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1ªFILA

A lm o d ó v ar al d esn u d o
por Wilson Silva

Referência fundamental em Tudo sobre atuado como atriz e que foi nesta situação
minha mãe, de Pedro Almodóvar, All about que ela conheceu o pai de seu filho.
Eve, de J. L. Mankiewicz - conhecido em ter­ Esse mergulho no universo da represen­
ras tupiniquins como A malvada e como Eva tação (ou da composição de narrativas)
al desnudo, na versão espanhola —é apenas o torna-se ainda mais profundo nas seqüências
primeiro elo de uma labiríntica cadeia de seguintes. Atendendo a um pedido de seu
citações e situações urdidas pelo diretor filho, Manuela o leva para assistir duas ence­
espanhol em torno de alguns temas que, ao nações: um protagonizada por ela própria, na
mesmo tempo, fazem de seu último filme clínica de transplante de órgãos em que tra­
uma deliciosa narrativa e propiciam reflexão balha; outra que tem à frente Huma Roja
sobre seu cinema. (Marisa Paredes) que faz Blanche Dubois,
Podemos dizer que a partir do momento em uma montagem de Um bonde chamado
em que o filme protagonizado por Bette Davis desejo, de Tennessee Williams - peça na
irrompe na tela do cinema - jogando-nos, qual, é importante ressaltar, Manuela já
através de uma série de associações, para den­ havia atuado, representando Esteia, ao lado
tro do universo televisivo, o mundo do teatro de seu ex-marido, o qual ela havia abando­
e o da literatura - somos como que convida­ nado há 18 anos.
dos a entrar num jogo composto por mulheres Essas duas seqüências, de certa forma,
transformadas em pandôricas caixas que reve­ prenunciam todo o desenrolar do filme na
lam e encobrem um tema que irá permear medida em que, depois de ver seu filho mor­
todo o filme: a autenticidade da representação rer atropelado logo após o espetáculo,
ou a exposição do “inautêntico” como única Manuela não só é levada a “vivenciar” a
forma possível de desnudar o “real”. mesma cena que havia representado, como
Como a grande maioria dos leitores já embarca em uma viagem motivada pela von­
deve ter visto, esta seqüência surge ainda no tade de satisfazer o último desejo do filho -
“prólogo” do filme e oferece ao espectador saber “tudo sobre seu pai” - uma busca que
uma série de informações sobre Manuela acaba fazendo com que ela se desnude por
(Cecilia Roth), a mulher sobre a qual, em completo, abrindo a possibilidade para refa­
breve, estaremos sabendo quase tudo. zer sua própria história.
Conhecemos seu filho Esteban na véspera de
seu 17° aniversário e ficamos sabendo que ele Mulheres que se fazem autênticas
está escrevendo um texto baseado nela - cujo Essa “pessoniana” viagem é marcada
título acaba sendo emprestado do filme de por uma das suas seqüências mais fascinantes
Mankiewicz —, como também somos infor­ e significantes do filme: saindo de um escuro
mados que Manuela, na sua juventude, havia túnel ferroviário, somos lançados num mer-
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gulho aéreo na polifônica e dissonante mesmo homem que fora casado com a pro­ (com a mesma intensidade) escandalosa­
Barcelona. Uma cidade que arranca sua tagonista; sua mãe (Rosa Maria Sardá) que mente inautêntico e acintosamente “natu­
beleza e “personalidade” exatamente daqui­ vive da falsificação de quadros de Chagall; ral”. Uma estratégia enunciativa que, diga-se
lo que parece causar mais estranheza em a atriz Huma Roja que mescla em seu de passagem (já que não é possível se deter
sua gritante hispanidad: a exuberância plás­ cotidiano falas e hábitos de seus perso­ neste tema), muitos já identificaram como
tica de Gaudi, o choque entre o ultra-mo- nagens; sua companheira de palco e amante sendo bastante recorrente em artistas gays
derno e o ancestral e a música e as cores dos Nina (Candeia Pena), uma viciada em dro­ que, através deste expediente, procuram
povos imigrados. gas que faz de sua vida um desempenho tão inverter a lógica que associa “normalidade”
Uma seqüência onde, diga-se de pas­ displicente quanto aquele que tem no palco com uma determinada forma de ser, inclu­
sagem, o diretor também faz uma das e, evidentemente, a travesti Lola, o ex- sive no campo sexual, que é tida como “na­
citações mais estranhamente belas do filme marido de Manuela, que, há 17 anos, tural”. Algo que pode-se verificar tanto em
ao aludir às mães da Plaza de Mayo, na depois de uma temporada em Paris, havia Pasolini, quanto Oscar Wilde; Fassbinder ou
Argentina - país natal tanto de Manuela retornado para ela “con tetas más grandes Jean Cocteau. E que, certamente, é uma de
quanto da atriz que a interpreta - , repro­ que las de su mujer y una polla ”, sem, con­ seus marcas registradas do diretor espanhol.
