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AS ÁGUAS E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM TEMPESTADES, DE

KAREN BLIXEN

por

Thayná Caldas Moreira

Trabalho apresentado como requisito parcial de


avaliação da disciplina Literatura e Identidades
Culturais, ministrada pela Prof.ª Stefania Chiarelli.

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


1º semestre de 2021

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a importância das águas na construção
de uma identidade, e como a sociedade lida com o “eu” nascido em contato com o mar.
Para isso, utilizo o conto Tempestades (Tempests, no original) da autora dinamarquesa
Karen Blixen, publicado originalmente na coletânea Anecdotes of destiny (1958). Na
história, Malli é uma jovem atriz que embarca com a companhia de teatro rumo
Christianssand para apresentar a peça A tempestade, de William Shakespeare, mas é
surpreendida quando uma tormenta coloca em risco a vida de todos a bordo. Tomada
por uma coragem sobre-humana, ela lidera a tripulação através da tempestade, salvando
os marinheiros e a companhia, e tornando-se uma grande heroína – o que logo desperta
nela uma insegurança por saber que o evento não ocorreu exatamente como as notícias
descreviam. À luz de teorias pós-modernas (BLUMENBERG, 1990; HUTCHEON,
1991), o trabalho não apenas analisa as relações entre a obra original shakespeariana e a
adaptação de Blixen, mas também observa a influência do mar na descoberta e na
construção da identidade de Malli, tendo em vista seu passado como filha de um
importante capitão escocês. Por outro lado, também é considerada as relações da
protagonista com as cidades por onde ela passa, e a recepção dos cidadãos destes locais
diante das escolhas da protagonista.

Palavras-chaves: pós-modernismo; teatro shakespeariano; identidade.

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Quem vai, vai porque precisa;
Quem fica, fica porque não pode ir:
quem fica é quem sofre.
– Não-lugar, Ellen Oléria (2009)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A canção de Ellen Oléria apresentada na epígrafe deste trabalho menciona um


“não-lugar” entre idas e vindas. É natural que a partida seja descrita como necessidade:
ninguém, em suposta sã consciência, deixa o conforto e a segurança sem motivos. Mas
de qualquer forma, quem é deixado para trás não pode acompanhar por alguma razão, e
nisso um sofrimento pode nascer. Todavia, são muitas as maneiras que essa relação
pode ser compreendida – e se o conforto e a segurança forem prisões? Por que o ato de
loucura seria partir, e não permanecer naquilo que te confina? E se quem é deixado para
trás não vai por medo, o sofrimento é realmente pela partida ou pela falta de coragem?
Quem é deixado para trás não pode ir por fraqueza ou por não ser chamado?
Essas deliberações são necessárias quando se pensa o conto Tempestades, da
autora dinamarquesa Karen Blixen1 (1885-1962). Quando sua protagonista se vê em
conflito entre escolher a segurança de um casamento bem feito e a vida em trânsito
como atriz, o que sempre fora seu sonho, a “sã-consciência” varia de acordo com as
prioridades de cada um: alguém mais tradicional trataria como lógico permanecer em
matrimônio; alguém mais progressista talvez escolhesse o teatro. Mas este é apenas um
dos questionamentos que Blixen constantemente traz aos seus personagens, escrevendo
histórias “onde o destino, que move os fios da meada, é sempre o tema principal”
(JOHNS, 2018, p. 202).
Contudo, o destino não se dá por um mero acaso, um golpe de sorte: o destino
traz eventos aparentemente menores que se agrupam em um apogeu, transformando por
completo a vida de todos. Os personagens não têm controle sobre o que ocorre, até
serem expostos ao momento em que é impossível não tomar uma decisão. Em outras
palavras:

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Karen Blixen também pode ser reconhecida pelos pseudônimos Isak Dinesen (utilizado em países de
língua inglesa), Tania Blixen (utilizado em países de língua germânica), Osceola e Pierre Andrézel.

