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FRAGMENTOS DE UMA IMAGINAÇÃO

NACIONAL*

Lorenzo Macagno

Em 1970, depois do assassinato de Eduardo de Portugal, até a independência do país, em 25 de


Mondlane1 em 1969, o Comitê Central da Frente de junho de 1975, os debates no seio da Frelimo tran-
Libertação de Moçambique (Frelimo) decide no- sitaram pelo dilema “nacionalismo anticolonial”
mear Samora Machel como seu sucessor. Na qua- versus “socialismo”. Neste artigo, reconstruo, sob o
lidade de presidente da Frelimo e do Moçambique horizonte das contribuições de Benedict Anderson,
independente, Samora, como informalmente era alguns dos marcos fundamentais desse debate, bem
chamado pelos moçambicanos, teve um papel cen- como suas implicações na construção de uma ima-
tral no processo de construção da nação. Desde o ginação nacional para o Moçambique pós-colo-
início da luta armada em 1964, contra a presença nial. No centro da discussão os dilemas oscilavam
entre o postulado de ser a Frelimo uma simples
* Este artigo é uma versão ampliada e modificada de um
trabalho intitulado “Lendo Marx ‘pela segunda vez’: ex- frente de libertação nacional e, no outro extremo, um
periência colonial e a construção da nação em Moçambi- Partido-Estado que mais tarde se autodenomina-
que”, apresentado numa mesa redonda coordenada por ria “marxista-leninista”2 capaz de trazer, na visão de
Armando Boito Jr. no IV Colóquio Marx e Engels, em
novembro de 2005, na Unicamp. Agradeço a Angela La-
seus porta-vozes, a modernização e o desenvolvi-
zagna pela leitura, comentários e revisão, bem como pela mento ao país.
sua disponibilidade para me colocar em contato com a Morto em 1986, na queda do avião oficial, em
tese de doutorado de Luis Cerqueira de Brito sobre o
papel do “marxismo” na construção do Estado-nacional
Mbuzini, no qual viajava – as crônicas apontam que
em Moçambique. se tratou de um atentado planejado pelo regime do
Artigo recebido em julho/2008 apartheid na África do Sul3 –, Samora Machel é, até
Aprovado em abril/2009 hoje, objeto de admiração e motivo de disputas e
RBCS Vol. 24 no 70 junho/2009
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desencontros. A partir do seu trágico desapareci- o povo, roubam os produtos, escondem e de-
mento, as narrativas a seu respeito entrelaçam, inde- pois especulam. É, ou não é?
finidamente, o mito com a história. Esse entre-
laçamento acabou produzindo um emaranhado de Essas palavras eram pronunciadas com his-
versões e con-traversões, do qual confluem múltiplas trionismo e teatralidade. Tratava-se, sem dúvidas,
vozes à procura de uma comunidade imaginada – a do que mais tarde alguns analistas qualificaram co-
nação –, cuja genealogia é, ainda, alvo das mais va- mo o “estilo”, a “essência” e o “brilho carismático
riadas disputas. de Samora”.5 A partir das evocações provocadas
A primeira vez que “vi” e “ouvi” Samora Ma- pelo documentário – e da minha própria pesquisa
chel foi em 1996, quando cheguei ao sul de Moçam- no terreno – este artigo indaga sobre a relação, apa-
bique para realizar um trabalho de campo, cujo rentemente indissolúvel e irredutível, entre “Samora
objetivo era, a princípio, indagar acerca da influên- e o Povo” e, portanto, sobre as relações entre o
cia da “cultura” portuguesa nos dilemas identitários Partido-Estado (Frelimo) e os fragmentos – vincu-
contemporâneos daquele país. Durante seis meses lados à evocação mítica da figura de Samora – de
travei contato com uma geração de pessoas que vi- uma certa imaginação nacional.
venciou a passagem da condição de indígena à de assimi- Uma versão historiográfica mais ou menos
lado: duas categorias que o sistema jurídico colonial consagrada6 explica a formação da Frelimo a partir
contribuíra para criar. Um dos meus objetivos era, da união no exílio de três grupos nacionalistas mo-
portanto, entender as conseqüências contemporâneas çambicanos (Udenamo, Manu e Unami). Em 25 de
do chamado Sistema do Indigenato.4 Naquele momen- junho de 1962, os três grupos, reunidos em Dar es-
to comemorava-se, precisamente, o décimo aniver- Salam, concordam em formar a Frente, realizando
sário da morte de Machel e inúmeros eventos se os preparativos para definir um programa de ação
realizavam para lembrar essa data. Nelson Mandela para o mês seguinte (Mondlane, 1976, p. 128). O
foi convidado por Joaquim Chissano, sucessor de processo por meio do qual a Frelimo passou de
Samora Machel, para homenagear quem, junto com uma frente nacionalista a um partido “marxista-le-
ele, fora um lutador contra o regime do apartheid e ninista” foi explicado, com certo detalhe, no estudo
um amigo incondicional do povo sul-africano. Na de Sonia Kruks (1987). Seu argumento procura evi-
Universidade Eduardo Mondlane, intelectuais e líde- denciar, entre outras questões, que a adoção dos
res históricos da Frelimo – tais como Sérgio Vieira postulados “marxistas-leninistas” obedecia a um
e Marcelino dos Santos – reuniam-se para evocar o processo intrínseco vinculado à singularidade e às
pai da nação. A televisão moçambicana apresentou, especificidades da “luta de libertação nacional”. Ou
naqueles dias, um documentário sob o eloqüente seja, por mais que esses postulados fossem explici-
título Samora e o povo, que começava com um efusivo tados e sistematicamente formulados no III Con-
discurso de Samora Machel, pronunciado por volta gresso da Frelimo ocorrido em 1977, já existia um
de 1980, durante o período da chamada Ofensiva “marxismo tácito” que podia ser detectado, sobre-
Política e Organizacional. Tamanho foi meu impacto tudo, desde 1968. As conclusões de Kruks contes-
com as imagens veiculadas pela emissão que, pou- tam os argumentos “anticomunistas” veiculados pela
cos dias depois, recorri à Televisão de Moçambique administração colonial portuguesa durante a dita-
(TVM) para obter uma cópia do documentário. dura do Estado Novo, que explicavam a “opção
Assim começava o discurso inicial de Samora Machel: marxista” da Frelimo em termos de uma simples
condição de dependência em relação à União Sovié-
A nossa luta é contra os saboteadores; a nossa tica ou China.7
luta é contra os preguiçosos; a nossa luta é con- Um sintoma indicativo de que a orientação da
tra os ladrões; a nossa luta é contra os droga- Frelimo cairia, cedo ou tarde, nos postulados teóri-
dos; a nossa luta é contra os marginais; a nossa cos do “marxismo-leninismo” pode ser rastreado
luta é contra os especuladores. A nossa luta é em uma famosa entrevista que Aquino de Bra-
contra aqueles que querem oprimir e explorar gança8 realizou com Eduardo Mondlane em 1969,
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pouco antes do seu assassinato. Nela o fundador sa a herança colonial. Por outro lado, qualquer rela-
da Frelimo admite não existir alternativa que não a to das realizações da Frelimo nesse âmbito teve
adoção do “marxismo-leninismo”, declarando que como ponto de partida obrigatório a experiência
uma coalescência de pensamento que atuara duran- realizada nas chamadas zonas libertadas,11 consideradas
te os últimos seis anos um antecedente ineludível da ação educativa anti-
colonial da Frelimo. Isto fica evidente nos discursos
[...] autoriza a concluir que a Frelimo realmente Samora Machel, para quem a luta armada foi a “es-
agora é muito mais socialista, revolucionária e cola”, a “grande universidade” na qual se forma-
progressista do que nunca. E é a linha, agora, a ram os militantes da Frelimo.
tendência, mais e mais em direção ao socialismo Nas zonas libertadas nascia “o primeiro sistema
do tipo marxista-leninista. Porque as condições de educação nacional, que já em 1972-1973 com-
de vida de Moçambique, o tipo de inimigo que preendia mais de duzentas escolas primárias (para
nós temos, não admite qualquer outra alternati- uma população de cerca de um milhão de habitantes
va (Mondlane, apud Christie, 1996, p. 190).9 e com dez mil alunos só na província de Cabo
Delgado), um ensino secundário até a 8ª classe, um
Após o assassinato de Mondlane, a direção da curso de enfermagem, curso de formação de pro-
Frelimo sofreu um processo de mudanças radicais. fessores primários, além de infantários” (Nascimen-
Passou-se a discutir, no interior da organização, um to, 1980, p. 33), bem como as chamadas escolas de
conjunto de problemas derivados da “questão racial” treino político-militar em Nachingwea e Tunduru,
como critério de pertencimento e lealdade ao grupo. na Tanzânia.
Aqueles que seguiam o legado de Mondlane rejeita- Na II Conferência do Departamento de Edu-
vam esse critério, argumentando sobre o seu caráter cação e Cultura em 1973, Samora volta a sublinhar
politicamente reacionário e primário. Entretanto, o o fato de que os quadros surgem no próprio proces-
grupo próximo a Uria Simango desconfiava da so de luta, não sendo preciso esperar a formação
minoria branca que participava ao lado da Frelimo de generais para se travar batalha. Daí sua famosa
na luta anticolonial. Finalmente, em maio de 1970, palavra de ordem: “aprender a fazer fazendo”. Nas
durante uma reunião do Comitê Central, Simango zonas libertadas, essa palavra de ordem pretendia
foi expulso – e mais tarde fuzilado – sob a acusa- ser uma realidade.
ção de estar ligado à conspiração secessionista de Cabe lembrar que, imediatamente após a inde-
Lázaro Ncavandame.10 O sucessor de Mondlane se- pendência, foram criados os Grupos Dinamizado-
ria, pois, um jovem e ativo militante que, até então, res (GD), cujo objetivo era mobilizar as populações
desempenhara um importante papel no comando ao redor das políticas do novo governo. Além de
militar: Samora Machel. funções políticas e administrativas, os GD tinham
Como depositário desse desafio, Machel é eri- como tarefa estimular as atividades educativas nos
gido o novo porta-voz da nação, mostrando-se um lugares de trabalho e no âmbito das comunidades.
entusiástico formulador de uma espécie de “mar- Eles abriam espaços de discussão e de formação,
xismo caseiro”, adaptado às singularidades da ex- procurando romper tanto com as “sobrevivências”
periência moçambicana. Nessa formulação, uma das do passado colonial, como com o “tradicionalismo”
preocupações dos novos porta-vozes da nação se- e o “obscurantismo”, duas preocupações recorrentes
ria a de educar, produzir e criar o novo homem mo- no jargão frelimista. Onde os GD atuavam, muitas
çambicano. Foi, de fato, no campo da educação das formas de relação entre os chefes tradicionais –
onde se desenvolveram as grandes batalhas ideoló- régulos – e a população começaram a desaparecer.
gicas de Moçambique independente. Porém, aparentemente, eles não conseguiram pene-
Nos anos posteriores à independência, era co- trar em alguns sistemas de práticas e crenças africanas
mum encontrar entre as novas elites nacionalistas o mais arraigadas, como determinadas cerimônias
argumento de que as dificuldades que emperravam consideradas “retrógradas”: rituais fúnebres, ritos
o desenvolvimento da educação tinham como cau- de iniciação, invocação dos antepassados, lobolo12 (Fry,
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2005). Contudo, o português foi mantido como A “morte da tribo” e a construção do


