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AS INDEPENDÊNCIAS DOS ESTADOS AFRICANOS NO PRIMEIRO


ROMANCE DE AHMADOU KOUROUMA – PERSPECTIVAS PÓS-
COLONIAIS

Florentino Macário de Macedo Neto


Orientador: Drº Gustavo de Andrade Durão

Graduando em História pela na


Universidade Estadual do Piauí – UESPI,
Bolsista: Pibic: 2020-2021. E-mail:
florentinoneto95@hotmail.com

RESUMO
Essa comunicação tem como objetivo explorar algumas perspectivas do pensamento de
Ahmadou Kourouma no que concerne os primeiros anos de independência dos Estados
africanos, tendo em vista destacar representações feitas por esse autor acerca da Costa do
Marfim presentes em seu primeiro romance Les Soleils des Indépendances (O Sol das
Independências), bem como trazer reflexões acerca das críticas feitas por Kourouma aos
líderes políticos no contexto dos primeiros anos após as independências políticas, em que
busca-se discutir alguns aspectos do pensamento de um dos grandes intelectuais africanos
do século XX, a partir do campo de estudo pós-colonial.

Palavras-chave: Kourouma; Independências; Pós-colonial. História da África.

Considerações Iniciais
Essa comunicação tem como objetivo explorar algumas perspectivas do
pensamento de Ahmadou Kourouma no que concerne os primeiros anos de independência
dos Estados africanos, tendo em vista destacar representações feitas por esse autor acerca
da Costa do Marfim presentes em seu primeiro romance Les Soleils des Indépendances
2

(O Sol das Independências),(1998) bem como trazer reflexões acerca das críticas feitas
por Kourouma aos líderes políticos no contexto dos primeiros anos após as
independências políticas.
O sol das independências de Ahmadou Kourouma, é crítica contundente contra o
colonialismo francês, mas também aos Estados africanos “independentes” marcados por
uma endêmica crise, corrupção, abusos de poder e o partido único, o que para Ahmadou
Kourouma evidencia a ausência de democracia. O autor deixa clara a usurpação violenta
da dominação colonial ao mesmo tempo em que critica as Independências por não
possibilitarem uma reabilitação dos valores tradicionais e a preservação dos direitos dos
cidadãos. (CARMO, 2008, p. 18-36).
Ao analisar Ahmadou Kourouma em uma perspectiva pós-colonial, entende-se a
necessidade de uma melhor definição desse campo de estudos. Aborda-se aqui o pós-
colonial em uma perspectiva de crítica, “uma filosofia política” ou uma forma de análise
cultural que contesta a anteriormente maneira ocidental de ver as coisas (BURKE, 2015,
p. 201). No campo específico da História, uma abordagem que pretende desconstruir as
grandes narrativas, forjadas na lógica colonialista e imperialista, ou seja, desconstruir
formulações epistemológicas ocidentais que foram responsáveis por construir inúmeros
estereótipos acerca do continente africano, como lembra Valentim Yves Mundimbe no
livro A Invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento.
As representações feitas por Kourouma da sociedade marfinense e das diversas
categorias sociais que buscam ter seus direitos de cidadãos atendidos, demonstram as
preocupações desse intelectual em denunciar os abusos cometidos pelos novos dirigentes
em uma sociedade que começa a agenciar a sua existência com o advento da
independência: “Nesta acepção, o pós-colonial pressupõe uma nova visão da sociedade
que reflete sobre a sua própria condição periférica, intentando adaptar-se à lógica de
abertura de novos espaços, de que fala Kwame Anthony Appiah” (MATA, 2000, p, 1).
Neste sentido, essa abertura de novos espaços, característica do pós-colonial, apresenta
tanto a recusa das instituições e significações do colonialismo como das que saíram dos
regimes do pós-independência.
Algumas características que identificam Kourouma enquanto um autor pós-
colonial consiste em primeiro lugar em seu interesse em falar sobre os marginalizados.
3

