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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Simone Severo Spadoni

A (re)construção da africanidade
através da coleção Mama África

Porto Alegre
2008
2

Simone Severo Spadoni

A (re)construção da africanidade
através da coleção Mama África

Monografia apresentada como requisito


parcial para a obtenção do título de
Especialista em Literatura Brasileira-
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas - Instituto de Letras - Pró-
Reitoria de Pós-Graduação -
Literatura Brasileira

Orientadora: Dra. Cláudia Mentz Martins

Porto Alegre
2008
3

Para José Domingos e Zilnei, meus pais, que me incentivam a seguir adiante
compreendendo as minhas escolhas.
4

Ao concluir este trabalho quero agradecer

à paciência da minha professora orientadora Dra. Cláudia Mentz Martins, que me encorajou,
dizendo, muitas vezes, “tu vais conseguir” e ao incentivo dela para eu continuar os estudos;

aos colegas, em especial, à Olga e à Jaqueline, com quem muitas vezes dividi o conhecimento
adquirido durante esse período;

ao Eduardo Coelho, da Editora Língua Geral, pela sua atenção;

aos meus alunos, que leram as histórias e os poemas com muito gosto;

à minha sobrinha, Aline, que, prontamente, leu uma das obras;

aos meus irmãos, em especial ao Luís Zildo, que me auxiliaram e torceram para que eu sempre
tivesse um bom desempenho;

aos meus pais, que sempre compreendem as minhas decisões.


5

A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor,


é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo,
o homem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a
vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua
possível/impossível realização.

Nelly Novaes Coelho


6

RESUMO

Esta monografia procura verificar se as obras O filho do vento, O beijo da palavrinha,


O homem que não podia olhar para trás, Debaixo do arco-íris não passa ninguém,
respectivamente, de José Eduardo Agualusa, Mia Couto, Nelson Saúte e Zetho Cunha
Gonçalves, apresentam histórias que oferecem aos pequenos leitores a possibilidade de, através
delas, reinventarem a africanidade. Os escritores luso-africanos se apropriam do conhecimento
popular para contar uma história, que se apresenta em prosa ou verso. O leitor, através do
diálogo estabelecido com esses livros, publicados em 2006, pode resgatar sua identidade,
superar traumas e compreender alguns conflitos, como os desencadeados pela guerra civil
angolana e moçambicana. Para falar de africanidade privilegiaram-se teóricos como Laura
Padilha e Jane Tutikian. Como referencial teórico da literatura infantil e juvenil deu-se
preferência a autores como Nelly Novaes Coelho e Maria da Glória Bordini. E, finalmente, para
a análise dos livros, acrescentou-se, entre outros, os estudos de Gaston Bachelard.

Palavras-chave: literatura infantil – africanidade – prosa - poesia


7

ABSTRACT

This monograph looks for verifying if the literary works “O filho do vento”, “O beijo
da palavrinha”, “O homem que não podia olhar para trás”, “Debaixo do arco-íris não passa
ninguém”, respectively, by Jose Eduardo Agualusa, Mia Couto, Nelson Saúte and Zetho Cunha
Gonçalves, presents stories that offer to the young readers the possibility of through their re-
invention about africanism. The Luso-African writers appropriate of the popular knowledge to
tell stories that can be presented in prose or verse. The reader, through the established dialogue
with these books, can redeem his/her its identity, overcome traumata (psychological problems)
and understand some conflicts, as the unchained by for the angolan and mozambican civil war.
To speak about africanism theoretics have been favoured as Laura Padilha and Jane Tutikian.
As theoretical reference about juvenile and youthful literature we have been prefered the authors
like Nelly Novaes Coelho and Maria da Glória Bordini. Finally, for the analysis of books, we
added, among others, the studies of Gaston Bachelard.

Key words: infantile literature - africanism - prose - poetry


8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 9

1) ÁFRICA E AFRICANIDADE.................................................................................................12

2) ORALIDADE, LITERATURA, AFRICANIDADE...............................................................16

3) A CRIANÇA E A AFRICANIDADE......................................................................................19

4) LITERATURA INFANTO-JUVENIL....................................................................................22

5) ANÁLISE DAS OBRAS SELECIONADAS..........................................................................28


5.1) O filho do vento..............................................................................................................28
5.2) O beijo da palavrinha......................................................................................................33
5.3) O homem que não podia olhar para trás..........................................................................39
5.4) Debaixo do arco-íris não passa ninguém.........................................................................42

CONCLUSÃO..............................................................................................................................51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................55

ANEXOS......................................................................................................................................58
9

INTRODUÇÃO

A Literatura Infantil privilegia o período da infância, pois suas obras destinam-se a um


público em formação que, através do lúdico, compreende sua própria essência, reelabora seus
medos, esclarece suas dúvidas e compartilha suas alegrias. Proporciona então, ao leitor, todo
tipo de aparato para que venha a se fortalecer como pessoa e gradativamente a conhecer sua
individualidade. Apesar de às vezes ser considerada um gênero menor pela crítica acadêmica,
vem superando diversas barreiras para ser vista com a seriedade que lhe é de direito. Os
indivíduos que, possivelmente, tiveram suas identidades anuladas em função de um contexto
social podem se beneficiar do suporte que essa literatura oferece.
Angola e Moçambique viveram uma guerra civil durante anos. Ambos os países lutaram
para se verem livres do colonialismo português. Para tanto, as sociedades civis, angolana e
moçambicana, constituíram frentes e movimentos, de diversos nomes (Angola – MPLA, FNLA
e UNITA1 / Moçambique – Frelino, Renamo 2) cujo objetivo era defenderem os interesses do
povo na luta pela libertação de Portugal. Entretanto, essas frentes e movimentos não se
compreendiam mutuamente e assim entravam em confronto.3 Francisco Bungo4 ressalta que os
países ficaram destruídos e o saldo disso são as minas terrestres ainda escondidas debaixo da
terra angolana.
Porém, a expectativa para o futuro está nas grandes empresas brasileiras instaladas lá,
trabalhando para a reconstrução do país. Diante da independência conquistada recentemente por
Angola e Moçambique, em 1975, qual a importância em se falar de Literatura Infantil Africana
quando outros assuntos se mostram importantes e significativos, a reconstrução nacional
fomentada pelas reservas de petróleo, a busca por uma identidade, a erradicação da miséria e da
Aids?

1
LORES, Manuel Frometa. Guerra Civil em Angola (1976-1991). Efeitos e considerações. Disponível em:
http://www.br.monografias.com/trabalhos/guerra-civil-angola/guerra-civil-angola2.shtml Acesso em 10 jul. 2008.
2
IMIGRANTES. Guerra Civil em Moçambique (1975-1992). Disponível em:
http://imigrantes.no.sapo.pt/page2mocGuerCivil.html Acesso em 10 jul. 2008.
3
ABRANTES, Raquel. “A Guerra” segundo Joaquim Furtado. Disponível em:
http://ww1.rtp.pt/wportal/grupo/newsletter/newsletter9/guerra_segundo_jf.html Acesso em 10 jul. 2008.
4
BUNGO, Francisco. Estudo da prevalência da Filariose Bancroftiana e Loana na Vila do Buco-Zau, Norte de
Angola. 2002. 72 fs. Dissertação de Mestrado. Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de
Janeiro, 2002.
10

Ambos os países foram colonizados por Portugal e falam o idioma português. Escritores
renomados como Mia Couto, José Eduardo Agualusa escrevem nos seus idiomas, e suas obras
possibilitam ao leitor refletir sobre os mais profundos questionamentos. Apesar de terem uma
prosa dirigida aos adultos, também elaboram textos infantis. Juntamente com Nelson Saúte e
Zetho Cunha Gonçalves escreveram alguns livros para a Coleção Mama África, da Editora
Língua Geral, cuja sede é brasileira. Decidiram lançá-las no Brasil, pois além de haver uma
língua em comum, a literatura brasileira tem grande importância para eles. 5 Segundo contato
realizado, a editora pretende comercializá-los em Portugal, Angola e Moçambique6.
Em razão disso questiona-se o significado que tem para estes escritores propagar uma
literatura infantil fora dos seus contextos geográficos. Que dimensão os luso-africanos ganham
a partir da publicação destas obras no Brasil? Qual a importância para as crianças brasileiras
terem contato com uma literatura infantil escrita por pessoas de países tão distantes?
Este trabalho se propõe a verificar se essas histórias oferecem aos pequenos leitores a
possibilidade de através delas reinventarem a africanidade e se têm a preocupação de perpetuar
a identidade e a cultura dos negros luso-africanos. Acredita-se que essas obras podem suscitar
no leitor o desejo de busca de uma identidade africana das crianças brasileiras e luso-africanas,
bem como despertar a curiosidade do leitor infantil em conhecer e apreciar um outro tipo de
cultura, pois seu caráter de agente formador tem plenas possibilidades de proporcionar esse
suporte ao leitor. Privilegiou-se esta coleção, pois os escritores podem reproduzir textos
mantendo as características de suas raízes africanas. Além disso, Mia Couto e Agualusa
possuem uma fortuna crítica voltada à literatura para adultos. E, sobre Nelson Saúte e Zetho
Gonçalves há pouco material de análise. Escolheu-se as obras pelo seu ineditismo e por serem
representantes da Literatura Infantil, além da beleza presente nos textos, que encantam os
leitores em geral.
O trabalho divide-se em cinco capítulos. No primeiro se abordará o contexto histórico
africano dando ao leitor informações acerca desses países para que possa entender o que é
africanidade neste imenso território com grandes diferenças étnicas e culturais. O segundo

5
EDUARDO COELHO. Coleção Mama África. [Mensagem pessoal] Mensagem recebida por
simone_spadoni@yahoo.com.br em 23/01/2008. Em anexo.
6
EDUARDO COELHO. Coleção Mama África. [Mensagem pessoal] Mensagem recebida por
simone_spadoni@yahoo.com.br em 15/01/2008. Em anexo.
11

capítulo abordará o conhecimento popular e a oralidade, que se fundem e formam um substrato


onde a literatura busca fonte de inspiração. No centro desse contexto, estão as crianças
suscetíveis às influências tanto da sociedade quanto da literatura, cuja função pode ser auxiliá-
las na busca da sua identidade africana. No quarto capítulo se fará um breve histórico da
Literatura infanto-juvenil, tanto no que tange a prosa, quanto à lírica.
No quinto capítulo será feita a análise de O filho do vento, de José Eduardo Agualusa; O
homem que não podia olhar para trás, de Nelson Saúte; O beijo da palavrinha, de Mia Couto.
Já Debaixo do arco-íris não passa ninguém, de Zetho Cunha Gonçalves é um livro de poemas
inspirados na literatura popular. Para analisá-lo adotou-se critérios compatíveis com a lírica,
diferentemente dos outros três, que estão escritos em prosa.
Para abordar a africanidade adotaram-se teóricos como Laura Padilha e Jane Tutikian.
Utilizou-se a internet como fonte de pesquisa, em vista do pouco material bibliográfico sobre
este tema. Como referencial teórico da literatura infantil e juvenil deu-se preferência a autores
como Nelly Novaes Coelho e Maria da Glória Bordini. E, finalmente, para a análise dos livros,
acrescentou-se, entre outros, a teoria de Gaston Bachelard.
12

1 ÁFRICA E AFRICANIDADE

Convencionalmente, o que denomina-se África representa um vasto continente formado


por muitos países com sociedade, economia, cultura e geografia bem distintas. O aspecto
cultural, conforme Igor Moreira é o que mais chama a atenção, pois é o continente mais
diversificado de todos, reunindo cerca de 3 mil grupos étnicos e mais de mil línguas diferentes7.
Entretanto um aspecto comum a este vasto território foi a exploração escravagista: milhões de
negros africanos foram escravizados, por vários países europeus. No século X, os árabes já
excursionavam por essas terras na intenção de difundir o islamismo. A partir do século XV, com
a expansão das rotas marítimas, Portugal passou a traficar escravos.
Muitos países utilizaram mão-de-obra escravista africana. O Brasil, inclusive. Milhares
de escravos foram parar nos engenhos de açúcar, localizados em Olinda e Recife, na época da
colonização. Outros desembarcaram no porto do Rio de Janeiro, e como sabemos “até o início
do século XVIII a maioria dos africanos traficados para o Brasil era embarcada no porto de
Luanda, em área de colonização portuguesa”.8
A exploração escravagista ocorreu sob o domínio do império português que, na figura do
branco europeu, se esforçou para tornar vazias as palavras da cultura africana, mas por serem
elas rústicas, ainda continuam a retratar os negros de todo o mundo, ainda que fossem
despossuídos da história. 9
Ryszard Kapuscinski fala que “a escravatura deixou na psique dos africanos a mais
profunda e a mais indelével das marcas: o complexo de inferioridade [...] A ideologia da
escravatura partia do princípio de que o negro não era uma pessoa”. 10 Além disso, o medo
incutido nas crianças era visível “isso porque, quando fazem alguma travessura exagerada, as
mães dizem: - Se vocês não se comportarem, o mzungu vai comer vocês!”. 11 Desde cedo as
crianças são criadas num contexto em que sabem da existência de um branco dominador.