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Karen Blixen conduz seus personagens quase como se fosse a hábil
condutora de marionetes que, de repente, adquirem vida própria e lhe
fogem do controle, um pouco, talvez, como Deus e suas criaturas
(JOHNS, 2007, p. 471)

Em Tempestades, o destino faz com que a realidade seja bruscamente alterada


pela ficção: uma companhia de teatro em direção à cidade de Christianssand para
apresentar A tempestade, de William Shakespeare, é surpreendida no caminho por uma
monção. No entanto, é a coragem sobre-humana da protagonista Malli que anima os
marinheiros a ultrapassarem a tormenta, levando todos em segurança até o porto. Apesar
de ser recebida como uma grande salvadora, despertando a admiração de todos por sua
atitude, o grande feito acaba por desenvolver um peso em sua consciência ao perceber
que, enquanto todos viam sua coragem como um grande ato de heroísmo, ela sabia que
havia entrado, na verdade, em uma espécie de transe no qual acreditou estar
representando sua personagem Ariel, que na peça é responsável por controlar a
tempestade que dá nome à história.
Contudo, analisando o conto com atenção, percebemos que o “transe” é,
também, um encontro com a identidade da protagonista. Ela, como atriz, viu nas águas
tempestuosas a oportunidade de libertar a sua personalidade dos palcos, ao invés de
esconder-se dentro das regras da pequena cidade de Arendal, onde vivia, onde era
apenas a filha abandonada de um capitão escocês, ou a garota exótica e peculiar que
andava na companhia de outros atores excêntricos. No mar, Malli podia apenas ser, sem
as pressuposições de terceiros.
Portanto, o que o presente trabalho propõe é observar a importância das águas
em Tempestades na construção de uma identidade, e como as pessoas em Arendal e
Christianssand lidam com o “eu” nascido em contato com o mar. Por se tratar de um
conto que adapta a peça shakespeariana, dedico um capítulo para falar sobre o enredo da
peça: é de suma importância compreender a obra original para perceber os paralelos que
a autora propôs ao criar Malli. Em seguida, analiso o conto de Blixen propriamente, à
luz da peça mas também compreendendo como a narrativa se desenvolve independente
da fonte. Por fim, teço uma análise à luz de teorias de Hans Blumenberg (1990) e Linda
Hutcheon (1991) sobre o papel do mar/da tempestade e qual a participação de Malli em

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contato com as águas; como seus antepassados conseguem prever as escolhas que ela
precisará fazer, visto o pai que era um renomado capitão; e, por último, como as pessoas
ao redor recebem suas escolhas.

A TEMPEDADE DE WILLIAM SHAKESPEARE

A tempestade (no original, The Tempest) é considerada a última peça escrita pelo
dramaturgo inglês William Shakespeare, e apresenta uma grande gama de possíveis
interpretações, algumas delas à luz de teorias pós-modernas que não teriam sido nem
mesmo imaginadas na época de seu criador. Antes de nos aprofundarmos nessas leituras
– e conectá-las ao conto que efetivamente analisaremos no presente trabalho – é
importante ter em mente sobre o que se trata o enredo da peça.
Protagonizada por Próspero, antigo Duque de Milão, A tempestade se inicia com
o fenômeno homônimo levando a corte de Nápoles até a ilha onde o protagonista havia
buscado exílio com sua única filha após um golpe aplicado por seu próprio irmão. Com
o auxílio dos poderes de Ariel, um espírito mágico tornado escravo por Próspero, a
tripulação e seus passageiros são levados à terra firme separados, fazendo cada um deles
acreditar que são os únicos sobreviventes do naufrágio.
No primeiro núcleo, temos apenas Ferdinando, o príncipe de Nápoles, acolhido
por Próspero em um plano de fazê-lo se apaixonar e assim futuramente se casar com sua
filha Miranda; no segundo, temos Antônio, irmão de Próspero, arquitetando um plano
para assassinar seus acompanhantes, o atual rei Alonso e seu conselheiro Gonçalo, para
assim garantir a coroa do reino ao seu filho, Sebastião (lembrando que, para este grupo,
Ferdinando – legítimo herdeiro – estaria morto); e por fim, Trínculo e Estefano, dois
membros de menor status da corte de Alonso que esbarram na criatura Caliban, também
escravizada por Próspero, com o plano de explorar a ilha e, assim, tornarem-se reis do
local. A criatura, por sua vez, se aproveita dos estranhos e os convence de que apenas
matando Próspero conseguiriam o controle da ilha, e com isso arquiteta a sua própria
vingança contra o Duque.
Para alguns críticos, por se tratar da última peça de Shakespeare, A tempestade
pode ser compreendida como uma espécie de analogia ao teatro e ao processo de criação
artística (ver GALVÃO, 2013). Isso porque o relacionamento entre Próspero e Ariel se

