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ISSN 2307-3918

Artigo original

NAÇÃO, CIDADANIA E ETNICIDADE EM MOÇAMBIQUE (1975-1990)


Cristina Gemmino
Instituto Universitário de Lisboa, ISCTE-IUL, Portugal

RESUMO: Os Estados africanos empreenderam construções distintas de cidadania após as independências. No


caso de Moçambique, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) assumiu a construção do Estado-nação
e da cidadania num regime de partido único, a que acresceu a existência da guerra civil. Nos discursos
hegemónicos, enfatizou-se a formação do “Homem Novo”, que deveria ultrapassar particularismos identitários,
desta feita, associados à etnicidade. Embora tradicionalmente centrados sobre direitos legais, alguns estudos sobre
cidadania em África apontam para a questão da pertença étnica e inclusão do indivíduo numa nação enquanto
cidadão, fazendo com que a dimensão étnica se torne uma preocupação central entre os projetos nacionalistas da
maioria dos países africanos. Assim, assente no quadro teórico acima apresentado, que inclui dois temas de
bastante relevância, o da cidadania e da construção da nação, e com base num corpus de estudo composto por
entrevistas semi-estruturadas realizadas em Maputo com representantes políticos, académicos e escritores
moçambicanos e, por fim, artigos dos jornais Notícias da Beira, Notícias e Tempo, servirei-me da análise
qualitativa e do Critical Discourse Analyses (CDA) para compreender a forma como a cidadania em Moçambique,
em sua essência étnica, é representada entre um período histórico que vai de 1975 até 1990.
Palavras-chave: Cidadania, etnia, etniciade, nação moçambicana.

NATION, CITIZENSHIP AND ETHNICITY IN MOZAMBIQUE (1975-1990)


ABSTRACT: African states undertook different constructions of citizenship after independence. In Mozambique,
the Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) assumed the construction of the nation-state and citizenship
in a single-party regime, to which was added the existence of civil war. In the hegemonic discourses, the formation
of the “Homem Novo” was emphasized, which should overcome identity particularities, this time, associated with
ethnicity. Although traditionally focused on legal rights, some studies on citizenship in Africa point to the issue of
ethnic belonging and inclusion of the individual in a nation as a citizen, making the ethnic dimension a central
concern among nationalist projects in most African countries. Thus, based on the theoretical framework presented
above, which includes two themes of great relevance, that of citizenship and nation building, and based on a corpus
of study composed by semi-structured interviews conducted in Maputo with Mozambican political, academic and
writer representatives, literary work and articles from the newspapers Notícias da Beira, Notícias e Tempo, I will
use a qualitative analysis and Critical Discourse Analyzes (CDA) to understand how citizenship in Mozambique,
in its ethnic essence, is represented between a historical period that goes from 1975 to 1990.
Keywords: Citizenship, ethnic, ethnicity, mozambican nation.
_____________________
Correspondência para (correspondence to:) cristinagemmino@gmail.com

INTRODUÇÃO Baseando-se na relação entre etnicidade 2 e


política, Turner (2016) argumentou que
Cidadania, construção da nação e
experiências de marginalização
etnicidade em foco
proporcionam uma lente diferente pela qual
No contexto pós-colonial do continente se pode compreender a cidadania. Assim,
africano, o fato de a história de seus países embora tradicionalmente centrados sobre
ser muito diferente do que a do Ocidente, direitos legais, alguns estudos sobre
possibilitou outros 'alcances' em torno da cidadania em África apontam para a questão
noção de cidadania, indo mais além dos da pertença étnica e inclusão do indivíduo
direitos e deveres do cidadão enquanto numa nação enquanto cidadão, fazendo com
membro de um Estado-nação 1. que a dimensão étnica se tornasse uma
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preocupação central entre os projetos (DORMAN, HAMMETT, NUGENT,


nacionalistas da maioria dos países 2007; HALL e HELD, 1989; LONSDALE,
africanos. Sob a ideia de universalidade, 1994; NORDBERG, 2006; TURNER,
inclusão e pertença nacional, o conceito 2016) que têm dedicado os seus trabalhos
liberal moderno de cidadania nos Estados- mais à questão da pertença étnica e da
nação pós-coloniais, sempre produziu inclusão do indivíduo, enquanto cidadão de
outsiders e strangers, ou dito de outra e em uma nação - o estudo tem como
forma, intrusos e estrangeiros (KYED e objecto principal a representação da
BUUR, 2006, p. 566). Isto é, levou a uma cidadania, em sua dimensão étnica, em
distinção entre cidadão e não-cidadão, Moçambique, entre um período histórico
pondo em evidência as exclusões, de fato, que vai de 1975 (ano da independência) até
de alguns grupos étnicos – etiquetados 1990 (abertura ao multipartidarismo). Com
como sendo tribais - dentro da nação e a base no quadro acima apresentado, a
uma diferenciação hierárquica interna entre questão principal a que este artigo responde
vários grupos (Ibidem, 2006, p. 567). é:
Os movimentos nacionalistas passaram a Como é que as narrativas diversas, em
ser vistos como instrumentos para regime de partido único, em Moçambique
manipular os recém Estados-nação (VAIL, codificam questões de cidadania com base
1989, p. 17). Daí o termo nacionalismo na dimensão étnica? Desta, decorreram
passar a designar uma ideologia que, acima outras duas perguntas:
de tudo, defendia que todas as comunidades 1) Como é que os discursos
políticas com capacidades de se afirmarem hegemónicos do partido incumbente
de forma singular, pudessem optar por se no país constroem a cidadania?
constituírem como Estado-nação
(MARTINS, 2016, p. 87). É neste contexto 2) Quais são as implicações políticas
que a preeminência de um partido como de conceitos como pertença,
instrumentos de construção de Estado- diferença e diversidade nos
nação (e cidadania) deve ser analisada. discursos?
No caso da “nação moçambicana”, o Tendo em vista esses procedimentos, nesse
processo da sua construção foi, segundo artigo empenhei-me no alcance dos
Cahen (2008), o fio condutor do projeto objetivos seguintes: (i) explicar como é que
político de um partido-Estado no poder: a os discursos integram as dimensões étnicas
Frente de Libertação de Moçambique em Moçambique, no período de partido
(FRELIMO). único (1975-1990); (ii) explicar a construção
do modelo de cidadania num país em regime de
Com tais características é que em 1977 a partido único, que optou em construir a nação
FRELIMO deixou de ser um movimento pela homogeneização e pela eliminação das
partidário para criar (novas) formas de diferenças étnicas; e (iii) explorar as
pertença, tornando-se uma organização representações dos grupos étnicos com base no
marxista-leninista de vanguarda. Isso material que compõem o corpus do presente
significou o abandono de uma revolução artigo.
baseada em pessoas e a aceitação de um METODOLOGIA
modelo de organização e militarização em
nome de uma segurança nacional, modelo O alcance do objeto principal deste artigo
este reforçado através de uma decisão de foi fundamentalmente o resultado da
alinhamento com o bloco soviético combinação de duas técnicas de
(GENTILI, 2017, p. 185). investigação qualitativa. A primeira técnica
consistiu na pesquisa bibliográfica e na
Querendo aceitar o desafio de me focar na revisão da literatura, por permitir o contato
tese defendida por vários autores com o material publicado sobre nação e
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Nação, cidadania e etnicidade em Moçambique (1975-1990)

