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RESUMO
Essa comunicação tem como objetivo explorar algumas perspectivas do pensamento de
Ahmadou Kourouma no que concerne os primeiros anos de independência dos Estados
africanos, tendo em vista destacar representações feitas por esse autor acerca da Costa do
Marfim presentes em seu primeiro romance Les Soleils des Indépendances (O Sol das
Independências), bem como trazer reflexões acerca das críticas feitas por Kourouma aos
líderes políticos no contexto dos primeiros anos após as independências políticas, em que
busca-se discutir alguns aspectos do pensamento de um dos grandes intelectuais africanos
do século XX, a partir do campo de estudo pós-colonial.
Considerações Iniciais
Essa comunicação tem como objetivo explorar algumas perspectivas do
pensamento de Ahmadou Kourouma no que concerne os primeiros anos de independência
dos Estados africanos, tendo em vista destacar representações feitas por esse autor acerca
da Costa do Marfim presentes em seu primeiro romance Les Soleils des Indépendances
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(O Sol das Independências),(1998) bem como trazer reflexões acerca das críticas feitas
por Kourouma aos líderes políticos no contexto dos primeiros anos após as
independências políticas.
O sol das independências de Ahmadou Kourouma, é crítica contundente contra o
colonialismo francês, mas também aos Estados africanos “independentes” marcados por
uma endêmica crise, corrupção, abusos de poder e o partido único, o que para Ahmadou
Kourouma evidencia a ausência de democracia. O autor deixa clara a usurpação violenta
da dominação colonial ao mesmo tempo em que critica as Independências por não
possibilitarem uma reabilitação dos valores tradicionais e a preservação dos direitos dos
cidadãos. (CARMO, 2008, p. 18-36).
Ao analisar Ahmadou Kourouma em uma perspectiva pós-colonial, entende-se a
necessidade de uma melhor definição desse campo de estudos. Aborda-se aqui o pós-
colonial em uma perspectiva de crítica, “uma filosofia política” ou uma forma de análise
cultural que contesta a anteriormente maneira ocidental de ver as coisas (BURKE, 2015,
p. 201). No campo específico da História, uma abordagem que pretende desconstruir as
grandes narrativas, forjadas na lógica colonialista e imperialista, ou seja, desconstruir
formulações epistemológicas ocidentais que foram responsáveis por construir inúmeros
estereótipos acerca do continente africano, como lembra Valentim Yves Mundimbe no
livro A Invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento.
As representações feitas por Kourouma da sociedade marfinense e das diversas
categorias sociais que buscam ter seus direitos de cidadãos atendidos, demonstram as
preocupações desse intelectual em denunciar os abusos cometidos pelos novos dirigentes
em uma sociedade que começa a agenciar a sua existência com o advento da
independência: “Nesta acepção, o pós-colonial pressupõe uma nova visão da sociedade
que reflete sobre a sua própria condição periférica, intentando adaptar-se à lógica de
abertura de novos espaços, de que fala Kwame Anthony Appiah” (MATA, 2000, p, 1).
Neste sentido, essa abertura de novos espaços, característica do pós-colonial, apresenta
tanto a recusa das instituições e significações do colonialismo como das que saíram dos
regimes do pós-independência.
Algumas características que identificam Kourouma enquanto um autor pós-
colonial consiste em primeiro lugar em seu interesse em falar sobre os marginalizados.
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1999, p. 46). Os malinkés são um dos mais importantes grupos que compõem a etnia
mandiga, vivem sobretudo em Guiné Conacri, sudoeste do Mali, Sul do Senegal, Burkina
Faso e Noroeste da Costa do Marfim. Islamizados desde o século XI, formaram grandes
e poderosos impérios ao qual dominaram por seu número, suas armas e poder econômico
sendo considerados grandes guerreiros, mas também grandes comerciantes (CARMO,
2008, p. 34-35).