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assemelha ao de um dramaturgo e diretor, ou diretor e elenco, visto que Próspero
articula as tramas enquanto Ariel as coloca em prática. Um exemplo disso é a própria
tempestade que nomeia a história: Próspero, percebendo que a tripulação do navio era
composta por seus algozes, elabora o plano e ordena que Ariel o execute:

PRÓSPERO – Você executou, espírito, a tempestade que lhe


encomendei? Nos mínimos detalhes?
ARIEL – Em todos os seus artigos, cláusulas e itens. Enfiei-me a bordo
do navio do Rei; ora na proa, ora no convés, no tombadilho, em todos
os camarotes, em todo canto eu cintilei, enchi-os de pasmo, às vezes
dividindo-me e queimando em vários lugares. No mastaréu, nas vergas,
no gurupés, lá estava eu, centelhas distintas, depois reencontradas,
unidas numa só. Os relâmpagos de Júpiter, precursores dos terríveis
trovões, não teriam sido mais momentâneos; fui mais rápido que a
visão. O fogo e os estrondos crepitantes e sulfurosos pareciam sitiar até
mesmo o poderosíssimo Netuno, e faziam estremecer suas corajosas
ondas, sim, faziam seu medonho tridente tremer (SHAKESPEARE,
2013, p. 15)

Contudo, o que se inicia como vingança aos poucos se transforma em um plano


de libertação. Proteger Ferdinando, ainda que garantisse um casamento entre o príncipe
e sua filha, também garantia que Alonso, o rei, mostrasse gratidão à Próspero. Tendo
Ariel ao seu lado, o Duque também podia provar que Antônio havia planejado o
assassinato do rei, assim conseguindo mais um motivo para ter o seu ducado de volta.
Desta forma, também podemos ver as relações com a produção artística: aquilo que é
elaborado pelo criador/diretor/dramaturgo pode alcançar desfechos não imaginados ou
esperados, visto que a peça pode sofrer transformações nas mãos dos atores e sob a
visão de seus expectadores.
Isso explica porque, em leituras influenciadas pelo pós-modernismo e sua
tendência de descentralizar narrativas, trazendo da margem pontos de vistas
anteriormente apagados ou esquecidos (HUTCHEON, 1991), observam-se as relações
de opressor/oprimido entre Próspero e Ariel, Próspero e Caliban, e Ariel e Caliban.
Logo após a criação da tempestade, Ariel tenta negociar sua liberdade e Próspero a

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recusa, alegando que o espírito lhe devia ser grato por tê-lo salvado da antiga líder da
ilha e lhe dado um “propósito”, dizendo que apenas o libertaria quando não precisasse
mais de seus poderes. Já Caliban, a todo tempo lhe é dito que devia ser grato por ter sido
ensinado a língua de Próspero e Miranda, por estes terem tentando torná-lo mais
“civilizado”, e que por não ter demonstrado essa esperada gratidão (pelo contrário,
Caliban tenta violentar Miranda numa tentativa de atacar também Próspero), é
maltratado e torturado pelo Duque. Ariel e Caliban são duas faces de uma mesma
moeda: enquanto Ariel segue as ordens à espera do dia em que Próspero não precisará
mais de seus serviços, Caliban é rebelde e nunca cessa em planejar uma forma de
conquistar sua liberdade, ainda que por meio da violência. Porém, as diferentes reações
à Próspero não mudam o fato de serem oprimidos por ele. Por outro lado, Ariel, tendo
os favores de seu “mestre”, sente-se no direito de vigiar Caliban, maltratá-lo e
constantemente atrapalhar seus planos, ignorando uma realidade alternativa em que
poderia ajudar a criatura a derrubar Próspero e, assim, conseguir sua liberdade. Afinal,
ambos são escravizados pela mesma pessoa.
Além disso, tanto Próspero quanto Estefano e Trínculo representam fielmente o
papel do colonizador europeu que, ao alcançar terra nova, quer se proclamar rei
ignorando as lideranças já existentes no local, apagando as culturas e línguas
transmitidas, e ainda acreditando estarem à serviço de um suposto bem maior. O
desfecho dado a Ariel e Caliban também mostra uma crença eurocêntrica sobre a
escravidão: obedeça, e será recompensado: Ariel é de fato libertado ao final da peça;
rebele-se e será punido: Caliban, por outro lado, permanece escravo. Em seu último
momento é retratado ainda servindo Próspero e alegando que será sábio dali em diante,
buscando cair nas boas graças de seu senhor (SHAKESPEARE, 2013, p. 76).
As interpretações e leituras de A tempestade são amplas, mas por que estas aqui
apresentadas são necessárias para nosso entendimento do conto Tempestades, de Karen
Blixen, e por que compreendê-las auxilia em nossa leitura sobre as águas? A peça
original pouco se relaciona com o mar, pois toda a trama ocorre em terra. O naufrágio é
apenas parte do plano de Próspero, em nada altera os personagens e suas identidades ou
visões de mundo. Porém, o mesmo não pode ser dito sobre a história criada por Blixen.
Portanto, seguimos agora para o conto, tendo em mente que três personagens da história
principal serão de suma importância: Próspero, Ariel e Miranda.