O segundo ponto, é sua preocupação com o imperialismo cultural, ou seja, um encontro


e relações desiguais entre as culturas, o que resulta no entender do próprio Kourouma,
em uma dependência cultural. “graças a um poder econômico, político, militar,
tecnológico e intelectual a Europa encarna hoje um universal em torno de sua cultura, e
nada pode escapar totalmente ao império dessa cultura e aos conceitos em que se funda”
(KOUROUMA, 1992, p. 31).
Portanto, uma das grandes contribuições de Ahmadou Kourouma está na
possibilidade de análise das representações discursivas sobre a África construídas a
partir da visão de mundo de um intelectual africano, e, portanto, não o resultado de um
emaranhado de discursos formulados e consolidados no ocidente, e que segundo
Mundimbe (2013) trata-se de uma construção epistemológica eurocêntrica em que
caracteriza os elementos da cultura africana como primitivos e selvagens. Logo, suas
narrativas,demonstram a importância do pensamento social africano, e de novas
possibilidades epistemológicas que possam romper com inúmeros estereótipos e
representações generalizantes sobre o continente africano.

Trajetória de um escritor pós-colonial

Ahmadou Kourouma nasceu em Boundiali, norte da Costa do Marfim, em 1927,


proveniente da etnia Malinké. Passou sua infância em Togobala (Guiné Conacri) que,
mais tarde, viria a ser o vilarejo natal de Fama, personagem principal de Les Solleils des
indépendances. Em Togobala foi criado por um tio, sendo esse uma figura importante da
cultura africana e que cumpre uma função importante na Hierarquia social tradicional:
um mestre Caçador, que dispunha do poder das armas, mas também da magia, adquirido
com seu contato com a natureza (UNESCO, 1999, p. 49).
Em Togobala, Kourouma fez a iniciação nas tradições e cultura malinké a partir
dos ensinamentos do seu tio caçador. A cultura malinké, suas tradições, língua e forma
de pensar, permeiam toda Obra do autor (MARTINS, 2016, p. 54). Ahmadou Kourouma
argumenta que “meus personagens são malinkés, e quando um malinké fala segue toda
sua lógica, sua forma de abordar a realidade. Agora bem, essa visão não se adapta ao
francês: a sucessão das palavras e das ideias, em malinké é diferente” (KOUROUMA,
4

1999, p. 46). Os malinkés são um dos mais importantes grupos que compõem a etnia
mandiga, vivem sobretudo em Guiné Conacri, sudoeste do Mali, Sul do Senegal, Burkina
Faso e Noroeste da Costa do Marfim. Islamizados desde o século XI, formaram grandes
e poderosos impérios ao qual dominaram por seu número, suas armas e poder econômico
sendo considerados grandes guerreiros, mas também grandes comerciantes (CARMO,
2008, p. 34-35).
Ahmadou Kourouma cursou a Escola Primária de Bingerville (Costa do Marfim)
e a Escola Técnica Superior de Bamako (Mali) em 1947. Faltando pouco tempo para o
fim do ano escolar, Kourouma encabeça uma rebelião para denunciar as condições de
alimentação e das zeladoras do campus o que resultou em uma greve. Kourouma foi
expulso e retorna a Costa do Marfim sem receber o diploma. Ao retornar ele é recrutado
pelas forças armadas coloniais, mas a recusa em participar de um ato de repressão contra
o R.D.A. (Rassemblement Démocratique Africain)1 caracteriza a indisciplina que o
levaria a seu primeiro “exilio”2: depois é enviado à Indochima no corpo de guerrilheiros
senegaleses, onde vive de 1951 a 1954, exercendo a função de jornalista, pois era um dos
poucos soldados que sabia ler e escrever (MARTINS, 2016, p. 57-58).
Ao retornar de Indochima, Kourouma segue para a França onde é admitido no
curso de construção aeronáutica e naval, mas é informado de que na África não tinha
interesse nesse tipo de formação, Kourouma decide, então, fazer o concurso para Ciências
Atuariais. Formou-se em Nantes e depois, fixou em Lyon, durante esse período, milita
com outros estudantes africanos no seio da Féderation des Étudiantes d´Áfricaine Noire

