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VESTIDO DE NOIVA:

Revolução em processo

CLÓVIS DIAS MASSA


Mestre em Artes Cênicas pela Escola de Comuni-
cações e Artes da USP, atualmente. é Professor
Assistente do Departamento de Arte Dramática na
área de Teoria do Teatro. Formado em Interpretação
Teatral pelo mesmo Departamento, atuou em espe-
táculos como As Traças da Paixão, de Alcides No-
gueira, direção de Élcio Rossini e Maiakovski: Pai-
xão, Revolução e Morte, de Shirley Rosário.

RESUMO:
A análise estética de três montagens teatrais de "Vestido de Noivan, de
Nelson Rodrigues, dirigidas por Ziembinski, Sergio Cardoso e Eduardo
Tolentino de Araújo.

PALAVRA5-CHAVE:
Dramaturgia
Encenação
Nelson Rodrigues
História do Teatro
Estética Teatral

7
Introdução de estar burguesa para outro espaço, muito mais
radical. o da "mente" de uma personagem. O im-
Nelson Rodrigues inaugurou o teatro brasi- portante, entretanto, não é a veracidade dos fatos,
leiro contemporâneo com o texto Vestido de Noi- mas a dificuldade de apreensão de uma realidade,
va, escandalizando o público de 1943 com o dra- por fim inexistente. Em Vestido de Noiva, a reali-
ma alucinatório de Alaíde, atropelada próximo ao dade é apenas uma parte, ínfima, que auxilia no
Largo da Glória, no Rio de Janeiro. Dividida em referencial do que acontece. A maior importância
três planos, a peça transcorre nas últimas horas é dada aos outros planos, o da memória e o da
de vida da moribunda, que tenta reconstituir os alucinação, que se confundem à medida em que
fatos que antecederam o acidente. Realidade, me~ se desenvolvem, resultando na criação de uma
mória e alucinação são alternadas nesta busca~ irrealidade. A partir da mcerteza factual vivida pela
de identidade da personagem, fazendo com que, personagem, o próprio espectador vivencia esta
pouco a pouco, o espectador conheça as versões irrealidade. Nelson Rodrigues convida, a nós en-
dos fatos, os quais nem sempre são verdadeiros. quanto espectadores, a participarmos do delírio de
Na memória e na alucinação, os acontecimentos Alaíde.
são transformados, resultando numa dramaturgia Nesta viagem alucinatória de Alaíde, onde
da incerteza, onde o sujeito (aquele que lê o tex- todos os personagens são projeção de seus própri-
to ou vê o espetáculo) desconfia de tudo o g_uif) os conflitos, é que encontra-se a maior característi-
lhe é informad . Mesmo a rea 1da e adquire um{ ca expressionista do texto. É impossível saber até
traço irrea, numa re1f1cação doser humano com que ponto toda a trama com Pedro e Lúc1a, a irmã,
os médicos e jornalistas imersos em sua fneza não é apenas invenção da personagem. Fatos pos-
profissional, e, por outro lado, numa humanização sivelmente verídicos misturam-se em cenas irreais
dos objetos, com os automóveis sendo acusados com personagens criados a partir da Imaginação da
de violência e abuso de velocidade (em vez do protagonista, do que ela lera no diário de Madame
motoristas). Clessi (encontrado por ela no sótão) ou nos jorna1s
r O esquema narrativo de Vestido de Noiva da época da morte da prostituta. Os planos da
é construído de modo a encaixar-se perfeitamente mó ria e da alucinação compõem o próprio inconsci-
me-)
i com a idéia de que o que é visto, além do plano da
realidade, vem do próprio subconsciente da persa-
\ nagem principal. Com uma construção dramatúr-
ente de Alaíde, pois, durante a procura pela com-
preensão do passado, até o Homem (que tem o
rosto de Pedro e aparece por várias vezes) sabe I
gica fortemente expressionista, o texto, no entan- que a causa do conflito entre ela e Pedro está rela-
to, parece permitir outras análises., de modo ator- cionada com a Mulher de Véu (Lúcia). Madame
nar possível encenações diferentes, conforme cer- Clessi também a ajuda na reconstituição dos mo-
tas escolhas enfáticas de diretores, por vezes con- mentos anteriores ao seu casamento.
ferindo uma maior importância a certos elementos Sobre o velório (que mais tarde Alaíde e
em preterição de outros. Nesta análise, à monta- Madame Clessi percebem que é o velório da prosti-
gem original, da década de 40, soma-se uma con- tuta), Alaíde em nenhum momento fala sobre a
cepção variante, a da montagem realizada por Ser- morta, mas as cenas que acontecem substituem a