7
MOREIRA, Igor. O espaço afro-asiático. Revista Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 33, p. 15-37, jan / jun, 2003.
p. 23
8
SOUZA, Marina de Mello. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2006, p.83.
9
PADILHA, Laura. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2002. p. 290
10
KAPUSCINSKI, Ryszard. Ébano: minha vida na África. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 96
11
Id., p. 82 Mzungu significa branco, europeu.
13

Os negros traficados trouxeram consigo suas heranças étnicas e culturais: a religiosidade,


a música, a oralidade, a linguagem, a dança, os alimentos, a seleção de cores, etc. Com todos
esses elementos, veio a tradição oral, que é a base de todo o conhecimento popular e da
literatura africana. E apesar de todos os esforços do homem branco de descaracterizar essa
oralidade, imprimindo-lhe sua cultura, ele não conseguiu, pois esses saberes “ficando na África
ou atravessando oceanos, se fizeram o sal do alimento que manteve o negro-africano
culturalmente vivo, quando, silenciado em sua própria terra ou espalhado pelo mundo, lutava
para não deixar morrer o que nele era identidade e diferença”.12 Esses traços os identificavam,
revelando suas características marcantes: a africanidade.
Pires Laranjeira, ao conceituá-la, diz que a africanidade, orgulhosa afirmação das
qualidades e potencialidades do homem africano perante a negação que delas fazia o europeu,
radica na contestação ao etnocentrismo e na recusa da dominação colonial. O ponto crucial é
que este negro foi de fato colonizado e esteve sob influência cultural e social de um povo que
eliminava qualquer possibilidade de os africanos se identificarem como nação.
O contexto histórico da escravidão tinha como afirmação básica a supremacia de uma
raça sobre a outra. Com isso, os negros eram obrigados a ter contato com a cultura do branco
europeu. Esse conjunto de fatores acarretou a constante reformulação dos conceitos que os
próprios negros tinham e têm sobre sua cultura. Sobre isso, Laranjeira afirma que:

a africanidade, vista na perspectiva abstrata e genérica das qualidades do homem e do


mundo africanos, em contraposição ao homem e mundo europeus, é uma doutrina que
inclui componentes geográficas, históricas, míticas, lingüísticas, religiosas, etc, que
constituem e caracterizam o discurso do africano negro na sua herança assumida e no
seu visionarismo profético, forjadores de uma nova identidade social e cultural.13

Partindo desse ponto de vista, de que o homem branco negou a cultura do homem
africano, fazendo-o assimilar um padrão cultural distinto do que era o seu, pode-se afirmar que a
africanidade foi contaminada por uma cultura branca e tomou diferentes formas, devendo por
isso ser inventada. Gaspar Sitefane 14 diz que, do ponto de vista cultural, ela ainda é uma

12
PADILHA, op. cit., p., 249
13
LARANJEIRA, Pires. Ensaios Afro-literários. Lisboa: Novo Imbodeiro, 2005. p. 53
14
SITEFANE, Gaspar. África: possibilidades e dificuldades para a construção de uma história própria. Revista
Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 33, p. 233, jan/jun. 2003. p.233
14

realidade em gestação, por isso que não se pode falar de uma mesma africanidade, nem
angolanidade e/ou moçambicanidade. 15
Moçambique, com sua diversidade cultural, é uma espécie de espelho para o mundo, diz
Mia Couto, pois há várias culturas no país. Por isso, a idéia de identidade é ilusória, sendo
impossível emoldurar este povo.16 Mas Sitefane destaca a importância de se preservar as raízes,
pois com olhos atentos no presente pode-se vislumbrar um futuro que faça ponte com o passado,
de tal forma que essa cultura ora desmerecida seja respeitada, preservada e até reverenciada:

Para podermos construir algo diferente da realidade, precisamos considerar o fato de


pertencermos a um mesmo continente ou país, fato que, por si só, cria um sentimento
de destino comum, o que é sobremaneira importante, visto que nesse sentimento
reside um dos elementos potenciais de uma possível africanidade ou
moçambicanidade [...] 17

Os longos anos de guerra civil deixaram Angola ainda mais pobre. Foi com a
independência do país, em 1975, que muitas pessoas viram na imigração uma possibilidade de
uma vida melhor com mais dignidade. Muitos jovens decidiram estudar no Brasil. Os acordos
de cooperação educacional entre ambos os países favorecem os que desejam cursar uma
universidade brasileira. Atualmente, grandes empresas brasileiras como a Petrobrás e a
Odebrecht, instaladas em Angola, vêm proporcionando um desenvolvimento acelerado para o
país. Inclusive está em fase de construção um novo campus universitário.18
O investimento dessas empresas, o acordo de cooperação internacional, a criação da
comunidade angolana e a proximidade cultural que une as duas nações representam para a
comunidade negra um suporte étnico-cultural nos quais encontram o respeito pelas suas
individualidades e também a possível abertura para a afirmação da africanidade, já que essas
instituições proporcionam aos luso-africanos a busca coletiva por sua própria identidade cultural.

15
Moçambicano que se formou em História no seu país e nesta época cursava Ciências Sociais na UNISINOS.
16
Entrevista do escritor Mia Couto, concedida ao programa Roda Viva, Tv Cultura- SP, por ocasião da Feira
Literária Internacional de Parati- RJ (Reprisado em 14/01/08).
17
SITEFANE, Gaspar. África: possibilidades e dificuldades para a construção de uma história própria. Revista
Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 33, p. 233, jan/jun. 2003
18
BRASIL E ANGOLA, a reconstrução do futuro. Jornal da Record. São Paulo: Record, 10 a 15 de dezembro de
2007. Série de reportagens.
15

Buscando as raízes culturais para reformular a identidade africana é que algumas


famílias originárias do norte da Angola fundaram uma comunidade angolana no Rio de Janeiro.
Ricardo Beliel19 diz que na intenção de recriar uma nova África, essas famílias fundaram uma
religião, propagaram seus costumes, sua língua, suas vestimentas e suas crenças. A identificação
cultural dessa comunidade com as suas raízes é muito forte, pois mesmo estando do outro lado
do oceano cultivam laços com as suas origens africanas.

19
BELIEL, Ricardo. A comunidade angolana do Rio de Janeiro. National Geographic Brasil, São Paulo, n. 34, p.
114-123, fevereiro, 2003.
16

2 ORALIDADE, LITERATURA E AFRICANIDADE

As raízes culturais africanas têm como base a oralidade, instrumento que mantém vivo
seu imaginário. Sua força imensa é capaz de perpetuar por várias gerações sabedoria e
conhecimentos do senso comum. 20 Além de ser uma prática comum, a oralidade é uma forma de
não se estar sozinho, pois o discurso oral pressupõe um ouvinte. Ryszard Kapuscinski21 fala que
as crianças participam dessa convivência da família, do clã e do vilarejo, pois dificilmente vão
dormir cedo. E assim todos entram no mundo dos sonhos juntos. Mia Couto salienta que
estabelecer uma relação com o sonho, o onírico e a natureza é difícil, pois suas fronteiras não
são delimitadas, e foi a partir dessa oralidade que se desenvolveu a literatura luso-africana. O
conhecimento popular circulado oralmente transformou-se na literatura existente hoje. Embora
alguns desconheçam um sistema literário nacional nos moldes como do Brasil. 22
A literatura infantil de modo geral, e não apenas a africana, passou por um processo
semelhante. As histórias foram contadas e recontadas pelas gerações anteriores e, através desse
mecanismo de circulação, as crianças passaram a conhecê-las. Entretanto quem as contava,
geralmente um adulto contador de histórias, tinha o cuidado de adaptá-las para esses indivíduos
ainda em formação. A Literatura Infantil reaproveita e reutiliza material já existente, por isso,
conhecer a Literatura Infantil produzida em cada época é conhecer as idéias, os valores e / ou
desvalores que fundamentaram cada sociedade.23
Antonio Candido 24 fala que diante de fatos como a inexistência de públicos para a
literatura, a baixa publicação editorial e a impossibilidade dos escritores em desenvolverem tais
tarefas, a Literatura tem tido a missão heróica de reverter o quadro do analfabetismo. Combatê-
lo não é tarefa fácil.
O acesso aos livros é inversamente proporcional ao acesso à televisão. A população troca
a prosa pela televisão: as telenovelas brasileiras fazem enorme sucesso em Angola, levando

20
PADILHA, op. cit., p. 49
21
KAPUSCINSKI, op. cit., p. 59
22
ENCONTROS COM O LIVRO, 2007, Porto Alegre. Mesa Redonda com os escritores José Eduardo Agualusa,
Ondjaki, Nelson Saúte e Patrícia Reis mediada por Jane Tutikian no Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo por
ocasião da 53° Feira do Livro de Porto Alegre. 28/10/2007 Questionados sobre o sistema literário deixaram
evidenciar a fragilidade deste.
23
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil- Teoria- Análise- Didática. 7ª ed. São Paulo: Moderna. 2000.
24
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. p. 143.
17

entretenimento para as pessoas 25 . Esses programas televisivos mostram os atores negros


representando os papéis mais desmerecidos em relação aos brancos. As crianças são as mais
prejudicadas, pois desde cedo estão em contato com um meio de comunicação de massa que
exerce poderosa influência na medida em que veicula programas cuja realidade é
completamente diferente da sua.
As conseqüências disso são relevantes tanto para Angola cuja taxa de alfabetização dos
12.127.000 habitantes é de 66,8% 26 , quanto para Moçambique que tem uma população de
20.905.585 habitantes e apenas 46,5% dos adultos são alfabetizados27. Neste país, de cada dez
(10) pessoas, menos da metade conhece as letras.
Mesmo falando o idioma do colonizador, o português, os escritores se deparam com um
quadro de dificuldades e desinteresses. Por isso a missão heróica da Literatura, pois o escritor
depara-se não apenas com os entraves de ordem econômica, mas também com atrasos e
desinteresses dos próprios cidadãos. A falta de incentivo por parte do governo é notória, já que o
setor mantém a mesma tendência de desenvolvimento que se tem registrado nos últimos três
anos. Além disso, o fraco marketing ligado ao livro e o alto investimento para se produzir uma
28
obra no país servem para refletir sobre o fato de que a literatura, e conseqüentemente a
educação, nos países do Terceiro Mundo representam sempre o lado mais frágil, afinal estão
subjugadas aos interesses políticos dos governantes, que precisam reconstruir o país.
Segundo Mia Couto, o escritor tem a obrigação de proporcionar aos africanos a
possibilidade de encontrarem-se, de buscarem sua identidade fora dos paradigmas do ocidente.29
Tanto este, quanto Agualusa, conforme Laranjeira30, produzem uma literatura que é fruto de um
multiculturalismo de base étnica das novas sociedades surgidas após o pós-colonialismo, e suas
obras servem para fazer o leitor pensar que é possível superar os traumas e medos da guerra.

25
BRASIL E ANGOLA, a reconstrução do futuro. Jornal da Record. São Paulo: Record, 10 a 15 de dezembro de
2007. Série de reportagens.
26
Angola. Disponível em: http://www.alem-mar.org/cgi-
bin/bo/viewnews.cgi?id=EkppAEFpZlLhVcaGoy&style=paises&tmpl=conteudos_full Acesso em 26 jan. 2008.
27
Moçambique. Disponível em: http://www.alem-mar.org/cgi-
bin/bo/viewnews.cgi?id=EkppAEylFVgZgMYHvx&style=paises&tmpl=conteudos_full Acesso em 26 jan. 2008.
28
Disponível em http://www.angolapress-angop.ao/noticia.asp?ID=223454 Acesso em 28 jan. 2008
29
Entrevista do escritor Mia Couto, referida na nota n° 13, do capítulo 1, p.14.
30
LARANJEIRA. op. cit., p. 45-6
18

O escritor, segundo Cândido31, é o indivíduo que além de exprimir sua originalidade,


desempenha um papel social, na medida em que a obra serve de identificação para o público, e
que esta é condição do autor conhecer a si próprio, pois a revelação da obra é a sua revelação. A
literatura é o duplo do real, e tanto o leitor quanto o escritor podem enxergar-se nessa realidade.
A literatura oferece subsídios tanto para quem escreve, pois através dessa atividade a
pessoa reelabora seus medos e pensa sobre sua própria condição de cidadão, quanto para quem
lê, já que buscará nas páginas do livro a sua individualidade, o meio caminho para a
africanidade. E assim, conforme Padilha “olhando-se ao espelho da história, o negro verá nele
refletida a sua imagem, nela se reconhecendo”, 32 possibilitando sua transformação.

31
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 6ª ed. São Paulo: Nacional, 1980, p.38.
32
PADILHA, op. cit., p. 265
19

3 A CRIANÇA E A AFRICANIDADE

A criança, por ser um indivíduo em formação, está mais suscetível a sofrer com a
diversidade étnica dado o fato de que o meio é um fator de influência para o homem. Logo, é
importante que sejam preservadas as raízes do seu povo, pois o contexto no qual elas estão
inseridas determinará o desenvolvimento da sua parte cognitiva. Ao ter respeitadas suas crenças,
costumes e conhecimentos, sente-se valorizada, sabendo que é parte importante nesse conjunto.
Sem dúvida, a nação cujos olhos se voltam para elas, vislumbra o progresso.
Portanto, todos devem preocupar-se com seu bem-estar: a família, a escola, a
comunidade, o país. A criança deve identificar-se com o contexto, sentir que faz parte de uma
comunidade, uma etnia. Dessa forma, será capaz de filtrar os valores importantes para o seu
desenvolvimento emocional, psíquico, social, e que eles serão transmitidos pela família e
comunidade.
Para as crianças que passaram e sobreviveram às barbáries da guerra palavras como
‘princípios’, ‘etnia’, ‘costumes’, ‘raízes’ são recheadas de significados vazios. Sebastião
Salgado, no livro Retratos de Crianças do Êxodo, 33 registra várias crianças vítimas da guerra
civil angolana e moçambicana. As fotos, realizadas a pedido delas, datam do ano de 1997 e
1994, respectivamente. Das angolanas, as cinco são “crianças deslocadas” 34 e podem estar com
algum familiar. Quanto às moçambicanas, as sete são “crianças deslocadas que se perderam de
suas famílias”. 35 Estatisticamente, 100 % delas, de ambas as nações, foram desviadas do seu
ambiente social e familiar. Seus olhares evidenciam dúvida, tristeza, expectativa, indiferença,
vazio.
Instituições, como família e escola, oferecem suporte para a criança buscar sua
identidade. Na falta dessas, o Estado deveria ajudá-las a resgatar seus valores e raízes. Mas
como isso é possível se os países delas estão em guerra? Distante dos sonhos que desejariam

33
SALGADO, Sebastião. Retratos de Crianças do Êxodo. São Paulo: Companhia das Letras. 2000. As crianças
moçambicanas estão nas páginas 18, 35, 36, 61, 74, 87 e 89. As angolanas, nas páginas 13, 39, 41, 99 e 109. O
menino sorridente é o da página 41 e o outro está na 109.
34
Id. p. 110-11
35
Id.
20

para si, elas poderão ser adultos felizes, bem-resolvidos, sem traumas e medos? Será que para o
menino sorridente e para o pensativo, inclusive os outros, não resta uma esperança mesmo?