cidadania, com base na etnicidade, estudo. Assim, deixei aos entrevistados uma
possibilitando dessa forma a elaboração da liberdade de expressão e fluxo de ideias,
parte teórica que delimitou e sustentou a geralmente de vários minutos sem
análise desse trabalho. interrupção, ao mesmo tempo que me
permitiu parar e me deter em assuntos que
Em segundo lugar, a análise de discurso foi
tinham mais significado para este estudo.
a principal técnica de investigação desse
artigo, essencial para a análise das fontes Relativamente aos artigos de jornal é de
primárias que compõem o objeto de estudo: destacar-se a presença de poucos
entrevistas semiestruturadas a políticos, exemplares de jornais no Arquivo Histórico
académicos e escritores moçambicanos, Nacional 3, muitos dos quais se encontravam
assim como exemplares de textos em exposição fora do país, razão pela qual
jornalísticos dos jornais Notícias da Beira, a escolha dos artigos retratados vê apenas os
Notícias e Tempo. três jornais acima citados como únicos
documentos de cunho jornalístico que
A recolha dos dados acima citados foi
compõem as minhas fontes primárias e
possível através de um trabalho de campo,
restringidos ao arco temporal objeto da
enquadrado dentro de um percurso maior de
minha análise.
Doutoramento, realizado na capital
moçambicana de Maputo por um total de 15 A abordagem que foi empregada nessa
dias entre o dia 1 e dia 15 de junho de 2019, investigação é de tipo qualitativa, a que
que deu a possibilidade de recolher um possibilita a interpretação do material com
número total de 18 entrevistas e um total de o objetivo de captar a mensagem resultante
71 artigos de jornais no seio do Arquivo do cruzamento entre duas variáveis que
Histórico Nacional de Moçambique, na permitem ir além do evidente e do explícito
própria capital de Maputo. nas amostras. Essas são o contexto sócio-
Ao falar da primeira tipologia de material histórico e a componente linguística, que
que constitui a base do meu corpus, como incidem na compreensão da estrutura
anteriormente dito, trata-se de entrevistas interna e externa do texto e do seu conteúdo.
semiestruturadas. Considerando a diferente Irei assumir aqui a posição apresentada pelo
tipologia de entrevistados (sendo eles CDA (Critical Discourse Analysis) de que
representantes de partidos políticos no o discurso é visto como prática social e
poder e não, escritores e académicos), refere-se tanto ao texto quanto ao processo
foram preparados três diferentes guiões que de produção e interpretação do mesmo
serviram para alcançar as respostas às três (FAIRCLOUGH, 1992).
perguntas de investigação. Os guiões foram Um importante elemento que caracteriza as
pensados para que os entrevistados
abordagens críticas à análise do discurso é o
falassem em ordem cronológica do período
foco nas relações de poder mediadas pelo
colonial primeiro e do pós-colonial em
discurso (ROGERS, 2004). Com base nas
seguida com a finalidade de terem tanto eles
teorias sociais críticas (BOURDIEU, 1991;
quanto eu, através da análise das amostras,
FOUCAULT, 1971; HABERMAS, 1984),
uma perspepção mais clara sobre as
à linguagem é atribuída um papel central na
questões da nação, da cidadania e da construção da subjetividade dos indivíduos
etnicidade. Ao chegar a cada um desses pois é por meio dela que as formas de poder
temas, passei a fazer perguntas específicas
– económico, social, cultural e político – as
à volta das minhas três perguntas de
moldam.
investigação, sem, porém, questionar
diretamente as mesmas aos entrevistados. Outro aspeto crucial do CDA é a adoção de
Ademais, o fato de ter optado por uma abordagem reflexiva por minha parte
entrevistas semiestruturadas deixou espaço pois enquanto investigadora, e de acordo
para desvios das temáticas objeto do meu com Chouliaraki e Fairclough (1999) e
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Rogers (2004), sou inevitavelmente parte RESULTADOS E DISCUSSÃO


das práticas discursivas – e, portanto, das
(Re)construção da Nação: do papel da
relações de poder – que estudo.
elite ao da língua
Para os efeitos desta pesquisa, o processo de Com sua postura crítica em relação à
tratamento e análise de dados conheceu os aplicabilidade do conceito de nação aos
seguintes procedimentos: transcrição das países africanos, Cahen (1994) no seu
entrevistas, combinada com a leitura dos trabalho publicado no primeiro número da
restantes documentos que compõem o meu revista Lusotopie fala do caso de
corpus; leitura repetida do inteiro material Moçambique. Ele questiona-se sobre as
para depois codificar singularmente cada condições necessárias para se falar de nação
transcrição com base em três eixos moçambicana e se realmente é possível
temáticos: nação, cidadania e etnicidade. falar nela, colocando a questão da seguinte
Ocorreu, também, o processo de maneira: "Moçambique existe?".
categorização da informação em função das Divergindo sobre a inexistência da nação
perguntas, onde para um conjunto de em Moçambique 5, é possível concordar,
respostas que respondiam a uma porém, com ele ao definir Moçambique
determinada pergunta de pesquisa, fiz a
como um Estado nacionalista.
seguinte designação: RPP1 (respostas para
pergunta de pesquisa 1), RPP2 (respostas Cahen (1996) assevera que no nacionalismo
para perguntas de pesquisa 2) e RPP3 moçambicano não houve a vontade de
(respostas para pergunta de pesquisa 3). reformulação do Estado (nacionalismo de
massa), e sim um nacionalismo alicerçado
Em seguida a essa primeira codificação,
por meio do Estado, no ideal de
todas as partes das entrevistas e artigos de
determinado agrupamento sociocultural
jornais encaminhados para o mesmo
(nacionalismo elitista), o qual se afirmou
contexto temático foram reagrupados e, em
como força política hegemónica criadora da
alguns casos, identificadas e evidenciadas
nação, instituindo dessa forma suas
sobreposições entre contextos.
características a outros grupos com
Para me auxiliar no mapeamento discursivo identidades próprias (ibidem, p. 25-26).
pensei em classificar os assuntos tratados
Assente nas palavras de Jason Sumich
em cada trecho de jornal ou de entrevista.
(2008) interessante é o pensamento de
Dividi os excertos pelos procedimentos de
Elísio Macuane (professor) entrevistado em
limitação discursiva. Esse mapeamento
Maputo que delineou os traços fundacionais
gerou um total de 500 excertos. Desses,
dessa elite, assim como o percurso histórico
selecionei 300 para a análise 4.
que fez da mesma a responsável pela
Na última fase, atuei no tratamento dos invenção da nação moçambicana:
resultados, isto é, na interpretação: esta [...] Quando a gente transita neste
etapa foi destinada ao tratamento dos período de situação colonial para a
resultados; ocorreu nela a condensação e o independência, o regime da
destaque das informações para análise. Esse FRELIMO não sei se bem se
processo possibilitou a interpretação dos apropriou de fato deste discurso, mas
vai dar continuidade a este discurso.
resultados da melhor maneira possível. Porque muitos dos libertadores,
Dando sentido ao material recolhido, o muitos não, mas uma parte, foram
mesmo foi confrontado com as referências assimilados. Este é o primeiro
bibliográficas que rodeiam em torno dos elemento. Quer dizer, foi um
tópicos objeto de análise. movimento de revolução, dum
pensamento de revolução que emergiu
nos centros urbanos. São indivíduos
que tinham acesso à informação e
participavam de certa forma desta
cultura moderna. Quer dizer, foi um
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Nação, cidadania e etnicidade em Moçambique (1975-1990)

movimento de assimilados: mulatos, Se bem tenham existido em Moçambique


assimilados e crioulos[...] (ELÍSIO diversos grupos que podem reivindicar o
MACUANE, entrevista junho de
2019)
título de elite — os régulos e as autoridades
tradicionais 11 - irei focar-me naquela
Desse pequeno testemunho é possível reter pequena franja da população que, durante o
duas informações importantes: a primeira regime de partido único, desempenhou esse
tem a ver com a existência dessa elite bem papel, principalmente tendo em conta os
antes da independência e que seu discurso resultados e os testemunhos recolhidos
forjou a base para a construção da nação durante o meu trabalho de campo. Nesse
moçambicana independente, constituindo o sentido, os resultados que obtive na minha
meio natural para a(s) etnia(s) de investigação fazem com que me foque
sobreviver 6 (SMITH, 2000, pp. 69-70); a maioritariamente nos assimilados do Sul, já
segunda tem a ver com as dimensões que grande parte da ideologia dessa elite é o
reduzidas dos que podiam ser considerados resultado das experiências deste grupo, que
membros dessa elite, condensados na constituiu a base do ″campo unificador″
cidade de Lourenço Marques (atual (GLEDHILL, 2002) dentro do qual a elite
Maputo), e por quem era representada. operou. Trata-se de uma elite socialmente
Debruçando-me na primeira informação dominante de Moçambique e que é
que retirei, é preciso argumentar a mesma essencialmente composta pelos membros
buscando os dados históricos em apoio, do partido da FRELIMO. Não pretendo
recuando no passado anterior à afirmar que este grupo foi e é
independência. A FRELIMO surgiu em completamente homogéneo 12, mas destacar
1962 como uma frente alargada que aliava a importância, e em que medida, o mesmo
três partidos com carácter mais regional 7 teve na sociedade moçambicana logo após
(MONDLANE, 1969; NEWITT, 1995). Os da independência.
primeiros anos da Frente de libertação De acordo com Macamo (1996) foram
foram marcados pelo facciosismo e pela sempre as elites, não importa sob que capa,
dissenção interna (OPELLO, 1975). que inventaram as nações e, no processo,
Finalmente, entre 1968 e 1970, após uma responderam a preocupações pontuais das
série de lutas internas e do assassinato do massas, envolvendo o resto da população
primeiro líder, Eduardo Mondlane, as (ibidem, p. 361). Sendo assim, a construção
mesmas divisões atingiram o seu desfecho. da nação foi o resultado da montagem de
A principal divisão desse movimento de um Estado do centro para a periferia. Centro
libertação resultava da oposição entre duas representado pela ala sulista dessa elite,
facções principais — uma radical e outra bem explicado pelo testemunho de Brazão
mais conservadora 8. Mazula (professor):
Em 1970, a frente mais radical triunfou Estamos perante duas leituras. Uma
sobre os seus adversários mais leitura, a FRELIMO quando se cria, a
conservadores, tornando-se um partido durante a sua luta política, esperava
que as identidades culturais,
depois da obtenção da independência
promoções, desaparecessem para
(VINES, 1996). A facção triunfadora assimilar a tal unidade nacional. Mas
assentava numa aliança entre uma pequena quando se dá a independência, começa
coligação de assimilados 9 urbanos do Sul, a verificar-se que estas identidades
mestiços, brancos e indianos, e uma elite não tinham sido apagadas nem
diluídas pela Frente de Libertação de
emergente de moçambicanos do Norte
Moçambique. Por quê? Dois
educados em missões, excluindo exemplos muito rápidos. Um é aquele
frequentemente muitas elites do Centro do que se chamou de sulização do país:
país que tinham antecedentes sociais 10 os dirigentes, pela maioria, eram do
diferentes dos do Norte e do Sul (HALL e Sul e transportou-se a ideia de unidade
nacional através de uma figura que é
YOUNG, 1997).
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atividades culturais [...] (BRAZÃO etimológica que sugere o ato de nascer. No