língua de unidade nacional, pois, segundo os porta- homem novo
vozes da Frelimo, esta era uma maneira de neutrali-
zar as ameaças divisionistas do “tribalismo” e, as- Segundo o Dictionary of political thought, elabora-
sim, poder construir a moçambicanidade. do por Roger Scruton, a expressão “homem novo”,
Não é meu objetivo traçar aqui uma história “novo homem comunista” ou “novo homem so-
social ou política da Frelimo,13 mas simplesmente cialista” foi usado desde a década de 1920 tanto
ressaltar que esse ato inaugural foi sucedido por um por seguidores como por críticos do comunismo
tortuoso processo de traições, purgas e violentas soviético, com o intuito de descrever certa trans-
disputas. Nesse sentido, não é possível aludir à his- formação não só na ordem econômica, mas tam-
tória da Frelimo sem nos referirmos à sua contra- bém no nível da personalidade individual. Essa trans-
partida política: a Resistência Nacional Moçambi- formação ocorreria, ou deveria ocorrer, tanto sob
cana (Renamo). Esse grupo surgiu em 1976 de uma o socialismo como sob a “plenitude do comunis-
iniciativa contra-revolucionária no país vizinho, mo” para aonde o socialismo supostamente cami-
Rodésia (atual Zimbábue), governado, naquela oca- nharia. Conforme essa lógica, ao possuir uma essên-
sião, por uma minoria branca. Segundo William cia histórica, o homem passa a ser, em algum sentido,
Minter (1994, p. 7), está plenamente comprovado uma criatura diferente sob uma nova ordem eco-
que a MNR (Mozambique National Resistence, tal nômica, de modo que os valores e as aspirações
como foi inicialmente conhecida a Renamo) foi fun- que o motivavam previamente já não podem ser
dada pela Organização de Inteligência Central Ro- nem compreendidas, nem reconhecidas.17
desiana e, a partir dos anos de 1980, de um peque- Em Moçambique, a genealogia da noção de
no grupo transformou-se em uma potente máquina homem novo remonta ao período da luta armada e
militar. Assim, quando Zimbábue obtém a indepen- reconhece, ademais, seus próprios textos canônicos
dência em 1980, a Renamo passa a ser apoiada pela por meio dos quais procurou se impor. Em algum
África do Sul. O que começou como uma guerra sentido, a luta entre a “nova” e a “velha” ordem é a
de desestabilização se transformou em uma das chave para compreender a idéia de homem novo. Em
guerras civis mais sangrentas da África.14 Mais uma trabalho recente, José Luis Cabaço defende que a
vez, a Frelimo teve que reforçar seu discurso de proposta do homem novo teve seu “laboratório expe-
“unidade nacional”, sobretudo quando a Renamo rimental”, precisamente, nos campos de treino que
pretendeu “limpar” sua imagem internacional, a de a Frelimo tinha em Nachingwea, visitados por ele
“bandidos armados”, tal como eram conhecidos, em 1974. Foi ali, nos primórdios da luta armada,
assumindo uma linguagem politicamente “etnicis- que a preparação militar era complementada por
ta” em suas reivindicações. De fato, a principal base uma ideologia que, por sua vez, veiculava novos
de apoio da Renamo estava constituída por grupos valores para a construção de uma sociedade “justa,
lingüísticos Shona, e o subgrupo Ndau, presentes no solidária, altruísta, coesa, socialmente disciplinada,
centro do país.15 As negociações para um acordo com uma visão econômica fundada no princípio
de paz entre a Frelimo e a Renamo iniciaram-se em da auto-suficiência e dependente essencialmente das
1990 com as “conversações de Roma” e se esten- ‘próprias forças’ e da ‘imaginação criativa do ho-
deram até 1992, quando Joaquim Chissano (presi- mem’” (Cabaço, 2007, p. 412).
dente da Frelimo e, naquela altura, presidente tam- Em dezembro de 1977, Sérgio Vieira,18 mem-
bém do país) e Afonso Dhlakama (presidente da bro do Comitê Central da Frelimo, pronunciou um
Renamo) firmaram, finalmente, o Acordo Geral de discurso na II Conferência do Ministério de Edu-
Paz. Na primeira etapa dessa negociação teve im- cação e Cultura, publicado no ano seguinte na re-
portância a mediação do Vaticano, por intermédio vista Tempo, com o título “O homem novo é um
da Comunidade de Santo Egídio e do governo ita- processo”. “A revolução triunfa ou fracassa na me-
liano; na sua segunda etapa, esse processo foi medi- dida em que emerge ou não emerge o homem
ado pelas Nações Unidas.16 novo”, diz Vieira no início do discurso (1978, p.
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27). A construção do homem novo passa a ser, decisi- homens e é capaz de desenvolver um trabalho co-
vamente, um dispositivo mobilizador, uma idéia letivo. Seria necessário, além disso, implantar as ba-
força, um objetivo fundamental a ser alcançado. ses de uma economia próspera e avançada, fazen-
Segundo Sérgio Vieira, a primeira vez que Sa- do com que a “ciência vença a superstição”. O tribalismo, a
mora Machel abordou de forma central e sistemática superstição, a tradição atentariam contra a tentativa de
a idéia de homem novo foi em 1970, em um discurso construir a nação moçambicana. Esses elementos ope-
pronunciado na II Conferência do DEC (Departa- rariam no sentido de uma fragmentação, de modo
mento de Educação e Cultura) em Tunduru. Nessa que: “Unir todos os moçambicanos, para além das
ocasião, afirmava a necessidade de “Educar o ho- tradições e línguas diversas, requer que na nossa
mem para vencer a guerra, criar uma sociedade nova consciência morra a tribo para que nasça a Nação”
e desenvolver a pátria”,19 sendo imperioso, “depois (Idem, p. 11). Seria impossível imaginar semelhante
de demonstrar-nos a nocividade, quer da educação operação de engenharia social e moral sem uma
tradicional, quer da educação colonial, explicar os parcela de tortuosidade e violência. Esse processo
objetivos educacionais que nos propomos atingir, de união foi levado a cabo, mais tarde, pelo Esta-
em função da nova sociedade pela qual lutamos” do/Partido Frelimo que assumiu o papel dirigente
(Machel, 1978a, p. 8). e de vanguarda denunciando os “desvios” doutri-
Samora Machel distinguia, naquele discurso fun- nais promovidos pelos “inimigos” da nação.
dacional, três tipos de sistemas de educação anta-
gônicos, dois dos quais refletiam as sociedades que,
supostamente, deveriam desaparecer e um terceiro Uma nova imaginação nacional
orientado para o futuro, para a nova sociedade. O pri-
meiro sistema que identifica é o da educação tra- A construção da nação moçambicana como uma
dicional, no qual a superstição ocuparia o lugar da entidade homogênea só é compreensível sob a lógica
ciência. Nesse contexto, a educação visaria trans- do enfrentamento a uma outra entidade que se apre-
mitir a tradição, erigida em dogma que se perpe- sentava igualmente homogênea: a nação portuguesa
tuaria através dos sistemas de classe, dos grupos de e suas pretendidas províncias de ultramar. A tão
idade (opondo jovens e velhos), dos ritos de inicia- desejada morte da tribo não passava, então, de um
ção, da poligamia (que condenaria a mulher a um desejo de união, de uma forma de conjurar a herança
papel subordinado). colonial. Sob essa lógica, a nação seria, na imagina-
O segundo sistema (que já estaria desaparecen- ção de seus porta-vozes, compacta, singular, unifica-
do com o tradicional) é o da educação colonial, da. Porém, esse unitarismo reproduzirá, mesmo que
que condenaria o moçambicano a ser um “pequeno com conteúdos inversos, a mesma gramática assimi-
português de pele preta”, um instrumento dócil do lacionista e intolerante em face dos particularismos
colonialismo, cuja ambição máxima seria viver como culturais, veiculada pelo discurso colonial português.
o colono, a cuja imagem fora criado (Idem, p. 10). Com efeito, tal como afirma Michel Cahen “a tra-
Aqui, Samora seguramente tem em mente a figura dição, não só de unidade do Estado, mas de sua
do assimilado, ou seja, um africano que, conforme o unicidade (isto é, de homogeneidade obrigatória), não
vocabulário jurídico-colonial, tinha conseguido se provém do 25 de Junho de 1975, mas das próprias
emancipar de seus “usos e costumes” adquirindo, estruturas coloniais” (1999, p. 86). Portanto, os pro-
assim, valores culturais portugueses. A categoria de blemas do período do pós-guerra estariam direta-
assimilado deixou de ser utilizada sobretudo após a mente vinculados àquelas estruturas. Seguindo esse
abolição do Sistema do Indigenato, em 1961. Neste percurso e na busca de homologias assimilacionis-
caso, Samora está apenas fazendo uma evocação tas entre um período e outro, Peter Fry arrisca:
irônica – “pequeno português de pele preta” – dessa
categoria.20 Finalmente, o terceiro tipo é a “educa- Do ponto de vista estrutural, havia pouca dife-
ção revolucionária para a criação do homem novo”. rença entre um estado capitalista autoritário, go-
Aquela que visa implantar a solidariedade entre os vernado por um pequeno grupo de portugueses
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“esclarecidos” e de “assimilados”, e um estado Mas o vanguardismo será amortecido por al-


