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Xiconhoca, o inimigo:
Narrativas de violência sobre a construção da
nação em Moçambique*
Este artigo analisa de forma ampla a transição política e as formas como a Frelimo tem
lidado com a construção do projeto nacional, a partir de uma abordagem multidisciplinar
e multissituada. O artigo discute a tentativa da criação do ‘homem novo’ no Moçambique
independente, avaliando a continuidade da presença da figura do inimigo interno,
representado pelo Xiconhoca. Analisa‑se, finalmente, o tema das reuniões de busca de
verdade e de reconciliação realizadas em 1975 e 1982 para redimir os considerados traidores
ou atores antissociais –, discutindo em maior detalhe o contexto político‑ideológico em que
estas reuniões aconteceram, assim como as suas implicações no contexto da construção
da cidadania e da história oficial de Moçambique. Esta análise procura contribuir para
repensar a violência comunitária e estatal em Moçambique e o papel de encontros de busca
da verdade e de reconciliação nos processos de descolonização política.
Introdução
A guerra destrói pessoas, devasta sociedades, física, emocional e mentalmente.
No contexto de Moçambique, a narrativa sobre a experiência da guerra nacio‑
nalista continua a marcar a construção do imaginário nacional. Como este
texto procura discutir, o ‘imaginário nacional’ idealizado pela FRELIMO1
* Este texto é fruto de vários trabalhos de pesquisa realizados ao longo dos últimos anos, sobre as
transições políticas na África austral. Gostaria de reconhecer o apoio da Fundação para a Ciência e
Tecnologia de Portugal, através dos projetos PTDC/AFR/103057/2008 e PTDC/AFR/121404/2010
– FCOMP‑01‑0124‑FEDER‑019531. O presente trabalho não teria sido possível sem a camara‑
dagem académica de Benedito Machava, Carolina Peixoto, Iolanda Vasile e Bruno Sena Martins.
1
A FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) foi o principal movimento nacionalista
na luta pela independência do país, em 1975. Em 1977, mantendo o mesmo nome, a Frelimo
estabeleceu‑se como partido político. Desde a independência a Frelimo tem sido a principal
força política no poder, quer durante o período de partido único, quer com a introdução do
multipartidarismo (1992).
10 | Maria Paula Meneses
3
Veja‑se Souto (2007); Zawangoni (2007); Cabaço (2009).
4
Por exemplo Martins (2001); Ncomo (2003); Veloso (2006); Mboa (2009); Moiane (2009);
Bragança (2009); Vieira (2010); Chissano (2011); Langa (2011); Monteiro (2012); Pelembe (2012);
Matsinha e Sampaio (2012); Nalyambipano (2013).
5
Vários trabalhos têm procurado explorar o impacto entre o esquecimento oficial e as narrativas
alternativas, produzidas a partir de uma diversidade de perspetivas. Veja‑se, entre outros, no
contexto moçambicano, West (2003); Pitcher (2006); Igreja (2008); Machava (2011); Coelho (2013).
6
A figura do Xiconhoca foi criada logo após a independência pelo Departamento de Informação
e Propaganda da FRELIMO.
12 | Maria Paula Meneses
7
As traduções são da responsabilidade da autora.
8
Veja‑se o maço “Dossier do SCCIM referente a elementos da FRELIMO – Frente de Libertação
de Moçambique” (1963‑1965), Arquivo Histórico Diplomático, Fundo do Ministério do Ultramar,
Governo de Moçambique/ Gabinete dos Negócios Políticos, com a cota RNP/0025/12029.
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9
Intervenção de Adriano Moreira “Portugueses, mas não tanto...” no âmbito do ciclo “1961,
o ano de todos os perigos”, organizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
em 2011.
10
Proclamação feita a 25 de setembro de 1964.
11
Entrevista com um antigo combatente da Luta de Libertação Nacional, realizada em Maputo,
em 2011. De referir que, de acordo com a política do movimento, os guerrilheiros da FRELIMO
eram ensinados a assumir o colonialismo português como principal inimigo, o qual atuava através
do seu agente principal, o Exército. Como resultado, o número de mortos entre os civis portugue-
ses foi bastante baixo.