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A TEMPESTADE DE KAREN BLIXEN

Tempestades se inicia com uma introdução a Herr Soerensen, diretor de teatro e


ator renomado que, com seu espírito independente, prefere ter total controle sobre as
próprias peças em palcos mais humildes a se submeter às grandes apresentações sem
que seu espírito criativo pudesse se manifestar livremente. Já em sua velhice, ele decide
realizar o sonho de protagonizar sua própria versão de A tempestade, colocando-se
como Próspero e à procura de atores para os outros personagens. Apenas por essa
introdução, já é possível perceber a primeira semelhança entre Soerensen e o
protagonista de Shakespeare: ambos são arquitetos de tramas e enredos; ambos
precisam sentir que controlam a narrativa, ainda que não possam fazer todo o trabalho
sozinhos.
Na busca por seus atores, Soerensen coloca particular afinco em encontrar a
pessoa perfeita para Ariel. Após experimentar seus melhores atores, Soerensen descobre
o espírito mágico em uma jovem recém-ingressada. Nas transposições mais tradicionais,
Ariel é um personagem masculino, mas aqui Soerensen decide “desconsiderar o sexo da
pupila” (BLIXEN, 2018, p. 66), reflexo de uma versão de Ariel que, na vida real,
ganhou maior popularidade também diante das leituras pós-modernas da peça.
Soerensen decide orientar a jovem, chamada Malli Ross, em sua missão de “esquecer
tudo em nome de [William Shakespeare]” (idem, p. 67) e se tornar Ariel em pessoa,
presumindo que a transformação da pupila em personagem se daria inteiramente por
suas mãos como tutor – tal qual Próspero acredita que seus planos, mesmo que
executados por intermédio de Ariel, sejam derivados puramente de seus estratagemas.
Malli, por sua vez, é a verdadeira protagonista do conto; embora a história
comece com Soerensen, Tempestades é centrado nela, um contraponto interessante
quando pensamos que, na peça, é Ariel quem tem os poderes necessários para fazer a
história acontecer. Sem Ariel, Próspero não conseguiria sua vingança, tampouco sua
libertação. O conto de Blixen traz para o centro uma personagem que é de fundamental
importância, mas é constantemente negligenciada na peça original. Portanto, Malli, e
não Soerensen, é quem de fato movimenta a narrativa. E é Malli quem estabelece a
relação com as águas que queremos discutir neste trabalho, iniciando-se por conta de
seu pai, que

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fora o capitão escocês, Alexander Ross, cujo barco, vinte anos antes,
sofrera avarias a caminho de Riga e tivera de atracar para fazer reparos
por todo o verão no porto da cidade. Ao longo desses meses, (...) [o
capitão] apaixonou-se e casou com uma das garotas mais encantadoras
que havia por ali, a filha de dezessete anos de um inspetor alfandegário.
(...) Perto do fim do verão o navio do capitão ficou pronto, e ele deu um
abraço e um beijo em sua jovem noiva, deixou uma pilha de moedas de
ouro (...) e prometeu-lhe que voltaria antes do Natal para leva-la junto
com ele à Escócia. (...) Fora um só com ela: agora tornava-se um só
com sua embarcação. Desde esse dia, ninguém nunca mais viu nem
ouviu falar dele (BLIXEN, 2018, p. 69-70)