socialista autoritário, governado por um parti- gumas instituições locais de participação política: os
do de vanguarda igualmente diminuto e igual- já referidos Grupos Dinamizadores, estabelecidos
mente esclarecido (2005, p. 67). basicamente em todos os lugares de emprego for-
mal (fábricas, escolas, hospitais, ministérios go-
Se, no período colonial, os chamados indígenas vernamentais) e nas áreas residenciais das regiões rurais.
deveriam abandonar – conforme as categorizações Os membros dos GD não eram, necessariamente,
da administração colonial – os “usos e costumes” membros da Frelimo, mas eleitos em reuniões de
para passar à categoria de assimilados, no período massa de trabalhadores ou residentes, Contudo os
independente, as “populações” deveriam abando- GD acabavam funcionando como uma corrente de
nar o “obscurantismo” para se integrarem ao Povo transmissão das determinações do Estado/Partido
moçambicano. à população.
A luta pela unidade constitui um aspecto cen- Esses grupos procuravam, supostamente, cons-
tral na construção da nova sociedade e da educação do truir o chamado “Poder Popular”. Para tanto, foi
homem novo. O depositário e beneficiário desse pro- criada uma rede capaz de prover a base organiza-
cesso seria uma entidade homogênea, o Povo,21 cuja cional de células do partido, quando a Frelimo se
experiência comum de “exploração” nasceu durante tornou um “partido de vanguarda”, iniciando-se um
o colonialismo. Nesse processo, a unidade deve processo de educação e formação política que, mais
eclipsar e neutralizar toda tentativa particularista, tarde, poderia prover os recrutas (Kruks, 1987, p.
localista e tribalista. Essa preocupação aparece for- 250). Segundo Egerö (1992),23 o “Poder Popular”
mulada, também, em Sérgio Vieira, para quem a teria a vantagem de ser um termo pouco euro-
unidade surge como um valor: cêntrico. Ao que parece, essa noção surgiu na mes-
ma época em Cuba e na África. Na luta da Frelimo,
Eu deixei de desprezar aquele porque é Chan- diz Egerö, o termo tem uma conotação bastante
gana, porque é Maconde, porque é Ajawa, por- difusa:
que é Nhungué ou porque é Sena... Começa-se
a entrar nesta noção de que do Rovuma ao [...] por um lado, foi usado para denotar de-
Maputo somos um só povo. E não há tribo mocracia, como um objetivo ou princípio da
grande nem pequena. Não há tribo, somos o luta. Por outro, referia-se às formas emergen-
povo moçambicano (1978, p. 34). tes de organização político-administrativa nas
zonas libertadas, incluindo métodos (democrá-
Samora Machel fala em nome do povo e, ao ticos) de tomada de decisões e eleição de car-
mesmo tempo, cria-o, compondo, em seu discurso gos [...] o Poder Popular permanece como um
enérgico e histriônico, uma espécie de alquimia na conceito orientador geral, designando ao mes-
qual heterogêneo se transforma em homogêneo. Um mo tempo uma série de instituições para a par-
só povo, uma só nação, uma só cultura de Rovuma a ticipação popular (1992, p. 44).
Maputo, tal como rezava a recorrente metáfora
geográfica da unidade nacional,22 mil e uma vezes Contudo, apesar dos anúncios grandiloqüentes
repetida. “Somos nós que temos esse privilégio, de e esperançosos sobre a implementação do “Poder
decidir sobre milhões e milhões de moçambicanos”, Popular”, a experiência não foi bem-sucedida, não
discursava, em 1977, para uma imensa platéia de passando, de acordo com Cahen (1987, p. 141), de
alunos e professores; “o que nós queremos é o que uma completa ficção ideológica: o poder “operário” e
todos querem. O que nós diremos aqui irá signifi- “camponês” continuou sendo definido somente por
car a aceitação do povo inteiro do Rovuma ao sua representação no Partido único.24
Maputo. Neste encontro diremos: não é o que eu Era preciso, contudo, criar o Povo, atribuindo-
quero, não é o que tu queres, mas sim o que todos lhe uma cultura mais ou menos compacta. A “cul-
nós queremos” (Samora, 1977, p. 3). tura” moçambicana teve, pois, que se reinventar
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por meio de um processo de reagregação de re- burguesa, essa entidade homogênea contra a qual se
talhos regionais, hibridismos e misturas que não deveria lutar reproduz, sempre, os valores “deca-
reconhecem, necessariamente, uma herança co- dentes” e “reacionários”.
mum. Em todo caso, supõe-se que o resultado fi- Não há homem novo sem uma nova cultura: é o que
nal desse processo deva ser um novo agregado sin- Sérgio Vieira argumenta, sem ambigüidades, ao ope-
gular, irredutível aos componentes da herança rar a noção de cultura como visão de mundo (cul-
portuguesa. tura num sentido holístico), mais próxima do con-
A nação, para poder existir, deveria operar sob ceito antropológico do que da concepção iluminista
uma configuração cultural sui generis, uma síntese hí- de cultura. Portanto, Vieira afasta-se, ainda que ti-
brida que representasse todos os moçambicanos. midamente, da idéia de cultura veiculada pela nar-
Em determinadas instâncias, esse processo foi ca- rativa de Honwana.
racterizado pela tentativa de compor um autêntico
collage ou bricolage cultural. Em uma entrevista, o es- Eu falo de cultura e não de folclore. [...] Por
critor Raul Honwana25 descreve a forma singular vezes reduz-se a cultura a um folclore... Mas a
pela qual essa espécie de operação de engenharia cultura ultrapassa tudo isso. A cultura é a dança,
cultural atuava: mas não só a dança. A cultura é uma concep-
ção do Mundo, é uma maneira de agir sobre o
Após a independência, tenta-se recriar um novo Mundo. É também a arte. Mas não só a arte. A
quadro folclórico, no qual se incorpora, por cultura é um conceito total e é um conceito de
exemplo, uma dança tipicamente daqui do sul, inovação. É uma tensão para o progresso (Viei-
mistura-se com elementos do centro, do norte ra, 1978, p. 38).
e, assim, fazem-se várias misturas. Mas este é
um trabalho feito de propósito por pessoas co- Não é possível conceber uma cultura “nova”
nhecedoras, por pessoas que foram prepara- sem a existência de uma cultura anterior à qual se
das como coreógrafos na União Soviética e na opor; não é possível conceber o homem novo sem
República Democrática Alemã. Então eles fa- antes saber em que consiste o homem velho, cujos ves-
ziam todo este arranjo. Misturavam aquilo que tígios devem ser erradicados. O processo é sempre
constituía o folclore típico de uma região, mis- relacional. A “fabricação” da nova identidade, ho-
turavam com o folclore de outra região de mogênea, compacta, ocorre mediante o confronto
modo a constituir aquilo que queriam que fos- com a velha identidade. Porém, se no âmbito da
se cultura moçambicana.26 teoria o homem novo deve representar uma ruptura
qualitativa com os valores da cultura burguesa, da
A chamada “moçambicanidade cultural” de- cultura colonial e da cultura tradicional, factualmen-
veria, portanto, ser criada e recriada em contraposi- te esse processo atua sobre os indivíduos de manei-
ção à herança cultural portuguesa. “Muitos não sa- ra complexa. O homem novo é, em última instância,
biam que nós tínhamos cultura”, afirma o enérgico um produto, cuja pureza nunca se termina total-
Samora Machel, “mas que a cultura só a tinha o mente de alcançar.
povo português. O que nós tínhamos eram “usos e Descarta-se nessa lógica binária e excludente
costumes gentílicos dos indígenas” (Machel, 1977, qualquer metáfora religiosa, segundo a qual o ho-
p. 9). Os usos e costumes, às vezes tolerados, quase mem novo é o resultado de uma espécie de conversão
sempre estigmatizados, constituíram o dispositivo individual de consciência. Não há homem novo sem a
que mobilizou e justificou a empresa assimilacionis- modificação das bases “objetivas”, “materiais”’; não
ta portuguesa, diante da qual a “cultura” moçambi- é possível que ele emirja da simples modificação
cana, como substantivo singular, constrói-se e in- das superestruturas mentais ou ideológicas. Há, no
venta-se numa relação de enfrentamento a esse entanto, entre o homem novo pensado e o homem novo
elemento luso-centrista. Seja sob a forma de uma “real” um viés que só pode ser salvo quando este
cultura portuguesa, seja sob a forma de uma cultura ser genérico, universal se torna concreto.
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A apropriação sui generis do marxismo texto era, sem dúvida, mais global. A possibilidade
de um “marxismo caseiro”, para utilizar um adjeti-
Por trás da noção de homem novo existe uma con- vo cunhado pelo próprio Iain Christie, questionava,
cepção da natureza humana e da sociedade que se até certo ponto, certezas e idéias preconcebidas dos
funda, indubitavelmente, em alguns princípios ele- que haviam aprendido um marxismo de gabinete
mentares27 que Marx e Engels estabeleceram a par- na Europa ou nos Estados Unidos.
tir da segunda metade do século XIX, os quais, na Uma resposta semelhante à anterior foi a que
apropriação dos porta-vozes de Frelimo, assumem recebeu o sociólogo suíço Jean Ziegler, no início da
a forma de uma autêntica vulgata revolucionária. década de 1980. Ziegler visitou Moçambique como
No entanto, importa ressaltar que quando Samora simpatizante da Frelimo e seu objetivo, entre ou-
Machel era interpelado acerca da apropriação des- tros, era identificar a origem das raízes “marxistas”
ses princípios, bem como sobre sua adequada apli- do Partido. Christie, em sua biografia sobre Samo-
cação à sociedade moçambicana, sua resposta era ra Machel, reproduz o diálogo entre Ziegler e o
dirigida no sentido de sublinhar que a teoria, no presidente da Frelimo. “Quando foi a primeira vez
caso da Frelimo, surgira da experiência colonial e que leu Marx?” foi a pergunta do sociólogo:
da própria “prática revolucionária”.
Nascimento (1980) reproduz uma entrevista a “Bem”, disse o Presidente, “quando era jovem
Samora Machel realizada por Iain Christie28 e Allen costumava ajudar o meu pai, que era campo-
Isaacman29 em 1979, na qual lhe foi perguntado nês”. E continuou descrevendo como os cam-
sobre como divulgar o marxismo e construir o so- poneses africanos recebiam preços muito mais
cialismo numa sociedade formada por uma imen- baixos pelos seus produtos que os colonos por-
sa maioria de analfabetos. A resposta de Samora tugueses, e falou das várias facetas da explora-
Machel: ção que testemunhou em criança. Ziegler, co-
meçando a ficar impaciente, disse: “Sim, senhor
Esta questão reflete uma concepção errada do Presidente, mas quando leu Marx pela primeira
marxismo. Ela sugere que o marxismo é como vez?” “Bem”, disse Samora, “mas tarde na vida
uma bíblia. “Como eles podem aprender o juntei-me à Frelimo e tomei parte na luta
catecismo se eles não sabem ler” [...]. Quem armada”. E continuou falando dos conflitos
faz o marxismo? O cientista fechado com os políticos dentro do movimento, como a histó-
seus livros? Uma ciência pertence ao seu cria- ria de Ncavandame e dos novos exploradores.
dor. Quem é o criador do marxismo-leninis- Não querendo ser metido no bolso com esta
mo? [...]. Seu criador é o povo na sua luta secu- evasiva bem clara, o sociólogo insistiu: “Sim,
lar contra os diferentes sistemas de exploração... sim, mas ainda não me disse quando foi a pri-
A guerra popular de libertação, nossa ciência meira vez que leu Marx” “Ah, isso”, disse Sa-
militar [...] foi elaborada e desenvolvida pelo mora. “Durante a luta de libertação alguém me
nosso povo analfabeto. O marxismo-leninismo deu um livro de Marx. À medida que o lia,
não fez sua aparição em nossa pátria como apercebi-me que estava a ler Marx pela segun-
produto importado ou resultado da simples da vez (Christie, 1996, p. 188).
leitura dos clássicos. Nosso partido não é um
grupo de estudo composto de cientistas espe- Na base desta concepção, encontra-se a idéia
cializados na leitura e interpretação de Marx, de práxis. A teoria, neste caso, nasce da prática, da
Engels e Lênin (apud Nascimento, 1980, p. 25). “prática revolucionária” fundada na “luta de classes”
e na própria experiência de luta. Essa problemática
Para muitos intelectuais estrangeiros fascinados foi evocada à exaustão: o homem não é somente
com a possibilidade da construção do socialismo um produto, ele também produz sua própria his-
em um remoto país da África, essa resposta não tória em condições determinadas. Assim, o deter-
fazia mais que alimentar um imaginário, cujo con- minismo convive, de forma complexa, com o
FRAGMENTOS DE UMA IMAGINAÇÃO NACIONAL 25