Ahmadou Kourouma cursou a Escola Primária de Bingerville (Costa do Marfim)
e a Escola Técnica Superior de Bamako (Mali) em 1947. Faltando pouco tempo para o
fim do ano escolar, Kourouma encabeça uma rebelião para denunciar as condições de
alimentação e das zeladoras do campus o que resultou em uma greve. Kourouma foi
expulso e retorna a Costa do Marfim sem receber o diploma. Ao retornar ele é recrutado
pelas forças armadas coloniais, mas a recusa em participar de um ato de repressão contra
o R.D.A. (Rassemblement Démocratique Africain)1 caracteriza a indisciplina que o
levaria a seu primeiro “exilio”2: depois é enviado à Indochima no corpo de guerrilheiros
senegaleses, onde vive de 1951 a 1954, exercendo a função de jornalista, pois era um dos
poucos soldados que sabia ler e escrever (MARTINS, 2016, p. 57-58).
Ao retornar de Indochima, Kourouma segue para a França onde é admitido no
curso de construção aeronáutica e naval, mas é informado de que na África não tinha
interesse nesse tipo de formação, Kourouma decide, então, fazer o concurso para Ciências
Atuariais. Formou-se em Nantes e depois, fixou em Lyon, durante esse período, milita
com outros estudantes africanos no seio da Féderation des Étudiantes d´Áfricaine Noire
1
O RDA um Partido de matriz pan-africanista que teve como líder Félix Houphuét Boigny, mas que em
virtude da repressão por parte da administração francesa acabou por se reduzir a seção guineense dirigida
por Sékou Touré. Na África Ocidental francesa AOF a política de repressão concentrou seus esforços na
Costa do Marfim bastião da RDA. Félix Houphuét Boigny, líder do partido democrático da Costa do
Marfim (PDCI seção RDA), criou em 1944 o sindicato Agrícola africano que representava a burguesia
agrícola marfinense, sendo que essa, estava em conflito com os colonos que haviam herdado do governo
Vichy importantes privilégios. A burguesia marfinense ao reivindicar o fim dos privilégios de caráter racista
e fim do trabalho forçado, acabavam por defender também os interesses das massas oprimidas pelo regime
colonial, criando-se assim, um importante movimento das massas do qual o PDCI constitui a expressão.
Em razão disso, a administração colonial francesa buscou diminuir o “peso” da Costa do marfim, assim,
em 1947 o território do Alto Volta que estava anexado a Costa do Marfim foi restaurado, e em 1948 com o
objetivo de “quebrar” a RDA, a administração colonial francesa adotou brutais e opressoras medidas,
incendiando comunidades e assassinando inúmeros camponeses (SURET-CANALLE e BOABEN, 2010,
p. 210-211)
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A verdade é que Ahmadou Kourouma se recusou a pegar em armas contra os seus compatriotas africanos
e por isso foi perseguido politicamente.
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O proeminente Félix Houphouét Boigny, foi médico, líder do Partido Democrático da Costa do Marfim
(PDCI seção do RDA) e presidente da Costa do Marfim desde a independência em 1960 até 1993 ano de
sua morte
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A rejeição obedeceu a uma razão dupla. Havia, por outro lado, alguma
originalidade no meu estilo, devido ao uso especial da língua francesa, o que
foi desconcertante para certos leitores. Por outro lado, a concepção do romance
não foi muito apreciada. No modo certo, ele concebeu o desenvolvimento da
trama como o escritor americano John Dos Passos: depois da ficção, concluo
com uma parte que poderia ser chamada de "documental". Em les Soleils des
indépendances, após a história do protagonista, Fama, relato os acontecimentos
sociais que se desenvolveram em Costa do Marfim na época da Guerra Fria.
Dizia coisas...delicadas. A tal ponto que algumas editoras africanas vieram
devolver o manuscrito acompanhado de comentários altamente críticos, quase
insultantes... (KOUROUMA, 1999, P. 46).
pré-colonial.