MAZULA, entrevista junho de 2019) entanto, esse ato da nação nascer choca com
Uma ala sulista que carregou o fardo da a interessante e singular ocorrência lexical
construção de uma memória política registrada em todos os jornais analisados
coletiva, mas geradora de múltiplos (Notícias da Beira, Notícias e Tempo),
silenciamentos, esquecimentos de atores e diferentemente daquilo que aconteceu nas
de processos políticos 13, tomando entrevistas. Reporto um dos exemplares
emprestadas as palavras de Bhabha (1990, mais diretos que encontrei no jornal Tempo:
p. 292). Nesse sentido, a palavra unidade, As tarefas da Reconstrução Nacional
parece ser o fundamento tanto do colóquio segundo as palavras de ordem
com o Mazula quanto da elite no poder. UNIDADE, TRABALHO, VIGI-
Essa noção, em detrimento dos LÂNCIA cumprem-se em todas as
províncias. Assim acontece por
particularismos (isto é, as marcas étnicas), exemplo no duro combate às sequelas
ganhou mais força após a morte de Eduardo do colonialismo - as mentalidades
Modlane (em 1969). Quando Samora individualistas, a doença, a miséria, o
Machel assumiu a liderança da Frente de analfabetismo, as ideias (Tempo, n.
Libertação e se tornou Presidente da 274, pp. 50-51).
Primeira República em Moçambique, um A partir desse excerto surgiram uma série de
projeto de reenquadramento acerca do questionamentos, pois o termo reconstrução
conceito de unidade foi posto em marcha. implica que a nação moçambicana, recém-
À semelhança de outros regimes africanos nascida, já estivesse passando pela sua
que defendiam o partido único em reedificação. Como algo que estava
detrimento do pluralismo político e social, a danificado e que precisava de ser construído
FRELIMO construiu a noção de que "do novamente fazendo com que a tautologia
Rovuma 14 ao Maputo havia um só povo" nesta linha de argumentação se tornasse
(Tempo, n. 274). O objetivo de edificar um evidente. Enquanto comunidades
Estado justo, que ultrapassasse as imaginadas, as nações, e no caso específico
particularidades, é uma das tónicas a nação moçambicana, implicam um
dominantes deste exercício público de processo de permamente construção. Ou,
retórica visível nos discursos transcritos dos dito de outra forma, um permanente
jornais. Por isso, face à natureza multiétnica plebiscito (MACAMO, 1996, p. 358). Ao
e multicultural da sociedade moçambicana, pensar a nação, deve-se considerar que ela
o esforço da unidade foi concentrado em se constitui não apenas de uma organização
torno dos princípios e objetivos da luta. política, mas – se não principalmente – de
Tornou-se princípio subjacente a todos os um sistema de significação cultural. "As
valores teóricos da FRELIMO (CABAÇO, pessoas não são apenas cidadões legais de
2007, p. 402) e dos valores aclarados pelo uma nação; elas participam da ideia da
primeiro Presidente da República nação tal como representada em sua cultura
moçambicana Samora Machel: "Unir todos nacional" (HALL, 2005, p.49). Nesse
os moçambicanos [...] para além das raças, sistema, segundo Bhabha (1998), os
tradições e línguas diversas requer que na discursos que narram a nação serão
nossa consciência morra a tribo para que ambivalentes ideologicamente, por serem o
nasça a nação″(Notícias da Beira, 5 de produto de um processo histórico contínuo.
janeiro de 1975, p. 2). No entanto, as fronteiras culturais
estabelecidas pela narração da nação serão
Querendo interpretar suas palavras, Machel vistas como "detentoras de limiares de
estaria dizendo que o ato de fazer levaria à significações que deve ser atravessado,
nação. Mas a verdade é que a nação não apagadas e traduzidas no processo de
pede um fazer pois requer antes um nascer, produção cultural" (BHABHA, 1998, p.
já que a palavra nação traz essa marca 56). Corroborando uma tal interpretação, a
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Nação, cidadania e etnicidade em Moçambique (1975-1990)

mesma poderia explicar o uso que os jornais Para o escritor moçambicano, a nação é
fazem do termo reconstrução: são as fruto de uma criação que resulta tangível
exigências políticas do momento que ditam pela escolha do português como língua
a escolha do material a recuperar, nacional. O termo nacional acaba, assim,
reconstruindo ou reescrevendo a nação. E por ser equivocado nos termos de um
fazendo-o também, e principalmente, sentimento de uniformização cultural. O
através dos próprios mitos, como a língua. que não surpreende, já que a linguagem é
um pilar fundamental para a construção
A língua é expressão privilegiada da alma
ideológica do nacionalismo e condição
de um povo (HERDER, 1971, p. 137), mas
necessária para o exercício do poder das
é também ferramenta essencial para o
elites políticas.
exercício de poder. A língua, com sua
linguagem, está sujeita a um processo de O PROJETO POLÍTICO EM TORNO
normalização que possibilita a "estabilidade DA CIDADANIA
político-operacional e participação No entendimento do antropólogo
moderna sem a qual a integração camaronês Francis Nyamnjoh (2006) foram
sociocultural total não pode ocorrer" as hierarquias e dicotomias entre as elites e
(FISHMAN, 1994, pp. 28-29). Nessa os dirigentes – de um lado - e a classe média
lógica, os construtivistas como Anderson ou intelectuais - pelo outro – as que levaram
(1983) colocam uma importância capital na a um novo foco sobre a noção da cidadania
linguagem comum para o nacionalismo. no continente africano (agora ordenada por
Para eles, o nacionalismo é – tal como a raça, etnia, classe e gênero 15). E foi o fato
ideia de nação – construído. A linguagem dá dessas dinâmicas estarem nas mãos do
o suporte necessário para propagar essa capital dos políticos o que faz do conceito
identidade compartilhada. Sendo assim, a de cidadania - exibido nos meus resultados
linguagem em comum, tanto escrita quanto - um verdadeiro projeto político e
falada, torna-se um fator importantíssimo ideológico.
na identidade nacional e para a construção
da nação. Legível, isso, pelo testemunho do A luta de libertação de Moçambique – como
Mia Couto: a dos países vizinhos – tinha como primeiro
objetivo, não tanto a democracia 16, mas
Acho que é interessante perceber que
quando se começou a pensar na nação antes a pertença à comunidade de nações
moçambicana, se começou também a soberanas em termos de total igualdade.
pensar nesta pergunta, onde estaria a Como temos visto também nos parágrafos
língua portuguesa nessa nação anteriores, o tal quadro até agora
moçambicana. E os que pensaram
apresentado resume-se nas palavras do
nisso pela primeira vez eram os que
pensavam na nação pela primeira vez, António Hama Thay (general):
os nacionalistas, que eram vários e que Bom, o novo sentido de fato aqui, que
tinham vários movimentos. [...] E aí, nós consideramos importante, é esta
nessas discussões surgia claro que conquista da independência, de que
mesmo por uma razão prática, hoje nós somos um povo soberano,
cotidiana, eles vinham de várias podemos ter os nossos próprios órgãos
províncias, etnias, e ali quando faziam e então isso começou com a criação da
um treino político-militar eles tinham assembleia popular e depois disso os
que ter uma língua que os unificava. E processos que surgiram, as lutas
essa língua era, naturalmente, o internas que ocorreram e então, depois
português. [...] Então, acho que foi não tivemos para o ano 90 a mudança da
tanto só porque se pensou Constituição para o sistema
profundamente no assunto, mas multipartidário. Mas, para todos os
porque era uma imposição prática, efeitos, manteve-se a ideia de
uma imposição de poder. Quer dizer, integridade territorial e integridade
estava aí era preciso um país para nacional (ANTÓNIO HAMA THAY,
criar, inventar (MIA COUTO, entrevista em junho de 2019).
entrevista junho de 2019).
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Dessa forma, enquanto ideologia política revolucionários, procura-se enunciar tanto a