gio Cardoso, em 1958, e, por último, uma terceira sua narração oral. Assim, Clessi lhe corrige os pen-
concepção, a do Grupo TAPA, em 1994. Tais en- samentos:/ Você está fazendo uma confusão:
cenações serão confrontadas a partir de textos casamento com enterro!' A narração de Alaíde é a
críticos e históricos das suas respectivas épocas, própria representação, ou seja: a sua alucinação,
com exceção da mais atual, que permite uma des- seu delírio acompanhado por Clessi, é o seu sub-
crição analítica mais subjetiva, devido a tratar-se consciente, é esta a enunc1ação, de onde partem a
de uma encenação de nosso conhecimento. trama e os personagens.
Para Guidarini, a técnica dramatúrg1ca cons-
Vestido de Noiva: dramaturgia e titui-se também como linguagem cênica, manifes-
encenações tando-se v1sual e estruturalmente. A linguagens
visuais desvelam-se na compos1ção externa does-
petáculo, enquanto que as estruturais subjazem nos
O marco renovador da dramaturgia contem- gêneros dramatúrgicos. Dentre as técn1cas
porânea vai além da arte literária: é no palco, em estruturadas
termos de encenação, que tomou forma o teatro
como é em nossos dias. Certamente o texto, em podem ser evocados os três planos de Vesti-
si, contém um caráter revolucionário, com uma pro- do de Noiva. O da realidade. O da memória.
funda mudança na temática e na estrutura. ecla E o da ilusão. A composição e trama das
primeira vez a ação passava da intimidade da sala ações se revelam ora no plano da alucinaçao
ora no nível da memória e ora, no da realida- As personagens se dividem, se duplicam, se
de. Na alucinação se projetam desejos que multiplicam, desaparecem, se solidificam, se
Alaíde sonhava ter vivido e não viveu. No ní- empanam, se clarificam. Mas acima de to-
vel da realidade são revelados momentos das elas reina uma consciência - a do sonha-
cruciais do quotidiano envolvido com ativida- dor; e diante dele não há segredos, nem in-
des dos repórteres, dos médicos e dos mo- congruências, nem escrúpulos, nem leis.
mentos de agonia. Na memória, a protago- Não há julgamento, nem absolvição, mas sim-
nista recorda fragmentos do passado amoro- plesmente narração. 5
so, o retorno impossível duma ilusão cultiva-
da em segredo. Ser igual a Madame Clessi. Em Vestido de Noiva, a consciência do so-
A profissional do amor. 1 nhador, de que nos fala Strindberg, transforma-se
em inconsciência, com a busca de Alaíde em com-
Na encenação de Ziembinski, em 1943, com preender a sua situação. O rosto de Pedro perse-
o grupo amador Os Comediantes, e cenário de To- gue Alaíde durante o transcorrer da peça. Ela o vê
mas Santa Rosa, pela primeira vez se impunha a em vários personagens: até mesmo o namorado de
noção de equipe, ao contrário da anterior hegemonia Madame Clessi tem o rosto do marido. Na verdade,
do astro sobre o restante do elenco. Segundo Sábato o olhar de Alaíde muitas vezes é também o olhar do
Magaldi, espectador. Um sabe tão pouco quanto o outro.
Mesmo quando ocorre a reconstituição da cena de
ficaram famosos os seus mais de uma cen- preparação do casamento, à medida em que a cena
tena de efeitos luminosos, quando a norma é repetida, a compreensão acontece no mesmo ins-
era uma luz para a manhã, outra para tarde e tante para a personagem e para o público. A mulher
uma terceira para a noite. E Tomás Santa que não aparece, na primeira vez em que a cena é
Rosa desenhou um cenário insuperável, pelo mostrada, transforma-se na "Mulher de Véu", na
arrojo da concepção e pureza de linhas. Na segunda vez, e, mais tarde, vê-se que é a sua irmã,
verdade, a intelligentsia teatral estava madu- Lúcia.
ra para o salto. 2 Os planos do teatro de Nelson Rodrigues -
com o seu processo de ações simultâneas, em tem-
O próprio Nelson Rodrigues, em seus depoi- pos diferentes - adquiria forma segundo o cenário
mentos, comentaria mais tarde que o teatro daque- dividido conforme a estrutura sugerida pelo autor:
la época ainda era Leopoldo Fróes, usando "o cole-
te, o sotaque e as polainas de Leopoldo Fróes. 3
Se, pela primeira vez no Brasil, podia-se ver
que havia algo além da conhecida interpretação co-
tidiana, outro estilo além do naturalista, tal fato de-
via-se à concepção expressionista de Ziembinski.
Décio de Almeida Prado, em seu O Teatro Brasi-
leiro Moderno, afirma que

