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E N S I N O S U PER IO R N A Á FRIC A

Universidades moçambicanas
e o futuro de Moçambique
EM 13 ANOS DE EXPANSÃO CONTÍNUA E SEM CRITÉRIO, O PAÍS PASSOU DE 5 PARA 44
INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR, E DE 10 MIL ESTUDANTES PARA 120 MIL

Lourenço Joaquim da Costa Rosário


Reitor da Universidade Politécnica de Moçambique, presidente da Fundação Universitária para o
Desenvolvimento da Educação (FUNDE), presidente do Mecanismo Africano de Revisão de Pares
(MARP), presidente do Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa (FBLP). Doutor em Letras pela
Universidade de Coimbra. Professor convidado de universidades no Brasil, Portugal, Alemanha,
Itália e Espanha. Autor de obras sobre tradição oral africana, literatura, história, cultura e
sociedade africana

Introdução numa perspectiva global e tentou encontrar a sua


O início da década de 1960 viveu vários acon- própria leitura, misturando a visão demonizada
tecimentos que iriam marcar definitivamente a vi- das consequências da Guerra Fria e a percepção
ragem do rescaldo das consequências do fim da de que o seu sistema colonial era diferente – mais
Segunda Grande Guerra. O sistema colonial im- doce e aceitável perante os povos africanos. Apos-
plantado na África começou a sentir os primeiros tou na assimilação e assunção da “portugalidade
abalos, pondo em alvoroço as potências europeias ultramarina”. É desse modo que o regime colonial
que tinham possessões no continente, olhando, português passou ao largo da grande visão de mu-
com algum pânico, o desmoronar do império que danças que a década de 60 prometia ao país.
lhes dava acesso às inúmeras riquezas africanas.
Por outro lado, e simultaneamente, a década de
1960 era também a fase da consolidação da cons-
ciência nacionalista que, de uma forma mais clara,
E m 1961, pressionado pela chamada década
da África, em que os países colonialistas com
regimes democráticos, nomeadamente a França,
contestava os processos de integração e assimila- o Reino Unido e a Bélgica, procuravam manobrar
cionismo – que apareceram como recurso dos sis- os nacionalistas africanos para enveredar pelos
temas coloniais que procuravam apressadamen- caminhos do neocolonialismo, Salazar empurrava
te encontrar, entre os povos das colônias, quem os nacionalistas das suas colônias para a única
pudesse continuar o sistema sem a presença dos alternativa que lhes sobrava — a luta armada. Não
próprios colonos na administração. O início dessa se pode considerar pura coincidência o início da
década é, igualmente, o despontar dos grandes luta armada de libertação das colônias portugue-
conflitos regionais, nomeadamente no Vietnã, e sas e o fato de o regime colonial ter estabelecido,
dos golpes militares na América Latina, o que fa- em Luanda e em Lourenço Marques, as primeiras
zia prever um período de grandes mudanças que escolas de educação superior, conhecidas por
marcariam definitivamente o virar do século. “Estudos Gerais”. Acompanhado de um processo
O regime colonial português era um parente de crescimento do ensino secundário, supunha-
pobre nessa movimentação planetária. Por isso, se que a criação de Estudos Gerais constituisse
não entendeu logo o movimento nacionalista de uma elite negra que continuasse a administrar