atuada pela FRELIMO, a cidadania é vista quebra de práticas discursivas que portavam
como instrumento adotado para fabricar um determinados sentidos constitutivos de
certo tipo de cidadão (MACAMO, 2014, p. rituais ideológicos no passado quanto o
45). Merecedor desse papel era o indivíduo desejo de realizar o que ainda não está, mas
forjado com base em determinados que pode vir a ser na história e na
preceitos, tal como explicitado pelo Egídio linguagem.
Guambe (professor): Construir o futuro
O cidadão, o tal forjado desse período As ideias e conceitos velhos opõem-
pós-independência das zonas se agora, ideias e conceitos novos. Do
libertadas foi um cidadão naquela homem velho, nasce o homem novo.
ideia de ...aliás, não sei se podemos Dum Povo mergulhando no
falar de cidadão, aquele que não tem obscurantismo secular, surge um
palavra. Era um senso impositivo que Povo virado para o Futuro cheio de
tinha que se formar. Então a ideia era vitalidade, que se quer educar,
transformar o indivíduo que é como se determinado na construção de uma
diz naif, um indivíduo zero que você sociedade Nova (Notícias da Beira, 8
quer reformar. O cidadão é aquele que de fevereiro de 1975, p. 2).
passa atrás de formação.se você quiser
o conceito ideal mesmo era usar essa No último trecho do jornal Notícias da
ideia do Homem novo. O que é que Beira, a palavra velho se opõe à palavra
homem novo? É esse o cidadão novo. O futuro viria do Homem Novo,
moçambicano, o indivíduo que não
tem religião, não tem etnia...o capaz de desmantelar-se do obscurantismo
indivíduo que não tem região, o secular; acabando por ser, a palavra
indivíduo que não tem cultura, aquelas obscurantismo, mais virada para o conceito
coisas todas que nós imaginamos de tradicional pois opõe-se à educação que
(EGÍDIO GUAMBE, entrevista em permite levar o povo ao futuro, construindo
junho de 2019).
uma sociedade nova. Um moçambicano
Logo, no período pós-independência, ter novo.
cidadania era ser reconhecido enquanto
De importância central para as noções de
cidadão de e em Moçambique. Assim
inclusão e exclusão do cidadão "bom" da
sendo, a escolha dessas duas preposições –
comunidade era o uso constante do
cidadão de e em Moçambique – no lugar do
administrador da oratória de guerra que se
adjetivo moçambicano é feita
baseava em duas cadeias opostas de
propositadamente. Com isso quero destacar
equivalência. A FRELIMO e o Estado
os traços altamente politizados do termo
foram continuamente apresentados como a
moçambicano já que, como o Guambe
personificação da paz, associada a frases e
remarcou, não podia se falar propriamente
palavras como "homem novo", "povo
de cidadão, mas de uma fabricação, a do
virado para o futuro", "sociedade nova". Em
Homem Novo. A materialidade dessa
oposição direta a essa cadeia de
expressão “homem novo” tem espessura
equivalência positiva, encontramos
histórica, pois contrapõe-se a uma memória
palavras associadas à guerra:
instituída pelo português e, ao mesmo
'obscurantismo', 'resquícios dos valores
tempo, porta um inegável esforço de
velhos', 'sociedade velha' (KYED e BUUR,
deslocamento ideológico. Ao ser formulada
2006, p. 578).
e circular nos discursos da FRELIMO para
ser retomada, reiterada e ratificada nos Estando em causa a criação de um novo
discursos políticos dos demais prisma da cidadania, junto do novo país, a
revolucionários, institui, dessa forma, uma guerra não era só uma atividade militar
série discursiva do legível e do repetível. No destinada a derrotar o imperialismo, mas era
presente da enunciação de “homem novo”, também um processo de socialização onde
“nova sociedade”, etc., nos discursos se produziam novos cidadãos (FARRÉ,
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc. Vol. 5, No 1, pp 1-20, 2023
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Nação, cidadania e etnicidade em Moçambique (1975-1990)

2015, pp. 213-214; MACAGNO, 2009). reanalisando a transcrição da mesma, uma


Traço, este, patente no seguinte trecho do certa dificuldade do mesmo em dar uma
jornal Notícias: firme definição da cidadania. Para ele a
Não podemos esquecer-nos, não cidadania balançaria entre dois planos
devemos esquecer-nos que o que está diferentes: um ideológico - já desenhado
em causa é a criação, não apenas de por outros entrevistados; e outro mais
um País Novo, mas igualmente, de um focado no indivíduo/cidadão moçambicano,
Homem Novo. E, se erguer desde os
enquanto instrumento para desmontar uma
alicerces um País Novo obra de
gigantes é do mesmo modo a criação construção da cidadania à portuguesa:
do Homem Novo que o País Novo, "significava ter cidadania, que nunca
que vai ser o nosso, impreterivelmente
tivemos. Desmontar o conceito de cidadania
espera – e precisa (Notícias 17 de
fevereiro de 1975 p 2). português. Ser moçambicano" (Carlos
Machili, entrevista em junho de 2019). Essa
A cidadania seria abordada enquanto vontade de celebrar uma desassociação da
ideologia construída politicamente do topo cidadania portuguesa, encontra um caminho
para a base (onde o homem de periferia esbarrado, se retomarmos emprestadas as
seria a base) da comunidade/sociedade trajetórias históricas enquanto instrumento
moçambicana. Sendo assim, para o Machili útil para ler os meus resultados, pois o
o poder tradicional seria algo excluído da projeto de transformação social da maioria
cidadania, deixado à margem, pois não da população sob a liderança de uma
correspondente ao poder 'moderno' minoria esclarecida — os Homens Novos
implantado pela FRELIMO, explicitado em — tinha muitas semelhanças com o projeto
outro excerto da entrevista: "O problema da do assimilacionismo colonial português,
cidadania em Moçambique é visto em dois pois ambos acreditavam numa sorte de
eixos. Primero, é criar a soberania engenharia social que havia de melhorar a
moçambicana e depois lançar as bases da sociedade e se justificava pela
construção do poder" (CARLOS superioridade cultural e moral dos
MACHILI, entrevista em junho de 2019). dirigentes que a propunham (FARRÉ, 2015,
Com base no testemunho do Machili estaria p. 215).
claro que os ideais da FRELIMO Foi isso que deu – segundo Fanon (1979) –
assentavam, ainda que com base em razões continuidade à dominação cultural e
diferentes, na ideia de que o cidadão não económica ocidental em territórios
tinha maturidade suficiente para assumir africanos 17:
por si próprio a responsabilidade de gerir a
Os partidos políticos não chegam a
sua vida longe da tutela do Estado. Como
implantar sua organização nos
frisado por Macamo (2014, p. 359) tornou- campos. Em vez de se voltarem para
se cidadão aquele cuja maneira de estar na as estruturas existentes e lhes darem
vida e na sociedade era compatível com o um conteúdo nacionalista ou
projeto socialista. A partir desta progressista, pretendem subverter a
realidade tradicional. Imaginam-se
interpretação, foi possível institucionalizar
capazes de impulsionar a nação
o exercício do poder em Moçambique como enquanto as malhas do sistema
algo que se legitimava pela capacidade que colonial ainda são fortes. (...)
alguns tinham de interpretar o “interesse (FANON, 1979, p. 94).
nacional” e colocar essa interpretação ao A vertente étnica da cidadania
serviço do bem-estar do povo.
Tal como temos visto nos parágrafos
Embora o Machili tenha conversado a dedicados à nação, a nacionalidade - a
respeito dessa composição da cidadania ligação entre o indivíduo e o Estado – passa,
como sendo um processo "por escalão" pela também, por uma intermediação étnica.
maioria do tempo, pude registrar, Nenhum monopartismo, nem sistema
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc. Vol. 5, No 1, pp 1-20, 2023
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C Gemmino