voluntarismo político, cujo fundamento é a própria que é a indisciplina, o liberalismo e libertinagem,


experiência revolucionária: aquela experiência, segun- apresentaríamos esses alunos. Encontramos neles o
do a qual, Samora Machel, ao ler Marx, estava-o foco” (Idem, p. 19). “E por que é que ficaram ve-
fazendo “pela segunda vez”. lhos sem freqüentar a escola?”, indagava e interpe-
O processo de construção do homem novo seria, lava. “Por que é que ficaram velhos e não tiraram o
sem dúvida, tortuoso e complexo. A escola cumpri- sétimo ano no tempo colonial?”. Nesse discurso,
ria, portanto, o papel de ser, nas palavras de Samo- proferido no Pavilhão do Clube Sporting em Ma-
ra Machel, um “centro de combate e de produção puto, a platéia se manteve em silêncio. Era o habi-
da nova mentalidade, do homem novo” (1981, p. tual “estilo samoriano” de interpelar seus ouvintes
38), o que também implicaria a necessidade de ins- e, a seguir, arremeter com a resposta: “Sabem res-
taurar uma “luta ideológica” contra os desvios e as ponder esses velhos que estão aí? Viviam onde? Nem
corrupções, provenientes do “homem velho”. O conheciam a porta do Liceu Salazar, nem o ma-
corolário desta luta foi a teoria do inimigo interno. chimbombo30 que transportava os alunos para a
Escola Comercial. Nós trouxemos-os aqui, para o
estudo, e agora trazem o barulho”. Essa moral re-
A teoria do “inimigo interno” volucionária não admite meias palavras. Quando
Samora Machel falava, falava também o Estado/
As versões sobre uma conspiração que amea- Partido. É uma moral excludente, a lógica binária
çaria as “realizações revolucionárias” tornaram-se do eles ou nós. “Vamos tomar medidas breves em
mais evidentes por volta de 1977. Segundo Samora relação a esses velhos”, e afirmava contundentemen-
Machel, é nesse ano que ocorre uma “ofensiva rea- te e sem ambigüidades:
cionária nas escolas”. Na ocasião, a Frelimo já se
autoproclamava um Partido marxista-leninista, de- Serão expulsos e enviados para o campo de
nominação cunhada, sobretudo, a partir do III reeducação.31 São esses alunos velhos que ten-
Congresso. Entretanto, encontrava-se nas escolas, tam isolar os alunos mais novos que revelam
segundo Samora Machel, uma grande dificuldade consciência e responsabilidade na sua tarefa de
para implantar as diretrizes do Partido. estudar. Esses alunos velhos reprovam sistemati-
Em fevereiro de 1978, Machel pronunciou um camente, fomentam os vícios e a corrupção na
candente e enérgico discurso contra aqueles que di- escola, mantêm como tipo de relação aluno-
ficultavam o processo de construção do homem novo aluna a falta de respeito para com a mulher, falta
nas escolas. Contra quem ele dirigia este discurso? de respeito pela colega da escola. Espírito de
Os adjetivos para se referir a esses “inimigos” eram veterano, veterano de reprovações... Expulsa-
recorrentes: “reacionários”, “infiltrados”, “agentes remos esses. São maus. Devem ir para a ativida-
desestabilizadores”, “lacaios do inimigo” e assim de produtiva de outro tipo. Mas não é só expul-
sucessivamente. “O inimigo”, dizia, “lançou-se aber- sar. Primeiro é preciso punir. Temos o poder,
tamente nas escolas para ocupar posições favorá- o nosso poder é para criar o homem novo, a
veis, para injetar o seu veneno” (1978a, p. 6). nova mentalidade, novo tipo de relações, de
Havia, portanto, um conjunto de atitudes que respeito e admiração pelos nossos professores,
era preciso desterrar: a indisciplina, o racismo, o eli- porque eles são os nossos responsáveis (Idem,
tismo, o regionalismo, o chauvinismo. Aqueles de- p. 20).
nominados “veteranos” encarnavam nas escolas
essas atitudes. “É preciso terminar com o vetera- Esse era, pois, o grupo que supostamente vei-
nismo. É preciso terminar com a atitude dos alu- culava a mentalidade do “inimigo”,32 sendo preciso
nos mais velhos, que se recusam a enquadrar nas então “reeducá-lo”, extirpar os vestígios coloniais
escolas”, afirmava, e em tom de ameaça, continua- de sua cabeça. Samora Machel não economizava
va: “Eles constituem o foco de indisciplina, o mo- metáforas cirúrgicas. “Vestígios!”, gritava em um
delo de indisciplina. Se nós quisermos descrever o famoso discurso de 1977, dirigido aos trabalhadores
26 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 24 No 70