o espetáculo, perdendo a sua antiga transpa-


rência, impunha-se como uma segunda cria-
ção, puramente cênica, quase tão original e
poderosa quanto a instituída pelo texto. Não
faltou quem atribuísse maldosamente o êxi-
to da peça mais a Ziembinski do que a Nel- Ala uie t•ntrcga o huqut~ de noll'll a irmii Lúcia, no final de
son Rodrigues! Vestido de Noiva U'o to Carlm).

A linguagem dramatúrgica utilizada por Nel-


son Rodrigues sem dúvida alguma permitiu a o da realidade ficava acima, num segundo
Zíembinski uma interpretação expressionista de andar; o da alucmação Jogo abaixo, diante
mise-en-scene. Em termos estruturais, com a divi- de quatro arcos ao longo dos quais ficavam
s~o de planos e a relação com o universo subcons- as escadas para o plano superior; e o da
ciente, o autor cnou a trama a partir da visão da memória no proscénio, num plano em des-
pe~sonagem protagonista, próximo ao que fala nível.6 o
o

~o
Stnndberg no prefácio de O Sonho:
No texto, entretanto, a demarcação entre um
plano e outro por vezes não se mantém nítida. No
9 ~
primeiro ato, Alaíde revela a Madame Clessi como desenvolvidos durante uma conversa, como num pin-
matara o seu marido, numa cena do plano da me- gue-pongue literário. Hélio Pellegrino explica que o
mória. Mais tarde, quando Pedro surge, a persona- diálogo sincopado é onde
gem percebe que provavelmente a sua morte fora
apenas um sonho. Também numa cena do plano da o discurso é bruscamente interrompido por
memória, ainda no primeiro ato, quando surgem um ponto final, para logo reiniciar-se e ser
quatro jornaleiros gritando as frases dos jornais, a de novo cortado, com uma precisão de alta
manchete de um deles é ':4 mulher que matou o cirurgia.9
marido!", numa referência à ação (não) praticada por
Alaíde. A construção rodrigueana da mente da per- Assim, temática e linguagem criam um uni-
sonagem, a qual no momento está em desagrega- verso expressionista valorizado pela montagem de
ção, parece levar em conta os seus desejos anteri- Ziembinski. Sua idéia era que as emoções fossem
ores ao acidente para criar possíveis fatos que teri- amplificadas por recursos tanto de esforço como de
am ocorrido no passado. contraste:
Mario Guidarini explica a irrealidade na me-
mória da personagem, da seguinte maneira: A oposição claro-escuro era chave para a
construção de uma atmosfera ambivalente,
Vestido de Noiva torna presente a realidade- tensa, em que uma luz pode espoucar aqui
ilusão pela memória da protagonista Alaíde. de repente e acolá logo em seguida, ou em
Numa mesa de operação. Corre/aciona o pas- que apenas o rosto de uma personagem é
sado com o presente. E o presente com o pas- iluminado. A sucessão de ''fade-outs" (apa-
sado/A memória de A/aíde se revela fragmen- gar das luzes) a breves intervalos também
tada em dois nívei .!ranto no plano da realida- colaborava com a sensação de mundo instá-