16 | Maria Paula Meneses
13
Veja‑se Martins (2001); Ncomo (2003); Vieira (2010); Pachinuapa (2011); Matsinha e Sampaio
(2012).
14
“Gloomy situation in FRELIMO”, publicado a 3 de setembro de 1969. Este documento é
parte integrante do maço “PIDE/DELEGAÇÃO DE MOÇAMBIQUE, Assunto: Uria Simango,
Informação n.º 1299‐CI (2), Lourenço Marques, 30 de dezembro de 1969”, ANTT – PIDE/DGS,
Processo 2826/62, FRELIMO, vol. 1.
15
Uria Simango seria formalmente expulso da FRELIMO durante uma sessão do Comité
Central do movimento, realizada em maio de 1970. Na mesma sessão Samora Machel foi eleito
presidente do movimento.
18 | Maria Paula Meneses
[…] uma forma embrionária do Estado Popular, defensor dos interesses das classes
mais exploradas e oprimidas da sociedade. Os novos organismos de Poder continham
os princípios da democracia, da participação ampla das massas, dos militantes e dos
combatentes na resolução dos problemas da guerra, da produção, do comércio,
da educação, da saúde, em suma, da organização da vida coletiva em cada região.
(Machel, 1978a [1970]: 144)
Nos anos 70, com o estender da luta para sul (Tete, Manica e Sofala),
o projeto político foi‑se consolidando, expresso agora como uma revolução
democrática popular, cujo objetivo central era o estabelecimento de uma
ordem social mais justa e igualitária (Machel, 1977a: 113). A conceptuali‑
zação de inimigo conheceu um aprofundamento analítico, integrando não
apenas o colonialismo, mas todas as formas de dominação e exploração que
se erguiam contra o projeto de Estado popular. Na frente interna, a luta
pela melhoria das condições de vida do povo, contra a corrupção, contra
os desertores que traíam a luta, foi ganhando referência na identificação
do ‘inimigo’ do ‘homem novo’ que emergia em Moçambique. Este inimigo
interno revelava‑se crescentemente complexo, atuando, sob múltiplos
disfarces, em várias frentes (militar, política e económica), como desvelam
os documentos consultados e as informações recolhidas em entrevistas.
Na frente externa, gradualmente, o inimigo passa a ser identificado como
o imperialismo, integrando, além de Portugal, países cujos capitais apoia‑
vam o prolongamento da presença do regime colonial em Moçambique
(Frelimo, 1977a).
Sem unidade nacional seríamos derrotados pelos colonialistas. Sem unidade, os ope‑
rários e camponeses seriam dominados pelos exploradores. […] O espírito colectivo
obriga‑nos a estudar todos os problemas, todas as situações, como se fossem nossas.
[…] O poder pertence‑nos e por isso não nos podemos sentar de braços cruzados
quando uma dada situação é um obstáculo ao nosso progresso. (ibidem: 56)
Quando nos levantamos com armas para desafiar a velha ordem, sentimos a necessi‑
dade de criar uma nova sociedade, forte, saudável e próspera, onde os homens livres
de toda a exploração cooperem para o progresso de todos. No decurso da nossa luta,
em momentos difíceis tivemos de nos confrontar com elementos reaccionários; nesta
luta compreendemos melhor os objectivos da nossa luta. Sentimos especialmente que
a luta para criar novas estruturas fracassaria sem a criação de uma nova mentalidade.
(ibidem: 39)
16
Estou consciente de que a aplicação deste projeto político gerou múltiplas discrepâncias. Estas,
reflexo de prepotências e episódios de lutas pelo poder, suscitavam várias interrogações e críticas
ao projeto, fraturando o próprio movimento e gerando várias dissidências, tema que extrapola
o objetivo deste texto.
22 | Maria Paula Meneses
O inimigo pode usar as mesmas fardas e equipamento, pode usar a mesma lingua‑
gem, falar a mesma língua, pode ser do mesmo grupo étnico, pode ser da mesma cor
17
Atual Maputo.
18
Entrevista com Máximo Dias, em maio de 2012, em Maputo, um dos fundadores deste grupo
político. O GUMO agregava elementos da burguesia não branca da Beira. Como proposta política
defendia os princípios liberais de multipartidarismo e de liberdade de mercado.