Considerando-se o exposto e as fotos, pode-se perguntar qual é o papel da Literatura


Infantil e o que ela pode fazer por essas crianças?
A literatura vem a seu turno promover o encontro dessa criança com o personagem do
livro. Durante a leitura, ela entra num mágico jogo de espelhos, em que se vê a si mesma através
do personagem, vivencia, então, o que este está vivendo na história. Através desse processo de
identificação, a literatura serve como mote para a criança saber lidar com a sua auto-estima, da
mesma forma que os contos de fadas oferecem subsídios para ela, inconscientemente, reelaborar
seus medos36. Cabe ainda, à Literatura Infantil, através do convívio do leitor com o livro ou do
diálogo que aquele estabelece com o texto, proporcionar esse aprendizado. Segundo Dario de
Melo, os livros têm sempre um caráter pedagógico, pois suscitam determinado problema
questionando o leitor e levando-o a pensar. Dessa forma induz o aluno, a criança, a aprender
alguma coisa. Mas o conteúdo aprendido não deve ser explícito.37

36
Bruno Betelheim em seu livro A psicanálise dos contos de fadas defende essa afirmação utilizando-se da análise
da várias histórias infantis.
37
MELO, Dario de. Entrevistas. Disponível em: http://www.uea-angola.org/destaque_entrevistas1.cfm?ID=501
Acesso em 19 jan. 2008 Acredita-se que ele usou a palavra pedagógico, na entrevista, como sinônimo de
aprendizado.
21

A literatura infantil luso-africana caminha a passos lentos. Verônica Trezentos 38 afirma


que a literatura infantil angolana é de boa qualidade e que as poucas obras que são publicadas
ainda continuam desconhecidas da maioria da população, porque não há interesse dos editores e
escritores em publicá-las, logo o número de leitores é reduzido. O custo financeiro também é
alto, pois com um livro é possível fazer apenas mil exemplares.39 Conforme ela expressa, “A
Anep [Associação Nacional do Ensino Particular] pretende, neste sentido, incentivar o hábito de
leitura e efectuar uma pesquisa no sentido de procurar revalorizar a literatura infantil no seio dos
estudantes”. 40
A quantidade e a qualidade das obras permitirá à criança desenvolver seu senso crítico.
Dario de Melo destaca a brilhante idéia dos escritores de adaptarem a história O chapeuzinho
vermelho para a realidade local41. Laura Padilha42 salienta que é possível entre Brasil e Angola
um diálogo no qual os poetas conhecerão alguns mitos e poderão reinventá-los com suas
imagens, provocando um processo de reconversão, transformando velhos saberes em novas
formas, que têm a ver com língua e multiplicidade.
A prova desse diálogo está na publicação da coleção Mama África, da editora Língua
Geral, em território brasileiro. Tendo o Brasil grande importância para os escritores luso-
africanos e havendo uma língua comum entre eles43, autores como José Eduardo Agualusa e
Nelson Saúte transformaram contos tradicionais em belas histórias infantis. Através da busca de
ressignificação desses velhos saberes, as crianças constroem sua africanidade, além de permitir
aos leitores que não têm uma ascendência africana conhecerem uma nova cultura.

38
MELO, Adriano de. Disponível em: http://www.jornaldeangola.com/artigo.php?ID=46206 Acesso em 18 jan
2008.
39
MELO, Dario de. Entrevistas. Disponível em: http://www.uea-angola.org/destaque_entrevistas1.cfm?ID=501
Acesso em 18 jan 2008- Quando escreveu Inaldino- o inspector Mirui, logo após a independência, com um livro
tirou 15 mil exemplares. Tendo mais de 180 histórias por publicar, ele ganhou em 1998 o prêmio PALOP de
Literatura Infantil, do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa com o livro “As sete vidas de um gato”. Acesso
em 18 jan. 2008.
40
MELO, Adriano de. Disponível em: http://www.jornaldeangola.com/artigo.php?ID=46206 Acesso em 18 jan
2008.
41
MELO, Dario de. Entrevistas. Disponível em: http://www.uea-angola.org/destaque_entrevistas1.cfm?ID=501
Acesso em 18 jan 2008
42
PADILHA, op. cit., p. 249
43
EDUARDO COELHO. Coleção Mama África. [Mensagem pessoal] Mensagem recebida por
simone_spadoni@yahoo.com.br em 23/01/2008.
22

4 LITERATURA INFANTO-JUVENIL

A infância, período privilegiado pela Literatura Infantil, conforme Lajolo e Zilberman44,


surge no século XVIII, junto com as Revoluções Industrial e Francesa que proporcionam,
respectivamente, uma rápida industrialização da sociedade e a ascensão da burguesia. A classe
burguesa via a criança como um embrião do seu projeto político, porque através dela poderia
difundir o capitalismo. A infância é o ponto central entre a família e a escola. Esta privilegia a
transmissão dos valores burgueses, aquela é uma célula da sociedade composta de pai, mãe e
filho. Duas instituições que ratificam o projeto burguês, promovendo a inserção da criança na
sociedade, que se industrializa rapidamente.
O conceito e a noção do que é ser criança não existia antes dessa época. Tratadas como
adultos em miniatura, faziam os mesmos trabalhos que aqueles, sem direito à diversão. Depois
de um longo dia de trabalho ou apenas curiosos, os adultos divertiam-se ouvindo histórias
contadas, geralmente, por uma pessoa mais velha. Eram histórias de adultos dirigidas para
adultos, sendo que as crianças apenas ouviam. Esse contexto histórico propiciou o advento da
infância e o surgimento da Literatura Infantil, cujo destinatário é a própria criança.
A Literatura Infantil reaproveita e reutiliza material já existente, pois, conforme Nelly
Novaes Coelho45, essas histórias se propagaram, sendo recontadas pelas gerações posteriores.
Através desse mecanismo de circulação, as crianças passaram a conhecê-las. Entretanto, quem
as contava, geralmente um adulto contador de histórias, tinha o cuidado de adaptá-las a fim de
que a linguagem fosse adequada e o conteúdo, interessante para as crianças.
Inicialmente, a pessoa mais importante para a propagação dessa literatura foi Charles
Perrault. Nasceu na França em 1628 e viveu até 1703. Publicou Histórias da Mamãe Gansa em
1695. Registrava através de suas palavras, as histórias que os adultos lhe contavam. Foi assim
que reescreveu os contos de fadas, originalmente destinados aos adultos e contados por
carpinteiros, marinheiros, homens que almejavam o sucesso ou uma vida melhor. Assim as
histórias passaram a circular com mais facilidade.

44
ZILBERMAN, Regina & MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura Infantil: autoritarismo e emancipação.
3ª ed. São Paulo: Ática, 1987, p. 23-5.
45
COELHO, op. cit., p. 29.
23

Igualmente, na atividade de coletar histórias, estavam os Irmãos Grimm, nascidos em


1785, na Alemanha. Registraram narrativas oriundas de várias regiões do seu país. Criaram
algumas versões para A bela adormecida, o Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, entre outras.
Conforme Zilbermam & Magalhães 46 o mesmo processo de circulação de histórias também
ocorre entre tecelões, mendigos e camponeses, que representavam a camada social explorada.
Tanto Perrault, quanto os Grimm registraram histórias coletadas pelo povo.
Entretanto, Hans Christian Andersen, dinamarquês nascido em 1805, foi mais além.
Alterou e adaptou muitas histórias que circulavam oralmente. Além disso, escreveu obras como
O Patinho Feio e O Soldadinho de Chumbo. A partir desses homens de origens diversas é que a
Literatura Infantil passou a ter seu corpus literário.
Os contos de fadas, assim como as histórias para adultos, despertam a curiosidade do
homem, porque a fábula presente no texto reflete os seus desejos inconfessáveis. Além disso,
através da leitura o homem equaciona questões existenciais de forma lúdica. Essa característica,
de solucionar os conflitos através de um elemento maravilhoso ou de um filtro mágico, tão
marcante nos contos de fadas, está presente tanto no homem do século XVIII como no do XXI.
Nelly Coelho47 fala que isso acontece porque a identidade entre o popular e o infantil é muito
próxima. Tanto o homem do povo quanto a criança apreendem o mundo através do sensível, do
emotivo, da intuição, e não, pelo uso da razão ou do intelecto. As lendas e os mitos são a
representação literária do pensamento infantil, pois o homem, não podendo explicar à luz da
razão fenômenos de diversas ordens, recorre a uma fábula cuja trama não tem respaldo na razão.
Assim como a narração, o gênero lírico infantil também se origina no século XVIII.
Maria da Glória Bordini 48 explica que a poesia segue três vertentes: 1) adapta criações
folclóricas de origem camponesa que circulavam entre adultos e crianças na Idade Média; 2)
ensina para as crianças sobre o dever-ser infantil; 3) adapta poemas clássicos como Os Lusíadas,
de Camões ou I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias.

46
ZILBERMAN, Regina & MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura Infantil: autoritarismo e emancipação.
3ª ed. São Paulo: Ática. 1987. p. 140.
47
COELHO, op. cit., p. 41
48
BORDINI, Maria da Glória. Poesia Infantil. 2ª. ed. Série Princípios. São Paulo: Ática. p.09
24

Uma das características principais da poesia infantil é a sonoridade. Bordini 49 elenca


alguns textos que apresentam essa marca: o acalanto, muito utilizado para embalar os nenês; os
trava-línguas, poemas que contemplam sons vocálicos e consonantais, desenvolvendo o
mecanismo de articulação da linguagem; as canções de roda, poemas recitados ao mesmo tempo
em que a criança, um pouco mais velha, brinca com o corpo.
Entretanto, um poema não se faz só de efeitos auditivos. Vale-se também da percepção,
desenvolvida através dos cinco sentidos (tato, paladar, olfato, audição e visão) e das relações
imagéticas estabelecidas entre as palavras do texto. Esta característica aparece nas parlendas e
nas adivinhas. Estas propõem a decifração de um enigma através do raciocínio analógico,
aquelas utilizam a memorização para repassar conhecimentos acerca do mundo infantil.
A poesia favorece a introspecção, pois as lacunas proporcionadas pelo jogo de palavras
possibilitam à criança inferir sobre o mundo que a rodeia, apreendendo-o conseqüentemente.
Segundo Bordini, esse processo lhe permite construir “seu imaginário e a acioná-lo e
transformá-lo, colaborando para que ela se reconheça como um ser que pensa, que sofre ou se
alegra”. 50
Salienta-se que conhecer a Literatura Infantil produzida em cada época, conforme
Coelho51, é fundamental para entender os valores, desvalores e ideais que fundamentaram cada
sociedade, pois cada época compreendeu e produziu a Literatura a seu modo. Os valores são
transmitidos pela família, mas podem ser aprendidos. Cabe também à Literatura Infantil, através
do convívio do leitor com o livro ou do diálogo que aquele estabelece com o texto, proporcionar
esse aprendizado. A escola é o espaço ideal para essa prática, afinal é a representação de uma
pequena sociedade. Enquanto símile da realidade, a literatura influencia as gerações de leitores e,
ao mesmo tempo, é influenciada pelas constantes transformações da sociedade. Coelho52 diz que
ela não deve ser vista apenas como mero entretenimento, mas sim como uma aventura espiritual,
através da qual o leitor buscará experiências ricas de vida, inteligência e emoções.
Diante da vasta produção literária dirigida para o público infantil, das etapas pelas quais
a criança passa e das diferentes necessidades de cada leitor, a Literatura Infantil, segundo

49
BORDINI, op. cit., p. 25-9
50
BORDINI, Maria da Glória. Poesia Infantil. São Paulo: Ática, 1986. p. 36
51
COELHO, op. cit., p. 27-8
52
COELHO, op. cit., p. 32
25

Coelho53, divide-se em fases que correspondem respectivamente aos estágios psicológicos das
crianças ou faixa etária.
O primeiro estágio, do pré-leitor, divide-se em duas fases: a primeira infância, que vai
dos 15 meses aos três anos, e a segunda infância, que inicia a partir dos dois ou três anos e se
estende até os seis anos. A conquista da própria linguagem se dá na primeira infância, passando,
a criança, a identificar as realidades à sua volta. Nesse momento é importante a atuação do
adulto, que através de objetos compostos de material fofo, como bichos de pelúcia, chocalhos,
livrinhos de pano, fará a relação entre o mundo natural dela e o mundo real.
Posteriormente, na segunda infância, ela já adquire um certo vocabulário e utiliza a
comunicação verbal. É a fase do egocentrismo, tudo gira em torno do seu eu. A orientação do
adulto para a brincadeira com o livro é fundamental, porque ela passa a descobrir o mundo. Por
isso, é importante que a sua temática esteja voltada para o cotidiano familiar. O livro deve
apresentar gravuras que possibilite à criança fazer uma ligação entre imagem e signo.
Nomeando as coisas, ela passa a conviver de forma inteligente e afetuosa com o mundo. As
imagens devem ser sugestivas e significativas, sendo que a ilustração deve utilizar linhas bem
definidas. Quanto mais repetida a imagem, mais facilmente a criança vai associá-la ao texto,
pois essa técnica prende a sua atenção direcionando seu interesse. Os livros ideais são os de
figuras ou imagens, tais como: Coleção Só Imagem, de Eva Furnari (Global); Série Livros de
Imagem (Moderna); Coleção Crie & Conte, de Cristina Porto / Tenê de Casa Branca (FTD);
Livros de Pano, de Paula Valéria (APEL), etc.
O leitor iniciante corresponde à fase da aprendizagem da leitura e da alfabetização,
compreendida entre os seis ou sete anos. O adulto exerce o papel de “agente estimulador” e
deve ajudar a criança em suas conquistas. É importante que a imagem predomine sobre o texto,
pois juntamente com as figuras, direcionarão a leitura. A narrativa deve ser pequena, abordando
uma situação adequada expressa numa linguagem simples. O humor, a graça e a comicidade são
fatores positivos, sendo que a criança é atraída pelas histórias bem-humoradas. As personagens
podem ser reais ou simbólicas, mas devem ter como característica o maniqueísmo, ou seja,
serem preferencialmente boas, pois seu conhecimento de mundo ainda está em formação. Logo,
é interessante ela ter contato com textos que transmitam valores positivos. Independente da