da educação. “Vestígios!”, voltava a repetir. “A ca- O desencanto pós-colonial


beça tornou-se base do inimigo”, e arrematando:
“É preciso o cirurgião abri-la e fazer uma raspa- A idéia de “pós-colonialidade”, pensada ape-
gem para tirar os quistos que estão lá incrustados. nas em termos diacrônicos, como se o sufixo “pós”
Vestígios!” (Machel, 1977, p. 14). estivesse autorizando somente uma sucessão tem-
Com o objetivo de impor uma autêntica cam- poral entre o “colonial” e o “pós-colonial”, consti-
panha pedagógica e moralizadora, a propaganda tui-se numa armadilha freqüente. Contudo, numa
da Frelimo chegou a idealizar e a popularizar um perspectiva sincrônica e analítica, as discussões so-
desenho, cuja personagem, Xiconhoca, era o por- bre a questão pós-colonial remetem mais ao con-
tador de todos os predicados que definiam o “ini- texto de um pessimismo teórico ou político (asso-
migo”. Xiconhoca representava o paradigma do in- ciado, também, a alguns debates “pós-modernos”)
divíduo preguiçoso, individualista, bêbado, corrupto do que ao período imediatamente posterior às inde-
e explorador, situando-se, portanto, nas antípodas pendência. Segundo David Scott, uma das raízes
do homem novo. do problema do pós-colonialismo reside no de-
Com o tempo, aquele entusiasmo revolucioná- sencanto produzido pela queda do “socialismo” e
rio foi amortecendo. Mais recentemente, ao consul- pelo triunfo das “relações de mercado” (Scott, apud
tarmos, por exemplo, um documento, publicado Robotham, 1997, p. 393). Em Moçambique, o de-
pelo Ministério da Educação em 1991, constatamos sencanto pós-colonial tem seu próprio itinerário.
que o Sistema Nacional da Educação tem por finali- Passados mais de trinta anos do momento em
dade não formar o homem novo, mas, simplesmente, que a idéia de “homem novo” começou a ser cons-
“Contribuir para a formação do Homem moçam- truída nos discursos de Samora Machel e de outros
bicano, com consciência patriótica, cientificamente notáveis membros da Frelimo, é possível agora en-
qualificado, profissional, tecnicamente capacitado e xergar os fatos a partir de uma perspectiva distinta
culturalmente liberto” (MINED, 1991, p. 3). e de forma menos apaixonada. O analista contem-
porâneo encontra-se, sem dúvida, em vantagem após
aqueles anos de efervescência revolucionária. Naquele
tempo, as palavras de ordem pareciam criar imedia-
tamente uma realidade sobre a qual não era possível
duvidar.33 O entusiasmo para criar a nova sociedade
neutralizava qualquer dúvida quanto à viabilidade
daquele otimismo revolucionário. Hoje, o termo ho-
mem novo soa um tanto antiquado, não tanto pelas visões
de messianismo salvacionista ou pelos ex-abruptos
moralistas que evoca, mas sim porque a sociedade
moçambicana foi se complexificando à medida que
aquela fraseologia se tranformava, progressivamente,
em uma cópia desgastada de si mesma.
Muitos intelectuais e militantes não-moçambi-
canos entusiasmaram-se com as mudanças que es-
tariam sendo geradas em Moçambique. Militantes
das mais diversas origens – Suécia, Canadá, Esta-
dos Unidos, Itália – igualmente se emocionavam
ao ver um líder africano como Samora Machel fa-
lando com uma ênfase inusitada sobre a constru-
ção do homem novo. Alguns cooperantes italianos, no
[Fonte: Mozambique! Exhibition Workshop Programmes, campo da educação, procuraram, inclusive, analisar
Stockholm, 1987. aquele processo introduzindo categorias derivadas
FRAGMENTOS DE UMA IMAGINAÇÃO NACIONAL 27

do pensamento de Antonio Gramsci.34 Todos eles dona o “marxismo”. Já a partir da década de 1990,
cumpriram, em seus respectivos países, um signifi- o país experimenta algumas transformações fun-
cativo papel de divulgação da “experiência” mo- damentais: fim da guerra civil, implantação da de-
çambicana. mocracia multipartidária e reformas no campo so-
Diante dessa espécie de Babel cultural e lingüísti- cioeconômico. Entretanto, e diante das incertezas
ca, compartilhada por exilados latino-americanos, do presente, a imagem de Machel era evocada como
cooperantes e intelectuais europeus, era possível, no uma garantia de segurança. Mas isso assumia mui-
entanto, uma linguagem comum, uma mesma gra- tas vezes a forma de uma narração mítica, que su-
mática constituída pela esperança de construir o blinhava sua sagacidade, sua capacidade de eloqüên-
socialismo naquele recanto da África. cia, sua coragem para superar as dificuldades e
No início dos anos de 1980, Moçambique en- enfrentar o inimigo externo ou interno e, claro, sua
contrava-se numa guerra civil que parecia intermi- força retórica.
nável. Foi quando Samora Machel lançou sua pri-
meira ofensiva política e organizacional para derrotar,
definitivamente, o “inimigo interno” e acabar com Considerações finais: narrativas da unidade
a corrupção nos locais de trabalho. Em 15 de mar-
ço de 1983 a Lei 2/79 foi ampliada, passando a Não posso elidir da memória os comícios na Praça da
prever a pena capital contra quem atentasse contra Independência. Então, a multidão formava o cinto à volta do Velho –
como chamavam, por respeito e afecto, ao Presidente Samora Machel.
a segurança do povo e do Estado; em 9 de abril rea- De todas as lições, o seu daltonismo marcou-me para sempre. Talvez
lizou-se, no bairro da Liberdade, em Maputo, um a realidade nos tenha enganado. E devolvido, na sua crueldade, a
comício de apoio à lei da chicotada, enquanto, em lembrança de que os homens, afinal, têm raças. Quero acreditar que
ele tinha razão: não havia brancos nem pretos, não havia mulatos nem
outro bairro, foram fuzilados publicamente seis in- amarelos, e sim moçambicanos.
divíduos condenados pelo Tribunal Popular Revo- Nélson Saúte, “Bandeiras de papel em mastros de
lucionário (Serra, 1997, p. 113). Nesse mesmo ano, caniço”, Público Magazine, 277, p. 34, 25/6/95, Lisboa.
começou a vigorar a chamada operação produção,35
formalmente destinada a evacuar os “improduti- Ao longo dos diferentes momentos da minha
vos” das cidades, enviados, aos milhares, para o estadia em Moçambique – entre 1996 e 2003 – ouvi
norte do país.36 No plano internacional, tal iniciativa inúmeros e diversos relatos sobre Samora Machel.
de neutralização do inimigo interno e externo se con- Buscando, talvez, uma inspiração levistraussiana, se-
sumou com a assinatura do Acordo de Incomati, ria útil tomar alguns deles como um conjunto nar-
em março de 1984. Formalmente, Moçambique e rativo único que envolve diferentes versões – ou
África do Sul passariam a assumir, a partir desse seja, o mito como o conjunto das suas transforma-
acordo, uma política de não-agressão e de boa vizi- ções, o qual, por sua vez, atua, para além dos con-
nhança, o que significou para muitos moçambica- teúdos substanciais das suas “histórias”, como o
nos simpatizantes da Frelimo um gesto de “trai- operador lógico de um tema recorrente: a unidade
ção”, no qual o país se curvava aos desígnios de da nação. Não se trata aqui de averiguar o caráter
uma África do Sul ainda dominada pelo apartheid.37 supostamente autêntico ou falso dessa ou daquela
De fato, a África do Sul acabou não cumprindo os narrativa sobre Samora, senão de indagar sobre
termos “pacificadores” do acordo e continuou, como uma determinada imaginação nacional é atua-
portanto, prestando ajuda militar à Renamo. lizada e reatualizada, sem solução de continuidade,
Poucos meses antes da morte de Samora Ma- à medida que essas narrativas – “lembranças/es-
chel, Moçambique inicia as negociações com o Fun- quecimentos” – são contadas e recontadas uma e
do Monetário Internacional e o Banco Mundial do outra vez. Talvez, um dos conjuntos mais revelado-
qual recebe, no início de 1985, um empréstimo de res – que ilustra, ao mesmo tempo, a natureza com-
45 milhões de dólares (Cahen, 1987, p. 132). No V plexa da relação Samora e o “povo” – seja o que
Congresso de julho de 1989 (ou seja, alguns meses coletei no Norte do país, num trabalho de campo
antes da queda do Muro de Berlim) a Frelimo aban- cujo objetivo era analisar a relação entre o Estado
28 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 24 No 70

(e seus porta-vozes) e as comunidades muçulmanas Também há outro conjunto de narrativas que


da província de Nampula e da Ilha de Moçambique. ilustra a relação de Samora Machel com os muçul-
Foi por volta de 1975 que Samora Machel, re- manos, mas num momento histórico posterior. Tra-
cém-presidente, viajou ao Norte do país em sua ta-se da famosa reunião realizada em dezembro de
primeira visita oficial. Na Ilha de Moçambique, Sa- 1982 entre a direção do partido Frelimo e do Estado
mora fez questão de se dirigir aos muçulmanos e moçambicano e os representantes das principais
ingressar na mesquita central. Esse ato ficou marca- confissões religiosas existentes no país. Desta vez,
do na “memória” de muitos muçulmanos, produ- não se trata de uma suspeita, rumor ou desconfiança.
zindo uma espécie de incidente-metáfora que, no Ao contrário, é um momento no qual o Estado-
futuro, alimentaria um conjunto de narrativas sobre nacional, após anos de implantação de uma política
a relação de Samora com os muçulmanos do Norte. anti-religiosa, resultado do ideário “marxista-leni-
Samora teria, supostamente, desrespeitado uma nista”, procura construir uma relação de cumplici-
regra sagrada para os muçulmanos ao adentrar na dade com as diversas comunidades religiosas em
mesquita central da Ilha de Moçambique: ele não nome do “amor à pátria” e da unidade nacional.
teria tirado os sapatos antes de ingressar no recinto Era o momento da já mencionada Ofensiva
principal. Contudo, nas várias entrevistas que reali- Política Organizacional, iniciada em 1980, que pro-
zei com diversos muçulmanos, as versões sobre o vocou debates profundos no partido Frelimo acerca
incidente foram diversas e contraditórias. Algumas dos rumos futuros do país. Contra o que Samora
pessoas inclusive pareciam não se sentir completa- chamava de “inimigo interno” haveria que se im-
mente à vontade para comentar do assunto. A au- por uma profunda moralização no seio do gover-
sência de uma versão clara e convincente sobre o no e, sobretudo, um forte controle no âmbito das
episódio mostra as tensões entre Samora Machel – administrações provinciais. Uma das palavras de
porta-voz da jovem nação moçambicana – e as ordem recorrentes era “organização” e foi precisa-
comunidades muçulmanas. Nesse sentido, a supos- mente isto que Samora Machel reclamou aos prin-
ta atitude de Samora constitui um pretexto para cipais representantes das comunidades religiosas do
pensar tanto os processos de construção de equí- país. Com igual veemência, clamava pela necessida-
vocos como de compatibilidades, e também para de de fortalecer a unidade nacional entre todos os
pensar as dinâmicas de atribuição de significados – moçambicanos: “Moçambicanos de todas as cren-
polissêmicos – em relação à sua figura. ças [...] esta Nação é patrimônio comum [...]. A
Todos os relatos sobre o episódio na mesquita Nação identifica-se pelos seus símbolos. Perante a
podem ser classificados dentro de três ordens. A história, perante a cultura, perante a Nação não há
primeira é a do escândalo e indignação. Os muçul- católicos, não há muçulmanos, não há protestantes,
manos de maioria macua, seguidores de alguns dos não há ateus – há moçambicanos patriotas ou anti-
braços das Confrarias do Norte do país, não tiveram patriotas” (1983, p. 20).
dúvida em se mostrar inconformados com seme- Daquele encontro participaram, entre outros
lhante atitude de desapreço por parte do primeiro líderes muçulmanos, o fundador do Conselho Islâ-
presidente do país. A segunda, à qual poderíamos mico de Moçambique, Abubacar Ismail Manshirá,38
chamar de diplomática, reconhece a gravidade da conhecido como Maulana Abubacar. No seu dis-
falta, mas busca amenizar o incidente ao postular curso diante o presidente de Moçambique, Maula-
que nenhum dos assessores de Samora Machel lhe na Abubacar esboçou, de início, uma descrição dos
avisou acerca dos procedimentos de etiqueta para motivos que, até aquele momento, dificultaram uma
o ingresso na mesquita. Esta reação busca absolver organização representativa dos muçulmanos “pe-
Samora de qualquer culpa, depositando todo o peso rante o governo, ou perante as organizações religio-
da responsabilidade na falta cometida por seus as- sas internacionais” (1983, p. 25). Logo em seguida,
sessores e acompanhantes imediatos. A terceira foi atribuiu tais dificuldades ao período colonial, que
simplesmente a da negação: o imediato não reconhe- tolerou as confrarias muçulmanas – símbolos, na
cimento do incidente, classificando-o como calúnia. visão de Maulana Abubacar, de um Islã atrasado –,
FRAGMENTOS DE UMA IMAGINAÇÃO NACIONAL 29