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o sistema colonial na África. Contudo, não foi isso entendido ser o papel das universidades, nomea-
que aconteceu. O ensino superior criado em An- damente, a produção do pensamento, o sentido
gola e em Moçambique na década de 1960 não de autonomia, a defesa do direito à liberdade de
absorveu a elite negra, de tal forma que, quando opinião e expressão, pois esses valores podiam
uma década depois colapsou o regime colonial, a minar o sentido patriótico definido pela Revo-
elite negra não estava nas universidades de Ango- lução, desviando as atenções das pessoas para
la e de Moçambique. Estava sim, sobretudo, nas as questões consideradas burguesas. A título de
matas combatendo o regime colonial, ou exilada exemplo, podemos enquadrar nesse desiderato o
no estrangeiro. encerramento da Faculdade de Letras no final da
década de 70 – e sua substituição pela Faculdade
Desenvolvimento Preparatória e de Educação – e o encerramento da
Com esta introdução, pretende-se demonstrar Faculdade de Direito da UEM no início da década
que a construção do ensino superior em Moçam- de 80.
bique é, sobretudo, obra estabelecida e construí- A cooptação da UEM pelo regime de partido
da a partir da chegada da luta nacionalista pela único revelou-se de uma utilidade fundamental
independência. E cresceu com o próprio processo para moldar a mentalidade do pensamento uni-
e vicissitudes que a independência trouxe. versitário dos moçambicanos, que, de uma certa
No regime de partido único estabelecido pela forma, ainda hoje perdura. A abertura política, na-
Frelimo em 1975, o papel da universidade estava turalmente, é um processo doloroso, porque con-
claramente definido em função das opções ideo- fronta esquemas mentais estabelecidos e que de
lógicas, políticas e estratégicas que o Estado mo- repente são postos em causa por posturas preten-
çambicano popular adotou. samente exógenas, apesar de conhecidas, mas
A função da Universidade de Lourenço de sempre consideradas distantes. A implantação
Marques, transformada mais tarde em Universi- do regime multipartidário, a partir da década de
dade Eduardo Mondlane (UEM), era essencial- 1990, não modificou grandemente a mentalidade
mente a de produzir quadros que pudessem ser- unitária do pensamento sobre a universidade e a
vir à Revolução Moçambicana – técnica, científica sua subordinação ao poder político.
e ideologicamente preparados. Por isso, o corpo
universitário, seus dirigentes, docentes, quadros
técnico-administrativos e estudantes eram consi-
derados quadros da revolução e, portanto, tam-
J oaquim Chissano, vencedor das primeiras elei-
ções multipartidárias, em outubro de 1994,
após dar posse ao seu governo democrático em
bém a cada um cabia uma tarefa concreta nas janeiro de 1995, viu-se confrontado com a ques-
grandes linhas do processo revolucionário. tão do ensino superior que se perfilava como uma
A UEM não podia, de forma nenhuma, ter ou prioridade inadiável. Curiosamente, ela não cons-
pretender ter um papel que é neste momento tava nas prioridades listadas no Plano Quinquenal

Enquanto os países colonialistas com regimes


democráticos, como a França e o Reino Unido,
procuravam cooptar os nacionalistas para
o neocolonialismo, Salazar empurrava os
nacionalistas das suas colônias para a luta armada
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do Governo. O Plano olhava mais para as questões ouvir (como em todos os inícios de processos, com
econômicas como principal panaceia da saída do vozes de volume elevado).
país da pobreza absoluta para integrar o concer- Como consequência disso, leituras diversas
to das nações, depois de dezesseis anos de de- eram colocadas, marcadamente a de assimetrias
sestruturação, destruição e inanição provocadas regionais, a exclusão de partes de Moçambique
pela guerra civil. Desde logo, o chefe de estado foi que vinham a agravar conflitos latentes e reacen-
sendo questionado pelo imobilismo nas intenções der algumas vozes que justificavam a guerra civil
de promover um debate abrangente sobre ensi- como resultado de problemas fundamentalmente
no superior, incluindo a questão da expansão. De internos, excluindo a conjuntura de fatores ex-
lembrar que as duas outras instituições de ensino ternos que alimentou o conflito. A aprovação da
superior públicas, surgidas de iniciativa de enti- Lei 1/93 – que estabelecia, pela primeira vez, um
dades como o Ministério da Educação e Cultura regime legal em que se abria espaço à entrada
e o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Coo- de operadores privados no estabelecimento de
peração, nomeadamente o Instituto Superior Pe- instituições de ensino superior em Moçambique
dagógico e o Instituto Superior de Relações Inter- – e a criação, em fevereiro de 1995, da Comissão
nacionais, foram, durante muito tempo, tratadas Comiche – que tinha como missão refletir, estu-
como parentes menores perante a Universidade dar, conceber e propor ao governo uma política
Eduardo Mondlane, servindo como alternativa vo- coerente sobre a expansão do ensino superior em
cacional para os setores que os criaram, embora Moçambique – constituem as duas principais ala-
a própria UEM paralelamente formasse quadros vancas que tentavam dar uma nova dinâmica à
para as mesmas áreas. problemática do ensino superior em nosso país.
O peso da UEM como universidade nacional