de quanto no plano da ilusão. A memória assu- vel, cambiante. 10
me o papel de sintaxe entre esses dois planos.
A memória, além de síntese entre realidade- Mesmo na encenação, o caráter expressionista
ilusão, possui uma dimensão significativa de- não surgia apenas no âmbito técnico do espetáculo,
corrente da própria estrutura interna. Demarca mas na interpretação dos atores, conforme a variação
ao mesmo tempo a divisão cênica do palco tam- de planos:
bém em três planos. Demarcação visual exter-
na duma estrutura intf;rna. 7 o que chamava a atenção era uma nova
maneira de contar. E na encenação de
Porém, não é somente ria temática e na es- Ziembinski, uma nova maneira de represen-
trutura dramatúrgica que se encontram característi- tar. O Ziembinski fez as partes realistas
cas expressionistas. Para Sábato Magaldi, serem representadas de uma maneira natu-
ralista, realista. Mas, por exemplo, na parte
os temas novos são insuficientes para mar- da imaginação, aí a movimentação, a colo-
car uma alteração do panorama literário, se cação de voz, a maneira de falar, tudo era
não estão sustentados por uma linguagem completamente fantástico. 11
nova. E é nesse campo, talvez, que a contri- :;:.
buição de Nelson Rodrigues se tenha revela- Vestido de Noiva, texto e encenação, procla-
do mais sigmficativa: enquanto os dramatur- !!'a o surgimento do teatro brasileiro contemporâ-
gos da geração anterior adotavam um diálo- !!eo. A luz da modernidade, confere uma importância
go artificial, com um tratamento diverso da considerável ao como contar a história e, em termos
linguagem corrente, ele restringiu a expres- de encenação, como representá-/a. Nítido é o proce-
são cênica a uma absoluta econom1a de dimento anti-realista do texto, configurando um cará-
meios. 8 ter moderno ao mesmo, quer seja aproveitando-se
dos elementos expressionistas, quer revelando uma
importância de outros. Contudo, no caso da monta-
Com uma linguagem coloquial e sincopada, gem de Serg1o Cardoso, pelo Teatro Bela Vista, o
o autor aproximou-se da linguagem cotidiana, a qual, que era reforçado como traço expressionista adquire
com sua falta de coerência sintática, por vezes, pro- outra forma. Se, na montagem de 1943, o cenário
duz um jogo de motivações internas que faz com era constituído a partir de uma realidade material,
que a comunicação das personagens tenha uma nesta outra encenação o palco está quase nu, local
construção mais complexa. Ao mesmo tempo, cria onde a interpretação dos atores acontece (dentro do
uma ironia, onde dois assuntos são simultaneamente possível) no concreto da realidade:

10
valendo-se apenas de um jogo de platafor-
mas e de alguns acessórios que os atores
trazem e levam consigo à vista do público,
sem dissimular o fato, sem se importar em
impor a ilusão cênica ao espectador. 12