Por viverem em uma cidade portuária pequena, Arendal, Malli cresce com os
rumores sobre seus pais, em vista de que sua mãe havia sido (possivelmente)
abandonada pelo capitão. Tomava partido por sua mãe, recusando-se a permitir que a
ofendessem alegando que a matriarca fora ingênua e se entregara a um homem mau.
Quando sozinha, contudo, Malli sonhava com a possibilidade de reencontrar o pai, e
imaginava se seria parecida com ele. Nesse ponto, a narrativa traça pontos de
comparação ao descrever que Malli “navegava” por seus sonhos – no caso, de se tornar
atriz – “tão audaciosa e segura quanto se o capitão Ross em pessoa estivesse ao leme”
(BLIXEN, 2018, p. 73), e que “podia muito bem ser filha de um pirata, mas de modo
algum consentiria em ser o prêmio de um pirata” (idem, p. 73). Ainda que não tivesse
sido criada por ele, o conto apresenta momentos em que Malli incorpora os trejeitos de
um capitão de navio como se fosse algo transmitido pelo sangue. Isso encontra o seu
apogeu durante a tempestade que assola a companhia de teatro.
Quando a peça está pronta, a trupe se organiza para viajar até Christianssand
pelo navio Sofie Hosewinckel. No entanto, são surpreendidos no caminho por uma
tempestade que devia ter destruído a embarcação e condenado todos os passageiros à
morte. No entanto, após um marinheiro se ferir na tentativa de salvar o barco, Malli se
oferece para substituí-lo e, assim, lidera a tripulação. Contra todas as probabilidades, e
sendo a única mulher no navio, Malli consegue levar o navio em segurança até o porto.
Os eventos são informados ao leitor através de uma publicação de jornal, que destaca:

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É compreensível que o espírito inquebrantável de uma donzela numa
hora de necessidade pudesse prevalecer e fortalecer nossos extenuados
marujos. Mas é praticamente inconcebível que uma jovem, jamais posta
à prova na vida do mar, pudesse se achar em posse de forças tão
poderosas. Um jovem marujo comum, de nome Ferdinand Skaeret,
merece neste ponto um notável reconhecimento. Desde o primeiro
momento em que ficou lado a lado de Mamzell Ross, e ao longo de toda
a noite tempestuosa, cumpriu cada uma de suas ordens (2013, p. 80).

Como o trecho explicita, Malli nunca esteve no mar, ou pelo menos nunca teve
qualquer experiência tempestuosa no mar para saber como proceder no caso de uma
catástrofe como a que havia vivenciado. É o leitor, sabendo de seu parentesco com o
capitão Ross, que infere ter sido um caso de habilidade herdado pelo sangue: sendo filha
de capitão, ela naturalmente saberia agir como uma, mesmo nunca tendo visto um em
ação.
Ao chegar em Christianssand, Malli é recebida como heroína não apenas pela
cidade, mas também pela família Hosewinckel, dona da embarcação que salvara.
Nomeada após sua falecida filha caçula, Jochum Hosewinckel viu o ato de bravura de
Malli como uma forma de ter tido sua própria filha salva, evitando assim que ela fosse
perdida pela segunda vez. Já a cidade vê em Malli e Ferdinand os dois grandes heróis,
sendo o segundo criado na própria cidade e advindo de uma família com dificuldades
financeiras. Hosewinckel, então, garante que a família do rapaz nunca mais passe
necessidades.
É claro que, com a comoção, a peça de Soerensen fica em segundo plano. Ele,
logo compreendendo seu novo papel, já não pensava que a apresentação de sua vida
havia sido comprometida, e sim que ele havia criado Malli, e que ela lhe pertencia
(BLIXEN, 2013, p. 83), assim como Próspero se sentia em relação à Ariel. Ariel já era
um espírito mágico antes de Próspero, mas o Duque apenas lhe confere importância
quando ele lhe dá um propósito. E repare: o leitor, pensando na ligação de Malli com o
capitão, conclui que suas ações foram movidas por uma força consanguínea; Soerensen,
o mestre, entende que Malli havia ganhado força a partir de seus esforços em torná-la a