1
O RDA um Partido de matriz pan-africanista que teve como líder Félix Houphuét Boigny, mas que em
virtude da repressão por parte da administração francesa acabou por se reduzir a seção guineense dirigida
por Sékou Touré. Na África Ocidental francesa AOF a política de repressão concentrou seus esforços na
Costa do Marfim bastião da RDA. Félix Houphuét Boigny, líder do partido democrático da Costa do
Marfim (PDCI seção RDA), criou em 1944 o sindicato Agrícola africano que representava a burguesia
agrícola marfinense, sendo que essa, estava em conflito com os colonos que haviam herdado do governo
Vichy importantes privilégios. A burguesia marfinense ao reivindicar o fim dos privilégios de caráter racista
e fim do trabalho forçado, acabavam por defender também os interesses das massas oprimidas pelo regime
colonial, criando-se assim, um importante movimento das massas do qual o PDCI constitui a expressão.
Em razão disso, a administração colonial francesa buscou diminuir o “peso” da Costa do marfim, assim,
em 1947 o território do Alto Volta que estava anexado a Costa do Marfim foi restaurado, e em 1948 com o
objetivo de “quebrar” a RDA, a administração colonial francesa adotou brutais e opressoras medidas,
incendiando comunidades e assassinando inúmeros camponeses (SURET-CANALLE e BOABEN, 2010,
p. 210-211)
2
A verdade é que Ahmadou Kourouma se recusou a pegar em armas contra os seus compatriotas africanos
e por isso foi perseguido politicamente.
5

em France (F.E.A.N.F) para que se acelere a emancipação na África, onde trabalhou


como atuário e se casou com uma francesa (CRISTINA; FALCÃO, 1988, p. 9).
Ahmadou Kourouma tinha intenções de permanecer na França e cursar sociologia,
no entanto, resolve voltar a Costa do Marfim poucos anos antes da independência política,
alcançada em 1960, por seu compromisso moral em relação a situação política que vivia
o seu país. Mas a independência não representou o que ele esperava. Em 1963, Kourouma
é preso, acusado de ter participado de um complô contra o presidente Félix Houphouét-
Boigny3. O presidente por temer que a esposa de Kourouma alertasse as autoridades
francesas e o causasse problemas diplomáticos resolve soltá-lo (CARMO, 2007, p. 19-
20).
Quando liberado, Kourouma passa sete meses em Abidjan (Costa do Marfim) sem
emprego, pois as empresas foram proibidas de contratá-lo devido ao seu envolvimento
político e sua suposta participação no complô (CARMO, 2007, p. 19-20). Ele retorna a
Costa do Marfim em 1960 porque acreditava no futuro do país, no entanto, as
independências representaram uma desilusão. “A independência é alcançada, mas a
situação política do país continua extremamente delicada, agora reina no Estado livre o
partido único” (MARTINS, 2016, p. 58).
Aos 36 anos, Ahmadou Kourouma decide tomar a caneta e dar seu testemunho.
Sua ideia inicial era escrever sobre a forma de um ensaio tudo o que havia acontecido em
Abidjan (Costa do Marfim) quando ficou preso juntamente com outros amigos. Mas o
ensaio não o convencia, ele não gostava do texto, não acreditava nos personagens, assim,
Kourouma entendeu, que deveria escrever ficção. Em sete meses redigiu seu primeiro
romance, mas demorou cinco anos para conseguir editá-lo (MARTINS, 2016, p. 59).
Portanto, foi neste contexto de repressão que ele começou a escrever Les Soleils des
Indépendances, concebido inicialmente para denunciar os abusos de poder, a corrupção
e o partido único, encarnados no regime de Félix Houphouét Boigny visto por Kourouma
como um ditador (CARMO, 2008, p. 19-20).