53
COELHO, op. cit., p. 32-40
26

história se passar no mundo da fantasia ou do cotidiano, os argumentos do texto devem


estimular sua imaginação e inteligência. Algumas coleções interessantes podem ser: Coleção
Girassol (Moderna); Série Um Dois Feijão com Arroz, de Tenê (Ática); Série Lagarta
Pintada (Ática); Coleção Mindinho e Seu Vizinho (Atual), entre outras.
Dominando o mecanismo da literatura, a fase leitor-em-processo corresponde aos oito ou
nove anos. Apesar de a criança ter avançado no raciocínio, pois seu pensamento se estrutura de
forma concreta, o incentivo do adulto ainda é importante, através da motivação ou do estímulo à
leitura. A imagem tem importância, devendo dialogar com o texto, escrito, preferencialmente,
numa linguagem simples e direta, com orações coordenadas, obedecendo ao esquema linear de
princípio, meio e fim. Nessa fase, a criança já tem condições de compreender uma narrativa
mais estruturada, ou seja, uma história que gire em torno de uma situação central, um conflito
ou problema, cuja solução deve ser apresentada até o final. Tanto o realismo, quanto o
imaginário ou a fantasia despertam interesse. Obras como os “Clássicos Infantis”, (Moderna);
Coleção Fábulas Brasileira, (Ediouro); Série Ana Maria Machado, (Moderna); Série dos
Reizinhos, de Ruth Rocha, (Salamandra), entre outras, são exemplos que se encaixam neste
momento.
A fase em que se consolida o domínio da leitura e da compreensão do mundo
corresponde às idades dos 10 a 11 anos e denomina-se leitor fluente. Chama-se assim, porque a
criança segue a leitura apoiada pela reflexão, sendo que a sua capacidade de concentração
aumenta. A partir daí desenvolve-se o pensamento hipotético dedutivo e a capacidade de
abstração, de tal forma que o leitor é instigado a pensar sobre a questão dos ideais e valores, tão
pertinentes à fase em que se encontra, a pré-adolescência. Logo, a intervenção do adulto não é
mais necessária. As imagens já começam a dar lugar ao texto, que apresenta uma linguagem
mais elaborada, com personagens tipo “heróis” que lutam por um mundo mais humano e justo.
A narração deve privilegiar os temas como o idealismo, emotividade, desafios à inteligência. O
interesse por uma matéria literária variada aumenta e os gêneros narrativos mais interessantes
são os contos, as crônicas ou as novelas de aventura ou sentimental, sendo que o maravilhoso e
o mágico ainda lhe despertam bastante interesse. As obras destinadas a esse público podem ser:
Série Vagalume, (Ática); Coleção Segundas Histórias, (FTD); Coleção Jabuti, (Saraiva),
Coleção Girassol, (Moderna), entre muitos outros.
27

Por último, é a partir dos 12 ou 13 anos que inicia a fase do leitor crítico, na qual o
mesmo tem total domínio da leitura e conseqüentemente uma maior capacidade de reflexão. É o
período em que o adolescente passa por um processo de desenvolvimento reflexivo e crítico o
que o leva a questionar seus próprios valores e ideais. A literatura deve ir além da mera fruição
do prazer, deve instigá-lo a desvendar o que está nas entrelinhas. Com isso, o leitor se vale de
um dos benefícios da literatura que é equacionar, através da leitura, suas dúvidas, tormentos e
angústias. As imagens já não são necessárias, pois o texto é mais importante. Este tem uma
estrutura mais elaborada que privilegia os períodos compostos. Dentre os livros adequados para
essa idade pode-se destacar Série 7 Faces (Moderna); Série Tirando de Letra (Atual); Série
Vaga-Lume (Ática); Coleção Jabuti (Saraiva), entre muitos outros.
Essa divisão da literatura, em fases, de acordo com o estágio psicológico da criança ou
faixa etária corresponde à evolução da Literatura Infantil. Nos primórdios da literatura não
existia o conceito e nem a noção do que é ser criança. Os pequenos tinham funções semelhantes
às dos adultos, sendo que para estes é que se destinava a contação de história, na qual as
crianças participavam como ouvintes. A Literatura Infantil reaproveitou esse material já
existente, adaptando as histórias para a linguagem infantil. O homem moderno se beneficiou
dessa evolução, porque a literatura tem a capacidade de auxiliá-lo na resolução dos seus
questionamentos. As crianças, durante o processo de crescimento, vivenciam situações, muitas
vezes, incompreensíveis para elas, mas, a partir do diálogo estabelecido com o livro, podem
encontrar explicações para suas dúvidas, além de coragem para enfrentarem seus medos,
sentimentos tão peculiares à infância, independente do estágio que estão vivendo.
28

5 ANÁLISE DAS OBRAS SELECIONADAS

As obras O filho do vento, O beijo da palavrinha, O homem que não podia olhar para
trás, Debaixo do arco-íris não passa ninguém têm origens nas raízes da cultura africana, ou seja,
se apropriam do folclore para contar uma história, que pode ser a adaptação de lendas; criações
semelhantes a adivinhas ou trava-línguas; contação de história baseada no conhecimento
popular. Respectivamente, escritas por José Eduardo Agualusa, Mia Couto, Nelson Saúte e
Zetho Cunha Gonçalves, são as primeiras obras infantis da Coleção Mama África.
É importante salientar que os livros não têm paginação, não sendo possível localizar
expressões em uma determinada página. Essa ausência caracteriza uma similaridade com a
contação de histórias, conferindo autonomia às partes do livro.
Quanto à ilustração, as obras apresentam na última folha uma espécie de portfólio do
ilustrador, o que é muito oportuno, pois ao longo do livro essas imagens são recortadas para se
enquadrarem ao assunto do qual o narrador está falando. Ademais, a editora está dando créditos
ao trabalho do ilustrador, possibilitando ao leitor apreciá-lo na íntegra, tal como se fosse uma
tela. Isso é um diferencial para a editora, que concorre num mercado literário cujas obras
apresentam, em sua maioria, número de páginas e parte de ilustrações no decorrer da história.
A análise dos livros será feita individualmente, levando-se em consideração apenas os
textos, quanto à sua forma e conteúdo, o que não impede que se teça comentários sobre a
ilustração. Salienta-se ainda que esta é apenas uma das leituras que a obra proporciona em
função das teorias literárias utilizadas, e que, evidentemente, outras leituras são possíveis.

5.1 O FILHO DO VENTO

A obra O filho do vento, conforme José Eduardo Agualusa, foi inspirada num conto
tradicional dos Koi-San, um povo nômade do Sul da África. A marca de oralidade está presente
nas falas de um suposto contador que se apresenta : “Nós, os Koi-San, a quem alguns forasteiros
29

chamam bosquímanos, fomos os primeiros homens a surgir na terra” 54 e dá continuidade à


55
narrativa “agora vou dizer-vos como o vazio se iluminou de estrelas”, de tal forma que o
leitor torna-se um participante dessa roda de histórias. A aridez destas terras faz com que os
indivíduos tenham uma vida diferenciada dos habitantes da zona urbana e com isso as horas
parecem eternas. Logo, é um ambiente propício a contação de histórias, que chegam aos dias
atuais, suplicando por eternizarem-se.
Salienta-se a personificação do vento e dos animais que habitavam o deserto: “naquela
época [todos] eram humanos [...] até o Filho do Vento era um ser humano”. 56 Para o leitor de
um modo geral, o início dessa história promove a aproximação dele com o personagem, sendo
que para o luso-africano isso é mais acentuado. Resgatando a fauna africana, o narrador
personifica animais como os chacais, elefantes e leões, e o indivíduo vê sua cultura, seu povo e
seu habitat sendo valorizados.
O personagem central, o Filho do Vento, gostava de brincar com as crianças, mesmo que
não soubessem seu nome, o que caracteriza uma forte valorização do lado humano do homem.
Dividindo com seus amigos as alegrias, ele vive o momento presente, sem ter as preocupações
de um adulto. Entretanto, uma das crianças, curiosa por saber como ele se chamava, pergunta à
mãe qual o nome do Filho do Vento. Esta, preocupada, pois conhecia o poder do vento, diz para
o filho não pronunciar seu nome em vão. Entretanto, o menino desobedece. Sem querer provoca
um redemoinho, e o vento transforma-se logo em um pássaro. Segundo Bachelard 57 “o vento de
cólera e de criação não são apreendidos em sua ação geométrica, mas como doadores de poder.
Nada mais pode deter o movimento turbilhonante”. Kuan-Kuan detém o poder e acha que pelo
fato de ter desatado o vento os homens não gostam dele. Por isso, sente-se culpado. É
justamente sua mãe quem suaviza essa culpa dizendo “não podes te culpar por tudo de ruim que
o vento faz”. 58
Ela, além de ser mãe, tem mais idade e larga experiência de vida, por isso que “os
senhores do dito são ‘os mais velhos’ do grupo, não só pela idade, mas pelo papel que nele

54
AGUALUSA, José Eduardo. O Filho do Vento. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2006
55
AGUALUSA, op. cit..
56
AGUALUSA, op. cit.
57
BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 233
58
AGUALUSA, op. cit.
30

exercem”. 59 A experiência de vida que eles têm servem para ensinar algo. A mãe de Nakati, o
garoto que perguntou qual o nome do vento, ensina-o para só chamá-lo depois que as paredes da
casa estiverem reforçadas, tamanha a sua força. Mas a criança não faz isso e ao pronunciar o
nome do filho do vento em voz alta, desencadeia um redemoinho de poeira, que cresceu,
engrossou e destruiu tudo ao seu redor, impossibilitando às pessoas de se protegerem.
O vento, ao mesmo tempo em que tem um poder destruidor, apresenta também a
capacidade de reconstruir, pois cada destruição faz surgir algo novo. Conforme Bachelard 60 “na
imaginação dinâmica, tudo se anima, nada se detém. O movimento cria o ser, o ar turbilhonante
cria as estrelas, o grito produz as imagens, o grito gera a palavra, o pensamento”. Ao longo da
história um evento desencadeia outro: o menino invocou o vento, este começou a inclinar-se,
quando fez surgir um redemoinho e destruindo as casas para, finalmente, tornar-se um pássaro,
que voou e não voltou mais. Na vida cotidiana das pessoas, as atitudes geram conseqüências
inesperadas ou indesejadas. Por isso Kuan-Kuan nunca mais foi o mesmo, pois “achava que os
homens o odiavam por ter desatado o vento”.61 Nakati, o menino responsável por desencadear
os eventos sucessivos, representa o homem, que na ânsia de atender seus desejos profundos,
sofre com as conseqüências dos seus atos e luta contra os acontecimentos da vida, regida por
uma força maior.
Kuan-Kuan “depois que caiu, depois que fez nascer a ventania, nunca mais foi o mesmo.
Achava que os homens o odiavam por ter desatado o vento. Cresceu um tanto estranho,
arredio”. 62 Aquela vivacidade que tinha quando brincava com os amigos foi aos poucos
tornando-se desconfiança. Bachelard diz que “o vento, em seu excesso, é a cólera que está em
toda parte e em nenhum lugar, que nasce e renasce de si mesma, que gira e se volta sobre si
mesma. O vento ameaça e uiva, mas só toma forma quando encontra a poeira”. 63 O menino
achava que tinha o poder de comandar o vento e, ao sentir-se culpado por isso, nunca mais foi o
mesmo, tanto que se transformou em pássaro. Cada vez que fugia a voar, pois penas nasciam
sob sua pele, distanciava-se dos problemas. Porém, “um dia voou, voou, e não voltou”.64

59
PADILHA, op. cit., p. 264
60
BACHELARD, op. cit., p. 233
61
AGUALUSA, op. cit.
62
AGUALUSA, op. cit.
63
BACHELARD, op. cit., p. 232
64
AGUALUSA, op. cit.
31

Foi justamente a capacidade de criar asas que fez com que se distanciasse dos problemas,
acelerando, assim, o seu processo de amadurecimento. Bachelard salienta que “a asa, atributo
essencial da volatilidade, é marca ideal de perfeição em quase todos os seres”. 65 Foi necessário
– tal como a crisálida quando deixa o casulo - metamorfosear-se em pássaro, conhecer a mais
bela mulher, ou seja, amadurecer, para aprender a ver o lado positivo que o vento tem. O vôo é
uma metáfora para o amadurecimento, um processo da existência que leva à perfeição.
Traçando um paralelo com as fases da vivência humana pode-se dizer que a época em
que Kuan-Kuan brincava de bola com os meninos da aldeia corresponde à infância, pois essa
referência de tempo remete o leitor à fase infantil. Posteriormente, o redemoinho desencadeado
pelo vento tem estreita relação com a adolescência; à inclinação do filho do vento ao chão,
segue-se o início do redemoinho, que cresceu, engrossou, não dando tempo de as pessoas se
protegerem. Finalmente, a parte em que ele se transforma em pássaro corresponde à maturidade,
devido à presença do verbo “crescer”. O sentimento de culpa e a prevenção contra os
semelhantes são próprios do adulto. Pode-se dizer que nessa tríade gradativa: brincar –
redemoinho - pássaro (infância – adolescência – maturidade) se resume a vida de Kuan-Kuan.
Liberto de toda a culpa que carregava, ele está preparado para conhecer a mulher
especial, responsável por criar as estrelas. Ela guiará seus passos, iluminará seus caminhos e
surgirá nas horas tímidas do começo do dia. Sabendo da história de Kuan-Kuan, relembra-o das
transformações ocorridas. Era como se desejasse que ele aprendesse a caminhar com as próprias
pernas enfrentando a vulnerabilidade inerente ao ser. E assim, timidamente, vão se conhecendo
e convivendo. Ela vai lhe mostrando os aspectos positivos do vento: carrega as sementes das
árvores, ajuda o caçador na hora da caça, ameniza o calor. Embora alastre as chamas de fogo, “o
vento é como qualquer pessoa, tem seus dias ruins. Culpa de quem?”. 66
Com essa fala, muito importante, o personagem mostra que assim como o vento tem
seus dias ruins, as pessoas, da mesma forma, têm dias melhores ou não. Essa ambivalência é
inerente ao ser humano e está presente tanto no adulto quanto na criança, com a diferença que
esta não tem a maturidade daquele, justamente por estar em desenvolvimento. Logo, a natureza
serve de espelho para o próprio indivíduo, pois o processo de amadurecimento de um homem é
semelhante ao da natureza, possibilitando ao homem, através dela, enxergar-se a si mesmo.