mas dificultou a criação de uma organização que nessa altura, tinha por lema: Unidade, Trabalho
comportasse todos os muçulmanos de Moçambi- e Vigilância. Frelimo insistia com essas três con-
que. Na segunda parte do seu discurso, Maulana signas para que o povo estivesse organizado.
utiliza-se de uma inconfundível linguagem samoria- Então, Maulana Abubacar retomou esses temas
na num esforço nítido de ganhar a simpatia de Sa- e apresentou-os, usando o Alcorão e os Hadiths.
mora ou, pelo menos, sua aprovação. A religião Samora gostou bastante e achou que havia uma
muçulmana, diz Maulana “sempre recita uma cita- certa afinidade entre a política oficial e a filoso-
ção do profeta Mohamed, que diz: ‘Amar a Pátria fia islâmica. Então, a partir dessa data ele [Sa-
faz parte da crença’” (Idem, p. 26). mora] simpatizou muito com o Conselho Islâ-
A partir daquele momento abriram-se as por- mico de Moçambique e houve maior abertura
tas para a existência de uma compatibilidade moral do governo para que o Conselho pudesse ex-
sob a qual seria possível detectar os componentes pandir em nível de todo o país.39
inequívocos do homem novo, mil e uma vezes esboça-
do pelo discurso de Samora No contexto de um país multilingüe, plurireli-
gioso e pluriétnico, essas lembranças – e narrativas
Nós, muçulmanos, pregamos sempre estas pala- de “unidade” – possuem uma força particular. Bene-
vras nos nossos sermões nas mesquitas. Mas dict Anderson (2005) ressaltou que para a nação
como amar a Pátria? Só fazer propaganda? Não. existir como comunidade imaginada, é preciso que
É preciso trabalhar, desenvolver a Pátria e para a recordação real seja substituída por uma recorda-
isso é necessário construir escolas, hospitais, es- ção mítica. Em outras palavras, o surgimento de
tradas, poços, seminários, orfanatos, etc., e defen- uma nova consciência nacional exige também uma
der a Pátria contra os inimigos, os bandidos, os nova forma de amnésia. A guerra entre Frelimo e
ladrões, e lutar contra a prostituição (Idem, p. 26). Renamo, as violentas medidas “revolucionárias”,
como a implantação da Operação Produção e a
Maulana Abubacar, sem dúvida, sabia como construção de prisões, eufemisticamente denomina-
agradar Samora. A última parte do discurso, po- das Centros de Reeducação, entram nessa lógica de
rém, compõe-se de reclamações e reivindicações recordação/esquecimento. Sob tal premissa da ima-
dirigidas ao governo que, em traços gerais, apon- ginação nacional, a guerra ocorrera, no final das con-
tam para o favorecimento do ensino do Islã e a tas, entre “irmãos” que se consideravam inimigos –
capacitação educacional de jovens muçulmanos nas- e não entre “proto-nações”. Essa perpétua invoca-
cidos em Moçambique em países como Líbia, Ira- ção – e evocação – da figura de Samora Machel
que, Arábia Saudita e Egito. contribui para criar e recriar a ilusão da confraterni-
No Norte de Moçambique – na província de dade e a renovação indefinida do mito tranqüiliza-
Nampula – tive a oportunidade de coletar um relato dor do fratricídio.
instigante acerca desse discurso de Maulana Abuba- Nos anos de 1990, Moçambique consolida sua
car. Não contradizia o conteúdo substancial do dis- política econômica sob os auspícios do Banco
curso publicado pelos próprios órgãos de Frelimo, Mundial e do Fundo Monetário Internacional (Bo-
mas acrescentava uma suposta reação de admiração wen, 1992; Simpson, 1993). As “novas gerações”
que Samora Machel tivera após ouvir o dirigente do Sul do país – funcionários, intelectuais, empre-
muçulmano. O relato me foi contado pelo então sários, comerciantes – não parecem se incomodar
subdelegado provincial do Conselho Islâmico em com este novo rumo. Entretanto – e seguindo as
Nampula: palavras de Iraê Lundin (1995, p. 440) – o partido
Frelimo resta polarizado entre os “velhos” políti-
Ele [Samora] gostou bastante da apresentação cos da Assembléia da República e os “novos” tec-
de Maulana Abubacar. Naquele encontro Mau- nocratas do governo. Apesar das idas e vindas da
lana fez uma intervenção acerca da ideologia política local, a figura de Samora Machel continua a
do Islã incorporando os temas que a Frelimo, ser reinventada pelos porta-vozes da nação, por meio
30 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 24 No 70

dos grandes rituais nacionais, das celebrações de culto Frelimo pelos seus porta-vozes. Do ponto de vista
aos mártires da pátria e, sobretudo, dos murmúrios de uma análise externa, o assunto requereria uma lon-
que ecoam na cidade baixa (o centro de Maputo): “na ga reflexão acerca do tipo de apropriação prática e teó-
época de Samora não havia corruptos, como hoje”; rica que, de fato, fez a Frelimo desses princípios. Sobre
o assunto, ver, entre outros, Darch e Hedges (1998); o
“se Samora vivesse não haveria tanta delinqüência
estudo pioneiro de Thomas H. Henriksen (1978). En-
em Moçambique”; “Samora sempre dizia ‘cabrito tre os trabalhos mais recentes, ver Simpson (1993);
come onde está amarrado’, pois bem, temos que Kruks (1987); também a reveladora entrevista de Joe
terminar com o cabritismo na política” (ou seja, Slovo com Marcelino dos Santos: “Frelimo faces the
com a corrupção). Eis algumas das frases que ouvi future” (1973). Por último – e principalmente – ver o
em 1996. O espectro do “camarada Samora” pare- capítulo “Marxisme et mozambique” em Cahen
cia, assim, estar mais vivo do que nunca. Sem dúvi- (1987) e a tese de doutorado – ainda inédita – de Brito
da, essas narrativas contribuem para nos fazer recor- (1991).
dar que, apesar de tudo e uma vez mais, “de Rovuma 3 Na ocasião, uma Comissão da Procuradoria Geral de
a Maputo” há um só povo, uma nação, “todos República foi criada para apurar os fatos. Em 1996, o
moçambicanos”. Entretanto, a comunidade imaginada jornal Renascer de Maputo publicou uma polêmica
continuará a exigir a sobreposição dessas lembran- entrevista com Humberto Casadei, um grande admi-
ças – e ilusões de unidade – com outros esqueci- rador de Samora Machel, cujo principal argumento, a
partir de um inquérito “pessoal”, veicula a idéia de
mentos, pois essa é a condição de existência que
que o “acidente” não poderia ter sido provocado sem
toda nação – de forma inconsciente, diria Benedict
o envolvimento interno, ou seja, sem a participação
Anderson – reclama para si. Por fim, e voltando à de “mãos moçambicanas” (“Quem matou Samora
epígrafe inicial, essa condição imaginativa está singu- Machel?”, Renascer, Maputo, out. 1996).
larmente condensada nas próprias palavras, talvez
4 Mesmo que a divisão jurídica “indígenas” e “não in-
um tanto melancólicas, do escritor moçambicano dígenas” tenha começado a se cristalizar já no Código
Nélson Saúte: “Quero acreditar que ele [Samora] de Trabalho de 1899, foi em 1928 que o código do
tinha razão”. Tal evocação veicula, mais uma vez, a Indigenato adquiriu uma sistematização definitiva, sen-
constatação de que “vontade” e “crença” são, tam- do abolido apenas em 1961.
bém, elementos constitutivos e intrínsecos da ima- 5 Ver, sobretudo, Serra (1997, pp. 39-44).
ginação nacional.
6 Um exemplo desta historiografia “consagrada” são
os manuais História de Moçambique, elaborados e edita-
dos pelo Departamento de História da Universidade
Notas Eduardo Mondlane.
1 Eduardo Mondlane nasceu em 1920. Estudou com 7 A esse respeito, ver também Depelchin (1983), Sch-
missionários suíços no sul de Moçambique. Em 1949, neidman (1978) e Azzina (1985).
conseguiu, com ajuda do Conselho Cristão de Mo- 8 Aquino de Bragança foi jornalista, militante histórico
çambique, matricular-se na Universidade de Witswa- da Frelimo e conselheiro particular de Samora Machel.
tersrand, na África do Sul, sendo expulso pelo regime Faleceu, junto com o presidente de Moçambique, no
do apartheid alguns meses depois. Em 1950, perma- referido “acidente”.
neceu por um breve período na Casa dos Estudantes 9 Não é meu objetivo neste artigo analisar pormenori-
do Império, em Lisboa. Em 1951, partiu para os Es- zadamente as diversas fases pelas quais atravessou o
tados Unidos, onde concluiu o doutorado em 1957. pensamento político de Eduardo Mondlane. Em rela-
Após trabalhar como professor universitário e como ção ao dilema entre a obtenção de uma independência
consultor das Nações Unidas sobre assuntos africa- negociada e uma independência obtida através da luta
nos, decidiu, com o apoio de Julius Nyerere, formar armada, podemos evocar as palavras de Sansão Mu-
em 1962 a Frelimo. Para mais detalhes sobre a biogra- temba: “Eduardo Mondlane... era uma pessoa contra
fia de Eduardo Mondlane, ver os trabalhos de Teresa a guerra e, portanto, contra todas as violências. Mesmo
Cruz e Silva (1992, 1999, 2001). quando ele se conscientizou que o futuro de Moçam-
2 As aspas são utilizadas no sentido de relativizar esta bique teria de ser a independência, a idéia de alcançá-la
autocategorização processada no interior da própria apenas através de conversações com o Governo Por-
FRAGMENTOS DE UMA IMAGINAÇÃO NACIONAL 31