3
O proeminente Félix Houphouét Boigny, foi médico, líder do Partido Democrático da Costa do Marfim
(PDCI seção do RDA) e presidente da Costa do Marfim desde a independência em 1960 até 1993 ano de
sua morte
6

A obra de Ahmadou Kourouma, O sol das Independências uma rica sátira


política e crítica contundente contra o colonialismo e seus males que permaneceram após
as independências, não foi aceito em um primeiro momento pelas editoras francesas por
não seguir as normas do francês clássico. Mas, após receber um prêmio literário do
Québec, em 1968, e publicar o livro pela Presses de l’Université de Montréal, (Canadá)
a editora francesa Éditions du Seuil compra, os direitos de edição do livro em 1970
(CARMO, 2007). Em entrevista a René Lefort e Mauro Rosi (1999) quando perguntado
o porquê da dificuldade de encontrar um editor, Kourouma responde:

A rejeição obedeceu a uma razão dupla. Havia, por outro lado, alguma
originalidade no meu estilo, devido ao uso especial da língua francesa, o que
foi desconcertante para certos leitores. Por outro lado, a concepção do romance
não foi muito apreciada. No modo certo, ele concebeu o desenvolvimento da
trama como o escritor americano John Dos Passos: depois da ficção, concluo
com uma parte que poderia ser chamada de "documental". Em les Soleils des
indépendances, após a história do protagonista, Fama, relato os acontecimentos
sociais que se desenvolveram em Costa do Marfim na época da Guerra Fria.
Dizia coisas...delicadas. A tal ponto que algumas editoras africanas vieram
devolver o manuscrito acompanhado de comentários altamente críticos, quase
insultantes... (KOUROUMA, 1999, P. 46).

Portanto, percebe-se que a narrativa de Kourouma representou um incomodo tanto


para a ex metrópole a França como em seu país (Costa do Marfim). O Sol das
Independências ocupa lugar de destaque na literatura pós-colonial, por sua crítica
contundente à colonização francesa e, depois disso, aos Estados “Independentes” na
África, em especial da Costa do Marfim, pois, “os sóis das independências” não
trouxeram as melhorias desejadas. Esperavam-se dos novos “donos do poder”, ou seja, as
elites africanas, uma maior atenção com as questões sociais e econômicas, o que não veio
a acontecer, daí intelectuais como Kourouma, começam a perceber que o novo sistema
político africano carrega uma herança do colonialismo (BAMPOKY, 2018).
Kourouma deixa a Costa do Marfim e vive na Argélia até 1969. Em 1970 regressa
pela segunda vez a Costa do Marfim, ficando por pouco tempo como da primeira vez.
Sua obra de teatro Le diseur de vérite (Eu que disse a verdade), publicada em 1974, foi
considerada pelo governo de Boigny como “subversiva”, então, novamente é obrigado a
deixar o país, passou a viver em Camarões, onde permaneceu por dez anos, logo depois
vai para o Togo, onde vive até 1993, e prossegue sua carreira profissional nas empresas
privadas de seguros (UNESCO, 1999, p, 49)
7