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Ariel perfeita. Em ambos os casos, as ações de Malli são justificadas a partir da
influência de um homem.
Recebida pela família Hosewinckel, Malli conhece Arndt, filho mais velho de
Jochum, por quem se apaixona. Nesse momento, a protagonista parece se tornar
Miranda: seus sentimentos por Arndt se dão a partir do momento em que o vê, sem
conhecê-lo, e mesmo quando se aproxima o suficiente a ponto de saber mais sobre o que
está sob a superfície do rapaz, ela sente o ímpeto de “salvá-lo” e “protegê-lo”. Ambas as
atitudes são semelhantes às de Miranda ao conhecer o príncipe Ferdinand na peça, após
ser levado sozinho à ilha por Ariel. Rapidamente os dois se tornam noivos, colocando
Malli na posição que sua mãe um dia havia se encontrado diante do capitão: os
cochichos indicando que ela devia ser apenas uma aventureira aproveitando-se da
admiração e gratidão da cidade para conseguir um bom casamento (BLIXEN, 2018, p.
95).
Contudo, quando é revelado à Malli que Ferdinand, o marujo que a havia
auxiliado durante a tempestade, havia morrido, ela é impactada com a realidade de sua
situação: aquilo que ela vivia em Christianssand, em terra, era tanto uma encenação
quanto a peça que havia ensaiado por tanto tempo com Soerensen. Porém, ali ela
interpreta um papel que não lhe pertence – Malli é Ariel, não Miranda. Malli realiza e
concretiza fenômenos espetaculares, tal qual o espírito que havia encarnado durante a
tempestade.
Ao final do conto, ela abandona Arndt e Christianssand com a companhia de
teatro, revelando que não havia sido sorte, tampouco o sangue de seu pai que a levaram
a salvar o barco: em meio ao caos, aos gritos de “Está tudo perdido” e “Tende
misericórdia” (BLIXEN, 2018, p. 126), ela havia sido Ariel. E tal qual na peça Ariel
controla a tempestade, Malli havia controlado também – ou pelo menos, acreditado
nisso. Em nenhum momento, ela imaginou que poderia morrer; em nenhum momento
teve medo. O mar havia sido seu palco, onde poderia vivenciar toda sua glória. A calma
após a tormenta, ela compreendera, havia sido apenas um sinal de dever cumprido, e a
ovação da cidade havia sido como os aplausos que antecedem o fechar das cortinas.
Mas depois disso, é hora de recomeçar a peça em um novo local ou para um novo
público, e isso significa que Malli não pode permanecer em Christianssand: se ela,
como atriz, havia se encontrado interpretando Ariel no mar, então é para lá que devia

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retornar e executar seu papel, a caminho da próxima cidade que a receberia com
aplausos e adulações, mas onde tampouco permaneceria.

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE A PARTIR DAS ÁGUAS

Em Tempestades, a importância das águas não é revelada ao leitor até o


derradeiro final, quando Malli relata o que realmente aconteceu durante a tempestade.
Não sabemos como os Hosewinckel reagiram à carta deixada pela protagonista, mas se
pensarmos em um ponto de vista cíclico, Malli toma uma atitude semelhante à de seu
pai no passado: por mais que algo bom esperasse por ele em Arendal – a esposa e sua
filha – ele devia retornar ao trabalho no mar.
Quando falamos das relações estabelecidas com as águas, de maneira geral,
podemos começar pensando em quem parte (para o mar, para a aventura, para o
desconhecido) e quem permanece (em terra, na segurança, no familiar). Malli e seu pai
pertencem à primeira categoria. Ainda que subam a bordo esperando encontrar terra
firme mais à frente, sabem que o mar guarda mistérios que mesmo suas imaginações
não podem prever. São as águas como o que há de mais suspeito, berço de deuses e
monstros marítimos, tempestades inesperadas, obstáculos que podem alterar o rumo de
seus planos (BLUMENBERG, 1990, p. 21). Afinal, é pelo mar que o barco de
Alexander Ross é danificado, forçando-o a parar em Arendal, encontrar o amor e
precisar abandoná-lo; é pelo mar que Malli é surpreendida por uma tempestade que a
transforma em heroína, ao invés de apenas chegar em segurança à cidade, realizar sua
peça e partir para a apresentação seguinte.
Contudo, apesar das adversidades, quem escolhe os mistérios do mar encontra
nisso até mesmo uma espécie de força motora. Ainda nas palavras de Blumenberg, “o
homem conduz a sua vida e ergue as instituições sobre terra firme, [mas] procura
compreender o curso da sua existência na sua totalidade (...) com a metáfora da
navegação temerária” (1990, p. 21). Alexander e Malli precisam do mar para encontrar
suas identidades. Em terra firme, podem ser apenas parte do que realmente são, ou nem
mesmo isso – no caso de Malli, por exemplo, com Arndt ela interpretava um papel que
não lhe pertencia, e ao qual não desejava pertencer.