65
BACHELARD, op. cit., p. 68
66
AGUALUSA, op. cit.
32

Entretanto, há fatos que ninguém tem culpa e não adianta o homem querer comandá-la, porque
segue o seu próprio ciclo. Aceitá-la como é implica em o indivíduo aceitar as suas próprias
limitações, em reconhecer os seus dias bons e ruins, sem culpar ninguém. Para Kuan-Kuan ser
feliz implicaria em assumir-se, olhar para o seu interior, aceitando-se como é. O episódio em
que sentou-se num morro de salalé e ficou a digerir as estrelas, pode-se considerar um momento
epifânico, pois representa uma etapa intermediária que o preparava para outra fase: conhecer “a
soma do melhor e do mais belo que havia em todas as mulheres do mundo”.67
Ele e a mulher sofrem uma metamorfose: ele se torna pássaro e ela, que era uma menina,
transforma-se em mulher, ao criar as estrelas, as quais Kuan-Kuan engole, iluminando tanto o
seu interior, quanto a sua consciência. Conforme Chevalier & Gheerbrant68, elas possuem uma
qualidade luminar, de fonte de luz. Ambos superam a fase anterior caracterizada por medos,
questionamentos e descobertas e adentram no universo do adulto, cabendo à mulher ensiná-lo e
mostrá-lo os benefícios que o vento proporciona à humanidade. Acostumado a ver o lado
negativo das coisas, ele rende-se a essas novas descobertas e seguro de si une-se a ela
provocando como num efeito cascata uma nova metamorfose: o surgimento do amor.
Pode-se estender esse raciocínio para o plano da existência humana. O indivíduo passa
pela infância, depois se desenvolve e por último amadurece. Ao encerramento de cada fase
inicia-se outra com respectivas peculiaridades. A infância é a fase em que a criança apresenta
grande energia e muita disposição, por isso anseia pela realização dos seus desejos. Logo,
muitas vezes, desobedece aos mais velhos, espantando-se com a conseqüência dos seus atos. Já
os arrebatamentos e impulsividades são próprios dos adolescentes. Abrigam no seu íntimo,
volúpia e repulsa, amor e ódio, calma e fúria. Essas energias quando em ebulição podem ser
como um redemoinho, cuja força é centrífuga ou como brisa do ar, que suaviza e acalma. O
adolescente é um ser passional cheio de dúvidas cujas explicações só encontra na maturidade,
quando tem capacidade de encontrar as respostas no seu interior, de forma sensata, respeitando
seus limites.
José Eduardo Agualusa parte do local para abordar um tema universal, ou seja, se
apropria da natureza africana para tratar de um assunto que é característico não só dos luso-

67
AGUALUSA, op. cit.
68
CHEVALIER, Jean & GHEERBRRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p.
404
33

africanos, mas de qualquer indivíduo: o processo de amadurecimento do ser. Essa temática


possibilita aos leitores enxergarem-se no filho do vento, pelo fato de apresentar as mesmas
dificuldades e questionamentos do homem comum. Esta obra proporciona ao leitor uma auto-
reflexão, através da qual ele passa a compreender que assim como a natureza tem seus dias ruins,
as pessoas também o têm. E nada é por culpa de ninguém, porque as coisas são como são. Por
isso acredita-se que essa obra suscita no leitor sentimentos de liberdade e emancipação, pois lhe
possibilita, independentemente de etnia, reelaborar seus conceitos espelhando-se no personagem.

5.2 O BEIJO DA PALAVRINHA

A obra O beijo da palavrinha, de Mia Couto, é a narração de uma bela história que
retrata a realidade de crianças oriundas das camadas mais pobres da sociedade. As cores
predominantes nas ilustrações são o azul, o marrom e seus respectivos matizes. O azul está
relacionado ao elemento água, no qual Maria Poeirinha se afogou. O marrom tem relação com o
elemento terra, que está presente no nome da personagem “Poeirinha”.
No trecho “era Maria Poeira que se erguia”, 69 o nome Maria sugere uma identidade
comum e divina, porque sendo o nome de tantas mulheres, ao mesmo tempo, é o nome da mãe
de Cristo. Além disso, remete ao jogo de palavras “mar” e “ia”, presentes no seu nome. Talvez,
indo ao mar, ela pudesse eliminar as doenças do corpo e da alma, ou seja, a poeira que encobria
o seu ser, impossibilitando o desenvolvimento natural. Ela, oriunda de uma família pobre que
vivia no interior de uma aldeia bem distante, tinha apenas um irmão “desprovido de juízo”
chamado Zeca Zonzo. A tristeza presente no texto é suavizada pela disposição das palavras e
tamanho das letras que mudam conforme a situação; e pelo jogo de palavras presente nos nomes
Maria e Zeca Zonzo, além da palavra “mar”, pois cada letra está relacionada a uma paisagem.
Pode-se perceber intertextualidade com o poema Mar Portuguez, de Fernando Pessoa,
cujos versos
Valeu a pena? Tudo vale a pena
se a alma não é pequena.

69
COUTO, Mia. O beijo da palavrinha. Rio de Janeiro: Língua Geral. 2006.
34

Quem quer passar além do Bojador


Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu 70

ecoam no trecho “podia continuar pobre mas havia, do outro lado do horizonte, uma luz que
fazia a espera valer a pena. Deste lado do mundo, faltava essa luz que nasce não do Sol mas das
águas profundas”71. O tio Jaime Litorâneo se sentia atraído pela imensidão das águas oceânicas
e acreditava que esperar por atravessá-las era algo que valia a pena, pois havia uma luz que
nascia das suas profundezas. Além disso, os “azuis do mar [...] lhe havia aberto a porta para o
infinito”. 72
O mar está para o infinito, assim como luz está para o conhecimento. O mar traz medo
por causa da sua imponência e força. Entretanto, a imensidão das suas águas desafia o homem a
querer conhecê-lo, que vê o quanto tem a aprender. Através dele, o homem fez grandes
descobertas, cuja conseqüência foi a evolução da humanidade. A expansão marítima fez muitas
vítimas, mas fez também com que o homem mudasse a compreensão e o conhecimento que
tinha do universo. Navegando por estes mares, o homem fez um novo caminho para as Índias,
descobriu o Novo Mundo, comprovou que a Terra é redonda, divulgou a fé Cristã por meio das
Cruzadas.
O tio, cujo mundo era mais evoluído, tivera o privilégio de conhecer suas águas e essas
estórias, e representava, para as crianças que moravam numa aldeia sem perspectivas de futuro,
esperança e luz. Por isso era portador da boa-nova. Até o dia de sua chegada tudo era pequeno e
pobre. Seu desejo era que os sobrinhos conhecessem o oceano, afinal atribuía “a fome, a solidão,
a palermice do Zeca [...] a falta de maresia” 73 e acreditava que o mar levaria a doença de Maria
Poeirinha. Por isso, ele ordenou “metam a menina no barco que a corrente a leva em salvadora
viagem”. Conforme Bachelard 74 “o apelo da água exige de certa forma uma doação total, uma
doação íntima. A água quer um habitante [...] Ver a água é querer estar nela”. O mar estabelece
uma relação de troca com o homem, pois a luz oriunda das suas águas alumia a caminhada do

70
PESSOA, Fernando. Poemas escolhidos. São Paulo: Klick. 1997. p.153
71
COUTO, op. cit.
72
COUTO, op. cit .
73
COUTO, op. cit.
74
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 171
35

indivíduo que se entrega para ele. O mar, segundo Chevalier & Gheerbrant 75 , simboliza a
dinâmica da vida, ou, ainda, um estado transitório entre as possibilidades informes e as
realidades configuradas. É uma espécie de portal em que, as crianças atravessando-o perceberão
o mundo, terão contato com outras culturas e passarão a compreender-se melhor.
Por Maria não ter tido a oportunidade de conhecer os encantos das águas salgadas, não
ter visto a luz que emana das suas profundezas, o menino rabisca a palavra — MAR — num
papel, para que ela pudesse sentir a emoção de conhecê-lo. Nascera pobre e morrera na mesma
condição sem ter tido o direito de fazer a travessia. “Às vezes sonhava que [...] se convertia em
rio”.76 Bachelard 77 diz que a água doce refresca, dessedenta, lembra pureza e doçura, por isso
será sempre um privilégio do devaneio natural. A menina sonhava que se transformava em rio,
mas cada vez que mergulhava no mundo onírico a realidade da areia escaldante a chamava para
a existência física, era o mundo físico convocando-a para o presente sofrido e amargo. Urgia
que saísse desse ambiente. Mas ela não faz a travessia do mar e nem em sonhos consegue
transformar-se em rio. Era uma menina, como tantas outras que moram em aldeias distantes e
vivem isoladas do que o mundo oferece.
Para ela a existência real é sofrimento e doença. Diferentemente do tio, cuja realidade
denota vida e esperança, pois seus olhos estão voltados para o mar que reflete a luz do céu.
Entre ela e o tio há uma relação de oposição: seus mundos são opostos que não se cruzam. A
menina simboliza os devaneios no momento em que se transforma em rio. Conforme
Bachelard78, “o devaneio natural reservará sempre um privilégio à água doce”. Ele representa o
sal que “entrava [...] o devaneio da doçura”79, e significa realidade, cuja dimensão é imensurável
para a menina, diante de uma vida amarga e sofrida. A sua realidade e a do outro é um entrave
para a realização dos seus sonhos, sem forças, inclusive, para adentrar o mar.
A imensidão destas águas está na mesma proporção que a libertação do choro, porque ao
falar “ ─ Quem nunca viu o mar não sabe o que é chorar!”80 o tio relaciona o ver o mar com o
chorar. Os dois contêm água, são reais e concretos, podendo ser profundos, pois a palavra choro
75
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p.
593.
76
COUTO, op. cit.
77
BACHELARD, op. cit. p. 162
78
BACHELARD, op. cit., p. 162
79
BACHELARD, loc. cit.
80
COUTO, op. cit.
36

tem um duplo significado: pode estar relacionado à emoção que as histórias do mar despertam
no indivíduo, ou pode ser a saudade que a pessoa sente ao lembrar daqueles que sucumbiram em
suas águas, em nome de feitos históricos. Segundo Lamartine (apud Bachelard) “a água é o
elemento triste [...] porque a água chora com todo o mundo [...] quando o coração está triste,
toda a água do mundo se transforma em lágrimas”.81 Quando Maria adoeceu, o tio tinha certeza
que sua cura estava nas águas oceânicas, mas coube ao irmão tentar apresentar-lhe o mar. Após
o esforço do menino em salvá-la, o tio percebe que ela não apresenta mais os sinais vitais e
lacrimejando fala, que já escuta o marulhar. Conforme Bachelard “a água leva para bem longe, a
água passa como os dias [...] dissolve mais completamente [...] essa impressão de dissolução
82
atinge, em certas horas, as almas mais sólidas, mais otimistas” , até mesmo o tio cuja
personalidade se caracteriza pela sensatez e otimismo.
É possível imaginá-lo como um bom contador de histórias, pois além de conhecer as
crianças devido aos laços consangüíneos, possuía o conhecimento de quem navegara pelas
águas oceânicas. Bachelard 83 diz que “o mar propicia contos antes de propiciar sonhos [e] é
fabuloso porque se exprime primeiro pelos lábios do viajante da mais longínqua viagem”.
Supostamente, ele que viera de muito longe, ao narrar para as crianças as aventuras ocorridas
durante suas viagens mostra-lhes um belo horizonte, despertando nelas a vontade de conhecer o
mar, principalmente no menino, pois crê, estar nessas águas, a cura para a doença da irmã.
A vida igualmente apresenta limitações para o irmão Zeca, que parece ser mais forte,
pois é ele quem mostra o mar para Maria Poeirinha ao conduzir o dedo dela por cima das letras
que compõem a palavra, para que ela imaginasse-o. Já fisicamente muito fraca, ela diz que sente
só sombras. Então, numa atitude perseverante, o irmão sopra o dedo da menina para limpá-lo e
novamente faz seguir as letras, até reconhecê-las. Interessante observar que este personagem
caracterizado como desajuizado e palerma é aquele que toma a iniciativa de rabiscar num papel
a palavra “mar” para que a menina possa senti-lo.
O leitor surpreendido com essa iniciativa conclui que Zeca Zonzo representa as crianças
luso-africanas que diante de situações extremas, como a guerra ou o êxodo, conseguem
assimilar as mudanças superando os obstáculos, não desistindo da busca de soluções para os

81
BACHELARD, op. cit., p. 94
82
BACHELARD, op. cit., p. 94
83
BACHELARD, op. cit., p.159
37

problemas apresentados. Mesmo com dificuldades conseguem se superar, talvez por


apresentarem uma natureza mais forte que é percebida através da iniciativa de salvar a irmã.
Influenciado pelo tio, consegue convencê-la da importância de sentir estas águas, símbolo de
mudança. A esperança está ancorada do outro lado do oceano, de onde emana das águas uma
luz-guia, tal como um farol, que orienta os viajantes.
Maria Poeirinha, por intermédio do seu irmão, imagina o mar; e cada letra desta palavra
passa a representar-lhe uma imagem significativa. Conforme Bachelard 84 “a água é a linguagem
da senhora fluída [...] da linguagem contínua [...] que proporciona uma matéria uniforme a
ritmos diferentes”. Passando o dedo pelo “m” ela vai relacionando as ondas do mar com o
formato da letra, que “é feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem” 85, depois o “a”
simboliza a gaivota e por último o “r” que representa a rocha. Ela devaneia, pois sabe que não
tem forças física e psicológica, já que “enfrentar o mar pede a nossa alma inteira”. 86 Castigada
pelas más condições sociais por viver num ambiente inóspito e sofrido, parecia desacreditar na
possibilidade de mudança, tanto que o irmão quando a chama para ver o mar ela responde
dizendo que “não vale a pena”, porque já não distingue as letras. Assim, a sua percepção acerca
do mar se dá através da imaginação e não dos cinco sentidos. Não conseguindo adaptar-se ao
meio hostil em que residia, nem se sentindo com forças para enfrentar a mudança, transforma-se
em gaivota. Conforme Platão (apud Bachelard) 87 “a força da asa consiste, por natureza, em
poder elevar e conduzir o que é pesado para as alturas onde habita a raça dos deuses. De todas
as coisas atinentes ao corpo, são as asas as que mais participam do que é divino”. Ela não foi
iniciada, como o tio, na experiência sinestésica de vivenciar o mar por inteiro. Essa história
representa ao mesmo tempo esperança e frustração, pois a mesma água, que é símbolo de
mudanças, significa para a menina um grande desafio, porque se sente vulnerável e sem
vitalidade.
Estaria ela preparada para essa realidade? Talvez a menina não estivesse preparada para
entrar em contato com suas emoções profundas devido a tanto sofrimento. Simbolicamente ela
representa as crianças luso-africanas que tentam adaptar-se a sua nova condição: crianças
deslocadas e sem família ou que habitam outra nação por terem sido obrigadas a deixar seu país.

