferecidas pela classe,
riqueza e migração ao centro metropolitano dão ao sujeito diaspórico acesso

6
CHEVRIER, Jacques. La Littérature nègre. Paris: Armand Colin, 2003. “Il faut cependant reconnaître
que le débat autour de la tradition continue à susciter de vives controversies.” P. 131.

12
ao tipo de cultura favorecida pelo mercado ‘global’ que não está disponível ao
‘sujeito no seu lugar’ colonial (ASHCROFT et al., 2001, p.219). 7

Em outras palavras não se pode negligenciar a multiplicidade, as diversas


experiências e a grandiosidade de ser um escritor pós-colonial. Estar nesse “entre-lugar”
foi algo extremamente prejudicial, contudo, a trajetória dos intelectuais africanos
carregou igualmente muitas transformações, pois eles não faziam parte do povo, eles eram
parte de uma intelectualidade, algo totalmente novo para a época. Para a interpretação
desses pensadores é preciso saber que os precursores mais do que nunca, sofrem, por
estarem fora do lugar e por conta disso foram capazes de gerar profundas transformações
em suas respectivas realidades.
Destacar Cabral e Kourouma foi destacar o valor da arma em punho: a escrita, a
realidade cruel da violência colonial: o romance como resposta ao desencantamento do
mundo. O objetivo principal era dar a entender o quanto cada pensador pôde contribuir
para o futuro do continente africano e sugerir a necessidade da continuidade do estudo
das perspectivas anticoloniais. Ela ocorre cada vez que retomamos seus escritos, textos
que são uma “arma” da nossa “teoria” para sustentarmos o desejo de ver brilhar o “sol
das independências”: a justiça social e o fim das dominações “coloniais”.

Bibliografia:

ADHIKARI, Foora Das Gupta. Quando a prolixidade é arte: entendendo os romances


francófonos africanos de Ahmadou Kourouma. Bakhtiniana, São Paulo, n.10, v.1,
Jan./Abril. 2015. pp. 5-27.

AMZAT-BOUKAR. Africa Unite ! Une Histoire du panafricanisme. Paris: La


Découverte, 2014.

ANDRINGA, Diana. A dupla vitória de Amílcar Cabral. In: SANCHES, Manuela


Ribeiro (org.) Descolonizações – reler Amílcar Cabral, Césaire e Dubois. Lisboa:
Edições 70, 2018.

ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Gareth. The Empire Writes Back:
Theory and Practice in Post-Colonial Literatures. London: Routledge, 2003.

7
“This is particularly the case where opportunities offered by class, wealth and immigration to the
metropolitan centre, give the diasporic subject access to the sort of cultural favoured by the ‘global’
marketplace that is not available to the colonial ‘subject in place’(ASHCROFT et al, 2001, p.219).”

13
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