multipartidário, tem sido capaz de mesmo querendo garantir a unidade


"expurgar" – retomando a definição dada nacional. A cultura, a um só tempo
pelo Domingos do Rosário (professor) - o essencializada e aberta à constante
fato[r] étnico da vida política africana. O reinvenção, torna-se ainda mais uma
motivo é simples: a instrumentalização de espécie de posse transformada em
etnias e tribos para a ascensão ao poder e propriedade intelectual, mercantilizada,
sua retenção (LONSDALE, 1994, p. 106- promovida, consumida. Tudo isso coloca
107). Em cada fratura histórica (luta pela ainda maior ênfase e tensão sobre o hífen-
independência, advento de monopartismo, nação. Quanto mais diversificados os
onda de democratização ...), bem como em Estados-nação se tornam na sua sociologia
todos os momentos de viragem política política, mais alto é o nível de abstração em
(prazos eleitorais, negociações de um que existe “o Estado-nação”, mais
contrato social, reformulação da articulação convincente parece ser a ameaça de sua
estado territorial ...), é legível uma ruptura. Sob esta perspectiva, e de acordo
mobilização de forças étnicas. com Comaroff e Comaroff (2001, p. 71),
torna-se mais imperativo adivinhar e negar
O conceito moderno de cidadania, que
qualquer coisa que se perceba como uma
poderíamos aplicar para os casos da maioria
ameaça à unidade. Assim sendo, a realidade
dos Estados-nações pós-coloniais africanos,
moçambicana pós-independência, que se
como o que precedeu pode sugerir, tende a
organiza a partir do pressuposto de que
obscurecer o tratamento desigual
todas as pessoas, independentemente de sua
postulando uma ideia de homogeneidade e
pertença étnico-racial teriam igualdade de
levando a conceber a cidadania como um
direitos e igualdade de oportunidades, foi
conjunto formal de obrigações e direitos
questionada e denunciada como uma
igualmente aplicáveis para todos. Constata-
instância discursiva que, de uma certa
se que, para salvar a sua própria
maneira, pretendia perpetuar um certo
sobrevivência, o Estado pós-colonial teve a
estereótipo etnicista. John Lonsdale (1994),
necessidade de acionar mecanismos
olhando para os elementos de moralidade,
integradores, que permitiram a uma franja
virtude, reputação e desigualdade como
da população criar a ilusão de alguma
elementos centrais no diálogo interno das
cidadania com base, em outros aspectos, no
sociedades africanas, baseia-se na asserção
cultural:
de que as nações, e, por conseguinte, os
Não podemos desencarar todos como grupos étnicos, são um plesbicito diário.
se fossemos de uma matriz única, mas
vamos reconhecer que existe uma
Este autor argumenta que também os grupos
diversidade mesmo que a gente ... quer étnicos e a etnicidade representam arenas
dizer, preservar uma diversidade, morais de debate político, onde se debate a
mesmo que a gente não fala sobre ela cidadania, a liderança e a representação em
como forma de garantir essa termos étnicos, por forma a esgrimir a
necessidade de Estado. Quer dizer, é a
principal bandeira da FRELIMO,
desigualdade e promover o funcionamento
unidade nacional, unidade nacional. da comunidade.
Mas esta unidade nacional não é, não Assim, com o avanço das crises sociais em
significa necessariamente que nós
partilhamos dos mesmos valores. Esta Moçambique, vão se registrando formas e
ideia de reconhecer que existem os episódios de uma sempre e mais evidente
outros, embora o reconhecimento não conflitualidade social, que acaba sendo
seja formal. [...] (ELÍSIO organizada segundo discursos e elaborações
MUENDANE, entrevista junho de de identidades étnicas em contraposição. A
2019).
elaboração de discursos da identidade
As afirmações do Muendane corroboram o expulsiva contra os que “não pertencem”
discurso que legitimaria a cidadania como tem raízes na crise económica e social e é
instrumento para preservar a diversidade, expressão da manipulação da política nos
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc. Vol. 5, No 1, pp 1-20, 2023
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Nação, cidadania e etnicidade em Moçambique (1975-1990)

grupos sociais e entidades étnico-territoriais de quais pessoas, de fato, são incluídas e


com a finalidade de conquistar, ou manter, excluídas como membros ativos de uma
a hegemonia (GENTILI, 2006, p. 63). Para determinada comunidade. O Domingos do
Faife (2003), a guerra civil de 1977 Rosário (professor) traz à tona, de seguida,
significou uma ruptura com o sentido de o conceito de cidadania enquanto
cidadania que havia despontado apenas instrumento de distinção étnica:
como um esboço. Nesta altura, passaram a Aqui em Moçambique o que é
existir os moçambicanos, que se FRELIMO? É uma constelação de três
encontravam dentro do território controlado movimentos, mas com um forte grupo
pela FRELIMO, e que se sentiam cidadãos maconde e os intelectuais do Sul,
machanganas, alguns movimentos do
de acordo com os ideais da FRELIMO. A
centro. Mas, ao longo da história do
outra parte constituía uma espécie de não- próprio desenvolvimento da luta,
cidadãos (FAIFE, 2003, p. 3). alguns grupos étnicos foram sendo
afastados da FRELIMO.
É preciso, portanto, como sugerido por
Kyed e Buur (2006, p. 566), aproximar-se Então Moçambique fica independente
em 1975. Samora Machel em frente,
ao conceito de cidadania como uma série de
sendo líder. Tirando o Uria Simango
práticas por onde é possível enxergar a que supostamente é de Sofala que
distinção entre os que ele chama de supostamente sendo Vice Precidente
outsiders e strangers [intrusos e tinha que ser a pessoa que devia
estrangeiros]. Isto é, a tal diferenciação assumir a liderança da FRELIMO,
mas que por questões étnicos-tribais,
hierárquica dos cidadãos, do topo para a
Simango é claramente descartado a
base – sugerida pelo Carlos Machili ou no favor de Samora Machel. Há muitas
dualismo cidade/espaço rural que o mortes no seio da FRELIMO, também
Muendane destacou: por expurgação étnica a favor do mito
dos macondes e changanas do Sul.
Quer dizer, quem ganha define. Então, [...] (DOMINGOS DO ROSÁRIO,
se formos nós que temos um certo entrevista em junho de 2019).
nível de escolaridade, que vivessem
na cidade, que soubessem falar O posicionamento do Domingos do Rosário
português, que é a língua. Que ao delimitar quem gozava de cidadania – o
tivessem uma fonte de renda oficial ...
homem do Sul, de extração étnica maconde
eram estes que eram admitidos como
cidadãos moçambicanos e todos que e changana – e os que eram "outras
não tivessem isso nem direito ao realidades" - categorizadas enquanto
espaço da cidade tinham. Tinham que identidades locais - remanda a certos
estar no espaço rural. [...] Tirar os estudos das identidades pós-coloniais.
improdutivos do espaço urbano
porque estes acabam afetando a Ao longo do tempo as estratégias pós-
construção da cidade socialista coloniais compõem múltiplas identidades –
(ELÍSIO MUENDANE, entrevista consoante aos contextos históricos - e
junho de 2019).
contribuem para a análise de novas políticas
Essa bifurcação entre cidade e espaço rural de identidade e pertença focadas mais na
é a que levou, depois da independência dos noção de representação: quem representa
países africanos do regime colonial, a uma quem, para e por quem, assuntos estes
divisão entre cidadão e sujeito. Como tratados por Werbner e Ranger (1996). No
destacado por Turner (2016), isso baseia-se livro dos dois autores o que se pretende
na ideia de que cidadania e identidade de enfatizar é a teoria sociopolítica e a política
grupo são incompatíveis. Enquanto a cultural da convivência, no mesmo
primeira é universal e baseada no apego a território, daquilo que Mamdani (1996)
um Estado-nação, o segundo é particularista define poder rural e urbano e que Dorman,
e baseado em modos culturais concretos de Hammet e Nugent (2007) definem
ser. Portanto, considerar a cultura como um "creation of strangers" [criação de
local de cidadania levanta a questão aguda
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc. Vol. 5, No 1, pp 1-20, 2023
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C Gemmino

estrangeiros]. A divisão/distinção é sociais e económicas: era necessário


manipulada para exacerbar as tensões e investir em outra forma de subjetivação,
fomentar um forte sentido de identidade uma forma africana, ou melhor,
coletiva para superar as diferenças e moçambicana que abandonasse as políticas
fortalecer e ampliar a nação; assim, o meio de assimilação portuguesa (CABAÇO,
mais eficaz para manter a cidadania 2009). Assim, o termo moçambicanizar
continua sendo o medo – através da criação para além de ser um lexical dos
de strangers [estrangeiros] (DORMAN, revolucionários, mostra que, mais do que
HAMMETT e NUGENT, 2007, p. 20; uma luta entre o velho e o novo, a
KYED e BUUR, 2006, p. 566). Esta prática moçambicanidade (ou moçambicanização)
é que levou a uma distinção entre cidadão e representou, nequeles momentos finais da
não-cidadão, pondo em evidência as luta e iniciais de libertação nacional, a luta
exclusões de alguns grupos étnico – por uma subjetivação do homem
etiquetados como sendo tribais - dentro da moçambicano. Uma subjetivação que não
nação e também a uma diferenciação tem como apagar totalmente o passado
hierárquica interna entre vários grupos colonial, mas propor outras maneiras da
(Ibidem, 2017, p. 567). organização social. Organização esta última
traduzida com nuances diferentes por
O lugar da(s) etnia(s) na (re)construção
alguns dos meus entrevistados.
da identidade cidadã da nação
Retomando um extrato da entrevista
Assente no quadro até agora traçado, era
realizada com Domingos do Rosário, já
sob essa plataforma que queria se edificar a
anteriormente empregado, o que pretendo
nação, visando demitir todos os
salientar nesse ponto tem mais a ver com a
essencialismos quanto à raça, etnia,
expressão incisiva do termo expurgação,
religião, sexo, e postulando um vínculo
associado, este, ao de etnia(s):
comum além de todos os tipos de divisões.
Foi assim que nos termos da constituição da Então Moçambique fica independente
República Popular de Moçambique (1978), em 1975. Samora Machel em frente,
sendo líder. Tirando o Uria Simango
um dos objetivos fundamentais do Estado que supostamente é de Sofala que
era “a eliminação das estruturas de opressão supostamente sendo Vice-Presidente
e exploração coloniais [,] tradicionais e [da] tinha que ser a pessoa que devia
mentalidade que lhes [fosse] subjacente”. O assumir a liderança da FRELIMO,
então governo de Moçambique, de mas que por questões étnicos-tribais,
Simango é claramente descartado a
tendência marxista-leninista via no culto favor de Samora Machel. Há muitas
dos antepassados e na prática de qualquer mortes no seio da FRELIMO, também
tradição cultural local um caráter por expurgação étnica a favor do mito
obscurantista, ou seja, um entrave para o dos macondes e changanas do Sul.
desenvolvimento. E é mesmo nos termos [...] (DOMINGOS DO ROSÁRIO,
entrevista junho de 2019).
constitutivos da Constituição 18 que se
encontra uma premissa que fundamentaria Nesse excerto, o do Rosário associa a união
uma certa polarização entre nacional e a independência de Moçambique
uniformação/alteridade que registrei na a um processo de expurgação onde alguns
correspondência/não-correspondência dos grupos étnicos, tais como os macondes e
resultados recolhidos de jornais e changanas do Sul de Moçambique,
entrevistas. Tomando emprestadas as (re)desenharam uma nação no sentido
palavras de Cahen (1994) a FRELIMO, no discriminatório. Seu contributo chegou a
seu fervor unificador, assumiu uma atitude suportar a idealização de que a consciência
facilmente comparável à de uma negação étnica tenha sido configurada enquanto
étnica. Não bastava romper com o passado artefato do passado tribal e colonial de
colonial e abrir espaço para transformações
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc. Vol. 5, No 1, pp 1-20, 2023
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Nação, cidadania e etnicidade em Moçambique (1975-1990)