tuguês dominou-o durante anos seguidos. Só quan- nha eleitoral da Renamo nas primeiras eleições demo-
do a luta armada surgiu como a única alternativa pos- cráticas multipartidárias de Moçambique, em 1994.
sível, só quando todas as outras possibilidades se frus- 16 Sobre o desenvolvimento do processo de pacificação
traram é que ele aderiu e se engajou decididamente e posterior implantação de um sistema democrático
nessa via com o seu povo” (entrevista com Sansão multipartidário, consultar o livro Moçambique. eleições,
Mutemba: “Mondlane, o homem e a revolução”, com democracia e desenvolvimento, editado por Brazão Mazu-
textos de Mota Lopes, Tempo, Maputo, 227, p. 7, 1975). la, 1995, Maputo.
10 Lázaro Ncavandame era um comerciante maconde que 17 Ver a entrada correspondente a “new man” em Roger
tivera relativo sucesso com a organização da sua coo- Scruton, A dictionary of political thought, Macmillan
perativa – a Sociedade Africana Algodoeira Voluntária Press, Londres, 1982, p. 322.
de Moçambique. Apesar das desconfianças de algu- 18 Sérgio Vieira ingressou na Frelimo quando ainda era
mas lideranças da Frelimo em Dar-es-Salam, foi con- estudante universitário na Europa. Mais tarde, foi
vidado, no final de 1962, para ocupar o lugar de regio- ministro de Segurança e diretor do Banco Central do
nal “chairman” na província de Cabo Delgado. O ápice governo Samora Machel. Nos anos de 1990, foi dire-
de seus conflitos com a Frelimo data de 1968, mo- tor do Centro de Estudos Africanos da Universidade
mento no qual Ncavandame cogita a possibilidade de Eduardo Mondlane e deputado pela Frelimo.
uma independência somente para Cabo Delgado, pro-
víncia do norte do país. Acusado de oportunismo e 19 Esse discurso foi publicado em 1973 pelo Departa-
traição, Ncavandame é expulso da organização. mento de Informação e Propaganda da Frelimo no
segundo Caderno da coleção “Estudos e Orientações”.
11 Assim eram denominadas, durante a luta armada, as Foi republicado em 1978 pelo Departamento do Tra-
áreas que a Frelimo conseguia controlar e tornar “li- balho Ideológico da Frelimo. De acordo com o prefá-
vres” da presença colonial portuguesa. Entre 1967 e cio da segunda edição: “O estudo ‘Educar o homem
1969, já se encontrava “liberada” a faixa norte do país, para vencer a guerra, criar uma sociedade nova e desen-
na zona limite com a Tanzânia. Esse processo foi se volver a pátria’ ocupa um lugar de particular impor-
estendendo a partir do norte até chegar à província de tância [...]. Ele foi efetuado pelo Presidente Samora
Tete, entre 1970 e 1972. Machel com o objetivo de definir a natureza da Edu-
12 O lobolo é uma instituição amplamente difundida nas cação e da Cultura revolucionárias e suas características
sociedades – patrilineares – bantus e consiste numa de ruptura com os sistemas de Educação das socieda-
compensação nupcial que a família do noivo oferece à des tradicional-feudal e colonialista” (1978, p. 3).
família da noiva no momento do casamento. 20 Alhures, analisei a complexa construção jurídica de
13 A bibliografia, sobre esse tema aumentou considera- “assimilado” em contraposição à noção de “indíge-
velmente nos últimos anos. Entre as reflexões reali- na” (Macagno, 2001).
zadas pelos próprios moçambicanos, ressaltamos o 21 Tal como anuncia Verena Stolcke (2000), dos três ele-
artigo de Brito (1988). Sobre o processo de gestação mentos constitutivos do Estado moderno (um terri-
das idéias “protonacionalistas” e o surgimento de uma tório, um governo, um povo), circunscrever o “povo”
consciência política no sul de Moçambique, ver o livro demonstrou ser a questão mais problemática. O mes-
de Teresa Cruz e Silva (2001). Entre os trabalhos re- mo processo foi detalhadamente abordado por Etien-
centes, ver o artigo de Cahen (2005). ne Balibar (1991) nos termos, por ele denominados,
14 Um dos trabalhos mais instigantes sobre essa guerra “produção do povo”.
foi realizado pelo antropólogo Geffray (1990). Nesse 22 Luis C. de Brito (1991), em sua tese de doutorado,
livro, Geffray pretende demonstrar que, para além dos aplica uma distinção entre o termo “nacionalismo”,
apoios externos à Renamo, havia, no norte de Mo- concernente ao que politicamente já é nacional, e a
çambique, um descontentamento real das populações expressão – por ele cunhada – “nacionismo”, que, no
rurais em relação à Frelimo, que teria sido capitalizado caso de Moçambique, traduz social e culturalmente
pela estratégia desestabilizadora da Renamo. Para uma um “nacionalismo do Estado”, ou seja, o desejo de
crítica ao livro de Geffray, ver o artigo de O’Laughlin uma elite minoritária de proceder à rápida “fabricação
(1992). Um artigo mais recente sobre esse marcante da nação”. Nesse sentido, segundo Cahen (1995, pp.
livro foi escrito por Florêncio (2002). 87-88), um dos motivos pelos quais essa elite mino-
15 Para aprofundar esta questão, ver o artigo de Hall (1990). ritária foi capturada por um certo marxismo corres-
Michel Cahen (2004) retrata os bastidores da campa- ponde à sua “necessidade de criar um Estado forte,
32 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 24 No 70