Ahmadou Kourouma retrata em O Sol das Independências a grande decepção com


as independências africanas, segundo ele, essa foi a primeira obra que destaca que a
África tem responsabilidade em “suas desgraças”, e que a atração pela riqueza e o poder
havia sido superior a qualquer projeto de desenvolvimento dos países, e os intelectuais
(assim como os demais privilegiados) só queriam encher os bolsos. Kourouma com seu
humor intrínseco, dispara “só não cedi a tentação, talvez porque não tive a possibilidade”
(KOUROUMA, 1999, p. 49).
Um pouco mais de vinte anos depois de escrever Les Soleils des Indépendances,
o romancista costamarfinense escreve seu segundo romance Monnè, outrages et défis em
1990, em que o autor destaca a degradação causada pela colonização e os conflitos
interculturais. Kourouma em entrevista para René Lefort e Mauro Rosi (1999), argumenta
que ao escrever Monnè, outrages et défis procurou fazer uma crítica aos escritores
franceses e autores de outros países que segundo ele dedicaram parte de sua produção em
análises dos anos de ocupação e opressão sofrida por seus países durante a Segunda
Guerra Mundial, mas pouco escreveram ou negligenciaram o sofrimento e as sequelas
deixadas pelos quase cem anos de ocupação da África. “Em meu segundo romance,
Monnè, outrages et défis (Monnè, ultrajes e desafios), publicado em 1990, quis
justamente que entendessem que nós também temos sofrido muito” (KOUROUMA,
1999, p. 47).
Ahmadou Kourouma reivindica que os africanos possam tomar as “rédeas” da
história e falar sobre o período de colonização, analisar suas sequelas e seus efeitos. O
sofrimento também é tema de Attendant le vote des bêtes sauvagens (A espera do voto
das bestas selvagens) centrado na “tragédia” da Guerra Fria em África, em que “as
potencias estrangeiras é quem mandam e dirigem, elegem os ditadores que lhes convém,
as que enviam suas tropas quando em alguma parte surgia uma resistência”
(KOUROUMA, 1999, p. 47). Nesta Obra Kourouma mostra seu engajamento político ao
contestar e condenar os regimes ditatoriais em que foram submetidos os africanos após
as independências e durante a Guerra Fria, apresentando a trajetória de Koyaga, um
ditador que fica no poder graças à corrupção e a tirania (BACK e SANTOS, 2018, p,
352).
8

Ahmadou Kourouma morreu 2003 em Lyon na França, deixando um romance


inacabado, que foi publicado posteriormente, em 2004 pela editora Seuil. Escreveu livros
infantis em que narra a história e cultura africana, e recebeu importantes prêmios: Prix de
la francophonie du Québec, por escrever Les soleils des indépendances; o Prix du Livre
Inter, por En attendant le vote des bêtes sauvages; Recebeu ainda: Prix Amerigo-
Vespucci, Prix Renaudot, Prix Goncourt des lycéens, por Allah n’est pas oblige; e o
Grand Prix Giono pelo conjunto da obra. Ahmadou Kourouma foi um dos grandes
expoentes da literatura africana do século XX. O costamarfinense, que tem em Les Solleils
des Independances o seu romance mais conhecido, foi um dos símbolos de uma corrente
literária conhecida no contexto das independências das colônias africanas como literatura
de contestação. (MARTINS, 2016, p.16-22),

Os Estados Independentes na África

Segundo Dele Ogunmola e Isiaka Alani badmus (2004) a crise étnica e os


conflitos de identidades que marcaram o periodo pós independencia na Costa do Marfim,
tem suas origens no periodo colonial. Um dos fatores apontado pelos autores, diz
respeito ao fato da administração colonial francesa por pragmatismo econômico e
administrativo, ter anexado o sudoeste do Alto Volta, hoje Burkina Faso ao território da
Costa do Marfim em 1932, e 15 anos mais tarde (1947) no contexto de pós Segunda
Guerra Mundial e do crescimento dos movimentos nacionalistas e anticolonialistas, com
o objetivo de enfraquecer o (PDCI seção do RDA) desanexou o Alto Volta da Costa do
Marfim, mas o sudoeste dessa região foi repartido entre as colonias do Niger, o Sudão
Françês (hoje Mali) e a própria Costa do Marfim (p. 397).
Por conta dessas transferências de territórios coloniais, aconteciam movimentos
de diversos grupos étnicos de um território para outro. Como não havia fronteiras muito
bem definidas, não é difícil imaginar os conflitos por esses limites territoriais, “ Essa
confusão nos contornos das configurações geográficas levou os vários grupos étnicos do
Alto Volta, do Sudão Francês e do norte da Costa do Marfim a se sobreporem aos
Estados pós-coloniais” (OGUNMOLA e BADMUS, 2004, p.397). Os colonizadores
dividiram de forma arbitrária os territórios africanos sem levar em consideração as
configurações históricas e a grande diversidade cultural, étnica e linguística do período
9