84
BACHELARD, op. cit., p.193
85
COUTO, op. cit..
86
COUTO, op. cit.
87
BACHELARD, op. cit., p. 68. O autor tira esse pensamento do livro Phedre, de Platão.
38

Em vista das diferenças culturais, sociais, econômicas não conseguem adaptar-se ao novo,
sucumbindo, pois não estão ou não foram preparadas para este tipo de mudança. É necessário
que alguém lhe faça a ponte entre o sofrimento e a perspectiva de mudança. Justamente pela
mão do irmão, ela adentra num universo diferente do seu.
A personagem central dessa história representa os indivíduos que dependem de um
desconhecido, um estrangeiro, face à negligência dos seus pares. Conforme Chevalier e
Gheerbrant88 o estrangeiro pode ser visto, também, como um mensageiro de Deus, devendo,
portanto, ser honrado. O tio é o mensageiro divino que pode ver uma perspectiva de vida para
essas crianças, tão distantes dos sonhos que desejariam para si. Entretanto, elas podem se
questionar, dependendo da sua experiência de vida e de leitura, se aquilo que o estrangeiro traz
realmente é o melhor para a sua cultura. Estará ele respeitando suas crenças e seus costumes, já
que possui uma bagagem cultural diferente da sua? Elas são frutos de um contexto sócio-
histórico que destruiu o seu país e subjugou seus povos, através do pós-colonialismo. Com uma
auto-estima abalada, acabam recuando ante à perspectiva de mudança que poderia representar a
sua “salvação”. Sentem-se perdidas, pois sua terra é rude, a história dos seus antepassados é
triste e, ademais, aquele que poderia lhe oferecer outra condição não é o seu par. Embora esteja
com os seus semelhantes, ela se sente abandonada dentro do seu próprio país, porque todos
estão na mesma condição de dependentes da ajuda de um alguém.
Sabendo ser difícil contar com o mais próximo, esse indivíduo acaba se frustrando,
afinal quem deveria ajudá-lo talvez não tenha condições psíquicas, emocionais, intelectuais ou
financeiras para tal. Logo, fica na dependência de outrem, o estrangeiro, que trará para ela o que
é melhor, segundo sua visão. Elas sabem que ainda não podem caminhar com as próprias pernas,
mas querem que quem as guie seja alguém da sua própria cultura.
Conforme Jane Tutikian89, Mia Couto recorre à representação mítica com o objetivo de
despertar nos moçambicanos a afirmação de uma identidade cultural. A menina desenvolve o
sentimento de pertença em relação à sua terra, mesmo sendo rude, inóspita e castigante, porém
no momento em que há oportunidade de conhecer outras nações que apresentam melhores
condições de vida, morre transformando-se em mito.

88
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p.
404.
89
TUTIKIAN, Jane.Velhas identidades novas: o pós-colonialismo e a emergência das nações de Língua Portuguesa.
Ensaios. Porto Alegre: Sagra Luzzatto. 2006. p.60
39

A transformação “do leito de Maria Poeirinha se ergueu a gaivota branca” 90 comprova


a ocorrência do mito, que para um adulto pode ser claro e compreensível. Mas, para o pequeno
leitor talvez não, pois pode assimilar a história sob a perspectiva de uma possível salvação. Ao
se deparar com a informação de que a menina se afogou, toda a construção de sentidos
elaborada a partir desse texto literário se rompe, ficando a incompreensão e o sentimento de
piedade em relação ao personagem.
Mia Couto usa a literatura como bandeira para o seu projeto de moçambicanidade, e isso
se justifica nesta obra, ideal que seja lida para a criança, por um adulto. Não é rememorando
tristeza e sofrimento que ela conseguirá resolver conflitos internos. O interesse pelos contos de
fadas comprova isso, pois são histórias em que o bem sempre vence o mal, em que tudo dá certo.
É justamente a presença dessa situação que oferece subsídios para ela, inconscientemente,
reelaborar seus medos.

5.3 O HOMEM QUE NÃO PODIA OLHAR PRA TRÁS

Nelson Saúte preserva as raízes africanas, pois recria um conto tradicional do norte de
Moçambique, cuja temática é o casamento entre um homem e uma mulher de diferentes
linhagens. A preocupação do autor em resgatar sua cultura evidencia-se no fato de que a obra
91
apresenta um vocabulário igual ao da lenda . As expressões m’siro e capulana,
respectivamente, máscaras que a moça usava no rosto e vestimentas com as quais cobria o corpo
permeiam o texto do início ao fim. Além disso, a expressão “um dia, há sempre um dia nestas
histórias da nossa terra” 92 comprova que a obra tem raízes na oralidade.
Abdala Mussa, o personagem central, nasceu no Lumbo, mas passou sua juventude na
ilha de Moçambique. Entretanto, caminhava por Mossuril. Ele vivia palmilhando por essas
localidades para fugir dos ditames da pobreza. O leitor cola na pele do personagem e com ele
faz uma viagem através da qual vai conhecendo os aspectos culturais, étnicos, históricos e

90
COUTO, op. cit.
91
É possível acessar a lenda em: http://www.ponto.altervista.org/Lugares/Lendas/namara.html (31 jan. 2008) A
história está nos anexos.
92
SAÚTE, Nelson. O homem que não podia olhar para trás. Rio de Janeiro: Língua geral. 2006
40

geográficos dessas regiões, vai percebendo não apenas os hábitos e costumes das diferentes
localidades, mas também os aspectos do cotidiano das cidades. Ao passar por algumas zonas de
Moçambique “não vira aldeias, nem divisara homens alongando-se na preguiça sobre as
kitandas [...] que acolhem muitos dos que passam os dias a fazer coisa nenhuma, esquivando o
sol e refugiando-se do calor” 93, achou estranho justamente por que “à sombra das palhotas não
é difícil encontrar gente deitada em camas armadas em paus e com uma malha de sisal a fazer
colchão. As mesmas kitandas servem para carregar os mortos quando são viradas ao avesso”. 94
A região de onde saíra, Nacala, sempre há falta de água, e há muito não tomava banho. Estava
sujo, com os pés escuros e “naquele final da manhã ia embrenhado no intenso odor do seu
suor”. 95
A recriação da lenda é acrescida de informações sobre os hábitos culturais daquela
região. Percebe-se ainda que a geografia africana determina o modo de viver dos habitantes. O
texto possibilita ao leitor traçar um perfil étnico e cultural das regiões mais castigadas pelo
clima africano. Permite, ainda, deduzir as conseqüências desastrosas da guerra, como o êxodo, a
pobreza, a falta de dignidade humana. A guerra faz o homem perder a noção de si mesmo,
podando-lhe as asas da imaginação. Por causa dela, Abdala tivera que se distanciar da sua
cidade. Com isso esquecera seu referencial, pois caminhava “em busca de um destino que não
sabia adivinhar” 96 e perdera sua dignidade humana, quando “chegou a conclusão de que a caça
seria uma saída para a sua vida atropelada por tanta miséria”. 97
Em virtude disso, percorre um longo e sofrido trajeto por uma região desértica e rude. A
natureza é inóspita, na mesma proporção que o sofrimento dele é devastador. Contudo, ela
parece estar acompanhando seu sofrimento, sentindo suas dores, adivinhando seus desejos. Ele
caminhava “debaixo de frondosos cajueiros e de um mato que tinha o tamanho de sua
inesgotável solidão”. 98 Encontrara na sua caminhada alguns animais mortos, mas cada vez que
pensava em comê-los, vinha um pássaro avisar-lhe para não fazer isso, pois mais adiante
encontraria algo melhor. Ao final da caminhada encontrou uma mulher, Halima, que lhe deu
abrigo dizendo-se ser sua esposa. Um certo dia ela o leva a uma festa e adverte-o de que não

93
SAÚTE, op. cit.
94
SAÚTE, op. cit.
95
SAÚTE, op. cit.
96
SAÚTE, op. cit.
97
SAÚTE, op. cit.
98
SAÚTE, op. cit.
41

deve olhar para trás, pois se o fizesse poderia perder tudo. Depois de dançar e beber muito, num
certo momento, ele olha para trás e, no mesmo instante, volta a ser pobre e esfarrapado.
Os personagens, nessa história, têm um significado. Os animais mortos representam as
mulheres casadas e se ele comesse dessa carne estaria cometendo adultério. Já, os pássaros
simbolizam as pessoas mais velhas, cujos conselhos é sempre seguir adiante, pois encontrará
uma mulher desimpedida. O homem que se casa com uma mulher de outra linhagem é tido
como “bem vestido”, ao passo que o homem sem mulher é considerado pobre e esfarrapado. 99
Caminhando debaixo do sol ardido e podendo contar apenas consigo mesmo, Abdala
sentiu sede e fome. Cada animal encontrado era a certeza de uma caça garantida. Entretanto,
preferiu seguir os conselhos dos pássaros que lhe advertiam que aquela carne não era ideal. O
personagem podia escolher entre atender seu desejo imediato ou esperar um pouco até surgir o
momento oportuno. Optou pela segunda, por isso, estava cansado, descalço e andava curvado
sobre si, muitas vezes olhando para o chão. Entretanto, carregava no olhar uma ponta de
esperança. Conforme Bachelard “nossa história pessoal nada mais é assim que a narrativa de
nossas ações descosidas”. 100 Abdala não tem um contínuo de atos e de vida para contar porque
viveu isolado da convivência com seus pares, durante uma boa parte de sua vida. Era um
indivíduo que vivia como bem queria. O casamento com Halima proporcionou a Abdala
constituir família, inserindo-o no contexto social.
A família é o elo que possibilita ao homem ter uma estrutura de vida, pois ao viver com
seus pares adquire novos conhecimentos, vivencia outras experiências. Essa convivência exige
do indivíduo o respeito às regras e normas de conduta, sendo uma forma de fazer com que os
valores e a cultura sejam reconhecidos pelas gerações que se sucedem. Nem todos os indivíduos
estão preparados para essa convivência. Abdala Mussa simboliza o homem que vive
isoladamente, perdendo, assim, o contato com seus pares e privando-se da convivência social.
Portanto, os indivíduos que sofrem com a guerra, vivendo sob os ditames da pobreza, podem
enxergar nessa troca de experiências a possibilidade de encontrar a sua própria dignidade.
Podem, ainda, resgatar os referenciais perdidos, através da convivência social e familiar, já que
a família e o grupo social preservam os valores e a cultura.

99
É possível acessar a lenda em: http://www.ponto.altervista.org/Lugares/Lendas/namara.html (31 jan. 2008) A
história está nos anexos..
100
BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. 2 a. ed. São Paulo: Ática, 1994, p. 39.
42

Porém a vida é feita de escolhas, e cabe ao indivíduo optar por uma ou outra das
oportunidades que lhe aparecem, assumindo a responsabilidade pelos seus atos. Abdala ao viver
isolado pode fazer o que quer, mas está privado da convivência dos outros homens. No
momento que encontra Halima passa a fazer parte de um núcleo social, mas perde sua liberdade,
porque teve que se adaptar a uma nova cultura. Conforme Sand 101 (apud Bachelard), os homens
podem ser classificados segundo seu desejo de viver numa choupana ou num palácio. Quem tem
este sonha com aquele e quem tem o primeiro sonha com o segundo. Abdala experimentou os
dois, mas preferiu a choupana.
Adaptar-se a uma nova cultura implica em aceitar suas regras. Segundo Homi Bhabha “o
trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum
de passado e presente [...] é um ‘entre-lugar’ contigente”. 102 Os valores de Halima não tem
nada de semelhante com as experiências que Abdala vivenciou no Lumbo, na Ilha de
Moçambique ou em Nacala. Vivendo sempre à margem, agora se vê diante do novo, tendo que
se adaptar a um outro modelo de vida, que não é a sua cultura de antes e nem a sua cultura de
agora, por isso é um entre-lugar incerto, não definido. Abdala não se aceita como andarilho, e
ademais percebe que a cultura da mulher não é a sua. Ao olhar pra trás cai em si e reflete sobre
sua própria condição social de pobre e esfarrapado.
Dessa forma, Abdala representa os negros luso-africanos que não conseguem identificar-
se com a sua própria cultura, porque a do outro prevalece. Associa-se a isso, o fato de muitos
habitarem uma região que não oferece boas condições de vida, obrigando-os a buscar outras
paragens. A conseqüência desses acontecimentos é que esses próprios negros distanciam-se das
suas raízes, sofrendo um processo de transculturação. Distante de suas origens urge, portanto,
que eles construam as bases de uma nova cultura.