O texto e ambas as encenações parecem,


pois, utilizar um recurso paradoxal entre o seu con-
teúdo e as concepções cenográfica e interpretativa. Nydia Lícia (Alaíde) em Vestido de Noiva, encenação de
Enquanto que a montagem de Ziembinski materiali- Sérgio Cardoso.
zava (em termos de cenografia) a realidade que_"fa~­
ta" ao texto, reforçando o caráter grotesco, pnncl-
palmente no plano da encenação, a mo~tagem de
Sergio Cardoso vale-se exatamente do ~rreal ~ara Talvez Sergio Cardoso tenha aproveitado a fu-
compor paradoxalmente uma in_t~rpr~ta~o próx1ma são entre os planos, que pouco a pouco ocorre no
do realismo, compondo um cenano s1mphf1cado p~ra desenvolvimento da trama, para idealizar esta sim-
sugerir um aspecto incorpóreo, elem~nto q~~ v1sa plificação. Décio de Almeida Prado, à época da pri-
criar um universo de delírio, onde a 1nstab1hdade meira encenação, lera o texto original, enviado do
impera: Rio de Janeiro para São Paulo, e declarou, mais
tarde, que os planos estavam presentes

Dentro dessa i"ealidade do cenário, que não mas não determinados. A divisão mais rígi-
representa propriamente lugar nenhum, cha- da, vamos dizer assim, foi feita pelo
ma, entretanto, tanto quanto possível, a repre- Ziembinski. Mas é o que compete ao
sentação para o te"eno concreto da realidade. encenador fazer. Realmente, estava lá uma
A distorção grotesca ou supertrágica só apa- parte da realidade, que é a operação da Alaíde,
rece quando absolutamente necessária. Nada como voz fora do palco, ele colocou no pal-
está ali, no palco, pelo seu valor plástico ou co. E o resto ele apenas separou mais nitida-
pelo seu efeito dramático ou melodramático. 13 mente o que era recordação do passado e o
que era imaginação de Alaíde. Mas não mo-
A montagem do Teatro Bela Vista parece dificou propriamente a peça. 15
negar a concepção de Ziembinski de um cenário
real para o local de representação do delírio. Não Com um cenário despojado, a separação de
querendo fazer uma reconstituição da montagem de planos foi desempenhada pela ilumi.nação, a. qual
43, o cenário refletiu a mudança de concepção, ten- variava conforme o efeito que se quena produzir. Na
do um piso de plástico transparente no plano. da alucinação, a luz vinha de baixo para cima, defor-
alucinação e da memória, estabelecendo u~a dife- mando as figuras dos atores e provocando um tom
de irrealidade. O restante era iluminado normalmen-
rença entre os planos, agora reduzidos a do1s:
te de cima para baixo.
' É curioso perceber que nos depoimentos
de Sábato Magaldi e Décio de Almeida Prado,
A peça, no original, fora dividida ness~s três
os autores percebem um tom incorpóreo e frio
planos: alucinação, memória e realidade.
nessa montagem. Enquanto que Magaldi consi-
Preferi, entretanto, dividi-/a em duas par-
dera o cenário abstrato como elemento que difi-
tes: a da alucinação e a da realidade. N_a
culta o entendimento do espectador, ao jogar a
parte da alucinação, o plano da me"!óna
aparece inicialmente com toda a lucidez,
representação na irrealidade, Prado percebe nes-
te despojamento total um ascetismo e um cere-
para se fundir lentamente com o plano da
bralismo que faz com que o público sinta menos
realidade, acabando por formar um plano
a comunicação humana. 11
único. E na parte da realidade, temos a :e-
Em uma terceira configuração 17 , a monta-
a/idade certa, concreta, imutável, constitu-
gem do grupo TAPA, dirigida por Eduardo ~olen­
indo um plano oposto, quase como o ver-
tino de Araújo, em cartaz no Teatro da Aliança
so e o reverso de uma medalha. 14
Francesa, em São Paulo, opta por uma adequa-
ção do universo de Nelson Rodrigues a partir ~e
uma encenação com o uso de uma cenografia