E sse debate que se impunha alongou-se para a


necessidade de se repensar a titularidade das
instituições de ensino superior em Moçambique,
sentiu-se grandemente quando se iniciou o deba-
te sobre expansão. Vozes com alguma relevância
na direção do partido e do Estado avaliavam que
visto que o Estado reconhecia as suas fragilidades o problema da expansão podia resolver-se através
para responder cabalmente às vozes reivindica- da Eduardo Mondlane, que abriria vários campi
tórias que marcavam já a conflitualidade sobre a seus pelo território nacional afora. Note-se que
questão premente do acesso ao ensino superior. era uma opinião de peso, que foi debatida du-
Acima de tudo, a questão da expansão do ensino rante várias sessões e só foi abandonada de uma
superior, para o governo de Joaquim Chissano, era forma evidente com a oposição intransigente de
uma questão política, importava essencialmente seu próprio reitor à época, Narciso Matos, que em
responder às mudanças operadas em Moçambi- contrapartida defendia que o Estado devia criar
que, em que a opinião pública procurava fazer-se duas outras universidades, uma no Centro, outra

O ensino superior criado em Angola e Moçambique


na década de 1960 não absorveu a elite negra;
quando o regime colonial entrou em colapso,
uma década depois, a elite negra não estava nas
universidades, estava nas matas, combatendo o
regime colonial, ou exilada
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no Norte, com a mesma relevância. A construção do ensino
Timidamente, a proposta foi sendo seguida por superior em Moçambique
meio da criação não de universidades, mas sim é, sobretudo, estabelecida
de institutos superiores politécnicos pelo então a partir da luta
Ministério do Ensino Superior, Ciência e Tecnolo- nacionalista pela
gia (MESCT). O relatório apresentado ao chefe de independência
Estado em 1997, na cidade de Chimoio, conside-
rava, no fundamental, que a expansão não devia
ser feita a qualquer preço. O Estado devia decla-
rar prioridade absoluta à problemática do ensino superior. Ao mesmo tempo, um debate novo foi in-
superior, inspirando-se nos exemplos da região e troduzido sobre a questão da duração dos cursos,
indo atrás daquilo que se considerava a criação de em que licenciaturas de 5 anos passaram para 4
centros de excelência, de modo a não defraudar anos e de 4 se pretendia que passassem para 3
as expectativas do povo. Para isso, o Estado devia anos, tudo em nome da celeridade na formação.
ter a consciência de que investir na educação é in- Em nenhum momento se discutiu realmente a in-
vestir muito alto e que os seus frutos só aparecem serção da universidade moçambicana no contexto
após algumas gerações. do pensamento universitário mundial, o processo
foi sobretudo endógeno, preterindo-se verdadei-

S endo essas recomendações expurgadas do


longo relatório Comiche, era natural que não
satisfaziam os objetivos da pressão que Joaquim
ramente um debate genuinamente universitário.
Por isso é que todos os problemas que são
apontados no sistema de ensino superior em Mo-
Chissano recebia de todos os quadrantes do ter- çambique resultam dessa desordem programada
ritório nacional. É assim que o Estado começa a de crescimento, que não cuidou nem sequer em
licenciar instituições de ensino superior privadas cumprir com o que estava estabelecido na própria
e ocorre a abertura de delegações de ensino su- lei do ensino superior, quer na sua versão 1/93,
perior público, de uma forma acriteriosa, violando quer na versão 5/2003, ou na versão 27/2008,
inclusive a própria Lei 1/93. Essa legislação esta- onde estavam plasmados todos os passos proces-
belecia critérios claros para, numa primeira fase, suais para a autorização de criação e financiamen-
autorizar a criação e, numa segunda etapa, per- to de instituições de ensino superior, para a ques-
mitir a entrada em funcionamento das instituições tão do acesso e da obrigação do estabelecimento
de ensino superior. Estão nesse contexto a vista de regulamentos claros à luz da lei vigente.
grossa sobre instalações, equipamento, bibliote- A convicção de que no país, ao longo desse pe-
cas, número mínimo de docentes a tempo integral ríodo, era mais fácil criar uma instituição de ensi-
e respectivos graus, bem como laboratórios. no superior do que um supermercado trouxe uma
O Estado permitiu que instituições vocacionais sensação de mal-estar entre os acadêmicos, pois
públicas alargassem o leque da sua atuação, de essa afirmação configura a perda do peso simbó-
modo a intervir nas demais áreas de conhecimento lico que o sistema do ensino superior tem dentro
e de formação. É um processo que durou de 1997 de uma sociedade.
até 2010. Foram 13 anos de expansão contínua e
sem critério, que fez passar de 10 mil estudantes
em 1997 para os atuais cerca de 120 mil estu-
dantes, e de 3 instituições de ensino superior pú-
A lguns conflitos de natureza eminentemente
acadêmica que eclodiram sobretudo na UEM
–como o que opôs o reitor Brazão Mazula aos
blicas e 2 privadas para 44 instituições de ensino quadros mais eminentes da Unidade de Filosofia