lugar da sua reprodução social, meio da criação rápida que: anti-colonial activity in the Zambesi Valley, 1850-1921
de uma nação moderna de tipo européia e jacobina, e Mozambique: from colonialism to revolution, 1900-1982.
negadora da etnicidade”, de modo que esse certo mar- Também realizou valiosa entrevista com Raúl Ber-
xismo, “na sua versão staliniana, era operante para nardo Honwana – pai de Raul Honwana – publicada
exprimir esse nacionalismo”. em português sob o título: Raúl Bernardo Honwana:
23 Bertil Egerö é uma cientista social de origem sueca, memórias.
cujos primeiros contatos com a Frelimo datam da 30 Termo cotidiano usado em Moçambique para se refe-
década de 1960. Colaborou como “cooperante” com rir aos ônibus.
o governo moçambicano entre 1978 e 1980, na Co- 31 A história e a sociologia daquilo que a Frelimo eufe-
missão Nacional de Plano. Sua tarefa inicial consistia misticamente denominava “campos de reeducação”
em participar dos preparativos para o primeiro recen- era, ainda, uma tarefa a ser realizada.
seamento da população em Moçambique indepen-
dente, marcado para 1980, fato que lhe permitiu per- 32 Omar Ribeiro Thomaz (2004) analisou, com novas
correr várias regiões do país. contribuições etnográficas, a construção da categoria
de “inimigo” em Moçambique, mas, dessa vez, apli-
24 Segundo Cahen, “O ‘poder popular’ é tão somente cada às comunidades de origem indiana, compostas
uma ficção ideológica e nunca foi definido de outro na sua maioria por comerciantes bem-sucedidos, vul-
modo que por sua representação pelo partido. Com a garmente chamados de “monhés”.
exceção significativa de associações patronais e de pe-
quenos produtores, nenhuma organização era inde- 33 O livro pioneiro de Michel Cahen, publicado em 1987
pendente do partido. Elas possuíam todos os seus talvez seja uma exceção a esse respeito. Nas vésperas
dirigentes nomeados por ele e tinham como única de Moçambique reconhecer abertamente sua entrada
tarefa transmitir sua linha neste ou naquele setor da numa “economia de mercado”, o autor consegue de-
população” (1987, pp. 73-74). Para um aprofunda- monstrar que, na verdade, a natureza “socialista” do
mento desta crítica, ver também Cahen (1985). regime da Frelimo era mais ideológica do que real.
Apesar dos grandes discursos “rupturistas” de Sa-
25 Raul Honwana Jr. é escritor e professor. Filho de Raul mora Machel, a continuidade estrutural com o perío-
Bernardo Honwana e membro de uma família de vá- do colonial foi marcante, sobretudo no que concerne
rias personalidades que se destacaram na vida pública à relação com a África do Sul: “dependência em relação
moçambicana. Aos 5 anos de idade, perdeu a visão à África do Sul estava a tal ponto impressa nas estru-
em conseqüência de uma meningite. Aprendeu os turas mesmas do Moçambique colonial que a nature-
primeiros rudimentos de Braile aos 13 anos e acabou za das ligações a se estabelecer entre a República Popu-
por se formar em Filosofia na Universidade Clássica lar independente e o país do apartheid estavam
de Lisboa. estreitamente ligadas à natureza de classe da indepen-
26 Entrevista pessoal a Raul Honwana, Maputo, out. 1996. dência de Moçambique (Cahen, 1987, p. 105).
27 No caso dos discursos de Frelimo, esses princípios 34 É o caso paradigmático de Gasperini (1980, 1984) e
podem ser rastreados em alguns textos básicos, tais Gasperini e Nascimento (1980).
como A ideologia Alemã, A origem da família, a proprieda-
de privada e o Estado e, sobretudo, o prefácio de Contri- 35 Tal como explica José Luis Cabaço, a Operação Produ-
buição à crítica da economia política. ção “consistiu no envio forçado de cidadãos conside-
rados improdutivos da cidade para as áreas rurais, em
28 Iain Christie nasceu em 1943, em Edimburgo, Escó- particular, para a província do Niassa” (1995, p. 92). A
cia. Trabalhou para jornais britânicos de 1958 a 1970, Operação ocorreu entre julho e setembro de 1983. No
quando foi viver na Tanzânia, onde trabalhou como entanto, Luis de Brito ressalta que a idéia dessa Opera-
jornalista até 1975. Passou a viver em Moçambique a ção vinha sendo discutida bem antes do ano da sua
partir de 1975; trabalhou na agência de informação implementação, pois o desemprego e as migrações
nacional, atuando, depois, na Rádio de Moçambique em direção a Maputo começavam a preocupar os diri-
como chefe do serviço externo. Tornou-se cidadão gentes da Frelimo. Segundo Brito, essa degradante
moçambicano em 1996. situação derivava, em grande medida, da “partida
29 Historiador norte-americano e conhecido “moçam- massiva dos colonos e a tensão das relações do Mo-
bicólogo”. Allen Isaacman escreveu, junto com Bar- çambique independente com a África do Sul e a Rodé-
bara Isaacman, The tradition of resistente in Mozambi- zia haviam provocado uma onda de desemprego em
FRAGMENTOS DE UMA IMAGINAÇÃO NACIONAL 33

certos setores da economia [...] com a chegada de no- AZINNA, Nwafor. (1983), “Frelimo and socialism
vos desempregados, a situação piora. O afluxo à Ma- in Mozambique”. Contemporary Marxism, 7: 28-67.
puto de um grande número de trabalhadores rurais BALIBAR, Etienne. (1991), “The nation from: his-
[Fr.: ruraux] originários das províncias do sul de Mo- tory and ideology”, in Etienne Balibar e Imma-
çambique foi o resultado da súbita interrupção, no
nuel Wallerstein, Race, nation, class: ambiguous iden-
momento da independência, do recrutamento pelas
minas sul-africanas. A partir de 1980, esse movimen-
tities, Londres, Verso.
to foi ainda acelerado pelos efeitos da guerra conduzi- BOWEN, Merle L. (1992), “Beyond reform: ad-
da pela Renamo nessas regiões” (1991, pp. 235-136), justment and political power in contemporary
de modo que essa “questão foi abordada pela primei- Mozambique”. The Journal of Modern African
ra vez quando da reunião nacional dos comitês dos Studies, 30 (2): 255-279.
distritos (Mocuba, 16-21 de fevereiro de 1975). As BRITO, Luis C. de. (1988). “Une relecture neces-
recomendações dessa reunião preconizavam a adoção saire: la genèse du parti-État Frelimo”. Politique
de ‘medidas políticas e administrativas’ para enfrentar Africaine, 29, mar.
o problema” (Idem, pp. 234-235). _________. (1991), Le Frelimo et la construcution de
36 Segundo Brito, “no imaginário dos dirigentes da Freli- l’État national au Mozambique: le sens de la réference
mo, aqueles que eles consideravam ‘improdutivos’ au marxisme (1962-1983). Vincennes, Université
(desempregados e outros) eram os preguiçosos, os de Paris VIII, U.F.R. Terriroires, Economies,
bandidos, os criminosos. Assim [...] o objetivo foi Sociétés.
também o de eliminar a ‘ameaça’ que representava,
CABAÇO, José Luis. (1995), “A longa estrada da
nas grandes cidades, uma camada social potencialmente
perigosa e suscetível de apoiar a Renamo” (1991, pp.
democracia moçambicana”, in Brazão Mazula
242-243, n. 30). (org.), Moçambique. eleições, democracia e desenvolvi-
mento, Maputo, Patrocínio Embaixada do Rei-
37 Conforme a minuciosa análise que Michel Cahen rea-
no dos Países Baixos.
liza sobre as causas e as conseqüências do Acordo de
Incomati, não foi ele, como muitos interpretaram _________. (2007), Moçambique: identidades, colonia-
apressadamente na época, um resultado extremo do lismo e libertação. São Paulo, tese de doutorado,
“pragmatismo marxista” da Frelimo, mas, sim, uma Programa de Pós-Graduação em Antropolo-
conseqüência previsível da própria natureza da depen- gia Social, FFLCH/USP (mimeo.).
dência de cunho capitalista de Moçambique em rela- CAHEN, Michel. (1985), “État et pouvoir popu-
ção à África do Sul. “A Frelimo não mudou de linha laire dans le Mozambique indépendant”. Politi-
após Incomati; apenas enfrentou uma situação resul- que Africaine, 19: 36-60.
tante do colonialismo, que ele próprio [o partido Fre- _________. (1987). Mozambique: la révolution implo-
limo] não tinha conseguido destruir: o jogo clássico sée. Paris, L’Harmattan.
das leis do mercado” (Cahen, 1987, p. 94), que se tra-
_________. (1994). “Moçambique, histoire géo-
duziu num “processo crescente de liberalização da eco-
nomia em bases neo-coloniais” (Idem, p. 35). politique d’un pays sans nation”. Lusotopie – En-
jeux Contemporaines dans les Espaces Lusophones, 1-
38 Nascido em Inhambane, Maulana Abubacar estudou
2: 213-266, Paris, Karthala.
durante onze anos na Arábia Saudita formando-se
em direito islâmico (Sharia) pela Universidade Islâmi- _________. (1995), “Une Afrique lusophone libé-
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180 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 24 No 70

FRAGMENTOS DE UMA FRAGMENTS OF A NATIONAL FRAGMENTS D’UNE


IMAGINAÇÃO NACIONAL IMAGINATION IMAGINATION NATIONALE

Lorenzo Macagno Lorenzo Macagno Lorenzo Macagno

Palavras-chave: Imaginação nacional; Keywords: National imagination; Mo- Mots-clés: Imagination nationale; Mo-
Moçambique; Socialismo; Frelimo; zambique; Socialism; Frelimo; Samora zambique; Socialisme; Frelimo; Samora
Samora Machel. Machel. Machel.

Desde o início da luta armada contra a From the start of the armed struggle Depuis le début de la lutte armée contre
presença de Portugal (1964) até a inde- against the Portuguese presence (1964) la présence du Portugal (1964) jusqu’à
pendência de Moçambique (25 de junho up until the independence of Mozambi- l’indépendance du Mozambique (25 juin
de 1975), os debates no seio da Frente que (June 25, 1975), the debates at the 1975), les débats au sein du Frelimo
de Libertação de Moçambique – Fremilo heart of the Frelimo (Mozambique Lib- (Front de Libération du Mozambique)
transitaram pelo dilema “nacionalismo eration Front) reflected the dilemma of tournèrent autour du dilemme “nationa-
anticolonial” versus “socialismo”. Tais “anticolonial nationalism” versus “social- lisme anti-colonial” versus “socialisme”.
debates trazem para o centro da discus- ism.” These debates have placed at the Ces débats plaçaient au centre de la dis-
são os dilemas que oscilavam entre o center of the discussion the dilemmas cussion, les dilemmes qui oscillaient en-
postulado de ser a Frelimo uma simples that fluctuate between the idea of the tre le postulat d’un Frelimo considéré un
frente de libertação nacional e, no outro ex- Frelimo as simply a national liberation front, simple front de libération national et, à un
tremo, um Estado/Partido, que mais tar- and, at the other extreme, as a State/Party autre extrême, un État/Parti – qui, pos-
de se autodenominaria “marxista-leni- that would later come to call itself “Mar- térieurement, s’autodénominerai marxis-
nista”, o que possibilitaria, na visão de xist-Leninist” and that would enable, te-léniniste” – qui permettrait, suivant
seus porta-vozes, a modernização e o de- according to the vision of its spokesper- l’optique de ses porte-paroles, la moder-
senvolvimento do país. Este artigo re- sons, the modernization and development nisation et le développement du pays.
constrói esses debates sob o horizonte of the country. This article reconstructs Cet article reconstruit ces débats sous
das contribuições de Benedict Anderson these debates from the perspective of the l’égide des contributions de Benedict
e analisa as representações em torno da contributions of Benedict Anderson, and Anderson et analyse les représentations
figura “mítica” do líder nacionalista analyzes the representations surrounding autour de la figure “mythique” du leader
Samora Machel. the “mythical” figure of the nationalist nationaliste Samora Machel.
leader Samora Machel.

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