África, tal como suportado por Vail (1989, acção directa do partido sobre as
p. 18). organizações democráticas de massas
e sobre este vasto movimento
Se na perspectiva de Cahen (1996, p. 23), o associativo. Actualmente, o partido dá
anti-tribalismo e o anti-racismo da prioridade ao enquadramento político
adequado de todos os grupos sociais,
FRELIMO serviram positivamente para
de maneira a que todos os
combater a prática da discriminação, as moçambicanos possam identificar‑se
mesmas serviram, igualmente, para com os princípios fundamentais da
justificar a negação da pluralidade étnica e nossa linha política, tais como a defesa
racial, pois “no idealizado Estado-Nação dos interesses do povo e a construção
duma sociedade justa e próspera para
[pós-independência] já não existe brancos,
todos os moçambicanos
mestiços. Só há moçambicanos” (Notícias (PARTIDO‑FRELIMO, 1983, p.
da Beira, 2 de fevereiro de 1975, p. 2). 106).
Vale também ressaltar o testemunho do Se bem o Mazula afirme o fato de que nesse
Brazão Mazula o qual, de uma forma subtil, Congresso de 1983 da FRELIMO se
fala em termos de expurgação – se assumiu a diversidade cultural, logo a
splicarmos a etiqueta do Domingos do existência de diversas etnias, no final
Rosário - ou negação étnico-cultural - se registra-se uma contradição ao dizer que a
empregarmos a narração proposta por ação política adoptada pelo partido no poder
Michel Cahen: visou utilizar a cultura para alcançar uma
[...] há um trabalho de Samora Machel união nacional, e por conseguinte anular a
de 82 sobre a cultura, depois do quarto mesma diversidade 19. Como a dizer que na
congresso da FRELIMO. Um discurso África, do fator étnico é preciso esquecer -
muito bonito. O Congresso é o no qual ou rejeitar - seu uso indevido para reter
a FRELIMO reconhece a diversidade
cultural. Até situa-se na linha do apenas a riqueza inerente à diversidade de
Eduardo Modlane em como a culturas, recuperando a reflexão do Gonidec
diversidade das tribos não impede a (1996, p. 13). Assim, apesar das tentativas
construção da nação. E esse discurso é de sufocá-la, a etnicidade ressurge nos
um pouco de lavagem daquilo que a partidos políticos, numa elite capaz de
FRELIMO havia condenado. Quando
o Samora faz esse discurso era para apropriar-se do projeto de Estado-nação
dizer que as tribos não são inimigas da moderno: a sulista. Mas que representava
nação. Mas a FRELIMO utilizou uma minoria 20, dentro do vasto panorama
sempre a cultura, procurou utilizar a étnico de Moçambique.
cultura para o seu objetivo de união
nacional ao ponto de convidar alguns Esse papel atribuído ao termo minoria é
artistas para fazer obras e para vincar sugerido pelas afirmações de alguns dos
a FRELIMO (BRAZÃO MAZULA, entrevistados, tal como o Domingos do
entrevista junho de 2019).
Rosário, mas também por outros que
Ao falar do Congresso de 1982 da atribuem ao termo minoria, para falar das
FRELIMO, o Brazão Mazula remete, na etnias, a acepção de grupo dominante, como
verdade, ao IV Congresso da FRELIMO, em seguida sugerido pelo Elísio Macuane:
que ocorreu em 1983 e onde o Comité [...] há muito que se possa dizer. Eu
Central da FRELIMO sublinhava que: penso que talvez tenha sido alienante
[…] pelas organizações democráticas sob o ponto de vista...quer dizer, não é
de massas, as organizações alienante no sentido excludente. É
socioprofissionais e as associações de alienante no sentido de consciência,
solidariedade, as associações em certos casos. O que eu quero dizer
artísticas, culturais, desportivas e com isso? Quero dizer que sob o ponto
outras, que cresce a influência do de vista das minorias étnicas, se for
Partido em todos os sectores e todos os reparar grupos como, por exemplo, os
aspectos da vida nacional. É macondes são uma minoria étnica.
necessário intensificar e melhorar a Talvez também houve grupos como os

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C Gemmino

machanganas que são um grupo em relação àquilo que era o projeto


maioritários, mas esses grupos, os nacional, nessa idade de construção
macondes os changanas, estavam na consistente de um projeto nacional,
base dessa aliança historicamente tendo em conta talvez a ideia dos
(ELÍSIO MACUANE, entrevista equilíbrios étnicos. Então, esses
junho de 2019). grupos, eventualmente, por terem sido
dominantes não conseguiram pensar
O Macuane chega a falar de minorias no país de uma forma clara. [...]
étnicas como tendo sido, as mesmas, os (ELÍSIO MACUANE, entrevista
atores principais na FRELIMO e que junho de 2019).
dominaram o movimento que levou à Dentro da concepção do Macuane há uma
libertação de Moçambique, destacando imagem de uma nação que operava antes de
assim os atributos positivos de serem uma tudo por meio de uma lógica supraclassista
minoria étnica – falando do caso dos e supra-identitária e, portanto, supra-étnica.
macondes 21 - mas, ao mesmo tempo, um Nesse sentido, ele contribui a validar o fato
grupo dominante (pois abraçaram o projeto de que o projeto levado a cabo pelo
nacionalista do partido-Estado). movimento de libertação foi o de construir
Do ponto de vista lexicográfico, os dois uma nação através de uma tentativa forçada
termos resultam ser permutáveis. E são, de homogeneização. Esta última, de fato,
tomando em conta a história de acabou com essa ideia de alteridade através
Moçambique. Mas paralelamente, seja qual de um processo de verdadeira
for o atributo a associar-se (se minoria ou homogeneização étnica com o objetivo de
dominante), esses grupos foram garantir a unidade de uma maioria social
responsáveis pela alienação das ideias tanto ‘instável’, validando, assim, os interesses
de nação quanto da unidade que na própria desse grupo social em 'interesses nacionais',
nação tinha que se refletir. de molde a legitimar a imposição de sua
plataforma político-programática específica
Nesse sentido é que o trabalho de Fanon
(BRAGA, 2005, p. 182).
(2008) e Serra (1997) sobre "alienação" se
tornam úteis ferramentas pois têm a ver com Tendo por base essa premissa é legítimo
uma identidade que acaba sendo marcada afirmar que a identidade nacional e mesmo
por uma situação histórico-política na qual a etnicidade 22 partem de igual princípio.
se tentava criar e justificar novas normas e Isto é, de ter nos ditames da alteridade seus
buscar um caminho para a negociação de processos fundacionais (DIAS ROCHA,
contratos sócio-políticos em determinadas 2018, p. 132).
situações: um indivíduo era "alienado" A cidadania auspicada
porque não seguia o caminho marcado pela
sua identidade, impondo um determinismo Afiliações étnicas e culturais até agora
em termos de posição social e escolha de detectadas não se traduzem apenas em uma
valores (SERRA, 1997, p. 114). Por essa vitória da ideologia política. Ao contrário,
razão é que os grupos étnicos dominantes, para um dos meus entrevistados, elas são
apesar de ser uma minoria étnica, testemunhos de umas tentativas de
dominaram o país, levando assim a uma reorganização dos espaços políticos,
forma de clivagem étnica muito forte, económicos e culturais. Estes se tornam
comprometedora de desestabilidade e lugares onde se reinventam laços
alienante, patente isto, novamente, no comunitários e as razões da solidariedade e
testemunho do Elísio Macuane: onde se afirma a busca de novos modelos de
vida e práticas sociais de pertença e de
O que eu quero dizer em termos dessa
aliança no sentido de consciência?
cidadania (GENTILI, 2006, pp. 65-66).
Estou a dizer que a sua essência de Com base nisso, a interpretação auspicável
grupos étnicos dominantes talvez os que o lexema cidadania poderia ter na
colocaram numa situação de alienação sociedade moçambicana é aquela aplicada
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Nação, cidadania e etnicidade em Moçambique (1975-1990)