19
Comité Revolucionário de Moçambique.
20
Frente Unida de Moçambique.
21
Entrevista realizada com um dos comandantes da FRELIMO, em Maputo, em junho de 2013.
22
Conforme vários entrevistados afirmaram, as desconfianças sobre a presença de ‘inimigos’
infiltrados entre as forças da FRELIMO deu origem a vários julgamentos populares, de que
resultaram penas diversas, incluindo fuzilamentos. Sobre este assunto, veja‑se também Opello
(1974), Matsinha e Sampaio (2012) e Nalyambipano (2013).
23
Especialmente nas tropas Comando, e nos Grupos Especiais e Grupos Especiais Paraquedistas
(GEs e GEPs), ou seja, grupos militares especiais, integrando prioritariamente tropa negra.
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que nós. Mas há uma coisa que ele nunca pode ser, nem poderá fazer: viver o nosso
comportamento, viver a nossa linha de servir o Povo. É aí que ele se desmascara, é aí
que não se pode camuflar. Tudo o que ele faz é para explorar o Povo, dividir o Povo,
afastar o Povo da luta, agredir o Povo. Tudo o que nós [FRELIMO] fazemos é para
libertar o Povo, unir o Povo, mobilizar o Povo, servir o Povo. (Machel, 1977a: 117)
O golpe de estado teve lugar em Portugal: as transformações a que ele dará lugar
poderão conduzir ao estabelecimento da democracia em Portugal. Nós considera‑
mos esse facto uma vitória para o povo português, vitória com a qual nos alegramos,
pois a nossa luta nunca foi dirigida contra o povo português que estava ele próprio
oprimido pelo fascismo.
Em Moçambique, porém, o colonialismo continua, e enquanto ele continuar
o povo moçambicano continuará oprimido. Só o derrubamento do colonialismo
português poderá dar ao nosso povo moçambicano os seus direitos, pois só a inde‑
pendência permite realizar a libertação completa e a afirmação da nossa personalidade
moçambicana. (Machel, 1974: 17)
31
Veja‑se igualmente o material da reunião com os comprometidos. Arquivo Histórico de
Moçambique – Fundo Oral. “Reunião com os Comprometidos, 1982”, Fundo SM0006.
32
Veja‑se “Anti‑FRELIMO forces form new party”, de 23 de agosto de 1974. Arquivo do US
Department of State, disponível em http://aad.archives.gov/aad/, e consultado em 11 de maio de 2013.
O exame cuidadoso de materiais de arquivo, assim como de várias entrevistas, permitiu caracterizar
este partido, que teve uma duração efémera. Liderado por Uria Simango, o PCN coligava várias
forças políticas incluindo o COREMO de Paulo Gumane, a FRECOMO de Joana Simeão, o FUMO
de Narciso Mbule, o MONIPAMO de Basílio Banda e de Miguel Murrupa, o CNAM de Calisto
Makulube e o MONAUMO de Domingos Cardoso. Integrava igualmente elementos oriundos do
Movimento da Convergência Democrática, que participariam na tentativa de golpe do 7 de Setembro.
33
Veja‑se “PCN views on current Mozambique situation”, de 3 de setembro de 1974. Arquivo do US
Department of State, disponível em http://aad.archives.gov/aad/, e consultado em 11 de maio de 2013.
34
Localidade na Tanzânia, onde a FRELIMO criara um importante Centro de Formação Político
‑Militar. “Julgamento dos traidores da FRELIMO em Nashingwea” de 23 de março de 1975.
Arquivo Histórico de Moçambique – Fundo SM0019.
35
No país funcionaram algumas dezenas destes campos. Muitos dos reclusos nunca chegaram a ser
libertos, pois foram mortos alguns anos depois, em data ainda por esclarecer (Sá, 1995).
26 | Maria Paula Meneses
O colonialismo não tem raça, o capitalismo não tem cor, o imperialismo não conhece
pátrias. A nossa luta é a luta dos oprimidos contra os opressores, dos explorados
contra os exploradores. A nossa luta é para edificarmos o poder popular democrático
no nosso Moçambique independente.39
36
Alguns dos quais estiveram internados nestes campos. Entrevistas conduzidas em Portugal
e Moçambique entre 2011 e 2013.