Esse mosaico geográfico foi deixado como herança dos imperialistas para os
lideres nacionalistas, sendo essas fronteiras desenhadas pelos colonizadores,
confirmadas e reconhecida pela Organização da Unidade Africana (OUA), hoje Unidade
africana (UA). Ahmadou Kourouma em O Sol das Independências procura situar essas
discussão acerca da etnicidade, atreladas ao que ele caracteriza enquanto uma politica
paternalista e clientelista adotada por Houphuét Boigny 4, em que grupos étnicos como
os Malinkés, adeptos do Islamismo e situados mais ao norte e noroeste da Costa do
Marfim muitas vezes são vistos como “suspeitos” e ligados a Burkina Faso, Mali e Guiné
Conacri, e não como cidadãos legítimos da Costa do Marfim, ao contrário dos grupos
étnicos mais ao Sul do país que se apresentam como “legítimos filhos da terra”
(OGUNMOLA e BADMUS, 2004. P. 399)5.
Portanto, nesse contexto pós independência Ahmadou Kourouma atenta para a
problemática relação entre cidadão e estado, individuo e sociedade em que se nota a
profunda desilusão do autor nesse romance africano contemporâneo. “A maioria dos
países africanos independentes é de Estados criados sob o regime colonial que lutam
para tornarem-se nações mais coerentes” (ELAIGWU e MAZRUI, 2010, p. 519). O
romancista marfinense busca a partir dos seus escritos contribuir para um futuro melhor
para a África contemporânea.
Os novos Estados “independentes” foram caracterizados em sua maioria por
regimes de partido único, e o “sujeito negativo” (aquele que se opunham ao regime ou
buscou “subverter’ a ordem vigente) voltou a ser submetido à violência autoritária, sob o
mecanismo repressivo desse “novo” Estado – como projetaram lideres nacionalistas como
Amílcar Cabral. Ahmadou Kourouma apresenta em o Sol das Independências a luta pela
sobrevivência dos valores tradicionais da cultura africana no contexto das independências
e sua valorização como forma de resistência ao que muitos definem como
4
Segundo Ogunmola e Badmus (2010) essa política embora clientelista na distribuição ela era coerente e
reforçava o contexto internacional dominante de existência de um sistema de partido único nos estados
Independentes africanos.
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Na Costa do Marfim o debate acerca da etnicidade toma uma dimensão religiosa em virtude de grande
parte da população situada ao Sul do país ser adepta do cristianismo e ao Norte a maioria mulçumana.
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A assimilação foi uma política adotada pela administração francesa e portuguesa, sendo um instrumento
jurídico-político que definia como assimilados os sujeitos colônias que incorporassem a cultura e a
civilização ocidental passando a ocupar um papel de cidadão. “Em contraposição a ele estavam os indígenas
cuja estrutura era fazer parte da unidade política, mas por sua condição, eram obrigados a contribuir com o
trabalho forçado” (MACAGNO, 2006, p. 47-9 apud DURÃO, 2016, p. 42)
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Cabe lembrar que as independências levaram ao poder não as elites tradicionais africanas, mas
nacionalistas de classe média que de certa forma estavam ligados a cultura ocidental.
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KOUROUMA, Ahmadou. La Fuerza de Africa. UNESCO, 1992.
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“denunciar os abusos de poder, abusos econômicos e sociais, [...], se trata, pois, de uma
necessidade vital e absoluta” (KOUROUMA, 1999, P. 46).
Kourouma faz críticas ao sistema do partido único, ao grande número de
cooperativas e a corrupção por parte das elites africanas que chegaram ao poder após
as independências.
A África descobriu o partido único (sabem o partido único parece com uma
sociedade de feiticeiras, as grandes feiticeiras iniciadas devoram as crianças
das outras) e depois as cooperativas que quebraram o comércio. [...] os dois
pedaços mais gordos e mais carnudos das independências são certamente o
secretário-geral e a direção de uma cooperativa... O secretário-geral e o diretor,
desde que saibam tecer elogios ao presidente, ao chefe único e a seu partido, o
partido único, podem bem embolsar todo o dinheiro do mundo sem que um só
olho ouse piscar na África inteira. (KOUROUMA, 1970, p. 21).