pelo testemunho do Severino Ngoenha nas diversas posições que o indivíduo pode
(professor). Ele prefere usar os termos ter enquanto sujeito, os dois chegam à
moçambicanidade e utopia moçambicana conclusão de que os indivíduos podem
para descrever atos relacionados com a simultaneamente ter diferentes cidadanias,
cidadania: isto é, diferentes formas de traduzir a
Olha, eu estou a escrever neste pertença a um determinado Estado-nação.
momento uma coisa que até saiu nos Logo, diferentes identidades. Para eles isso
jornais, que eu chamo de terceira via. vem do fato da identidade ser um processo
Não a terceira via de Giddens, do que começa fora do alcance de regras e
Tony Blair. O que eu chamo a terceira
regulamentos legais.
via, devia ser uma síntese de duas vias
que Moçambique conheceu [...] Os cientistas sociais mostram que nunca há
[...] Por isso posso dizer assim: a uma identidade única. Os indivíduos, tal
cidadania da segunda República, ou como as comunidades, possuem várias
da segunda via, é uma cidadania em identidades: religiosas, profissional, étnica
que tem cidades sem cidadãos. Então
e até várias etnicidades. Segundo os
não há cidadania. Essa discussão
sobre a cidadania, hoje neste contextos, os indivíduos ou comunidades
momento, não faz sentido. Mas é sentem a necessidade social de se
exatamente o que eu estou a procura exprimirem através de uma dessa outra
na terceira via. A terceira via seria identidade (CAHEN, 2002, p. 94).
para mim recuperar os valores
positivos da primeira via, os valores Uma saída da tensão dentro da política de
positivos da segunda via para criarmos identidade é enfatizar não as categorias de
uma utopia moçambicana 23 identidade como tais, mas o processo ou
(SEVERINO NGOENHA, entrevista
em junho de 2019).
prática de luta e reivindicação de direitos,
forma de democratização cultural. Qualquer
A questão de cidadania moçambicana, para tentativa de repensar modelos de cidadania
o Ngoenha, deve ser vista tendo em conta a teria que problematizar questões de
história do país. Porém, o mesmo propõe "cultura" de maneiras que não são evidentes
uma concentração das forças na construção na formulação da cidadania inicialmente
do futuro. O futuro, a tal utopia de que ele proposta por Marshall (1964).
falou durante a entrevista que implicaria a
conciliação de, pelo menos, duas De acordo com o Nyamnjoh, há uma clara
historicidades, de duas velhas vias da necessidade de re-conceituar a cidadania de
cidadania, que estabelecem um elo com forma a criar um espaço político, cultural,
duas identidades: a étnica, plural por si social e econômico para incluir os (não)-
mesma e a colonial, singularizada pelos ex cidadãos (grifo meu) e cidadãos iguais,
colonizadores. O Ngoenha chama a atenção enquanto indivíduos de uma comunidade.
para a necessidade de os moçambicanos Esta inclusão é melhor assegurada através
apropriarem-se tanto dos valores do de uma cidadania que ele define de
passado quanto dos valores pós-coloniais ‘flexível’ e, por isso, ilimitada por raça,
para criar um sentido na e da cidadania de etnia, gênero, classe ou geografia e que é
modo a integrar Moçambique no mundo consciente e crítica das hierarquias que
moderno sem perder a sua personalidade fazem uma paródia do regime jurídico-
(NGOENHA, 1992, pp. 80-81). político da cidadania (NYAMNJOH, 2006,
p. 78).
A tal cidadania, que nesse parágrafo, eu
chamo de auspicada e que registrei nas CONCLUSÃO
afirmações desse importante testemunho Com base no material analisado, cujos
integra os trabalhos de vários estudiosos exemplares foram sendo citados ao longo
que despontam outros possíveis viés. De do artigo, e considerando os objetivos que
acordo com Isin e Wood (1999), e com base procurei atingir, o que registrei é o fato da
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc. Vol. 5, No 1, pp 1-20, 2023
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C Gemmino

nação ter sido considerada um processo de mostram que os ditos "conflitos" étnicos são
edificação – e em contínuo andamento - antes de mais conflitos políticos. Enquanto
num território onde alguns aspectos que a o Estado ainda não for capaz de promover o
compõem foram destacados e outro desenvolvimento, de reduzir os
ocultados. desequilíbrios regionais, enquanto os atores
políticos não forem capazes de irem para
A nação era e é entendida ao longo do artigo
além, o sentimento de marginalização e
enquanto repositório histórico construído e
exclusão étnica em certos grupos
individuado numa única identidade. Nesse
prevalecerá.
sentido, principalmente pelas palavras dos
diversos entrevistados aqui citados, é a ideia REFERÊNCIAS
de que existisse uma distinção, por ANDERSON, B. Imagined Communities:
categorias, de moçambicanos mais Reflections on the Origin and Spread of
autênticos do que outros. Sob esta Nationalism. London-NewYork. 1983
abordagem, o fenômeno da alteridade foi
sendo transposto - desde o período colonial Ba Ka Khosa, U. Memórias perdidas,
para o período pós-colonial - através da identidades sem cidadania. Revista Crítica
hierarquização e da diferenciação dos de Ciências Sociais, n.106, pp. 127-132.
grupos de pertença; foi sendo prolongado 2015.
no tempo através de pressupostos BHABHA, H. K. Nation and Narration.
ideológicos e políticos da modernidade; foi London: Rouledge. 1990.
sendo perpetuado através de dispositivos de
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Realçando esses elementos, delineei uma Power. Cambridge: Cambridge University
imagem de nação moçambicana pós- Press. 1991.
independência que não pôde estar BRAGA, S. S., Resenha de Intelectuais e
decontextualizada da história que é a que política no Brasil. A experiência do ISEB.
tenho como suplemento para justificar a Crítica Marxista, n. 23, Rio de Janeiro,
quase 24 total correspondência da mesma 2005.
com a ausência silenciada de uma
representação dos grupos étnicos na e para CABAÇO, J. L. de O. Moçambique:
a construção da nação. identidades, colonialismo e libertação, Tese
de Doutoramento apresentada à Faculdade
Com base nisso, a 'universalidade', que de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
compõe aqui o pano de fundo da imagem do Universidade de São Paulo, Faculdade de
Estado-nação, também se reflete na Filosofia, Letras e Ciências Sociais,
determinação da noção de cidadania, vista Departamento de Antropologia, São Paulo.
enquanto conjunto de mecanismos 2007.
centralizados de controle que não só
permitiram unificar, como também ____________. Moçambique: identidade,
uniformizar uma comunidade. colonialismo e libertação. São Paulo:
Unesp, 2009.
Em suma, a homogeneidade enquanto ideia
nacional deu lugar ao reconhecimento da CAHEN, M. Check on socialism in
irredutibilidade das diferenças; tanto é Mozambique — what check? What
assim que até mesmo países conhecidos há socialism?. Review of African Political
muito pela sua falta de diversidade – como Economy, n. 57, 1993.
o Botswana – são hoje em dia palco de lutas _________. Mozambique, Histoire
de identidade. Os casos aqui relatados géopolitique d'un pays sans nation.