5.4 DEBAIXO DO ARCO-ÍRIS NÃO PASSA NINGUÉM

Zetho Cunha Gonçalves apropriou-se da tradição oral dos povos nganguela, tchokwé e
bosquímano, que habitam a província do Cuando Cubango, no Sudeste de Angola para escrever

101
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 76.
102
BHABHA, Homi. O local da cultura. Coleção Humanitas. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 27.
43

Debaixo do arco-íris não passa ninguém 103 . O livro é composto por 16 poemas, intitulados
canção, sendo que cada um apresenta uma estrutura diferente se comparada aos demais do livro,
pois o número de versos e estrofes varia entre si, acarretando diferenças de metrificação:

O sapo
Queixava-se de dores de cabeça
Mas ninguém lhe ligou

Ali mesmo ao lado


O leopardo
Cheio de febre
E de suores frios
Batia o dente
Numa enorme perna de gazela104

Todas as ilustrações, que acompanham os poemas, apresentam animais. Para compô-los,


o escritor se baseou em canções, provérbios, motejos, adivinhas e poemas dos referidos povos,
conforme expresso no próprio livro, que contém um pequeno glossário das palavras de origem
africana. O escritor, ao se apropriar de textos da literatura popular, está valorizando o folclore
que, conforme Júlio César da Silva 105 , deve fazer parte das brincadeiras e do cotidiano das
crianças.
Nos poemas há aspectos marcantes como o imaginário e a oralidade, sendo que uns se
destacam mais que outros. A oralidade é reforçada tanto pelo pouco uso dos sinais de pontuação,
como pelo caráter melódico dos poemas. Já o vocabulário leva o indivíduo a percorrer o mundo
da fantasia, da realidade inventada. Tanto as palavras quanto a melodia reforçam os aspectos
citados acima, tornando as poesias mais atraentes e desafiadoras à imaginação dos pequenos
leitores:

Jacaré voador
Jacaré voador
Quem te ensinou a cantar?

103
GONÇALVES, Zetho Cunha. Debaixo do arco-íris não passa ninguém. Rio de Janeiro: Língua Geral. 2006
104
GONÇALVES, op. cit., “Canção da malvadez”.
105
SILVA, Julio César da. “O folclore e a literatura infantil: sugestões de atividades”. In: KHÉDE, Sonia Salomão
(Org.) Literatura Infanto-Juvenil – Um gênero polêmico. 2ª. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986 p. 61
44

Foi a formiga
Foi a formiga...106

No trecho acima, a reiteração dos versos aproxima as linguagens poéticas da oral, que
naturalmente se constitui da repetição de palavras e expressões. No exemplo abaixo a
possibilidade de um animal transformar-se em outro faz o leitor imaginar como seria essa
metamorfose:

Como se a borboleta
Fosse jacaré
E o elefante
Fosse um gambozino
Vestido de canguru...107

Dando destaque a determinados animais, plantas e insetos que fazem parte do meio-
ambiente africano, o poeta mostra o quanto de belo há na natureza, que é regida por uma força
cósmica. A beleza está presente na fauna e na flora, desde as coisas minúsculas como um grão
de pólen até as maiores, como a cabeça de uma avestruz:

Lá vai de viagem
Nas asas
E nas patas
Da borboleta

A semente de pólen
Da flor
Que o beija-flor
Debicou 108

Muito alta e bailarina


De repente
Eis que voltava a aparecer
Como que por magia
A cabeça da avestruz 109

106
GONÇALVES, op. cit., “Canção do jacaré voador”.
107
GONÇALVES, op. cit., “Canção do faz de conta do jacaré e da borboleta”.
108
GONÇALVES, op. cit., “Canção da semente de pólen”.
109
GONÇALVES, op. cit., “Canção de magia da cabeça da avestruz”.
45

A temática, salientada nos poemas sob uma ótica alegre e leve, e exaltada pelo eu-lírico,
desencadeia no leitor a consciência de que ele é parte integrante dessa natureza, que tem sua
dinâmica própria e precisa ser respeitada. Portanto, a lírica do poeta concorre para as evidências
de que existe um teor pedagógico em seus poemas.
A “Canção do princípio do mundo” é o texto que abre o livro e abarca o mundo da
poesia e do folclore luso-africano. Este poema, composto de uma estrofe, fala de um animal que
come o outro, o que lembra a cadeia alimentar. Um dos animais é o lobo, que tem grande
repercussão na literatura infantil, por ser um bicho que povoa de medos a imaginação das
crianças. Além disso, o malvado personagem da história de Chapeuzinho Vermelho é conhecida
dos angolanos através do escritor Dario de Melo.110
Por isso, percebe-se que há intertextualidade, bem como a presença do imaginário e da
oralidade, e esses tópicos se acentuam em diferentes textos e de forma distinta. A oralidade se
revela, principalmente, em “Canção do bom-dia”, “Canção do jacaré voador” e “Canção do
javali furioso”, os quais sugerem a idéia dos animais, que são encontrados na África, estarem
conversando entre si como se fossem seres dotados de raciocínio. Salienta-se que o eu-lírico
parece se distanciar desses poemas para assumir a função de um possível espectador que fica
observando a relação dialógica dos animais. Desse modo, o poeta desperta na criança o mesmo
sentimento de ser parte dessa platéia, composta por outras crianças e com as quais deve
aprender a conviver, a exemplo da estrofe abaixo:

Bom-dia senhor Leão


Bom-dia senhor Jacaré
Bom- dia 111

Jacaré voador
Jacaré voador
Quem te ensinou a cantar?

Foi o papagaio
Foi o papagaio 112

110
Dário de Melo conheceu essa história através de Ana Maria Machado. O escritor adaptou-a à realidade de
Angola e depois foi apresentada em teatro e rádio.
111
GONÇALVES, op. cit., “Canção do bom-dia”.
46

Javali furioso
Que bicho te mordeu?

Foi o quissonde
113
Foi o quissonde

Destaca-se que, nesse último poema, a criança pode interpretar que a hiena provocou o
114
animal, conforme o verso “Quero-te dar uma dentada / Hiena malvada” . O javali estava
furioso por ter comido o quissonde, um bicho não-comestível. O leitor infantil pode concluir
que assim como os animais, as pessoas igualmente podem ter seus dias ruins e respeitá-las é
importante para o bem viver de todos.
O imaginário popular também está presente e é reiterado pela magia que se faz presente
em versos como “Gambozino safado” e também em

Peguei nas minhas asas


Dei três voltas ao cachimbo
E fumei a minha própria sombra 115

“Peguei” e “fumei” remetem a sentidos como o tato e olfato que expressos nos poemas
reforçam a idéia do imaginário, despertando, na imaginação da criança, um estranhamento, que
a faz pensar e querer entender como é fumar a própria sombra ou como deve ser um animal
como o gambozino. Conforme Maria da Glória Bordini116, “esse caráter inacabado do mundo
ficcional, [...] mesmo que a criança não o perceba, a incita a constituir o seu imaginário e a
acioná-lo e transformá-lo, colaborando para que ela se reconheça como um ser que pensa”.
Portanto, é possível que através dessa leitura ela consiga reelaborar conflitos internos, porque
essa obra além de funcionar como uma grande brincadeira, desafiando o imaginário infantil,
possibilita ao pequeno leitor identificar-se.

112
GONÇALVES, op. cit., “Canção do jacaré voador”.
113
GONÇALVES, op. cit., “Canção do javali furioso”.
114
GONÇALVES, op. cit., “Canção do javali furioso”.
115
GONÇALVES, op. cit., “Canção do milhafre feiticeiro”.
116
BORDINI, op. cit., p.36
47

O cotidiano das crianças é abordado nos poemas através da descrição do hábito


alimentar de comer salalé (formigas aladas), bem como da importância de manter os hábitos de
higiene, conforme mostram os versos abaixo, respectivamente:

E o comeram
Deliciados
Como se fosse
Arroz com asas 117

Se comeres lambulas
Tu que és tão gulosa
Lava as mãos
primeiro 118

Salienta-se o destaque, em fonte maior do que a utilizada no restante do poema, que o


poeta dá, no livro, para a ação de lavar as mãos. Além de traçar um perfil dos hábitos culturais
desses povos, esses versos comprovam o caráter didático-pedagógico desses poemas que
ensinam para a criança a importância de se lavar as mãos, tomar banho, etc. Nesse caso, a
literatura é usada como pretexto para se falar de um assunto, que é de alçada da escola e da
família, instituições responsáveis pela educação do indivíduo. Nelly Novaes de Coelho 119
salienta que a literatura, que antes de tudo é arte, perde o seu caráter literário para assumir uma
função pedagógica.
Em outros poemas, os acontecimentos da natureza são destacados para mostrar o seu
ecossistema, como em “Canção da semente de pólen”, no qual esses grãozinhos produzidos
pelas flores das plantas são carregados pelas borboletas para outras plantas que produzirão
novas flores. Logo, a criança pode concluir que, na natureza, cada animal ou planta tem sua
função e razão de existir, o que não difere do mundo dos humanos. Cada pessoa desempenha
uma função na sociedade: os adultos trabalham, cuidam dos filhos; estes brincam, cuidam dos
irmãos pequenos. E assim, aprendem a conviver com os seus semelhantes.
117
GONÇALVES, op. cit., “Canção do salalé”.
118
GONÇALVES, op. cit., “Canção da onça para a formiga”. O negrito se encontra na obra.
119
COELHO, op. cit., p. 27
48

A intertextualidade com a fábula A cigarra e a formiga se faz presente nos versos que
seguem, remetendo o leitor à personagem da história, que trabalha durante o verão para poder
abrigar-se no inverno:

Com sua trouxa


À cabeça
Lá vai a formiga
Lavar seus vestidos

Muito trabalha
Esta rapariga 120

O escritor se serve do conhecimento popular, manifestado na literatura oral, para fazer


chegar aos ouvidos das crianças a importância de se respeitar a natureza, de ter hábitos de
higiene, de conhecer a sua própria cultura. Ao mesmo tempo, o texto abrange outras culturas,
pois o escritor, ao recorrer à intertextualidade, possibilita às crianças reconhecer nos textos que
deram origem à Literatura Infantil, marcas do folclore, de origens diversas, dando destaque,
assim, a outras culturas, a exemplo da européia, pois a formiga, da fábula, mora numa região
muito fria como a neve.
Diante de uma realidade, como o mundo virtual, em que as crianças trocam as cantigas e
brincadeiras de roda por atrativos que o mundo tecnológico e digital lhes oferece, o folclore,
com seu caráter lúdico e mágico, acaba adquirindo grande importância, pois povos como
nganguela ou tchokwé se tornam conhecidos das crianças de diferentes países, através dos livros
que registram sua cultura popular. O folclore representa o conjunto de tradições e conhecimento
popular que passado de geração a geração tem a finalidade de perpetuar uma cultura. Os textos
que circulam nas diferentes camadas sociais referendados pela passagem do tempo carregam
uma sabedoria ingênua e revelam as preocupações básicas do homem. Segundo Bordini121, esses
textos tratam “da poesia infantil de origem popular, cuja autoria desapareceu da memória
coletiva e que se transmite nas classes sociais dominadas, espelhando seus interesses
postergados”.

120
GONÇALVES, op. cit., “Canção do grilo e da formiga”.
121
BORDINI, op. cit., p. 42
49

O folclore, ponto de partida para a criação dessas poesias, é a manifestação literária que
mais facilmente as crianças têm conhecimento, pois reflete a cultura local, possibilitando-lhes
identificar-se com o texto. Segundo Nely Novaes Coelho 122 , “no povo e na criança, o
conhecimento da realidade se dá através do sensível, do emotivo [...]. Em ambos predomina o
pensamento mágico, com sua lógica própria. Daí que [...] se sintam atraídos pelas mesmas
realidades”. A leitura de poesias, além de ter uma função lúdica, faz o leitor pensar sobre aquilo
que lê, podendo estabelecer relações com outros textos, o que lhe permitirá reelaborar processos
mentais e emocionais como o medo, a angústia, a alegria, o amor, a raiva, etc.
Partindo desse ponto de vista, o conhecimento popular e a literatura oral exercem um
papel influente, pois repassam ensinamentos que nem sempre a escola considera como
primordial, tais como: aprender a conviver com seus pares, a respeitar o outro, a solucionar
conflitos internos. Nesse caso, a sabedoria popular faz às vezes da escola, que nem sempre é de
fácil acesso às crianças. Em países que estão em fase de reconstrução, como Angola, tudo tem
muita urgência, como hospitais, escolas, estradas, saneamento básico e por isso mesmo exige
planejamento. A taxa de analfabetismo é de 58 %, numa população de 14 milhões de pessoas,
sendo que na região leste do país, onde fica a província de Cuando Cubango, 70 % são
analfabetos.123 Conforme relatório da Cimeira Mundial de Angola, das crianças de 6 a 11 anos,
perto de 55% estavam na escola entre 1999/2000124, por isso o governo estipulou, em 2001,
abrir vagas nas escolas para mais de 3,5 milhões de crianças entre 5 e 13 anos de idade.
Segundo Florestan Fernandes125 (apud Melo) “o folclore possui um valor educativo. Pelo jogo e
pela recreação, a criança se prepara para a vida, amadurece para tornar-se um adulto em seu
meio social”. Para países como esses, muitas vezes, a literatura popular representa para as
crianças não só um mundo de brincadeiras, mas também um meio de aprendizagem, abrindo
portas de acesso a elas poderem conhecer outras culturas de diferentes povos. Conforme
Soriano126 (apud Coelho) a literatura “pode não querer ensinar, mas se dirige, apesar de tudo, a
uma idade que é a da aprendizagem [...] toda mensagem que se destina a ela, ao longo desse

122
COELHO, op. cit., p. 41
123
RÁDIO E TELEVISÃO DE PORTUGAL. Governo vai relançar campanha de alfabetização de adultos.
Disponível em: http://ww1.rtp.pt/noticias/index.php?article=196760&visual=26 Acesso em: 29 abr 2008
124
UNICEF. Relatório de seguimento das metas da Cimeira Mundial pela infância. Disponível em:
www.unicef.org/specialsession/how_country/edr_angola_pt.doc Acesso em 29 abr 2008
125
MELO, Veríssimo de. Folclore infantil. Belo Horizonte: ed. Itatiaia. 1979. p.125 / 258 p.
126
COELHO, op. cit., p. 31
50

período, tem necessariamente uma vocação pedagógica”. Porém, há que se ter cuidado para a
literatura não assumir a função da escola, de ser responsável pela formação do indivíduo.
51