37
Daily News (Tanzânia), 22 de abril, 1975; Herald (UK), 28 de outubro, 1986.
38
“Conversa com traidores da FRELIMO, no centro de reeducação de Nashingwea”, em 1975.
Arquivo Histórico de Moçambique – Fundo SM0020.
39
Proclamação de Samora Machel na sequência dos acontecimentos de Lourenço Marques,
a 7 de setembro de 1974 (Arquivo da Rádio Moçambique).
40
“Conferência de Imprensa em Lusaka, Zâmbia, 1974, sobre os Acordos de Lusaka”, a 7 de setembro.
Arquivo Histórico de Moçambique – Fundo SM0019.
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O nosso objectivo final de luta não é içar uma bandeira diferente da portuguesa,
fazer eleições mais ou menos honestas em que pretos e não os brancos são eleitos,
ou ter no Palácio da Ponta Vermelha em Lourenço Marques um Presidente preto,
em vez dum governador branco. Nós dizemos que o nosso objectivo é conquistar a
independência completa, instalar um Poder Popular, construir uma Sociedade Nova
sem exploração, para benefício de todos aqueles que se sentem moçambicanos.
(Machel, 1974b: 73‑74)
41
Formalmente o governo de transição era liderado por um alto‑comissário português, cabendo
a liderança do Governo (primeiro‑ministro) à FRELIMO.
28 | Maria Paula Meneses
49
Xiconhoca é uma palavra composta de dois nomes: Xico e Nhoca: O primeiro nome vem de
Xico‑Feio, um indivíduo que pertenceu à PIDE‑DGS. Nhoca, em quase todas as línguas banto
de Moçambique significa cobra, um animal traiçoeiro (Frelimo, 1979).
50
Revista Tempo, n.º 303, 25 de julho, 1976.
51
Revista Tempo, n.° 310, 12 de setembro, 1976.
32 | Maria Paula Meneses
A luta pela cultura dos grupos que integravam Moçambique foi um dos
objetivos centrais da luta de libertação. Apesar de vários elementos das cul‑
turas ‘tradicionais’ serem vistos como obscurantistas e identificados como
resquícios do ‘mundo tribal’,52 a exaltação da autêntica cultura, expressa nas
danças, línguas e heróis nacionais era uma das apostas do Estado moçam‑
bicano; já para o Xiconhoca, a ‘verdadeira’ cultura era a europeia, exemplo
de aculturação colonial. No novo Moçambique, as intervenções culturais
não autênticas eram vistas com suspeita, como uma intervenção do inimigo
que colocava em causa os alcances da libertação. Como consequência, vários
jovens, acusados de terem um comportamento não adequado ao processo
revolucionário, por terem, ao assimilar a cultura burguesa, desprezado as
suas raízes, foram enviados para campos de reeducação.53
52
As autoridades tradicionais e outros setores da sociedade, vistos como uma ameaça à
modernidade, à autoridade e à unidade do Estado moçambicano, foram desqualificados como
‘cidadãos de segunda’ e a sua atividade limitada.
53
Entrevistas realizadas em setembro de 2011 em Maputo.
Narrativas de violência sobre a construção da nação em Moçambique | 35
54
Veja‑se, por exemplo, jornal Notícias, de 22 de agosto, 1979; de 5 de julho, 1981; de 28 de
setembro, 1981; de 18 de junho, 1982. Revista Tempo n.º 541, de 22 de fevereiro, 1981; n.º 561,
12 de julho, 1981.
55
Para vários autores, como Geffray (1991), a combinação explosiva das ações de intimidação
externa com a agressividade revolucionária interna está na origem da guerra civil que marcou
o país.
56
Jornal Notícias, 17 de outubro, 1980; Revista Tempo n.º 524, 26 de outubro, 1980.