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No regime de partido transferência de conhecimento e de informação,


único estabelecido pela de que resulta um reajustamento que permite um
Frelimo em 1975, o papel funcionamento tido como normal, dentro dessas
da universidade estava anormalidades todas.
claramente definido Essas questões foram abordadas na discussão
em função das opções da Comissão Comiche e encontram-se no relató-
ideológicas, políticas rio que foi apresentado ao chefe de Estado no se-
e estratégicas que o minário de Chimoio. Foram motivo de debate no
Estado moçambicano efêmero Ministério do Ensino Superior, Ciência e
popular adotou Tecnologia (durou apenas um mandato), mas su-
portam neste momento alguns argumentos sobre
a qualidade do ensino em Moçambique.
O dilema está em considerar que os fatores que
e Ciências Sociais (UFICS) – acabaram por não concorrem para uma formação de qualidade no
permanecer no debate acadêmico, mas sim de- sistema de ensino superior em Moçambique são
sembocaram no plano político e administrativo. inexistentes ou de existência deficitária. Concor-
Bem como toda a problemática da reforma curri- da-se que o ensino superior em Moçambique ca-
cular, que tinha como epicentro a adoção ou não rece da qualidade que merece ter, sendo que essa
do modelo de Bolonha e da sua utilidade para o constatação é de caráter distributivo: com uma
estágio atual do ensino superior em Moçambique. variação muito pequena, todas as instituições de
Também o seu debate fugiu do plano acadêmi- ensino superior em Moçambique sofrem da mes-
co, resvalando para argumentações de natureza ma síndrome.
política e decisões administrativas, em que igual- Apesar da convergência dos fatores negativos,
mente na UEM se configurou uma estratégia de há variáveis que permitem melhorar ou não o fun-
colocar no mercado de trabalho o maior número cionamento de algumas instituições, e duas das
de graduados, sem cuidar dos parâmetros em que variáveis serão certamente a organização interna
um graduado saído de uma universidade, nesse e a cooperação internacional. São poucas as ins-
momento, em Moçambique, deve corresponder. tituições de ensino superior em Moçambique que
O enfoque sobre alguns dos episódios pró- têm uma política sistematizada de internacionali-
prios da dinâmica do mundo acadêmico, em que zação, decorrendo disso a existência de escolas
aparece a UEM como epicentro, demonstra que superiores que se limitam a viver o seu dia a dia.
essa universidade tem funcionado como a matriz A tutela despertou, após esse período de ex-
do ensino superior em Moçambique. Aquilo que pansão rápida, promovendo trabalhos de elabora-
acontece na UEM afeta o sistema no seu todo, e ção e sistematização de regulamentos de natureza
as razões disso assentam exatamente na forma universitária e produção de instrumentos regula-
como essa universidade surgiu e as funções que mentares que permitam a avaliação das institui-
desempenhou ao longo dos anos no contexto das ções de ensino superior e a sua acreditação. Si-
instituições do Estado moçambicano. Da mesma multaneamente, a tutela adotou também posturas
forma, esse crescimento que não teve em conta regulamentares que permitem a circulação de do-
as próprias leis, ignorou igualmente os fatores mí- centes e discentes interna e internacionalmente.
nimos que são de senso comum, nomeadamente:
infraestrutura, equipamento, corpo docente, bi-
bliotecas, sistemas de comunicação e sistemas de S ão os sinais de que, após a desordem da expan-
são, pretende-se perseguir um funcionamento