pré-colonial.
Esse mosaico geográfico foi deixado como herança dos imperialistas para os
lideres nacionalistas, sendo essas fronteiras desenhadas pelos colonizadores,
confirmadas e reconhecida pela Organização da Unidade Africana (OUA), hoje Unidade
africana (UA). Ahmadou Kourouma em O Sol das Independências procura situar essas
discussão acerca da etnicidade, atreladas ao que ele caracteriza enquanto uma politica
paternalista e clientelista adotada por Houphuét Boigny 4, em que grupos étnicos como
os Malinkés, adeptos do Islamismo e situados mais ao norte e noroeste da Costa do
Marfim muitas vezes são vistos como “suspeitos” e ligados a Burkina Faso, Mali e Guiné
Conacri, e não como cidadãos legítimos da Costa do Marfim, ao contrário dos grupos
étnicos mais ao Sul do país que se apresentam como “legítimos filhos da terra”
(OGUNMOLA e BADMUS, 2004. P. 399)5.
Portanto, nesse contexto pós independência Ahmadou Kourouma atenta para a
problemática relação entre cidadão e estado, individuo e sociedade em que se nota a
profunda desilusão do autor nesse romance africano contemporâneo. “A maioria dos
países africanos independentes é de Estados criados sob o regime colonial que lutam
para tornarem-se nações mais coerentes” (ELAIGWU e MAZRUI, 2010, p. 519). O
romancista marfinense busca a partir dos seus escritos contribuir para um futuro melhor
para a África contemporânea.
Os novos Estados “independentes” foram caracterizados em sua maioria por
regimes de partido único, e o “sujeito negativo” (aquele que se opunham ao regime ou
buscou “subverter’ a ordem vigente) voltou a ser submetido à violência autoritária, sob o
mecanismo repressivo desse “novo” Estado – como projetaram lideres nacionalistas como
Amílcar Cabral. Ahmadou Kourouma apresenta em o Sol das Independências a luta pela
sobrevivência dos valores tradicionais da cultura africana no contexto das independências
e sua valorização como forma de resistência ao que muitos definem como

4
Segundo Ogunmola e Badmus (2010) essa política embora clientelista na distribuição ela era coerente e
reforçava o contexto internacional dominante de existência de um sistema de partido único nos estados
Independentes africanos.
5
Na Costa do Marfim o debate acerca da etnicidade toma uma dimensão religiosa em virtude de grande
parte da população situada ao Sul do país ser adepta do cristianismo e ao Norte a maioria mulçumana.
10

neocolonialismo. No entanto, as portas abertas pela assimilação6 possibilitaram a


ascensão de grupos sociais que constituíram em grande parte uma elite política do “Sol
das Independências” que manteve laços com o passado colonial, mas que nesse novo
momento é obrigado a dialogar com as diversas categorias sociais (BAYART, 2010, p.
42-53).
. Ahmadou Kourouma procura encontrar um vínculo que dê sentido ao presente a
partir da afirmação de uma personalidade cultural africana forjada no passado 7. No
entanto, entende-se que, esse “regressar as origens” não implicaria no pensamento de
Kourouma um desejo de retorno ao passado, em que as sociedades do pós- independência
pudessem viver como no período pré-colonial, mas a preservação da cultura e visão de
mundo das sociedades tidas como tradicionais, e que as diversas categorias sociais e os
diversos grupos étnicos pudessem se ver representados nos Estados independentes
africanos, assim, o reconhecimento da diversidade cultural e identidade dos diversos
grupos, neste sentido, aparentemente Kourouma, entende que em uma sociedade plural,
não existe uma identidade autêntica ou uma única identidade nacional, mas um conjunto
de identidades, construídas por diversos grupos sociais em diversos momentos
históricos8.
Ahmadou Kourouma argumenta que após as independências, é necessário
denunciar as injustiças cometidas por africanos contra outros africanos. Portanto o
romancista costamarfinense em O Sol das Independências põe em evidência as falhas da
“nova” gestão política e que segundo Kourouma ameaçava de certa forma o equilíbrio
dos valores culturais do continente africano, assim, o autor alerta sobre a formação de
uma nova classe burguesa burocrata, maniqueísta, que colabora com a ideologia colonial.
Kourouma afirma que ao escrever Les soleils des indépendances seu objetivo era