duzindo a coreografia circular que os par­ tudo, perder seus ranços machistas. Uma marca, contudo, que em Tudo
entes dos “desaparecidos” realizam diaria­ sobre minha mãe atingiu o seu ápice (sem que
mente, utilizando-se para tal de carros que A nua realidade do inauntêntico isso queira dizer, espero, que ele não poderá
rodopiam em meio a travestis. É a estas mulheres e aos homens que se se superar). Orquestrando imagens, citações
É nesse redemoinho de desejos latentes, “fizeram mulheres” — bem como às atrizes e referências como que inebriado pelo tema e
muitas vezes insatisfeitos ou violentamente que representaram atrizes, como Bette Davis, título de uma das primeiras obras men­
interrompidos, que Manuela se reencontra Romy Schneider e Cena Rowland e à sua cionadas no filme, Música para camaleões,
com La Agrado, o espetacular personagem própria mãe, que se fez atriz — que de Truman Capote - que juntamente com
divinamente interpretado pela atriz Antonia Almodóvar dedica seu filme. Tennessee Williams e Lorca formam a tríade
San Juan; um travesti que se torna porta-voz Uma dedicatória que enreda-se na de autores gays citados —, Almodóvar, sem
de umas das grandes máximas do filme (pro­ própria estrutura de um filme todo ele teci­ distanciar-se de seu apego pelo melodrama,
ferida como conclusão de um impagável do sobre o tênue limiar que, na perspectiva constrói uma belíssima narrativa sobre gente
monólogo onde ela relata os quilos de sili­ do diretor, acredito, existe entre a realidade e que sobreviví às intempéries da vida não
cone e as inúmeras operações plásticas uti­ sua representação. através da simples adaptação ou assimilação
lizados para refazer a sua própria história): a Ou melhor, um limiar sobre o qual ao meio. Muito pelo contrário.
única forma de se alcançar a autenticidade é Almodóvar transitou em alguns de seus me­ Seu universo é composto por gente que
fazendo-se exatamente da forma que se so­ lhores filmes - particularmente, na minha pari seu próprio destino; mulheres, princi­
nhou para si. opinião, nos anteriores a 1986, ou seja, antes palmente, que reinterpretam sua história
Uma prática que, em maior ou menor de Mulheres a beira de um ataque de nervos quantas vezes for necessário, a exemplo de
medida - e, às vezes, em contraponto - , e, mais recentemente, em De salto alto e Manuela e La Agrado, para atingirem o seu
encontra-se por trás das experiências da Carne Tremida - construindo um discurso ideal de felicidade.
quase totalidade das personagens com as onde se sobressaia um impulso contrário a Uma “mensagem” um tanto quanto
quais Manuela se relaciona. Um universo um determinado ideal de representação que otimista demais, pode-se até dizer. Mas
de mulheres, ou simulacros do feminino, procura valorizar a “normalidade” das coisas nunca piegas. Até mesmo porque é construí­
dotadas de uma força - e apoiadas em fan­ através da criação narrativas marcadas por da através de uma elaboradíssima trama,
tásticas interpretações - como há muito um massacrante “naturalismo”. entendida não só enquanto história contada,
não se via em um filme do diretor: a Irmã Foi para investir contra esse “naturalis­ mas, principalmente, como narrativa alinha­
Rosa (Penélope Cruz), uma freira que mo” que Almodóvar, em muito de seus vada por uma louvável maestria na manipu­
engravida e contrai o vírus do HVI do filmes, construiu universos onde tudo é lação de tudo o que o cinema pode oferecer.
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