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das instituições de ensino superior mais próximo autorregulação da vida das instituições de ensino
dos padrões internacionalmente aceitáveis. O superior de Moçambique. Com uma agenda bem
discurso recorrente que no dia a dia se ouve um concreta, visando criar o espírito corporativo, o
pouco por todo o lado, de que o ensino superior Conselho de Reitores debateu o déficit e a mobi-
em Moçambique não tem qualidade, não leva lidade excessiva dos docentes entre as diversas
em conta que, apesar de tudo, em Moçambique instituições (vulgo “turbo-professor”), debateu
existe uma cultura acadêmica – grande parte dos na sua agenda a questão da corrupção nas suas
quadros que hoje servem em todos os setores foi diversas e variadas vertentes e teve voz ativa pe-
aqui formada. Falta de qualidade é um mito que rante o Parlamento, quando se quis, como atrás
vai buscar o seu fundamento no processo desre- foi referido, adotar sem debate o processo de Bo-
grado de expansão. Esse mito tem uma parte de lonha mal digerido. O CRM tem sido nas instâncias
verdade que o sustenta: o número considerável oficiais, especialmente no Conselho Nacional do
de instituições de ensino superior que apenas se Ensino Superior, uma voz a ter em consideração,
preocuparam com a sala de aula e pouco mais. A embora se reconheça que o espírito de boa vizi-
prazo, se todos os instrumentos reguladores fun- nhança não permite atacar de uma forma mais
cionarem devidamente, muitas instituições terão profunda e frontal algumas questões evidentes
dificuldade de sobrevivência, pois não terão con- que mereceriam ser abordadas nesse fórum.
dições objetivas para se ajustar às exigências que
vêm sendo alinhadas.
Nessas condições, o que se nos apresen-
ta avaliar é que na realidade haverá um grande
T em sido também voz corrente que as institui-
ções de ensino superior estão a passar ao largo
do processo de desenvolvimento de Moçambique
número da geração que nos últimos quinze anos e que, no momento atual, em que surgem grandes
passou pelas instituições de ensino superior desafios, quer na área da indústria, da mineração,
em Moçambique, que frequentou instituições dos transportes, dos serviços diversos e do comér-
pouco adequadas. Assim, naturalmente que a cio, as instituições de ensino superior não têm sa-
posse de um diploma obtido em Moçambique bido adaptar-se a esses mesmos desafios. Porém,
possa transportar consigo o vírus da suspeição, apesar de termos clara noção de que é na área
sobretudo no confronto com os diplomados es- técnica que deve centrar-se a produção de qua-
trangeirados que alimentam também esse ou- dros para as necessidades do país, é sabido que
tro mito de que lá fora é que é bom e melhor. essa situação não se limita ao caso moçambicano.
A Unesco, em trabalho aprofundado de avaliação
Autorregulação vocacional dos africanos apresentado na Confe-
O surgimento do Conselho de Reitores de Mo- rência de Dacar, em 2000, concluiu que os cida-
çambique (CRM) foi um dos primeiros passos de dãos africanos, em cerca de 60%, preferem as

A função da Universidade de Lourenço de Marques,


transformada mais tarde em Universidade
Eduardo Mondlane (UEM), era essencialmente
a de produzir quadros que pudessem servir à
Revolução Moçambicana – técnica, científica e
ideologicamente preparados
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ciências sociais e humanas. Por isso, importa sa- aproveitando-se do discurso de que o Distrito é
lientar que a defasagem entre aquilo de que o país polo de desenvolvimento, se apressaram a insta-
necessita e aquilo que as instituições de ensino lar-se nesses espaços da administração territorial,
superior formam e colocam no mercado deve ser alugando instalações de escolas primárias para
equacionada como uma situação de mentalidade. levar a efeito o seu trabalho.
É dentro dessa promiscuidade entre bons