6
A assimilação foi uma política adotada pela administração francesa e portuguesa, sendo um instrumento
jurídico-político que definia como assimilados os sujeitos colônias que incorporassem a cultura e a
civilização ocidental passando a ocupar um papel de cidadão. “Em contraposição a ele estavam os indígenas
cuja estrutura era fazer parte da unidade política, mas por sua condição, eram obrigados a contribuir com o
trabalho forçado” (MACAGNO, 2006, p. 47-9 apud DURÃO, 2016, p. 42)
7
Cabe lembrar que as independências levaram ao poder não as elites tradicionais africanas, mas
nacionalistas de classe média que de certa forma estavam ligados a cultura ocidental.
8
KOUROUMA, Ahmadou. La Fuerza de Africa. UNESCO, 1992.
11

“denunciar os abusos de poder, abusos econômicos e sociais, [...], se trata, pois, de uma
necessidade vital e absoluta” (KOUROUMA, 1999, P. 46).
Kourouma faz críticas ao sistema do partido único, ao grande número de
cooperativas e a corrupção por parte das elites africanas que chegaram ao poder após
as independências.
A África descobriu o partido único (sabem o partido único parece com uma
sociedade de feiticeiras, as grandes feiticeiras iniciadas devoram as crianças
das outras) e depois as cooperativas que quebraram o comércio. [...] os dois
pedaços mais gordos e mais carnudos das independências são certamente o
secretário-geral e a direção de uma cooperativa... O secretário-geral e o diretor,
desde que saibam tecer elogios ao presidente, ao chefe único e a seu partido, o
partido único, podem bem embolsar todo o dinheiro do mundo sem que um só
olho ouse piscar na África inteira. (KOUROUMA, 1970, p. 21).

O unico partido foi adotado por a maioria dos Estados independentes da Africa
Ocidental, sendo que em geral os grandes lideres nacionalistas via no monopartidarismo
o único caminho para a Unidade Nacional e o desenvolvimento do pais, e que a África
em virtude da grande diversidade étnica e os conflitos entre esses grupos étnicos, não
estava preparada para o pluripartidarismo 9, no entando, Ahmadou Kourouma contesta
radicalmente essa visão, destacando que nenhum dos objetivos foram alcançados. Em
entrevista para Felgine e Ewané (1991: 107) Kourouma falou assim do partido único:
“[...] O único partido foi imposto supostamente por três razões: primeiro para combater o
tribalismo, depois para tentar formar um Estado finalmente para tentar desenvolver o país
economicamente. Nenhum de seus três objetivos foram alcançados...” (apud: ASSAH,
2010, p. 207).
Portanto Ahmadou Kourouma aponta nesse romance inúmeras possibilidade para
que possamos pensar essa instabilidade dos estados africanos independentes e a
dificuldade de construção da nação, nesta perspectiva, Elaigwu e Mazrui (2010)
argumenta que a crise da nação consiste naquela de uma identidade coletiva insuficiente,
ao passo que a crise do Estado está atrelada a própria autoridade política, sendo que para