11
estruturalmente dividida. Ocorre, nos planos da riação de significado conforme o efeito deseja-
memória, da alucinação e, por vezes, no da re- do. Vemos, por exemplo, na primeira cena de
alidade, uma fusão completa. Entretanto, em reconstituição da preparação para o casamen-
momento algum os planos ficam reduzidos a um to, Alaíde sair acompanhada dos pais e de Dona
caráter unidimensional. O que confere uma vari- Laura. Ela é a primeira a descer, de frente para
ação aos planos é, principalmente, a criação de o público, pelas escadas do alçapão (à esquer-
um elemento cenográfico: um gigantesco espe- da do ator). Conforme um personagem desapa-
lho móvel colocado ao fundo da cena. rece, o próximo pouco a pouco vai sumindo tam-
Com cenário de Carlos Eduardo Colabone, bém. Quando o pai, o último a sair, não é mais
é a partir do espelho que, conforme a sua dispo- visto, eis que Alaíde surge no outro alçapão (ago-
sição, vemos a cena ali refletida e também nos ra à direita do ator) já vestida de noiva, subindo
vemos enquanto público, de modo a compor um as escadas de costas para o público.
duplo em seu reflexo. É importante citar que, nes- Noutra criação cenográfica, consta uma
se caso, o espelho remete à interioridade da men- escadaria em sentido paralelo ao proscênio, no
te, conforme o traço paradoxal que é ver a cena fundo do palco. Ao final dos degraus, em senti-
e, também, ser visto em cena como espectador. 18 do ascendente, uma porta, de onde surgem
Colocado acima, em diagonal, a cena deforma- personagens ao som de La Traviata, de Verdi,
se, sendo vista ao mesmo tempo de cima para e somem atrás do espelho. Ou ainda, no final
baixo. E, numa inclinação maior, o público pode do espetáculo, quando Alaíde e Madame Clessi
ver o reflexo de uma cena que acontece no inte- descem, em direção à Lúcia e à mãe. Após
rior do palco (a partir de um praticável que, mó- entregar o buquê, Alaíde inicia a volta, subindo
vel, permite o uso de alçapão): é lá que assisti- a escada em direção à porta, e a imagem
mos a cena da operação de Alaíde. Representa- congela.
da por alguns médicos, percebe-se sua movimen- A concepção cenográfica está composta
tação estilizada sobre o corpo. Na verdade, as de maneira a expressar materialmente a mente
cenas da operação, originalmente concebidas de Alaíde, sua divisão de espaço é a imagem
dentro do plano da realidade, recebem uma re- visual do subconsciente da personagem, utilizan-
tratação irreal e simbólica: não há corpo algum do, para isso, o palco: o que está abaixo (alça-
sobre a mesa de operação, a qual é uma mesa pões) e acima dele (escada).
cujo tampo é um espelho, permitindo, através de Tamanho acerto, porém, não impede que
um jogo de reflexos, que os atores sejam vistos ocorram equívocos na montagem. Por momen-
também de baixo para cima. À medida em que a tos, por exemplo, ao modificar e instaurar nova
morte de Alaíde aproxima-s.e, as vestimentas dos relação de planos, conforme mudanças na sua
médicos e assistentes varia: qe branca, inicial- posição e no seu reflexo, o espelho adquire uma
mente, passa à vermelha e, depois, no momento atenção que transfere o foco para si mesmo. Outro
da morte, à cor preta. fato é sobre a quebra da convenção do local onde
O tratamento dado ao texto tem sua conti- se passa a operação. Quando daquele alçapão
nuidade na determinação de dois alçapões, cada surge Alaíde (vista pelo público pelo reflexo do
qual em um lado do palco, próximo ao centro, de espelho}, ameaçando que, mesmo depois de
onde os atores entram e saem. Enquanto que morta não deixará a irmã livre, a utilização do
num alçapão a entrada é num sentido, noutro o mesmo espaço para mostrá-la caminhando num
sentido inverte-se, provocando também uma va- local até então não apresentado somente vem
enfraquecer a construção anterior. Somente te-