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Além disso, Malli é uma atriz: foi no mar que ela encontrou vida interpretando
seu papel – duplamente como a filha de um capitão e como Ariel, a qual havia ensaiado
arduamente para ser. Já Alexander, como líder de uma tripulação, não o poderia mais
ser se tivesse permanecido em Arendal: que tipo de capitão não retorna ao mar?
Quem permanece, por outro lado, pode ter uma reação dupla: a primeira de
alívio por “[estar] na margem firme, fora de perigo, graças à capacidade de se manter à
distância” (BLUMENBERG, 1990, p. 32). Contudo, essa segurança se dá apenas
“graças a uma das suas propriedades inúteis: a de poder ser espectador” (idem, p. 32). O
papel de observar quem parte, ainda que se inicie com a sensação de alívio, pode
também derivar para a sensação de conformidade: Madame Ross nunca teria coragem
de partir, mas ainda assim havia aprendido a “[amar] o marido e nele [acreditar] sem
nem mesmo o compreender” (BLIXEN, 2018, p. 74). Ao perceber que sua filha seguiria
os passos do pai, concluiu que “fosse como punição ou recompensa, por toda a
eternidade tinha de amar e acreditar no que não compreendia” (idem, p. 74). Veja que,
apesar da dor de ver partir mais uma vez alguém que ama, vê-los sobrepujar o medo e ir
atrás de suas próprias essências também é motivo de alegria para Madame Ross. À sua
maneira, sente pelo marido e a filha o que ambos sentem pelo mar – atração por algo
que não compreendem. Mas diferente deles, ela consegue “viver sem” o mistério, e por
isso, ainda que a entristeça, consegue deixar marido e filha partirem “com uma
compreensão plena e terna” (idem, p. 75).
Sob outro ponto de vista, Malli e Alexander também alimentam o imaginário da
cidade de Arendal. Começando pelo pai, enquanto permanecia em terra, era visto como
um grande homem vindo da Escócia, por qual todas as garotas se apaixonaram e com
quem sonhavam se casar. A partir do momento em que vai embora deixando uma
esposa ainda grávida, é transformado em um monstro, um pirata, alguém sem honra;
Madame Ross, consequentemente, é uma figura ingênua que havia se entregado cedo
demais, sendo deixada com um bebê e algumas moedas de ouro. Malli, crescendo sob
esse ambiente, torna-se uma párea, à margem da cidade, duramente julgada e
ridicularizada, e ainda como atriz, era vista como “algo completamente exótico e em si
duvidoso” (BLIXEN, 2018, p. 74).
Contudo, a imagem de Malli em Christianssand se assemelha a de seu pai
quando chegara à Arendal: uma heroína que seria adorada e bem recebida por todos, e

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seu casamento com Arndt uma forma de manter o “troféu da cidade” por perto. Malli,
sempre mantida à margem em sua terra natal, havia sido levada ao centro das atenções
e, não apenas isso, ao centro das convenções: pois é claro, quem teria esperado que uma
garota de dezenove anos pudesse escolher outro caminho senão o casamento afortunado
com o herdeiro mais rico da cidade? Contudo, Malli é uma personagem ex-cêntrica, sob
a concepção de Linda Hutcheon (1991), pois “está ‘sempre alterando seu foco’ porque
não possui força centralizadora” (p. 96). Em outras palavras, ela nunca havia pertencido
ao centro, e por mais atraente que ele seja, Malli facilmente consegue se desvencilhar de
sua força, tomando outros rumos – algo que, para quem nunca pertenceu à margem, se
torna impossível de entender por completo. Talvez por isso Madame Ross, que foi
marginalizada com a partida de Alexander, consiga aceitar a atitude do marido e da
filha: porque ela, assim como os outros dois, não faz parte do centro.
Para Alexander e Malli, o que os leva ao centro é como sua relação com o mar
se estabelece: como capitão ou como atriz, seus feitos em alto-mar, sendo esse o
ambiente desconhecido para quem vive em terra, os tornam pessoas excêntricas, no
sentido “do insano ou, no mínimo, do alienígena” (HUTCHEON, 1991, p. 97) e, por
isso, chamam a atenção de todos. Contudo, enquanto estão em terra, é esperado dos dois
que continuem ali. Para quem pertence ao centro – e aqui, pensemos o centro como o
“padrão”, a “norma” – é aceitável uma grande aventura no mar se você sai vivo para
contar a história, acima de tudo como um grande herói. Mas não faz sentido, para eles,
ter a coragem de retornar à aventura ao invés de continuar na segurança. A própria Malli
reconhece isso em sua carta final à Arndt, ao dizer que “num ser humano o medo é belo,
e também vejo claramente que aquele que não sente medo está só, é rejeitado, é um
pária entre as pessoas. [E] eu não tive o menor medo” (BLIXEN, 2018, p. 126).
Dessa forma, quando retornam ao mar, Malli e Alexander se tornam, outra vez,
ex-cêntricos. Nesse sentido, pelo uso do prefixo simbolizando “algo que não o é mais”,
ou seja, Malli e Alexander não são mais pessoas “cêntricas” (padrões, normais), e sim,
novamente, seres que vivem às margens do centro, navegando em busca de aventuras e
ao encontro de si. No caso de Malli, é Soerensen quem a auxilia a chegar à conclusão de
partir, em um diálogo que resume a imagem que Malli carregaria dali em diante tendo
escolhido sempre retornar ao mar em busca de si:

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...disse Malli, depois de um minuto ou dois: ‘e o que ganhamos com
isso?’
‘O que ganhamos com isso?’, ele repetiu.
‘Sim’ (...) ‘Qual é a nossa compensação, Herr Soerensen?’
Herr Soerensen repassou a conversa dos dois, então repassou ainda mais
coisas, por aquela longa vida com base na qual deveria lhe responder.
‘Em compensação? Ai de nós, minha pequena Malli’ (...) ‘Em
compensação ganhamos a desconfiança do mundo... e nossa pavorosa
solidão. Nada mais’. (BLIXEN, 2018, p. 123)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A importância do mar em Tempestades se dá quando este é transformado em


palco para Malli, permitindo-a libertar o seu espírito artístico. Como atriz, não haveria
outro desfecho possível senão escolher retornar ao local onde esse espírito possa
permanecer liberto. Ainda que o resultado seja a “desconfiança do mundo” e,
consequentemente, estar à margem da sociedade, Malli é uma personagem ex-cêntrica, e
por isso consegue se ajustar aos cenários possíveis: estar no centro das atenções por
conta de seus feitos, e estar à margem por não seguir as convenções que lhe são
esperadas.
O mar é palco, e por se tratar de uma companhia de teatro, o mar é também onde
ocorre o encontro da identidade. Mesmo que ela não seja acometida por outras
tempestades no caminho, e mesmo não interpretando outros personagens que controlem
fenômenos da natureza, estar em uma embarcação indica que ela está em trânsito ao
encontro do seu “eu”. O mar também é seu local de refúgio: quando as cidades, em
terra, a colocam à margem, no mar ela pode ser centro, ou pelo menos pode colocar em
segundo plano as convenções da terra. No mar, tudo é possível, tudo é aceitável, pois se
trata da esfera do “incalculável, da ausência de lei” (BLUMENBERG, 1990, p. 22). Não
há limites para a imaginação: tudo pode acontecer no mar. E no teatro.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

OBRAS LITERÁRIAS:

BLIXEN, Karen. 'Tempestades'. In: _______. Anedotas do destino. Trad. Cássio de


Arantes Leite. São Paulo: SESI-SP editora, 2018.
SHAKESPEARE, William. A tempestade. Trad. Beatriz Viégas-Faria. São Paulo:
L&PM Pocket, 2013, 82p. (PDF)

OBRAS TEÓRICAS:

BLUMENBERG, Hans. A navegação como violação de fronteiras. In: Naufrágio com


espectador. Trad. Manuel Loureiro. Lisboa: Vega, 1990. (PDF)
_______. O que resta ao náufrago. In: Naufrágio com espectador. Trad. Manuel
Loureiro. Lisboa: Vega, 1990. (PDF)
GALVÃO, Tainah Lopes. A tempestade: o adeus de Shakespeare ao teatro.
Monografia (Licenciatura em Letras) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília.
Brasília, p. 24. 2013 (PDF)
HUTCHEON, Linda. Descentralizando o pós-moderno: o ex-cêntrico. In: Poética do
pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991, 330p. (PDF)
JOHNS, Per. A África Perdida de Isak Dinesen. In: BLIXEN, Karen. Sete narrativas
góticas. Trad. Claudio Marcondes. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
_______. Ficção e destino. In: BLIXEN, Karen. Anedotas do destino. Trad. Cássio de
Arantes Leite. São Paulo: SESI-SP editora, 2018.

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