CONCLUSÃO

Em países que estão em reconstrução por causa de uma guerra civil, como Angola e
Moçambique, as crianças representam o lado mais frágil, porque são indivíduos que estão em
desenvolvimento. Além de passarem necessidades físicas, como fome e frio, muitas se perdem
de suas famílias, ficando entregues à própria sorte.
A independência conquistada recentemente exige um esforço coletivo ainda maior
dessas nações destroçadas pela guerra. Importantes instituições como hospitais e escolas
precisam ser reconstruídas com urgência, o que exige planejamento. O sentimento de
africanidade foi de certo modo despedaçado, afinal, a guerra faz as pessoas perderem suas
famílias e amigos, desestruturando suas vidas. Percebe-se, portanto, que as conseqüências da
guerra são devastadoras, e podem aniquilar a identidade de um ser humano, em especial, a
criança.
Indivíduo em formação, ela precisa de amparo emocional e psicológico para enfrentar
suas dúvidas e frustrações, necessárias ao seu processo de crescimento. Quem poderá lhes dar
auxílio em países preocupados com a reconstrução nacional, a erradicação da miséria e da Aids?
As crianças fotografadas por Sebastião Salgado, diante dessa realidade, ficam sem norte na
busca da sua identidade africana.
A Literatura Infantil, por ter obras que se destinam a um público ainda em formação,
pode ajudar a criança na superação dos seus traumas e medos, pois o diálogo que ela estabelece
com o livro, no momento da leitura, possibilita-lhe reelaborar esses mesmos sentimentos,
desfazendo-se do que antes a incomodava. O seu caráter lúdico auxilia o indivíduo na busca do
auto-conhecimento, pois ela pode dar o suporte mínimo que as crianças necessitam para se
reconhecerem como indivíduos.
A Literatura Infantil tem a possibilidade de proporcionar aos leitores de diferentes
nações conhecerem uma outra cultura, além de servir como embrião na busca da identidade
africana das crianças brasileiras e luso-africanas, afinal o seu caráter de agente formador intenta
proporcionar esse suporte ao leitor. O conhecimento popular e a oralidade, na África, se fundem
e formam um substrato onde a literatura busca sua fonte de inspiração. As histórias publicadas
pela coleção Mama África baseiam-se na cultura dos povos desses países.
52

A editora Língua Geral decidiu lançá-las no Brasil, pois acredita ser o Brasil um país
culturalmente semelhante a Angola e Moçambique. As crianças luso-africanas, assim como as
africanas que moram no Brasil, beneficiam-se desses textos, essas porque estão recebendo de
primeira mão os livros e aquelas porque estão tendo sua cultura projetada em outro país, dando
uma dimensão que nem elas imaginam. Os leitores, que por sua vez não se encontram em
nenhum dos casos citados, tem, dessa forma, a oportunidade de ampliar seus horizontes
culturais.
A idéia presente na obra O filho do vento, de que o ser passa por um processo de
amadurecimento, faz o leitor pensar que o mesmo acontecerá com ele. A criança irá crescer, se
desenvolver e somente na maturidade é que terá a certeza e segurança sobre suas atitudes, seus
conceitos e valores. Logo, o sentimento da africanidade passará por um processo semelhante,
afinal quando for adolescente ele se questionará sobre sua vida, seus hábitos, valores, crenças e
religiosidade. Questionará se tudo aquilo que a família e a sociedade lhe ensinaram tem a ver
com a sua individualidade. Posteriormente vem a maturidade, e, com ela, a certeza de que seus
valores são correspondentes à sua cultura, devendo, portanto, serem respeitadas em sua
individualidade.
Diante da leitura de O beijo da palavrinha, a criança se depara com o sentimento da
frustração, que ocorre durante a leitura, pois o indivíduo pensa que a menina vai se salvar,
entretanto o que ocorre é que ela morre, sendo que poderia salvar-se pelas mãos do estrangeiro.
Analisando sob a perspectiva de leitura do escritor ou do leitor pode-se imaginar que Maria
Poeirinha, ao aceitar a ajuda do estrangeiro, estaria subestimando sua capacidade de reerguer-se
com as próprias pernas. Ambos podem, ainda, ler sob a ótica de que sendo esta a única
possibilidade, então porque não morrer e começar uma vida nova?
Recordando o projeto de moçambicanidade, Mia Couto127 diz que uma das funções da
literatura é proporcionar aos africanos a possibilidade de encontrarem-se, de buscarem sua
identidade, fora dos paradigmas do ocidente. Todavia, a perspectiva presente nos textos para
auxiliar na busca da africanidade só se torna sutil e perceptível a olhos mais atentos. As
mudanças provocam medo, deixando as pessoas vulneráveis, como foi com a menina, sendo,

127
Entrevista do escritor Mia Couto, referida na nota n° 13, do capítulo 1, p. 14.
53

talvez, este o cotidiano de muitos moçambicanos. A africanidade, sentimento de pertença àquela


cultura, estaria dentro de cada indivíduo cabendo a cada um saber descobri-la.
Os custos sociais e as conseqüências de uma guerra são arcadas pelos indivíduos. Assim
como a independência proporciona liberdade, exige também maior responsabilidade de todos. A
obra, talvez, queira mostrar que Moçambique agora independente não tem porque ficar à mercê
de estrangeiros. Os cidadãos devem se reerguer, o país deve crescer, se desenvolver acreditando
no seu próprio esforço.
Por outro lado, a tristeza que a morte da menina passa ao leitor, já que havia uma
possibilidade de ela se salvar, pode representar as marcas de ressentimento dos moçambicanos
com toda uma história de opressão, que precisa ser reelaborada constantemente.
O homem que não podia olhar para trás é uma adaptação de uma lenda moçambicana,
em que o leitor percebe a preocupação do narrador em mostrar os hábitos e costumes dos
moradores, preservar aspectos geográficos como a descrição das cidades e o deserto, ocorrendo
um processo de identificação entre quem lê e a obra, já que os leitores podem reconhecer
hábitos e costumes que lhe são próprios. O fato de o personagem ter encontrado Halima, que faz
ele se adaptar a uma outra cultura, mostra que é possível aos luso-africanos reconstruírem suas
identidades a partir da realidade em que vivem, mesmo sendo em outro país, como o Brasil. Há
que se transformar, entretanto, “velhos saberes em novas formas”.
A leitura da obra Debaixo do arco-íris não passa ninguém é um verdadeiro resgate da
literatura popular de uma determinada província moçambicana, auxiliando na busca da
africanidade na medida em que retoma o folclore. A criança, ao ler os poemas, pode perceber
que a sabedoria presente neles já lhe é conhecida, porque coincide ou é próprio da sua cultura.
Ela percebe que a sabedoria do povo é importante e também é Literatura. Logo, pode dar-se
conta, de que todo o conhecimento oriundo da cultura popular representa sua própria, devendo
ser valorizada e respeitada.
Em virtude do que foi exposto, através da leitura e, em especial, a dessas obras, os
leitores têm a possibilidade de reinventarem a africanidade, pois há uma preocupação dos
escritores em perpetuar a identidade, a sabedoria do povo, bem como a cultura dos negros luso-
africanos, inclusive os que moram num país distante, como o Brasil.
Ao ter suas obras publicadas em outra nação, os escritores propagam a literatura do seu
país, permitindo, assim, aos indivíduos e, principalmente, às crianças, que não têm origem ou
54

antepassados africanos, conhecerem uma nova cultura. Os africanos ganham uma dimensão
notória, através da Literatura, projetando a África para o mundo, que passa a conhecê-la e
respeitá-la.
55

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58

ANEXOS
59

O Homem chamado Namarasotha128


Uma lenda de Moçambique

Havia um homem que se chamava Namarasotha. Era pobre e andava


sempre vestido com farrapos. Um dia foi à caça. Ao chegar ao mato,
encontrou uma impala morta. Quando se preparava para assar a carne do
animal apareceu um passarinho que lhe disse:
- Namarasotha, não se deve comer essa carne. Continua até mais adiante
que o que é bom estará lá.
O homem deixou a carne e continuou a caminhar. Um pouco mais adiante
encontrou uma gazela morta. Tentava, novamente, assar a carne quando
surgiu um outro passarinho que lhe disse:
- Namarasotha, não se deve comer essa carne. Vai sempre andando que
encontrarás coisa melhor do que isso.

Ele obedeceu e continuou a andar até que viu uma casa junto ao caminho.
Parou e uma mulher que estava junto da casa chamou-o, mas ele teve
medo de se aproximar pois estava muito esfarrapado.
- Chega aqui!, insistiu a mulher.
Namarasotha aproximou-se então.
- Entra, disse ela.
Ele não queria entrar porque era pobre. Mas a mulher insistiu e
Namarasotha entrou, finalmente.
- Vai te lavar e veste estas roupas, disse a mulher.
E ele lavou-se e vestiu as calças novas. Em seguida, a mulher declarou:
- A partir deste momento esta casa é tua. Tu és o meu marido e passas a
ser tu a mandar.

E Namarasotha ficou, deixando de ser pobre.


Um certo dia havia uma festa a que tinham de ir. Antes de partirem para a
festa, a mulher disse a Namarasotha:
- Na festa a que vamos quando dançares não deverás virar-te para trás.
Namarasotha concordou e lá foram os dois. Na festa bebeu muita cerveja
de farinha de mandioca e embriagou-se. Começou a dançar ao ritmo do
batuque. A certa altura a música tornou-se tão animada que ele acabou por
se virar.

128
http://www.ponto.altervista.org/Lugares/Lendas/namara.html Acesso em 31 jan. 2008
60

E no momento em que se virou, ficou como estava antes de chegar à casa


da mulher: pobre e esfarrapado.

NOTA:
Todo o homem adulto deve casar-se com uma mulher de outra linhagem. Só assim é respeitado como
homem e tido como «bem vestido». O adulto sem mulher é «esfarrapado e pobre». A verdadeira riqueza
para um homem é a esposa, os filhos e o lar. Os animais que Namarasotha encontrou mortos simbolizam
mulheres casadas e se comesse dessa carne estaria a cometer adultério. Os passarinhos representam os
mais velhos, que o aconselham a casar com uma mulher livre. Nas sociedades matrilineares do Norte de
Moçambique (donde provém este conto), são os homens que se integram nos espaços familiares das
esposas. Nestas sociedades, o chefe de cada um destes espaços é o tio materno da esposa. O homem
casado tem de sujeitar-se às normas e regras que este traça. Se se revolta e impõe as suas, perde o seu
estatuto de marido e é expulso, ficando cada cônjuge com o que levou para o lar. Cumprindo sempre o que
os passarinhos lhe iam dizendo durante a sua viagem em busca de «riqueza», Namarasotha acabou por
encontrá-la: casou com uma mulher livre e obteve um lar. Mas por não ter seguido o conselho da mulher,
perdeu o estatuto dignificante de homem adulto e casado.
61

Yahoo! Mail – simone_spadoni@yahoo.com.br Página 1 de 2

De: Eduardo Coelho <eduardo@linguageral.com.br>


Assunto: Re: Coleção Mama África.
Para: "simone spadoni" <simone_spadoni@yahoo.com.br>
Data: Quarta-feira, 23 de Janeiro de 2008, 14:10
Cara Simone:

Os autores publicaram os seus livros na coleção Mama África sob convite da editora Língua Geral. Nós
que desenvolvemos o projeto e fizemos os convites. Obviamente que há interesse de os autores
africanos de língua portuguesa publicarem no Brasil: nossa língua é comum, e o Brasil certamente
tem grande importância para eles, não só por causa da música (sobretudo a bossa nova e o
tropicalismo), mas também pela literatura.

Atenciosamente, Eduardo.

On 1/23/08 1:43 PM, "simone spadoni" <simone_spadoni@yahoo.com.br> wrote:

Olá!!

Sou a Simone e estou fazendo um trabalho sobre a coleção Mama África. Entrei em contato com
vocês para saber se as obras são publicadas em Angola. E agora, gostaria de saber qual o objetivo
dos escritores em elegerem o Brasil para a publicação das suas obras? Mercado editorial?
Comunidade angolana?

Obrigada pela atenção,

Simone Spadoni

Eduardo Coelho <eduardo@linguageral.com.br> escreveu:

Cara Simone:

Estes livros são comercializados, por enquanto, apenas no Brasil, mas pretendemos lançá-los em
Portugal, Angola e Moçambique. Ficamos todos muito felizes por saber do seu interesse pela coleção
Mama África.

Atenciosamente,

Eduardo Coelho

LÍNGUA GERAL LIVROS LTDA.


Rua Jardim Botânico, n. 600 / salas 501 a 503 ˆ Jardim Botânico
Rio de Janeiro ˆ RJ ˆ Brasil
22461-000
Tel./Fax (55 21) 2259-3108
eduardo@linguageral.com.br
www.linguageral.com.br

http://br.f4.mail.yahoo.com/ym/ShowLetter?MsgId=8197_535682_11446_1446_2... 21/05/2008
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Yahoo! Mail – simone_spadoni@yahoo.com.br Página 2 de 2

On 1/12/08 12:10 AM, "simone spadoni" <simone_spadoni@yahoo.com.br> wrote:

Olá!

Chamo-me Simone Spadoni, faço Pós-Graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul -
Porto Alegre - Brasil e estou pesquisando sobre Literatura Infanto-juvenil Angolana e Moçambicana,
objeto de estudo da minha monografia.

Li os livros da coleção Mama África e fiquei encantada com as histórias, os recursos gráficos e
visuais. (Parabéns aos escritores e ilustradores) Então me interessei em pesquisar sobre essa coleção.

Escrevo para vocês pois, gostaria de saber se há alguma recepção desses livros em Angola ou
em Moçambique ou se os livros são comercializados apenas no Brasil. E se são vendidos nesses
países, chega até as escolas?

Desde já, agradeço a atenção.

Simone Spadoni.

http://br.f4.mail.yahoo.com/ym/ShowLetter?MsgId=8197_535682_11446_1446_2... 21/05/2008
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Crianças angolanas
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Crianças moçambicanas
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