ria sentido caso Alaíde aparecesse na própria
mesa de operação, após à morte, criando um
paradoxo: quando estava sendo operada não
aparecia; agora, morta, surge deitada sobre a
mesa em meio aos médicos estáticos.
A montagem já mostrara, no entanto, uma
ótima utilização espacial, extremamente ligada
ao universo de Nelson Rodrigues. Os elementos
dramatúrgicos considerados como o tema cen-
~ tral de sua carpintaria teatral, a relação entre sexo
orv e morte, havia ocorrido de forma bem colocada
~
rv
no segundo ato. Com quatro círios dispostos de
modo a convencionar um caixão imaginário en-
o
o tre eles, ocorre ali a cena do velório de Madame
Clessi, com os presentes ao enterro reagindo surgem no desenvolvimento da trama. O plano
conforme a mórbida situação. No mesmo espaço da alucinação é pontuado por vários momentos
acontece também uma cena de Madame Clessi e de inversão lógica surrealista, como, por exem-
o namorado, os quais ignoram a convenção do plo, nos momentos em que Alaíde conversa com
caixão e deixam transparecer seus instintos se- o Homem no primeiro ato. Certamente esta óti-
xuais, entre as palavras de amor de Clessi e o ca, a do surrealismo, ainda não foi explorada de
desejo de morte do namorado. A fusão espacial modo eficaz enquanto estilo principal que confi-
de duas cenas diferentes retrata bem o teatro de gure uma mise-en-scene. Como no final da mon-
Nelson Rodrigues e sua "psicologia abismal" (con- tagem do grupo TAPA, onde Alaíde sobe ases-
forme falou Álvaro Lins em sua época), ou seja, a cadas em direção a uma porta aberta iluminada
tentação para o mal, para o pecado, para as aber- (ou, em outras palavras, uma luz no fim do tú-
rações morais, para o mórbido, que existe no in- nel), talvez este seja um dos caminhos a serem
terior de todas as criaturas. percorridos pela próxima grandiosa encenação
O expressionismo de Ziembinski confere de Vestido de Noiva.
ao drama de Alaíde um caráter impessoal de sub-
jetividade. Como no quadro O Grito, de Munch,
onde é mostrado o grito que brota de uma soli-
dão radical (um grito que se basta; grita-se por-
que só resta o grito), o delírio da personagem
também adquire o mesmo sentido. O sofrimento
de Alaíde, antes e depois do acidente, é mais do
que um sofrimento, é um delírio. Como o grito,
que é o de ninguém, mas por isso mesmo o grito
de todos, assim é o delírio da protagonista: não
é somente dela, mas nosso também, e de todo
mundo.
Uma montagem que pretenda reforçar o
dado alucinatório do texto, despojando-se dos ele-
mentos matenais. tende a provocar uma encena-
ção incorpórea, deixando o delírio da personagem
num nível contemplativo. O estranhamente somen-
te é possível ao espectador quando ele consegue
perceber algo de grotesco a partir do real. É nes-
te momento que ocorre a surpresa e a compreen-
são de uma realidade diferente da que se está
acostumado. Conforme depoimentos da encena-
ção de Sergio Cardoso, mesmo uma interpreta-
ção realista possivelmente não consegue manter
o referencial de realidade, o que é necessário para
que ela seja subvertida.
A utilização de uma outra concepção, com
o uso de diversos locais de ação, os quais confi-
guram um sentido a cada um e ao todo, lidam com
o texto como ponto de partida em vias de uma
materialização do delírio de Alaíde, sem uma divi-
são simplesmente lógica de planos (acima um, abai-
xo outro), nem a redução desses, mas seu enten-
dimento como algo visível, pronto a ser mudado,
subvertido, inovado, seja pela criação de novas di·
visões estruturais, ou pela fusão de cenas (em ter-
mos semiológícos, um significante). conferindo um
significado conhecido (sexo e morte).
Além dessas três visões de encenação,
restam-nos outros aspectos do texto que, entre·
tanto. parecem passar impunes às três encena·
ções, ou seja, os elementos surrealistas que