O unico partido foi adotado por a maioria dos Estados independentes da Africa
Ocidental, sendo que em geral os grandes lideres nacionalistas via no monopartidarismo
o único caminho para a Unidade Nacional e o desenvolvimento do pais, e que a África
em virtude da grande diversidade étnica e os conflitos entre esses grupos étnicos, não
estava preparada para o pluripartidarismo 9, no entando, Ahmadou Kourouma contesta
radicalmente essa visão, destacando que nenhum dos objetivos foram alcançados. Em
entrevista para Felgine e Ewané (1991: 107) Kourouma falou assim do partido único:
“[...] O único partido foi imposto supostamente por três razões: primeiro para combater o
tribalismo, depois para tentar formar um Estado finalmente para tentar desenvolver o país
economicamente. Nenhum de seus três objetivos foram alcançados...” (apud: ASSAH,
2010, p. 207).
Portanto Ahmadou Kourouma aponta nesse romance inúmeras possibilidade para
que possamos pensar essa instabilidade dos estados africanos independentes e a
dificuldade de construção da nação, nesta perspectiva, Elaigwu e Mazrui (2010)
argumenta que a crise da nação consiste naquela de uma identidade coletiva insuficiente,
ao passo que a crise do Estado está atrelada a própria autoridade política, sendo que para
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Ver mais em: GRAÇA, 2013, p. 4-5
12
Kourouma a política adotada por Houphouét Boigny colaborou para essa crise de
identidades, logo, da dificuldade de consolidação da nação10.
Com o advento das independências os governos e as empresas públicas intervêm,
em prol do desenvolvimento agrícola, a partir de princípios capitalistas modernos (e,
eventualmente, mediante princípios socialistas) as cooperativas administradas pelo
Estado, multiplicaram-se de forma generalizada (OWUSU, M, 2010, p. 385-386), o que
resultou em novas técnicas de lidar com a terra diferentes daquelas que era costume na
cultura dita tradicional africana. Portanto, quando Kourouma afirma que “as cooperativas
quebraram o comércio”, podemos imaginar que em sua visão estas cooperativas
prejudicava os pequenos agricultores, privilegiando os grandes proprietários que
produziam para a exportação11.
Portanto, a Costa do Marfim Independente alinhou-se incontestavelmente ao
Ocidente e aderiu a uma visão capitaista do mundo, mantendo uma politica econômica
do periodo colonial voltada para exportação de materias primas, especialmente para a
antiga métropole – a França. Neste sentido O Sol das Independencias foi usado por
Ahmadou Kourouama como arma para que os sistemas hierarquicos da colonização não
continuasse a se perpetuar no pós-emancipação, representando um incomodo para Félix
Houphuét Boigny que o perseguiu e obrigou a procurar exilio em diversos paises, como:
Mali, Camarões e Togo.
Considerações finais
Ahmadou Kourouma entendido aqui enquanto um autor pós colonial, por oferecer
a partir de suas narrativas novas perspectivas e um repensar da história do colonialismo e
da situação das sociedades pós-coloniais, e mas que isso, oferece um modelo de
contestação a modernidade e representações de África que podem em certa medida
representar uma importante ruptura epistemológica, neste sentido, a escrita como “arma”
e crítica a permanência de problemáticas do colonial em um novo contexto sociopolítico,
10
No entanto, para muitos marfinenses o forte controle da vida política da Costa do Marfim por Félix
Houphuét Boigny obscureceu essa tendência entre os defensores do dogma “filhos da terra” (OGUNMOLA
e BADMUS, 2004, p. 399).
11
Ver mais em: OWUSU, Maxwell. A agropecuária e o desenvolvimento rural. In: MAZRUI, Ali. História
Geral da África – volume VIII – África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010.
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REFERÊNCIAS:
ASSAH, Augustine H. Les déboires des indépendances dans les deux premiers
romans d´Ahmadou Kourouma. África: Revista do Centro de Estudos Africanos.
USP, S. Paulo, 2010.
BAMPOKY, Providence. A literatura negro-africana de expressão francesa: Uma
nova forma de resistência ao colonialismo. Cadernos CERU, série, 2, vol, 29, n.1, julho
de 2018.
14
MAZRUI, Ali. História Geral da África – volume VIII – África desde 1935. Brasília:
UNESCO, 2010.
______. O sol das independências. Tradução de Marisa Murray. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1970.