P or um lado, no que toca a instituições públicas,


o Estado não tem a noção ou então ainda não
vislumbrou que a educação superior é cara e que
projetos públicos ou privados e um número con-
siderável de trabalho de má qualidade que surge a
avaliação do senso comum de que tudo está mal.
é necessário investir, sobretudo para se mudar a Portanto, a questão do ensino superior e das
tendência e responder às necessidades de desen- universidades em Moçambique não é meramente
volvimento que ora despontam. As universidades uma questão estrutural, é também uma questão
públicas lutam, neste momento, com a escassez de mentalidades. Se tomarmos as conclusões do
de orçamento, atroz para o seu próprio funciona- Relatório Comiche, o paradigma que se pretendia
mento, para não falar em infraestrutura, equipa- era que com o tempo a universidade moçambica-
mento e bibliotecas adequadas. No que toca ao na estivesse pelo menos a par das suas congêne-
setor privado, não há muita experiência de ges- res da África do Sul, de Botswana, da Namíbia e
tão universitária, nem os seus criadores tiveram do Zimbábue. Para isso, era preciso que o Estado,
alguma experiência de gestão privada de institui- tratando-se de universidades públicas, investis-
ções de ensino superior, aliando a necessidade se seriamente na formação do corpo docente no
de sobrevivência empresarial com o investimento exterior e no país – e “seriamente” significa um
no conhecimento através de programas verda- número considerável e que viesse a servir no país,
deiramente universitários. Numa primeira análi- suprindo as carências.
se, verifica-se que grande parte das instituições
privadas de ensino superior luta com o problema
de matrículas para poderem sobreviver financei-
ramente, o que significa a derrogação para prazos
T emos de ter em conta que o Relatório Comi-
che foi produzido entre 1995 e 1997, o país
acabava de sair da guerra civil e vivia os seus pri-
dilatados daquilo que é obrigatório fazer, nomea- meiros momentos de democracia multipartidária.
damente formação do corpo docente, programas Pela primeira vez, fazia-se uma reflexão em que se
de extensão universitária, carreiras de investiga- confrontava o Estado com a necessidade de inves-
ção, laboratórios, bibliotecas e infraestrutura pró- tir num setor prioritário como o ensino superior. A
pria e adequada. A maioria tem vindo a funcionar Comissão indicava metas, termos de comparação
em instalações alugadas, sem perspectivas de e custos. O governo assobiou para o lado e forçou
até quando poderão vir a modificar tal situação. a expansão, aparentemente sem ter em conta ba-
Não é por acaso que a tutela, nos últimos tempos, lizas acadêmicas, impulsionado apenas por crité-
tem estado a acossar algumas instituições que, rios políticos. As consequências não podiam ser

A implantação do regime multipartidário, a partir


da década de 1990, não modificou grandemente a
mentalidade da subordinação da universidade ao
poder político
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outras senão essas que neste momento estamos a Aquilo que acontece na
tentar ultrapassar. UEM afeta o sistema
Felizmente, hoje as universidades já têm al- no seu todo, e as
guma voz interventiva no contexto moçambicano razões disso assentam
sobre diversos aspectos da vida nacional, apesar exatamente na forma
desse anátema da falta de qualidade. Assim, a como essa universidade
questão de financiamento para melhorar a toma- surgiu e as funções
da de consciência de que não estamos no melhor que desempenhou no
lugar deve ser reforçada. Não há financiamento, contexto das instituições
não há qualidade. Na falta de qualidade, falta fi- do Estado moçambicano
nanciamento. A conjugação desses dois fatores
promove um país com cidadãos pouco atentos à
própria realidade. É uma questão de soberania.
Por outro lado, o setor privado de ensino supe- Joaquim Chissano, no seu segundo mandato,
rior não pode sobreviver num país pobre onde não criou um Ministério do Ensino Superior, Ciência
haja quem pague. Se formos a verificar que o custo e Tecnologia, contudo o plano estratégico desse
de um estudante no ensino público é três vezes ministério secundarizou completamente, para
maior que o custo de um estudante no ensino pri- não dizer que ignorou, as referidas recomenda-
vado, podemos concluir que, do ponto de vista do ções. Embora esse ministério tenha introduzido
desenvolvimento estratégico do ensino superior, o uma rede de institutos superiores politécnicos no
setor privado vive descapitalizado e não pode ver- lugar da expansão ou criação de universidades
dadeiramente desenvolver atividades acadêmicas alternativas à Eduardo Mondlane, no Centro e no
de produção de conhecimentos, formação sólida Norte do país, verificou-se que a estratégia não era
e programas de formação de professores e inves- acompanhada de uma política de desenvolvimen-
tigação científica. to de condições adequadas para esse subsistema
O ensino público é estruturante, o caráter su- de ensino superior. Por outro lado, a questão do
pletivo do setor privado deve funcionar como oti- financiamento e da política de formação do corpo
mizador do sistema. Ora, se o sistema em si não docente ficou derrogada.
demonstrar vitalidade e saúde financeira, pouco
se pode esperar ou exigir dele?