13
Notas:

1 GUIDARINI, Mário- Flor de Obsessão. Florianópolis,


Editora da UFSC, 1990, pp. 84-85;
2 MAGALDI, Sábato - Folha de São Paulo, caderno
Mais!, de 26 de dezembro de 1993, p. 4;
3 GUIDARINI, Mario- op. citada, p.134 (citação de Re-
acionário, p. 134, 135);
4 PRADO, Décio de Almeida - O Teatro Brasileiro Mo-
derno. São Paulo, Ed. Perpspectiva, 1996, p.40;
5 FURNESS, R. S. -Expressionismo. Editora Perspec-
tiva, Coleção Elos, São Paulo, 1990, pg. 15 (citação de
C. L. Dahlstróm, Strindberg's Dramatic Expressionism,
Referências Bibliográficas:
Ann Arbor, 1930, p. 177);
6 PIZA, Daniel - Jornal Folha de São Paulo, caderno
Mais!, de 26 de dezembro de 1993, p. 06. BORNHEIM, Gerd A. Duas Características do
70p.cit.pp.120-121; · Expressionismo in O Sentido e a Máscara. Curso
8 MAGALDI, Sábato - Panorama do Teatro Brasileiro. de Arte Dramática, Faculdade de Filosofia, UFRGS,
São Paulo, Global Editora, 1997, p. 218; Porto Alegre, 1965.
9 PELLEGRINO. Hélio. Apud MAGALDI, Sábato - Nel- CACCIAGLIA, Mario - Pequena História do Teatro no
son Rodrigues: Dramaturgia e Encenações. SP, Pers- Brasil. São Paulo, T. A. Queiroz/EDUSP, 1980.
CASTRO, Ruy- O Anjo Pornográfico. São Paulo, Com-
pectiva/EDUSP, 1987, p. 54;
1 O Daniel Piza, op. cit. p. 06; panhia das Letras, 1992.
11 Décio de A. Prado, em Mais!, op. citada, p.07. GUIDARINI, Mario- Nelson Rodrigues: Flor de Obses-
12 PRADO, Decio de Almeida - Teatro em Progresso: são. Florianópolis, UFSC, 1990.
Crítica Teatral (1955-1964). São Paulo, Martins, 1964 MAGALDI, Sábato - Nelson Rodrigues: Dramaturgia e
Encenações. São Paulo, Perspectiva/EDUSP,
p. 82;
131d.lb. 1987.
14 CARDOSO, Sérgio.Em entrevista concedida a J.J. _ . Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo, Dipel,
de Barros Bella, na Folha da Manhã de 18/05/58, Apud 1962.
MAGALDI. Sábato. Nelson Rodrigues: Dramaturgia e PIMENTEL, A. Fonseca- O Teatro de Nelson Rodngues.
Encenações, p. 88; Edições Margem, R1o de Janeiro, 1951.
15 Décio de Almeida Prado in Mais!, op. cit. p. 07. PRADO, Décio de Almeida- O Teatro Brasileiro Moder-
16 Os depoimentos estão nas obras já citadas: Nel- no. São Paulo, Perspectiva, 1988.
son Rodrigues: Dramaturgia e Encenações, p. 89, e .Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno. São
Te11tro em Progresso, p. 86; Paulo, Martins, 1956.
17 É preciso esclarecer que, evidentemente, houve . Teatro em Progresso: Crítica Teatral (1955-1964).
outras diferentes montagens do mesmo texto. Entre- São Paulo, Martins, 1964.
tanto, a montagem do grupo TAPA será analisada por .O Exercício Findo. São Paulo, Perspectiva, 1987.
uma questão de escolha.
18 Assunto tratado por Anne Ubersfeld, estud1osa fran- Jornal
cesa, no Seminário Semiologia da Representação, ocor-
rido no curso de Pós-Graduação da Escola de Comuni- Folha de São Paulo, caderno Ma1s1, matéria do dia 26
cações e Artes da Universidade de São Paulo, em julho de dezembro de 1993 mtitulada Vestido para Mudar.
de 1994.

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