9
Ver mais em: GRAÇA, 2013, p. 4-5
12

Kourouma a política adotada por Houphouét Boigny colaborou para essa crise de
identidades, logo, da dificuldade de consolidação da nação10.
Com o advento das independências os governos e as empresas públicas intervêm,
em prol do desenvolvimento agrícola, a partir de princípios capitalistas modernos (e,
eventualmente, mediante princípios socialistas) as cooperativas administradas pelo
Estado, multiplicaram-se de forma generalizada (OWUSU, M, 2010, p. 385-386), o que
resultou em novas técnicas de lidar com a terra diferentes daquelas que era costume na
cultura dita tradicional africana. Portanto, quando Kourouma afirma que “as cooperativas
quebraram o comércio”, podemos imaginar que em sua visão estas cooperativas
prejudicava os pequenos agricultores, privilegiando os grandes proprietários que
produziam para a exportação11.
Portanto, a Costa do Marfim Independente alinhou-se incontestavelmente ao
Ocidente e aderiu a uma visão capitaista do mundo, mantendo uma politica econômica
do periodo colonial voltada para exportação de materias primas, especialmente para a
antiga métropole – a França. Neste sentido O Sol das Independencias foi usado por
Ahmadou Kourouama como arma para que os sistemas hierarquicos da colonização não
continuasse a se perpetuar no pós-emancipação, representando um incomodo para Félix
Houphuét Boigny que o perseguiu e obrigou a procurar exilio em diversos paises, como:
Mali, Camarões e Togo.

Considerações finais

Ahmadou Kourouma entendido aqui enquanto um autor pós colonial, por oferecer
a partir de suas narrativas novas perspectivas e um repensar da história do colonialismo e
da situação das sociedades pós-coloniais, e mas que isso, oferece um modelo de
contestação a modernidade e representações de África que podem em certa medida
representar uma importante ruptura epistemológica, neste sentido, a escrita como “arma”
e crítica a permanência de problemáticas do colonial em um novo contexto sociopolítico,

10
No entanto, para muitos marfinenses o forte controle da vida política da Costa do Marfim por Félix
Houphuét Boigny obscureceu essa tendência entre os defensores do dogma “filhos da terra” (OGUNMOLA
e BADMUS, 2004, p. 399).
11
Ver mais em: OWUSU, Maxwell. A agropecuária e o desenvolvimento rural. In: MAZRUI, Ali. História
Geral da África – volume VIII – África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010.
13

ou seja, um modelo de discurso crítico enquanto um discurso da diferença formulado no


seio da relação colonial a partir da perspectiva dos “espoliados” e oprimidos
(MUNDIMBE, 2013, p. 15-25).
Segundo Dias (2010) os Estados africanos “independentes” foram marcados pela
endêmica crise econômica e pelo insucesso de sua democratização, em que continuou a
ser caracterizado como um Estado dualista, formado por um Estado central hegemônico
e frequentemente violento, e por um “Estado local camponês”, definido como “étnico” e
suportado por uma noção vazia de sociedade civil (DIAS, 2010, p. 119).
Ahmadou Kourouma desenvolveu uma observação perturbadora da realidade
africana, em um contexto que não era fácil admitir, que muitas das esperanças eram
apenas ilusões. Segundo Freitas (2005) Ahmadou Kourouma abandonou a exaltação de
uma negritude mítica, e voltou-se para a análise e crítica de situações reais na África
contemporânea, os abusos de poder, corrupção, miséria e injustiça social, no entanto sem
perder de vista a necessidade de expressar as especificardes e a personalidade cultural do
povo africano.
Não necessariamente Ahmadou Kourouma é um profundo defensor das tradições
africanas, assim, entende-se que o autor apresenta e traz representações de categoriais
sociais defensoras desses valores, em uma sociedade em que as instituições, muitas delas
um legado colonial, implica na necessidade de novas formas de sociabilidades, neste
sentido, Kourouma busca fazer uma análise crítica da sociedade africana, tanto das
camadas dirigentes e todos os privilegiados da “nova ordem” política, como dos
marginalizados em especial aqueles do “mundo malinké”. (FREITAS, 2005, 94-95).

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