Conclusão
N o que toca à ciência e à tecnologia, foi tratada
como um capítulo à parte, sendo que as uni-
versidades apareciam como parceiras das entida-
Analisando o percurso das estratégias que des dedicadas à investigação científica dos diver-
desde 1995 foram sendo adotadas para a evolu- sos setores da administração pública. O sistema
ção, expansão e consolidação do ensino superior, privado que apareceu em 1995 debatia-se ainda
podemos concluir o seguinte: com uma presunção oriunda da mentalidade de
Em primeiro lugar, as reflexões, conclusões e que do privado nada de bom podia aparecer para
recomendações da Comissão Comiche não foram a sociedade, pelo que as primeiras instituições pri-
devidamente levadas em conta pelas políticas ado- vadas de ensino superior não mereceram atenção
tadas subsequentemente. Assim, à recomenda- adequada por parte do ministério, mesmo quando
ção para que se criasse uma tutela unificada para o se tratasse de programas de incentivo, que, à par-
ensino superior, ciência e tecnologia que pudesse tida, são a título devolutivo.
operacionalizar essas mesmas recomendações, Com o primeiro mandato de Armando Guebuza,

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porque efetivamente o MESCT não soube cumprir de quadros por meio da redução do tempo de
cabalmente o propósito para o qual foi criado, o permanência dos estudantes no ensino superior,
ministério teve uma morte natural, regressando a tentando impôr, sem discussões prévias, o modelo
tutela para o Ministério da Educação. Nesse man- de Bolonha, mal assimilado.
dato ainda, o discurso político enfatizou a ques-
tão do desenvolvimento dos Distritos como pólos
de desenvolvimento, virando as atenções para a
descentralização e desconcentração do poder. A
E m última análise, podemos afirmar que as es-
tratégias seguidas relativas à expansão do ensi-
no superior em Moçambique, e as medidas toma-
questão da expansão do ensino superior foi, com das para a sua efetivação, não levaram em conta
toda naturalidade, atingida por essa nova postura. a defesa dos padrões que, em princípio, deviam
Desse modo, vamos assistir a uma aceleração no ser considerados como fundamentais para que a
processo da expansão do ensino superior, através educação superior se mantenha nos parâmetros
da rede pública, com a criação de mais institutos adequados. Neste momento não é possível esta-
superiores politécnicos e de duas universidades: belecer de uma forma objetiva qualquer avaliação
a Unizambeze e a Unilúrio, bem como através comparativa com os centros universitários mais
da Universidade Pedagógica, o abandono do avançados da região e até internacionais.
seu carácter vocacional para o de universidade Em Moçambique há um pouco de tudo: bons
generalista. programas de formação graduada e pós-gradua-
da, bons docentes universitários de renome inter-