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NOTAS

1
O conceito de Estado-nação refere-se à congruência das Africana de Moçambique (UNAMO), a Mozambique African
fronteiras linguísticas e culturais da nação com as fronteiras legais Nation Union (MANU) e a União Democrática Nacional de
e territoriais do Estado, isto é, a coincidência das fronteiras da Moçambique (UDENAMO) – esta grande frente tinha um caráter
nação e do Estado (MARTINS, 2016, p. 87). Agora, a diferença nacionalista amplo e contava com o apoio internacional de seus
entre Estado e nação, em termos de definição da cidadania, reside vizinhos ao norte do país (Malawi, Zâmbia, Zimbabwue e
entre pertença a um Estado, que significa cidadania legal e Tanzânia).
pertença a uma nação, ou seja, pertencer a um grupo de pessoas
que partilha uma língua, hábitos, costumes, por vezes uma religião
8
A facção conservadora pretendia centrar os esforços na
e um imaginário de ancestralidade, entre outros fatores (Ibidem, independência e, regra geral, seguia uma linha afro-nacionalista,
2016, p. 88). enquanto a facção radical estava empenhada em universalizar a
revolução social, vendo a independência apenas como um
2
Termo que, a partir da década de 1960, se tornou primeiro passo.
progressivamente crucial para designar, genericamente, o
sentimento coletivo de pertencer a um grupo cultural próprio que,
9
Para compreendermos os tipos de posições ideológicas
apesar da diversidade de fatores constituintes, do somático ao defendidas pela liderança da FRELIMO teremos de recuar à fase
simbólico, tende hoje a visitar-se com um sentido cultural e social tardia do período colonial (1930-1975). Os assimilados
positivo, ancorado à eliminação crescente da diversidade e constituíam uma elite africana emergente, em grande medida
alteridades culturais. criada pelo Estado colonial com vista a limitar o poder das velhas
elites crioulas (CAHEN, 1992; 1993). Este grupo tinha,
3
O número reduzido de exemplares de jornais no Arquivo é de se geralmente, laços muito mais fracos com as formas de poder
tomar em conta com relação apenas ao período objeto da minha "tradicionais", constituindo, durante o período colonial, uma
análise. espécie de pequena burguesia africana, que era uma reduzidíssima
minoria dentro da população indígena de Moçambique.
4
Para o seguinte artigo foram selecionados apenas n. 27 excertos.
O presente artigo é parte de um projeto de investigação maior que 10
Por antecedentes sociais entendo etnia, região, religião e nível
tem a ver com a redação da tese Doutoramento em Estudos de instrução.
Africanos no seio do ISCTE-IUL. Por essa razão é que, para as
finalidades do presente artigo, não se encontram contempladas as
11
Os líderes religiosos, os estrangeiros associados a organizações
obras literárias que, contudo, foram registradas e analisadasnos internacionais poderosas, os membros mais importantes da classe
seus ecertos, na tese de Doutoramento. mercantil indiana e os altos membros da RENAMO, antigos
rebeldes que constituem hoje o partido de oposição oficial
5
Esse parágrafo pode ser considerado como um pequeno (SUMICH, 2008, p. 332). Para um olhar mais aprofundado sobre
contributo que defenda o contrário. o assunto, veja Fernando Florêncio (2008, pp. 369-391)
Autoridades tradicionais vaNdau de Moçambique:o regresso do
6
Segundo os etnossimbolista, se o nacionalismo é um fenómeno indirect rule ou uma espécie de neo-indirect rule?
tipicamente moderno, a nação como forma de identidade coletiva
sempre existiu, apesar de ter tido formas diferentes ao longo dos 12
De fato, existem diversas facções e clivagens sociais no seu
séculos. Basicamente, para dar conta da emergência das nações, seio. Tais clivagens estão relacionadas com os diversos
os etnossimbolistas - dentre os quais o Antony Smith representa antecedentes sociais dos membros da elite e incluem a etnia.
um dos representantes mais influentes - adotam a perspectiva de
long durée enquanto instrumento capaz de explicar o moderno
13
O texto Disseminação de Bhabha (1998) é útil para entender
nacionalismo e a nação como parte de um ciclo da consciência algumas questões referentes a nação moçambicana. Este autor se
étnica: Smith introduz, portanto, o conceito da etnia para motivar contrapõe às perspectivas cunhadas no século XIX que tomam a
o sentido da história e a percepção da unicidade e da nação como uma perspectiva unitária, com uma ideia
individualidade cultural que cada povo possui. A prova de que a unidimensional da mesma. Bhabha, ao contrário, procura pensar
maioria das modernas nações é o resultado de antigas etnias é na nação a partir das suas margens: as vivências das minorias, os
fornecida pela persistência de elementos tradicionais na estrutura conflitos sociais, chocando-se com o moderno. Trata-se, em suas
social e na cultura das sociedades modernas. palavras, do questionamento da visão homogênea e horizontal
associada com a comunidade imaginada de nação.
7
A base das operações foi instalada em Dar es Salaam. A
FRELIMO foi o movimento de Libertação, liderado por Eduardo
14
O Ruvuma é o rio que traça a fronteira norte com a Tanzânia e
Mondlane e formado em 1962, na Tanzânia, através da agregação o Maputo o que delimita Moçambique a sul. A expressão entrou
de três movimentos de luta anticolonial já existentes – a União no léxico da FRELIMO para designar a unidade nacional.

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devemos lutar contra a tendencia simplista de recusar a


diversidade como forma de realizar a unidade. Fazer isso e
15
No caso objeto de estudo pelo autor camaronês, o da África do
considerar, erradamente, que a diversidade e um elemento
Sul e Botswana, cidadania e pertença encontraram-se ordenadas
negativo da criação da unidade nacional; e pensar, erradamente,
por raça, etnia, classe, gênero e as suas dinâmicas estavam nas
que a unidade nacional significa uniformidade". (FRELIMO,
mãos do capital oportunista e dos políticos, quer dizer das elites
1983).
nacionalistas, em detrimento dos direitos humanos. Em ambos os
casos, um foco estreito sobre a cidadania jurídica e política levou 20
Pretendo destacar que a categoria minoria é aqui utilizada
a cidadãos sem representação económica e cultural significativa unicamente como dado numérico e não como uma categoria
que, por sua vez, tiveram uma tendência a serem identificados sociológica que expressa um grupo determinado que sofre
como minorias étnicas e estrangeiros. processos de exclusão social.
16
No sentido formal de multiplicidade de partidos políticos 21
Os maconde, grupo étnico moçambicano, são originários das
disputando o poder em eleições regulares. províncias de Mtwara e Linde, no sudeste da Tanzânia, e na
província de Cabo Delgado, no nordeste de Moçambique,
17
A Resistência Nacional de Moçambique (Renamo), cujos
separados pelo rio Rovuma (cf. LARANJEIRA, 2013, s.p.).
dirigentes eram maioritariamente do Centro de Moçambique, na
Historicamente, os maconde tiveram uma participação ativa nos
sua guerra contra a Frelimo que durou cerca de 16 anos, dizia entre
movimentos de resistência ao colonialismo e uma presença
outros, bater‐se contra o tribalismo deste partido. Nas palavras de
significativa na FRELIMO no contexto das lutas pela
Geffray, a Renamo (Resistência Nacional de Moçambique)
descolonização. No pós-independência, a relação entre os
iniciou a guerra civil em 1977, inicialmente com o apoio do
maconde e a política impulsionou o processo migratório do grupo
governo racista da Rodésia e, após 1980, da África do Sul. A
em direção à Maputo e distritos vizinhos. É nesse contexto que a
guerra durou até 1992, altura em que foi assinado o acordo de paz.
produção artística e cultural, como vimos há pouco, dos maconde
A interferência de poderes externos pode explicar as origens e o
imbricou-se no processo da construção da nação moçambicana e
poderio militar (em termos de sofisticação do armamento e dos
das ações e ideologias da FRELIMO.
sistemas de comunicação via rádio) da Renamo, mas não é
suficiente para compreender como foi possível manter todo o país 22
A dialética de reconhecimento e afirmação sociais que envolve
por tanto tempo em estado de guerra. Christian Geffray (1991, pp. a consideração da deve ainda ligar-se, imediatamente, ao abuso da
23, 25, 59) aprofundando as causas da guerra num estudo de caso utilização da noção de grupo étnico para classificar minorias e
realizado na província de Nampula identificou estes mesmos grupos sociais ditos inferiores, enquanto os grupos dominantes
fatores. A Renamo, não possuindo uma claramente definida, não se perspectivaram a eles próprios como étnicos, apesar de
estruturava a sua propaganda em torno de uma oposição explícita utilizarem principalmente a diversidade cultural transvertida de
às políticas da Frelimo – centrado-se na defesa das tradições e das etnicidade como fator de diferenciação social.
autoridades tradicionais (GEFFRAY, 1991, pp. 117, 119).
23
Quis destacar na minha análise o excerto acima mencionado se
18
A Constituição de Moçambique de 1978 não está incluída como bem o Professor em outra altura da entrevista fale da cidadania
corpus analisado. Porém, alguns dos seus artigos se tornaram o enquanto forma de pertencer à comunidade: "Cidadania existe só
ponto de partida para delinear algumas das questões do guião quando há cidades e cidade significa que nós pertencemos a uma
semiestruturado que me acompanhou durante as entrevistas. comunidade. A palavra comunidade em latim quer dizer cumunia.
Cum quer dizer bens, só quando partilhamos bens espirituais e
19
De acordo com Ba Ka Khosa (2015) os sinais de que o
bens materiais".
monolitismo decretado era um erro de consequências
imprevisíveis veio em forma de relatório do Comité Central da 24
O “quase” tem a ver com a parcialidade dos dados recolhidos,
Frelimo, em 1983, em vésperas do IV Congresso, ao fazer constar devido a constrangimentos técnicos no terreno, no caso, a
que: "E grande a nossa diversidade étnica e linguística. Foram impossibilidade de encontrar com os representantes da FRELIMO
diversas as formações sociais pré-coloniais, cada uma com as suas a serem entrevistados.
características próprias. A dominação colonial abateu‑se sobre a
totalidade do nosso país, mas afetou de formas diferentes as
diversas regiões de Moçambique. […] Hoje, liberto o país,

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