36 | Maria Paula Meneses
Mas haverá traidores e vacilantes. […] A purificação permanente das nossas fileiras
não é apenas uma questão de princípios, é uma exigência do combate, uma condição
para a vitória. […] sairemos desta batalha mais fortes e revigorados, depois de nos
libertarmos da carga impura. (ibidem: 72)
5. Confrontando o passado?
Dois outros episódios são fundamentais para compreender a existência
de um debate sobre o passado nacional moçambicano: a reunião com os
moçambicanos ex‑presos políticos, em 1978, e a reunião com os moçambi‑
canos considerados ‘comprometidos’ com a herança colonial. Juntamente
com os ‘julgamentos de Nachingwea’, estes dois outros eventos, inovadores,
embora inevitavelmente incompletos, permitiram no seu conjunto lidar,
na longa transição política, com a herança política da violência colonial.
Estes três eventos constituem episódios de ‘justiça de transição’, cujos
58
As raízes da RENAMO podem ser encontradas nos conflitos que marcaram a FRELIMO, desde a
sua fundação. Durante as lutas que atravessaram o movimento, especialmente após o II Congresso,
vários dos elementos considerados reacionários, e percebidos como aliados dos colonialistas (e por
isso expurgados da FRELIMO) irão para a RENAMO.
38 | Maria Paula Meneses
Facto é que alguns [dos presos políticos] se revelaram de facto patriotas e não deram
informações sobre a FRELIMO, sobre as redes, não traíram. Mas outros deram. E nós
[Frelimo] não estamos esclarecidos sobre quem traiu e quem não traiu. Assim, como
vocês [presos] se conhecem e se conheciam muito bem, vamos fazer uma reunião
para, através duma troca de informações, saber exactamente quem é quem e o que
é que fez durante o período em que esteve preso […] (Rebelo apud Mateus,
2006: 397)
A luta armada foi uma escola. Não era só disparar. Foi luta política e militar. Em rela-
ção aos que participaram na luta armada sabemos quem é quem, dão garantias de que
aquilo que estamos a construir depois da independência vai ser assumido por eles.
Quanto a vocês [ex presos], não passaram por esta escola, portanto a equiparação
não pode ser feita assim, automaticamente. (ibidem: 398)
No final dos encontros com os presos políticos, estes foram classificados, de acordo com o
63
seu comportamento na cadeia, em três categorias: herói (aqueles que preferiram morrer a trair
a causa da luta), vacilante (que traíram em pequenas causas, colaborando com o colonialismo,
mas mantendo‑se fiéis aos ideais nacionalistas) e traidores.
40 | Maria Paula Meneses
Vocês eram um terreno que o inimigo tinha fertilizado e que estava pronto a receber
a semente que ele quisesse deitar. Hoje são uma zona libertada, onde o inimigo não
vai encontrar a cumplicidade voluntária, nem aquela a que vos poderia obrigar, com
a ameaça de revelar o vosso passado.64
64
“Reunião com ex‑presos políticos”, 1978, Arquivo da Rádio Moçambique.
65
Revista Tempo, n.º 230, 23 de fevereiro, 1975, p. 29.
Narrativas de violência sobre a construção da nação em Moçambique | 41
[…] permitir que todo o povo exerça uma vigilância rigorosa e eficaz sobre estes ele‑
mentos, muitos dos quais, ainda hoje, levam a cabo acções contra as nossas conquistas
revolucionárias. Só conhecendo, controlando e acompanhando de perto a vida destes
elementos estaremos em condições de libertá‑los do compromisso com o inimigo
e reintegrá‑los na nossa sociedade.67
66
São vários os casos conhecidos de antigos militares que, não satisfeitos com o tratamento recebido
em Moçambique, aderiram à RENAMO (então MNR).
67
Revista Tempo, n.º 427, 10 de dezembro, 1978, p. 9.
42 | Maria Paula Meneses
Fundo SM0006.
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Conclusão
Os discursos políticos oficiais têm refletido, no Moçambique independente,
uma continuidade com muitos elementos desenvolvidos durante a Guerra
69
Ibidem. Houve alguns que foram presos, por se recusarem a assumir a responsabilidade sobre o
seu passado, a explicar os seus atos de traição (veja‑se “Zicale: Esquecer provocando”, em jornal
Notícias, 12 de fevereiro, 1982).
70
Veja‑se igualmente o texto de Teresa Cruz e Silva neste número.
44 | Maria Paula Meneses
71
Este tema é escalpelizado em detalhe no artigo de João Paulo Borges Coelho, neste número
da revista.
Narrativas de violência sobre a construção da nação em Moçambique | 45
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