P or outro lado, as autoridades, como se disse


atrás, tornaram-se completamente permissi-
vas para o licenciamento de novas instituições pri-
nacional, bons centros para investigação e pro-
dução de conhecimento, mas também existem
instituições que desmerecem completamente
vadas de ensino superior, que muitas vezes foram o epíteto de instituições de ensino superior, não
encorajadas a se instalar também nos Distritos. se preocupam com o que se dá na sala de aula,
Para além disso, verificamos que a UEM, que é nem se preocupam em ter equipamento condig-
a matriz das instituições de ensino superior em no. Também não se preocupam senão com os nú-
Moçambique, quis forçar a formação acelerada meros de graduados a quem conferem diploma.
Perante tal cenário, é natural que a balança penda
para o que é mau, por isso surgem afirmações de
que o ensino superior em Moçambique não tem
O peso da UEM como qualidade. Por outro lado, os próprios dirigentes
universidade nacional da República são citados a lamentar frequente-
sentiu-se grandemente mente a insensibilidade das autoridades governa-
quando se iniciou o mentais no que toca à questão do financiamento
debate sobre expansão; e essas questões dificultam um dos segredos fun-
vozes na direção do damentais do êxito e visibilidade das instituições
partido e do Estado de ensino superior, as parcerias internacionais. Se
avaliavam que o o ditado popular “Diz-me com quem tu andas e eu
problema da expansão dir-te-ei quem tu és” for aplicado a essa situação,
podia resolver-se através veremos com certeza que pouquíssimas univer-
da UEM, que abriria sidades moçambicanas têm um programa siste-
vários campi pelo matizado, coerente e dinâmico com instituições
território nacional afora estrangeiras da região e internacionais.

54 Ensino Superior Unicamp


Essa intenção só foi abandonada com a oposição
intransigente de seu próprio reitor à época, Narciso
Matos, que defendia que o Estado devia criar duas
outras universidades, uma no Centro, outra no Norte,
com a mesma relevância

Na era da globalização, quando verificamos [2] Castro, Alda Maria Duarte Araújo. 2010. Dispo-
que os grandes centros universitários procuram nível em http://scholar.googleusercontent.com/
fundir-se, procuram federar-se ou procuram co- Acesso em 12 de Fevereiro de 2012.
laborar para se transformar em centros de exce- [3] Governo de Moçambique, 1998. Relatório sobre
lência nos seus programas, bom seria que neste a Expansão do Ensino Superior em Moçambique.
movimento centrípeto dos centros universitários [4] Governo de Moçambique, 2001. Relatório Nacio-
pudéssemos ser parte, atraindo e sendo atraídos nal de Moçambique sobre Desenvolvimento da
por centros de excelência lá de fora. Educação. Ministério da Educação,. Direção de
Planificação.

O futuro de Moçambique não depende apenas


do investimento estrangeiro, nem do recru-
tamento de mão-de-obra estrangeira qualificada
[5] Ribeiro, Evandro Luís. Neto, Pedro Luiz de Oliveira
Costa. Oliveira, José Augusto de, 2008. O papel
da Gestão da Qualidade nas instituições de Ensi-
para estar garantida a prosperidade da sua popu- no superior. Anais do 4º Congresso Brasileiro de
lação. Efetivamente temos vindo a sentir cada vez Sistemas. Centro Universitário de Franca Uni-FA-
mais certa ansiedade dos governantes porque são CEF-29 e 30 de Outubro de 2008.
pressionados pelo povo para que as riquezas que [6] Taímo, Jamisse Uilson, 2010. Ensino Superior em
jazem um pouco por todo o território moçambica- Moçambique: História, Política e Gestão (tese de
no possam contribuir para o real desenvolvimento doutoramento em Educação, apresentada à UNI-
do país e para que o povo moçambicano viva com MEP- Universidade Metodista de Piracicaba, São
esperança de poder usufruir dos seus próprios re- Paulo, Brasil).
cursos. Mas esse objetivo só será exequível se a [7] UNESCO. Declaração da Conferência Mundial de
universidade moçambicana conseguir vencer os Ensino Superior no século XXI: Visão e Ação. Dis-
grandes obstáculos que se lhe coloquem ao longo ponível em <http://www.preal.cl > Acesso em 07
desses últimos dez anos. de Fevereiro de 2012.
__.Conferência Mundial sobre Ensino Superior 2009:
As Novas Dinâmicas do Ensino Superior e Pesqui-
[1] Andrés, Aparecida. 2011. Financiamento Estu- sas para a Mudança e o Desenvolvimento Social.
dantil no Ensino Superior. Consultoria Legislativa, Disponível em <http://www.preal.cl > Acesso em
Câmara dos Deputados Brasília-DF. 07 de Fevereiro de 2012.

no 10 - julho-setembro - 2013 55

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